Velho antes da idade

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VELHO ANTES DA IDADE Na «avenida do tempo que passa» as gerações sucedem-se, cada qual semelhante à anterior contra a qual se afirma, cada qual diferente da outra, posto que evoluem as condições em que lhes é dado crescer. Retrospectivamente, os conflitos da história parecem sempre irrisórios. O envelhecimento é suposto trazer a serenidade; numa civilização em que o emburguesamento parece ser o desenlace da História, Bertolucci recorre ao cinema para propor uma imagem descomprometida — porque simultaneamente fabricada a posteriori e à margem do circuito do estrito interesse da actualidade — da nossa História recente. Os filmes de Bertolucci são um testemunho da nossa consciência das nossas origens e postulam que a diferença fundamental entre a nossa situação e a dos nossos pais reside justamente nessa consciência. Todos os seus filmes encenam a maneira como o lugar do pai vai ser ocupado pelo filho, quer a nível físico — LA LUNA— quer a nível da imagem — A ESTRATÉGIA DA ARANHA — quer ainda no plano das responsabilidades pessoais — de PRIMA DELLA R1VOLUZIONE a O ÚLTIMO IMPERADOR. O conflito que os opõe é tão-somente motivado pela transferência do poder e resulta de uma recusa de envelhecer de ambas as partes, recusa essa que o próprio tempo se encarrega de resolver. A consciência retrospectiva da inutilidade do conflito poderá evitá-lo? Bertolucci parece acreditar que sim e é nesse sentido que os seus filmes revelam um empenhamento profundo. Porém, a analogia homotética entre os conflitos psíquicos do indivíduo e os da História leva Bertolucci a uma interpretação anti-sartriana do papel do homem nesta última: o indivíduo só se compromete num sentido ou noutro na medida em que a atitude que toma lhe permite resolver simbolicamente os problemas pessoais com que se debate; os tais problemas pessoais, em última análise, norteiam o seu empenhamento — é pela afirmação deste primado que Bertolucci se distingue de Louis Malle (entre alguns filmes do primeiro e do segundo existiriam, à primeira vista, singulares parentescos: UM SOPRO NO CORAÇÃO com LA LUNA, O CONFORMISTA com LACOMBE LUCIEN); acresce que Malle dá uma importância fundamental ao acaso que a interpretação determinista de Bertolucci elimina completamente. Assim, as personagens da.sua obra constroem-se pela simplificação extrema, com base em «tipos» que representam um grupo social ou ideológico mais lato, e pela grande complexidade das motivações que os fazem agir. Ora a submissão dos problemas pessoais às soluções que a História propõe torna inconsistente o empenhamento das personagens e reduz a sua consciência a uma ilusão, a sua acção a um mal-entendido e a sua vida a uma «tragédia ridícula». Esta igualdade no irrisório, padrão pelo qual todas as personagens que partilham uma identidade de condição humana são medidas, revela-se contagiosa: o camponês e o proprietário continuam a zangar-se (já nem sequer é propriamente uma luta) no último plano de NOVECENTO sem se aperceberem que se tornaram parecidos, que são essencialmente iguais e que sempre o foram a despeito da diferença de posição social. O mesmo princípio rege O ÚLTIMO IMPERADOR que postula a normalidade (quase trivialidade) dos problemas do imperador sob o pesado aparato do seu quotidiano e apesar do isolamento ao qual o rito da corte chinesa o condena. As pulsões mais excessivas das personagens mais «responsáveis» em termos de acção histórica são assim explicadas por frustrações simplistas comuns aos militantes de todos os campos, e, por conseguinte, se não justificadas, pelo menos atenuadas do ponto de vista moral: o fascista «conformista» não passa de um cobarde e o fascista monstruoso (D. Sutherland em NOVECENTO) é um tarado, independentemente da ideologia que defende. Com efeito, no fim de contas, a História é um engano, e a própria acção «revolucionária» esconde motivos humanos que nada têm a ver com a generosidade. Assim, o herói era um traidor (A ESTRATÉGIA DA ARANHA) e o rapto era simulado (A TRAGÉDIA DUM HOMEM RIDÍCULO). PRIMA DELLA R1VOLUZIONE vêm os problemas sentimentais — sempre edipianos, visto que o intelectual cuja mulher é cobiçada pelo «conformista» é um «pai espiritual», assim como Marlon Brando corresponde a uma imagem paterna para M. Schneider em O ÚLTIMO TANGO EM PARIS muito antes de o tema ser frontalmente abordado em LA LUNA (e neste filme, mais uma vez, as personagens não têm escolha, dado que a fixação amorosa é condicionada por um esquema psíquico


intemporal)—, e o romance de Stendhal A Cartucha de Parma é adaptado por Bertolucci como uma apologia do compromisso social e político e da renúncia — as teses posteriores do cineasta já se encontram, de facto, em estado embrionário no primeiro filme que assina. A opção por uma estética espectacular corresponde a uma preocupação de simplificação e de exemplaridade do discurso que por isso se estrutura em função de uma ordem «superior» cuja harmonia plástica eterna — a dos cenários, paisagem imutável dos campos ou robustez dos monumentos históricos urbanos (do prédio «arte nova» de O ÚLTIMO TANGO EM PARIS à Cidade Proibida de O ÚLTIMO IMPERADOR) — contrasta com a insignificância dos humanos empenhamentos. S.


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