Zé álvaro morais (faro cc 2005)

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SEM POMPA (Quem quer ter nome de rua?) É através da acção que os homens escrevem a História. O seu sentido retrospectivo depende do número de dados tidos em conta: o poder não pode, propriamente falando, «reescrever» a História, no máximo consegue apagá-la. São os testemunhos – qualquer que seja a sua forma, da pedra à pena – que constituem o património cultural de cada povo. A vastidão das problemáticas levantadas pelos seus filmes justifica, a meu ver, que José Álvaro Morais mereça lugar de destaque – lugar que funcione como referência – no seio desse património, ao lado de um punhado de cineastas reconhecidos: Oliveira, claro está, Reis/Cordeiro, Paulo Rocha e João César – e de outros – como Pêra – cujo reconhecimento, quero acreditar, virá mais tarde ou mais cedo. Portugal não se distinguiu em tantos domínios que seja aceitável continuar a desvalorizar o contributo dos cineastas – sem dúvida mais importante do que o dos pintores, dos músicos ou dos encenadores de teatro, e portanto comparável ao importante espólio literário do século passado. Noutros termos: de um ponto de vista estritamente patrimonial, a obra de José Álvaro Morais vale bem a de José Saramago. Num país obcecado pelos problemas de identidade, os filmes de José Álvaro Morais apresentam os dilemas do pós-revolução mais directamente do que qualquer outro documento e constituem um dos retratos mais verdadeiros do estado do país e da sua burguesia: entre o «que fazer das armas?» (ao nível simbólico e ao nível prático) – e essa dupla valência, de testemunho e de efabulação, joga tanto no percurso dos protagonistas (no plano intra-diegético) como para o espectador – e o «como encenar a consciência identitária», nessa pequena obra-prima, de visão obrigatória, intitulada O BOBO. Do profundo desencanto, portador de toda a espécie de renúncias, com que O BOBO violentamente nos confronta, o cineasta passará a um hino ao legado da cultura árabe, sistematicamente sonegado ou menosprezado em nome das costelas celtas e romanas pelos fazedores de história oficial, e depois à denúncia, eivada de um lirismo que era fruto de um engajamento pessoal e de um real compromisso com as personagens, que desemboca numa reflexão semi-humorística acerca da normalização (entre um casamento sem amor e a negociação de uma fatia de herança latifundiária por parte do filho adulterino de uma talhante, bastardo omnipresente do senhor) em PEIXE LUA; por fim, reencontramo-lo entregue a uma meditação enlutada sobre a cobardia e a fuga (inclusive a fuga para a frente) num Portugal em que a nostalgia dos valores do antigo regime não se apagou, tendo pelo contrário deixado marcas que obrigam os protagonistas a escolher entre o enlouquecimento e o estropiamento dos afectos – no seu derradeiro, e sibilino quanto baste, QUARESMA. Retratos pessimistas, encenação de sucessivas renúncias – à revolução, à liberdade, à aventura passional – nos quais os intelectuais da nossa praça não gostam provavelmente de se rever, a questão é que a obra de José Álvaro Morais nem provocou o consenso de estima de Oliveira, nem o escândalo de Monteiro. À imagem do seu tímido autor, ela caracteriza-se por uma desejada discrição Nem o prestigioso grande prémio obtido em Locarno assegurou ao filme uma carreira comercial nas salas, nem a submissão de José Álvaro às exigências da ganadaria Paulo Branco abriram caminho a um digno acolhimento e difusão da sua obra – «Respeitámos o plano de trabalho!», dizia-me ele com amargura, «Mas não vai ser possível rodar um skyline interessante da cidade da Covilhã», acrescentava, quando lhe perguntei como correra a rodagem de QUARESMA, em parte filmada em décors ligados à sua família. Nem mesmo a retumbante revelação do talento de Beatriz Batarda lhe granjeou o reconhecimento da sua verdadeira envergadura. Creio que José Álvaro sofria da pouca atenção concedida ao seu trabalho, tanto mais que cada filme representava um risco pessoal considerável: entre a sequência da iniciação dos jovens pescadores (em O BOBO) e a reconstituição, cruel exercício de antecipação, de um funeral de família (em QUARESMA), cada filme constitui simultaneamente um balanço do estado da nação (ou, pelo menos, da consciência nacional), uma confissão (porventura transfigurada por um intercessor, como Visconti em PEIXE LUA) e uma reflexão sobre as formas cinematográficas e seus modelos – de Syberberg e Godard em O BOBO a Hitchcock em QUARESMA. Tenho por prova disso a escolha da minha pessoa para redigir a análise crítica dos seus filmes com vista à publicação do livro que deveria ter acompanhado a sua retrospectiva em Santa Maria da Feira: não éramos amigos, nem


sequer conhecidos, e sei que a seus olhos, eu só podia representar uma voz polémica – pois entre nós o menor rasto de empenhamento é logo apelidado de «panfletário» – deseinterssada – longe dos círculos lisboetas de alta pressão – e solidária – embora até então me tivesse limitado a escrever dois curtos artigos na revista «A Grande Ilusão». Ora o acolhimento que me reservou foi caloroso, as suas respostas preocupadas com o grau de clareza. A sua maneira comedida de estar não denotava nenhum embaraço – embora talvez algum pudor – e os seus comentários, à medida que a conversa se prolongava, deixavam transparecer um certo prazer em verificar que o meu olhar crítico visava compreender, não julgar. O nosso encontro teve lugar na Tóbis. No fim, levou-me à mesa de montagem onde se construía o QUARESMA e mostrou-me a incrível cena em que Beatriz Batarda mergulha literalmente no sarcófago de pedra, cheio de água, à entrada da igreja. Lembro-me de ter sugerido interrogativamente: «a tua mise-en-scène das relações conjugais e ideológicas passa para outro patamar: que morte simbólica terão as tuas personagens de enfrentar?». «És demasiado perspicaz...» foi a sua lacónica resposta. Mas algo como uma cumplicidade ficara aliselada. Eu não sabia que seria a morte do próprio José Álvaro que me seria dado afrontar. É tempo, já que nos restam os filmes, de reivindicar e difundir o mais alargadamente possível o património que nos legou – esse mesmo que nos permite descobrir, com a justa distância (i.e. sem recorrer ao jogo de identificaçãoprojecção), as nossas origens, a nossa herança, a matéria de que são feitos os nossos sonhos (pois o inconsciente, sobretudo o inconsciente colectivo, tal como a linguagem, é matéria herdada). Esse mesmo que permite definir-nos, em suma. Saguenail Deixa-me chamar-te só José Como o carpinteiro que velava sobre um berço de madeira E um menino de carne e osso E abalou até ao Egipto Porque toda a inocência se encontrava ameaçada. Deixa-me dizer-te que VISITEI os teus filmes E isto é algo que posso dizer de poucas obras Talvez de alguns parágrafos de Camilo, De Virginia Woolf, Robert Pinget, Carlos de Oliveira Maria Gabriela Llansol, Lewis Carroll E poucos mais. Na casa desses filmes Debati-me com uma incómoda familariedade E senti-me observada Sem que as personagens tivessem de abandonar a ficção Para devassar a minha vida mental. Que injustiça utilizar este verbo De mercenários e salteadores Quando toda a vida mental procura a sua morte No encontro do olhar de quem se ama. E é também a pessoa que amo Que os teus filmes me ajudam a compreeender Isto é: a acompanhar. Por vezes deixámo-nos acalentar pelo teu pensamento E isso é razão de sobra Para uma gratidão melhor do que eterna: Intermitente, Inspiradora, Impura. Regina Guimarães


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