h - Suplemento do Hoje Macau #44

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PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2622. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

ARTES, LETRAS E IDEIAS

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GRASS

A vergonha da Europa O escritor Günter Grass voltou a publicar um poema no jornal alemão Süddeutsche Zeitung, desta vez a criticar a política da Europa em relação à Grécia, lamentando que esta, por estar a enfrentar uma crise económica, esteja a ser humilhada. “A Vergonha da Europa” é o título do poema. QUASE DOIS meses depois de ter comparado Israel com as ditaduras, Günter Grass voltou a publicar um poema no jornal alemão Süddeutsche Zeitung desta vez a criticar a política da Europa em relação à Grécia, lamentando que esta, por estar a enfrentar uma crise económica, esteja a ser humilhada. “A Vergonha da Europa”, assim intitulou o seu poema o escritor alemão, que não se conteve nas críticas à atitude da chanceler alemã Angela Merkel, que defende que a austeridade é a única forma de a Grécia suplantar a crise que atravessa. Nos seus versos, o Nobel da Literatura lembra ainda a história da

Grécia, a quem a Europa muito deve. “Tu vais definhar privada de alma sem o país que te concebeu, tu, Europa”, escreveu Günter Grass, num poema com 12 estrofes de dois versos cada. Num diálogo directo com a Europa, o escritor vai ainda mais longe e evidencia que é graças à riqueza histórica da Grécia, conhecida como fundadora do pensamento ocidental, que muitos museus vivem. “Tu afastas-te do país que foi o teu berço, próximo do caos, porque não conforme aos mercados”, escreve Grass, acrescentando que a Grécia “condenada à pobreza, cujas riquezas ornamentam os museus”, é “agora mal tolerada”.

“Humilhado, porque crivado de dívidas, um país sofre”, conclui. Numa referência à história da filosofia antiga, Günter Grass termina o poema escrevendo que a Europa está a obrigar a Grécia a beber de um copo envenenado, tal como Sócrates bebeu a cicuta e foi injustamente condenado pelos atenienses, segundo o relato do filósofo grego Platão, em Apologia de O poema não passou despercebido e está já a gerar controvérsia na Alemanha: para Günther Krichbaum, presidente da comissão de assuntos europeus do Bundestag (Parlamento alemão), membro do partido de Merkel, as palavras de Günter Grass ignoram a realidade,

“particularmente a realidade de que a Grécia foi enormemente ajudada com enormes esforços que, no fim, não vêm dos estados mas sim dos cidadãos e das suas carteiras”. Em Abril, Günther Grass foi considerado “persona non grata” pelo governo israelita, depois de ter publicado um poema no qual advertia que o Estado judaico era uma ameaça para o mundo devido ao seu poder nuclear. Defensor de causas de esquerda e que se manifestou por exemplo contra as intervenções militares no Iraque, o escritor alemão foi durante décadas considerado uma espécie de “consciência moral” da Alemanha.


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Europas Schande

A Vergonha da Europa

Dem Chaos nah, weil dem Markt nicht gerecht, bist fern Du dem Land, das die Wiege Dir lieh.

Ainda que próxima do caos, por não agradares ao mercado, Longe estás da terra que de berço te serviu

Was mit der Seele gesucht, gefunden Dir galt, wird abgetan nun, unter Schrottwert taxiert.

O que com a alma procuraste e pensaste encontrar, É hoje por ti desdenhado como algo descartável.

Als Schuldner nackt an den Pranger gestellt, leidet ein Land, dem Dank zu schulden Dir Redensart war.

Nua, no patíbulo do devedor, sofre uma nação A quem agradecer era antes natural.

Zur Armut verurteiltes Land, dessen Reichtum gepflegt Museen schmückt: von Dir gehütete Beute.

País condenado a ser pobre, cuja riqueza adorna cuidadosos museus: saque por ti vigiado.

Die mit der Waffen Gewalt das inselgesegnete Land heimgesucht, trugen zur Uniform Hölderlin im Tornister.

Os que invadiram com armas essa terra bendita de ilhas Levavam, junto ao uniforme, Holderlin na mochila.

Kaum noch geduldetes Land, dessen Obristen von Dir einst als Bündnispartner geduldet wurden.

País somente tolerado, mas cujos coronéis Toleraste um dia como aliados.

Rechtloses Land, dem der Rechthaber Macht den Gürtel enger und enger schnallt.

País sem lei em que o poder, que tem sempre razão, Aperta mais e mais o cinto.

Dir trotzend trägt Antigone Schwarz und landesweit kleidet Trauer das Volk, dessen Gast Du gewesen.

Desafiando-te, visto de negro Antígona e no país inteiro está hoje de luto o povo de quem hóspede eras.

Außer Landes jedoch hat dem Krösus verwandtes Gefolge alles, was gülden glänzt gehortet in Deinen Tresoren.

Fora desse país, os acólitos de Creso juntaram nas tuas salas Tudo quanto brilhava e era dourado.

Sauf endlich, sauf! schreien der Kommissare Claqueure, doch zornig gibt Sokrates Dir den Becher randvoll zurück.

Bebe de uma vez, bebe! Grita a claque de comissários, mas Sócrates devolve-te irado a taça plena.

Verfluchen im Chor, was eigen Dir ist, werden die Götter, deren Olymp zu enteignen Dein Wille verlangt.

Os deuses amaldiçoaram em coro, como lhes cabia, Mas sem o teu consentimento não se poderá expropriar o Olimpo.

Geistlos verkümmern wirst Du ohne das Land, dessen Geist Dich, Europa, erdachte.

Sem esse país definharás, Europa, privada do espírito que um dia te concebeu.

POEMAS DE

HAN SHAN Tradução de António Graça de Abreu

Um poema de Günter Grass

Versão portuguesa de Carlos Morais José

Ein Gedicht von Günter Grass


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Gunter Grass explica o injustificável e injusto apoio do governo e do povo alemão a Israel a uma inconfessada vergonha nacional e à necessidade de expiar o forte sentimento de culpa . O seu oportuno poema colocou o dedo na ferida.

DEDO NA FERIDA

CONSIDERADO POR MUITOS O ESCRITOR MAIS MAL DISPOSTO DO MUNDO DEPOIS DE SARAMAGO, GUNTER GRASS CRIOU POLÉMICA HÁ MENOS DE MÊS POR TER PUBLICADO UM POEMA SOBRE ISRAEL E O IRÃO.

Paulo Muzell A PUBLICAÇÃO de um simples poema provocou a enorme controvérsia. É verdade que circunstâncias muito peculiares explicam a grande repercussão. Primeiro pela autoria e nacionalidade do autor. Günter Grass é alemão e prémio Nobel de Literatura, para muitos o maior escritor vivo do país. Os seus versos criticam a posição da Alemanha que apoia incondicionalmente Israel a ponto de fabricar e financiar cinco submarinos nucleares, dois em fase final de

montagem e três já entregues ao governo de Benjamin Netanyahu. O poeta e romancista afirmou que aumentar o poder militar de Israel – especialmente o seu arsenal nuclear – representa um sério risco à paz mundial. E tem toda razão. Sabemos que a cada acção invariavelmente corresponde outra, não necessariamente igual, mas contrária. Explica-se, assim, a crescente fobia norte-americana de que seja dada uma resposta à crescente militarização de Israel. Primeiro os Estados Unidos acusaram Sadam Hussein e invadiram o Iraque sob

o pretexto de uma suposta existência de um arsenal nuclear. Mero pretexto porque o arsenal nuclear era ficção, não existia. Agora os Estados Unidos e Israel acusam o governo do Irão de estar desenvolvendo programas nucleares com fins militares. Embora o alegado temor de que um suposto perigo nuclear árabe sirva como conveniente pretexto dos norte-americanos para intervir em países e aumentar seu controlo da região, a verdade é que Günter Grass tem razão: a expansão territorial israelita assente num crescente poderio militar e na posse de armas nucleares representa um sério e efectivo perigo à paz mundial. Amira Hass uma respeitada e conhecida jornalista israelita independente, que realiza seu trabalho no território palestiniano ocupado, em recente entrevista registou mais do que uma simples posição crítica, manifestou a sua indignação com a dominação imposta aos palestinianos por Israel: “…(os palestinianos) são impedidos por lei de circularem livremente, forçados a um regime de confinamento e de toque de recolher.” E narra um episódio exemplar. Num certo dia, deparou-se com um menino intrigado com a omnipresença militar, que lhe perguntou: “os judeus já foram bebés, crianças como nós ou já nasceram crescidos, de uniforme e de metralhadora?” De 1967 até hoje a área ocupada por Israel expandiu-se e equivale a quase 80% da área original da Palestina. E nos poucos mais de 20% do território restante vivem os palestinianos, divididos em duas áreas totalmente isoladas uma da outra. O palestiniano não tem o direito de se deslocar de uma para a outra nem para visitar familiares. E nestas áreas duas áreas existem dezenas de colonatos que pela lei israelita constituem parte do “seu” território, onde o palestiniano não pode pisar ou sequer atravessar.

O resultado é um povo fragmentado, empobrecido, sem liberdade e qualquer perspectiva futura. A forma de manter a dignidade que resta é o gesto de desespero de investir como homem-bomba ou em veículo explosivo contra alvos israelitas. Assim, os grupos populares palestinianos de resistência à ocupação são chamados pelo governo sionista e pela media ocidental, equivocadamente, de terroristas. Fica claro que o estado israelita – com maciço apoio da imprensa europeia, norte-americana e da maioria dos países periféricos ocidentais – quer convencer o mundo que os palestinos não têm o direito de se defender da violência e da barbárie. Que o que lhe resta é morrer em silêncio, sem protestar. Günter Grass explica o irrestrito, o injustificável e injusto apoio do governo e do povo alemão a Israel a uma inconfessada vergonha nacional e à necessidade de expiar o forte sentimento de culpa por ter criado uma das maiores monstruosidades perpetradas pela civilização ocidental-cristã: a indústria da morte do nazismo. O seu oportuno poema colocou o dedo na ferida. Em guisa de conclusão cabe citar as sábias palavras finais de Amira Hass na citada entrevista. Respondendo a uma pergunta sobre o que ela, como jornalista e cidadã sonhava para o futuro do seu povo e de seu país, respondeu: “a experiência ensinou-me a ser modesta até nos sonhos. Tenho a esperança que o meu povo perceba, antes que seja tarde demais, que a superioridade militar não garante a segurança e a vida normal na região. Paz e justiça não são incompatíveis. Será possível estabelecer a paz na região a partir do momento que rompamos com a política de exclusão imposta aos palestinianos desde a criação do EsDemocracia, o novo fantasma dos mercados


O QUE HÁ A DIZER Porque guardo silêncio, há demasiado tempo, sobre o que é manifesto e se utilizava em jogos de guerra em que no fim, nós sobreviventes, acabamos como meras notas de rodapé. É o suposto direito a um ataque preventivo, que poderá exterminar o povo iraniano, conduzido ao júbilo e organizado por um fanfarrão, porque na sua jurisdição se suspeita do fabrico de uma bomba atómica. Mas por que me proibiram de falar sobre esse outro país [Israel] onde há anos - ainda que mantido em segredo – se dispõe de um crescente potencial nuclear, que não está sujeito a qualquer controlo, já que é inacessível a qualquer inspecção?

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me impedia de atribuir esse facto, como evidente, ao país de Israel, ao qual estou unido e quero continuar a estar. Por que motivo só agora digo, já velho e com a minha última tinta, que Israel, potência nuclear, coloca em perigo uma paz mundial já de si frágil? Porque há que dizer o que amanhã poderá ser demasiado tarde, e porque – já suficientemente incriminados como alemães – poderíamos ser cúmplices de um crime que é previsível, pelo que a nossa quota-parte de culpa não poderia extinguir-se com nenhuma das desculpas habituais.

Admito-o: não vou continuar a calar-me porque estou farto O silêncio geral sobre esse facto, da hipocrisia do Ocidente; a que se sujeitou o meu próprio é de esperar, além disso, silêncio, que muitos se libertem do silêncio, sinto-o como uma gravosa mentira exijam ao causante desse perigo e coacção que ameaça castigar visível quando não é respeitada: que renuncie ao uso da força “anti-semitismo” se chama a e insistam também para que os condenação. governos Agora, contudo, porque o meu país, de ambos os países permitam o controlo permanente e sem acusado uma e outra vez, entraves, rotineiramente, por parte de uma instância de crimes muito próprios, internacional, sem quaisquer precedentes, vai entregar a Israel outro submarino do potencial nuclear israelita e das instalações nucleares iranianas. cuja especialidade é dirigir ogivas aniquiladoras Só assim poderemos ajudar todos, para onde não ficou provada israelitas e palestinianos, a existência de uma única bomba, mas também todos os seres se bem que se queira instituir o humanos medo como prova… digo o que há que nessa região ocupada pela a dizer. demência vivem em conflito lado a lado, Por que me calei até agora? odiando-se mutuamente, Porque acreditava que a minha e decididamente ajudar-nos origem, marcada por um estigma inapagável, também.

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O FILHO PRÓDIGO A Europa acredita que, através dessa inversão anacrónica, a culpa do crime irá desaparecer. E chegará um dia em que os europeus poderão afirmar, de cabeça limpa e sem vergonha da sua imagem no espelho:”Eles, os judeus, não são melhores do que nós”. João Pereira Coutinho Folha de São Paulo in

TODAS AS famílias têm seus motivos de vergonha: infidelidades, burlas, crimes. A família europeia tem uma vergonha maior. Chama-se Holocausto. E não é fácil engolir a matança maquinal e sistemática de milhões de seres humanos, na sua maioria judeus (porque a “solução final”, convém lembrar aos amnésicos, intitulava-se “solução final para a questão judaica”), sem risco de indigestão grave. O Holocausto é uma mancha que não sai da consciência europeia. E uma das formas de lidar com ela é invertendo os papéis dos personagens, transformando as vítimas em carrascos. Nos últimos anos, essa metamorfose tem sido praticada com fervor pela “intelligentsia” ocidental: os judeus de hoje não são muito diferentes dos nazistas de ontem; Gaza é um novo gueto de Varsóvia; e Israel é uma espécie de Terceiro Reich no Oriente Médio. A Europa acredita que, através dessa inversão anacrónica, a culpa do crime irá desaparecer. E chegará um dia em que os europeus poderão afirmar, de cabeça limpa e sem vergonha da sua imagem no espelho:”Eles, os judeus, não são melhores do que nós”. Eis, em resumo, o poema que Günter Grass escreveu na imprensa alemã e que levou Israel a declará-lo “persona non grata”. Superficialmente, o poema de Grass é apenas mais uma acusação à política de Tel Aviv, ao seu programa nuclear e às suas alegadas intenções de atacar o Irão. Curiosamente, as ameaças directas do Irão a Israel, que na verdade começaram as hostilidades, não figuram na obra literária de Grass. E não figuram porque Grass é um caso à parte: aos 17 anos, o escritor marchou com as Waffen-SS, a tropa de elite de Hitler, e serviu ao Terceiro Reich nos seus momentos finais. Um segredo tão “vergonhoso” que o próprio só recentemente decidiu partilhá-lo com os leitores da sua autobiografia, “Descascando a Cebola”. Infelizmente, esse pecadilho de juventude, escondido a vida inteira, ainda não está ultrapassado. E só isso explica que, algures no poema, Grass se permita sen-

tenciar que Israel é hoje a maior ameaça à paz mundial. A frase, que poderia ter sido dita por Mahmoud Ahmadinejad ou qualquer outro antissemita do gênero, não deveria merecer grande comentário. Mas, por uma vez sem exemplo, será que Grass tem razão? A resposta a essa pergunta poderia ser dada por um compatriota do escritor. Em 2005, o cientista político Josef Joffe escreveu para a revista “Foreign Policy” um ensaio célebre em que imaginava a história do Oriente Médio sem a existência de Israel no mapa. “Um mundo sem Israel”, lia-se na capa. E, no interior, esse mundo não era muito diferente do mundo que existe hoje. Sunitas e xiitas não seriam menos inimigos; os cristãos da Síria, do Egipto ou do Iraque não estariam a ser menos perseguidos; a Arábia Saudita não teria melhores relações com os aiatolás de Teerão; Saddam não teria poupado a vida de curdos ou xiitas ou kuwaitianos; a guerra entre o Iraque e o Irão, o mais longo conflito do século 20, não teria sido evitada. E, sobre o destino dos palestinos, a luta de “libertação” seria provavelmente dirigida contra o Egito e a Jordânia, caso esses dois países ainda dominassem Gaza e a Cisjordânia (ne: Judéia e Samária) como o fizeram até 1967. Por outras palavras: o fracasso político, econômico e cultural do Oriente Médio, esse oceano de 1 bilhão de muçulmanos, não se explica com uma gota de 5 milhões de judeus. Explica-se pelo autoritarismo, pela ignorância e pelo fanatismo dos seus líderes. Günter Grass discorda. E, no seu poema-manifesto, limita-se a coligir os velhos temas do antissemitismo clássico: os judeus manipulam o mundo e, na sua ânsia de o dominarem, acabarão por destruí-lo. O seu líder de juventude, Adolf Hitler, não diria melhor. Um mérito, porém, devemos reconhecer a Grass: o seu poema foi publicado nas vésperas do Pessach, um período que, durante a Idade Média e mesmo depois, servia para acusar os judeus de usarem o sangue dos gentios na feitura do pão da Páscoa. Era o pretexto ideal para as perseguições antijudaicas. Günter Grass não é tão primitivo como os antecessores. Mas o seu sentido de “timing” é digno de um Fred Astaire.


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DEMOCRACIA

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O NOVO FANTASMA DOS MERCADOS

Slavoj Žižek,

in London Review of Books

“O indivíduo que odeia os progressistas em Londres, apresenta-se como progressista em África” Chesterton, 18081 IMAGINE-SE UMA cena de um filme distópico que mostre a nossa sociedade num futuro próximo. Guardas uniformizados patrulham ruas semivazias dos centros das cidades, à caça de emigrantes, criminosos e desocupados. Os que encontram, são espancados. O que parece uma fantasia de Hollywood já é realidade hoje, na Grécia. Durante a noite, vigilantes uniformizados com as camisas negras do partido neofascista Golden Dawn [Aurora Dourada], de negacionistas do Holocausto –, que obtiveram 7% dos votos na segunda volta das eleições gregas e que contam com o apoio, como se ouve pela cidade, de 50% da polícia de Atenas – patrulham as ruas, espancando todos os emigrantes que se cruzem no seu caminho: afegãos, paquistaneses, argelinos. É como a Europa se defende hoje, na primavera de 2012. O problema de defender a civilização europeia contra a ameaça dos emigrantes é que a ferocidade com que os defensores europeus se defendem é uma ameaça muito maior a qualquer “civilização”, que qualquer tipo de invasão de muçulmanos, e ainda que todos os muçulmanos se decidissem mudar para a Europa. Com defensores como estes, a Europa não precisa de inimigos. Há cem anos, G.K. Chesterton deu forma articulada ao impasse em que se metem os que criticam a religião: “Homens que se põem a combater igrejas em nome da liberdade e da humanidade espantam de si mesmos a liberdade e a humanidade em nome do combate à igreja (…). Os secularistas não provocaram o naufrágio das coisas divinas; só fizeram naufragar coisas seculares… se isso lhes serve de consolo.” [1] Tantos guerreiros liberais andam tão furiosamente decididos a combater o fundamentalismo anti-democrático, que acabam por esquecer qualquer liberdade e qualquer democracia, tudo em nome de combater o terror. Se os “terroristas” estão dispostos a destruir o nosso mundo por amor a outro mundo, os nossos guerreiros antiterror prontificam-se a devastar qualquer democracia, por ódio ao próximo muçulmano. Alguns deles amam tanto a dignidade humana que, para defendê-la, dispõem-se a legalizar a tortura… É a inversão do processo pelo

qual os fanáticos defensores da religião começaram por atacar a cultura secular contemporânea e acabaram por sacrificar até as próprias credenciais religiosas, na ânsia de erradicar todos os aspectos que odeiam no secularismo. Mas os que insistem em defender a Grécia contra os emigrantes não são o principal perigo: não passam de subproduto do perigo muito maior: as políticas de austeridade que causaram a desgraça da Grécia. As próximas eleições estão marcadas para dia 17 de Junho. O establishment europeu alerta que são eleições cruciais: não estaria em jogo só o destino da Grécia, mas o destino de toda a Europa. Um resultado – o correcto, segundo eles – levará ao processo doloroso mas necessário de recuperação. A alternativa – no caso de vitória do Partido Syriza, de “extrema esquerda” – seria votar no caos, pelo fim do mundo (europeu) como o conhecemos. Os profetas do apocalipse estão correctos, mas não como supõem ou pretendem. Críticos dos arranjos democráticos hoje vigentes reclamam que as eleições não oferecem opção real: votamos para escolher apenas entre uma centro-direita e uma centro-esquerda cujos programas são quase absolutamente idênticos. Mas dia 17 de Junho, afinal, haverá escolha significativa: de um lado o establishment (Nova Democracia e Pasok); do outro lado, a Coligação Syriza. E, como acontece quase sempre em que há escolhas reais no mercado eleitoral, o establishment está em pânico: caos, pobreza e violência eclodirão imediatamente, dizem, se os eleitores escolherem “errado”. A mera possibilidade de vitória da Coligação Syriza, como se ouve, já fomenta convulsões de medo nos mercados. A prosápia ideológica é fulgurante: os mercados falam como se fossem gente, manifestam “preocupação” pelo que acontecerá se as eleições não produzirem governo com mandato para manter o programa de austeridade e reformas estruturais da UE-FMI. Os cidadãos gregos não têm tempo para pensar nas preocupações “dos mercados”: mal conseguem ter tempo para se preocupar com a sobrevivência diária, numa vida que já alcança graus de miséria que não se viam na Europa há décadas. Todas essas são previsões enunciadas para se autocumprirem, causar mais pânico e, assim, forçar as coisas a andarem na direcção “prevista”. Se a Coligação Syriza vencer, o establishment europeu ficará à espera de que aprendamos com os nossos erros o que acontece quando alguém tenta interromper, por via democrática,

o ciclo vicioso de cumplicidade criminosa entre os tecnocratas de Bruxelas e a demagogia suicida do populismo anti-emigrantes. Foi exatamente o que disse Alexis Tsipras, candidato da Coligação Syriza, em entrevista recente: que a sua prioridade absoluta, no caso de vencer as eleições, será conter o pânico: “Os gregos derrotarão o medo. Não sucumbirão. Não se deixarão chantagear.” A tarefa da Coligação Syriza é quase impossível. A coligação não traz a voz da “loucura” da extrema esquerda, mas a voz do falar racional contra a loucura da ideologia dos mercados. No movimento de prontidão para assumir o governo da Grécia, já derrotaram o medo de governar, tão característico entre a esquerda; já mostraram que não temem fazer a limpeza do quadro confuso que herdarão. Terão de mostrar-se capazes de montar e cumprir uma formidável combinação de princípios e pragmatismo; de compromisso democrático e presteza para intervir com firmeza onde for preciso. Para que tenham uma mínima hipótese de sucesso, precisarão de toda a solidariedade dos povos europeus; não só de respeito e tratamento decente pelos demais países europeus, mas, também, de ideias mais criativas – como a de um “turismo solidário” nesse verão, que já propuseram.

A Grécia não é excepção. Testa-se um novo modelo socioeconómico: uma tecnocracia despolitizada, na qual banqueiros e outros especialistas ganham carta branca para demolir a democracia Nas suas Notes towards the Definition of Culture, T.S. Eliot [2] observou que há momentos em que a única escolha é entre a heresia e o não crer – ou seja, quando o único meio para manter viva uma religião é promover uma divisão herética. Essa é, hoje, a posição em que está a Europa. Só uma nova “heresia” – representada hoje pela Coligação Syriza – pode salvar o que valhe

a pena do legado europeu: a democracia, a confiança nas pessoas, a solidariedade igualitária etc. A Europa que haverá para nós, se a Coligação Syriza for descartada, é uma “Europa com valores asiáticos” – os quais, é claro, nada têm a ver com a Ásia, e tem tudo a ver com a tendência do capitalismo contemporâneo, para suspender a democracia. Eis o paradoxo que mantém o “voto livre” nas sociedades democráticas: cada um é livre para escolher, desde que faça a escolha certa. Por isso, quando se faz a escolha errada (como quando a Irlanda rejeitou a Constituição da União Europeia), a escolha é tratada como erro; e o establishment imediatamente exige que se repita o processo “democrático”, para que o erro seja reparado. Quando George Papandreou, então primeiro-ministro grego, propôs um referendo sobre a proposta de resgate que a eurozona apresentara no final do ano passado, até este foi afastado como falsa escolha. Há duas principais narrativas nos media, sobre a crise grega: a narrativa alemã-europeia (os gregos são irresponsáveis, preguiçosos, gastadores, não pagam impostos, etc.; e têm de ser postos sob controle, com aulas de disciplina financeira); e a narrativa grega (a nossa soberania nacional está ameaçada pelo tecnologia neoliberal imposta por Bruxelas). Quando se tornou impossível ignorar o suplício do povo grego, emergiu uma terceira narrativa: os gregos estão a ser apresentados hoje como vítimas de desastre humanitário, carentes de ajuda, como se alguma guerra ou catástrofe natural tivesse atingido o país. As três são falsas narrativas, mas a terceira parece ser a mais repugnante. Os gregos não são vítimas passivas. Os gregos estão em guerra contra o establishment económico europeu. Precisam de solidariedade nessa luta, porque a luta dos gregos é a luta de todos nós. A Grécia não é excepção. É mais uma, dentre várias pistas de testes de um novo modelo socioeconómico de aplicação quase ilimitada: uma tecnocracia despolitizada, na qual banqueiros e outros especialistas ganham carta branca para demolir a democracia. Ao salvar a Grécia de seus ditos “salvadores”, salvaremos também a Europa. –[1] CHESTERTON, Gilbert K., Orthodoxy [1908], “VIII: The Romance of Orthodoxy”, em http://www.leaderu.com/cyber/books/orthodoxy/ orthodoxy.html (ing.) [NTs]. [2] ELIOT, T. S. Notas para uma definição de cultura. Lisboa: Século XXI, 1996.


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C H I N A C

烟台YANTAI, PROVÍNCIA DE SHA


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R Ó N I C A

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ANDONG, COM UM FILHO NOS BRAÇOS António Graça de Abreu NA ORLA marítima, no nordeste de Shandong, diante da Coreia, não muito longe do sul do Japão, fica a cidade de Yantai, a velha Chefoo. Com um dos melhores portos de mar da província de Shandong -- o sétimo mais movimentado de toda a China --, a cidade, hoje com milhão e meio de habitantes, é cosmopolita e está aberta ao mundo. No início do século XX era habitada por cidadãos de dezasseis países diferentes, existiam consulados da França, Inglaterra, Rússia, Bélgica e Suécia. Nos dias que correm, voltou a conhecer uma presença permanente de estrangeiros sobretudo sul-coreanos e japoneses, a trabalhar nas muitas empresas de import-export. Nos arredores de Yantai são cuidadosamente plantados e ajudados a crescer incontáveis pomares onde se colhe alguma da melhor fruta da China. Aqui também se cultivam uvas e se produzem milhões de garrafas dos mais conhecidos vinhos chineses. Há uns trinta e cinco anos atrás, os chineses foram a Bordéus buscar uns tantos enólogos franceses que, bem pagos, lhes ensinaram uns tantos segredos associados ao fabrico do vinho, à utilização de diferentes castas, à fermentação, etc. Não deverão talvez faltar muitos anos para que em França, ou em Portugal, se comece a beber vinho de Bordéus ou de Chianti, made in Yantai, China. O clima da região é ameno, nem demasiado calor no Verão, nem excessivo frio no

Inverno. Se é possível tal comparação, esta província de Shandong terá o clima em toda a China mais semelhante ao do nosso Portugal. Eis a terra destinada pelos acasos dos pequenos deuses que governam os concertos e desconcertos do mundo, eis o lugar dos “ terraços de fogo”1 debruçados sobre o mar Amarelo escolhido para o nascimento de um dos meus filhos. O menino veio para Yantai não no bico da cegonha mas, com sete meses de gestação, na formosa barriga da mamã. A mãe havia decidido, com o consentimento um pouco tremido do pai, que o segundo rapaz da prole luso-chinesa deveria ter a terra da China para nascer, ou em Xangai ou na província de Shandong. No chão úbere dos antepassados iria, pela primeira vez, abrir os olhos para as sombras e iluminação do mundo. Acabou por nascer em Yantai onde alguns primos tinham uma boa casa e condições mais do que suficientes para acolher bem o bebé e a mamã. No dia 5 de Agosto de 1992, ao encontro do filho que ainda não nascera, voei de Lisboa para Moscovo e logo depois de Moscovo para Pequim, na velha Aeroflot. Pus o pé na terra da capital chinesa às onze da manhã do dia 6 de Agosto. Depois apanhei um táxi para casa de Yuan Liang, um amigo chinês de Shandong a estudar em Pequim que me iria dar o apoio logístico mínimo na breve estada na capital. No lar simples de Yuan Liang tomei banho, telefonei para Yantai, (na época não existiam telemóveis!) falei com a minha cunhada que me disse que o menino tinha acabado de nascer, naquela manhã, exactamente às onze horas. Bastou o pai pisar o solo da China para o rapaz, em simultâneo com a chegada do progenitor, se resolver a sair dos confortos do regaço da matriarca e caminhar para as luzes do mundo. Nessa noite apanhei o comboio de Pequim para Yantai. Foram dezoito horas de viagem para os novecentos quilómetros, em classe “cama dura”, num comboio ronceiro e sujo. Ao chegar a Yantai, esperando-me na estação, tinha a minha cunhada Huan Huan e o meu filho João, (em chinês chama-se Dong Ming!) então com quatro anos e meio de idade e já integrado na família chinesa com quem vivia há dois meses. Entrámos rapidamente num táxi rumo ao Hospital das Crianças onde o menino nascera. Subi célere os degraus da maternidade, atravessei salas e corredores. De repente, apareceu ao fundo uma enfermeira. Avançou para mim com uma trouxa vermelha suspensa nos braços e disse: “Nide haizi”, o “seu filho”. O bebé, perfeito e bonito, tinha apenas a ca-

beça à vista. Apertei em mim aquele corpinho, braços, tronco e pernas, tudo envolvido num pequeno cobertor vermelho, a cor da felicidade na China. Levei-o abraçado em direcção ao quarto onde a mãe estava à minha espera. Depois houve lágrimas a rolar em rostos cansados. Recordando José Régio na “Toada de Portalegre”, escrevera um poema e um filho me nascera. Nas semanas seguintes em Yantai, enquanto a minha mulher era alimentada a canja de rolas e o menino crescia, comprei uma bicicleta a pedal e ia com o meu filho mais velho sentado numa cadeirinha de verga presa ao quadro da bicicleta até à praia. E que satisfação mergulhar nas águas calmas do Oceano Pacífico, jogar à bola com o meu rapaz, correr na areia da praia, único estrangeiro entre milhares de chineses… A prima Sun Yuxia, que nos acolhera na sua casa era professora na Universidade Central de Yantai. Falou-me na óptima biblioteca da sua Faculdade, com muitas obras em inglês, incluindo traduções de poesia clássica chinesa. Eis-me, logo depois, navegando pelo coração de uma biblioteca na China, a mexer e remexer em prateleiras de livros muitos deles parados há dezenas e dezenas de anos e cobertos de pó. Descobri uma edição de 1935, da editora Kelly & Walsh, de Xangai com o título The Prose-Poetry of Su Tung-po, parte dela bilingue, com traduções de Cyril Drummond Le Gros Clark. Trouxe o livro para casa e fui-me entretendo com a leitura sempre edificante e divertida do textos e poesia do sábio Su Dongbo, Su Tung-po ou Su Shi (1037-1101)), um dos maiores poetas da dinastia Song cuja vida como mandarim o levou frequentemente a cair em desgraça (oito despromoções!) e ao exílio, por ser demasiado honesto e inteligente. Quando o seu quarto filho completou um mês de vida, Su Dongbo escreveu: Dando banho ao meu filho bebé, para me divertir Os pais educam os filhos, esperam que sejam inteligentes. Toda a minha vida a inteligência só me trouxe dissabores. Espero que o meu filho seja ignorante, estúpido, assim não será difícil chegar a cortesão, talvez a ministro. 1 烟台, Os dois caracteres de Yantai significam exactamente “terraços de fogo”. O nome foi-lhe dado no século XV quando, face às investidas por mar dos pitratas japoneses, se acendiam fogeiras em platafomas nas colinas que rodeiam a cidade, avisando-se assim as populações de presença da indesejada pirataria.


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P R I M E I R O B A L C Ã O

luz de inverno

Boi Luxo

WIM WENDERS

PINA, 2011

Eu não gosto particularmente deste filme mas, como acontece com tantos outros filmes de Wim Wenders, não deixo de admirar a objectividade e a certeza com que ele se dirige, sempre e de um modo absolutamente encantado, em direcção ao que lhe interessa. Sob esta perspectiva é um autor de uma imensa honestidade. Continuo a pensar, e não sou o único, que os filmes mais inspirados que fez são os filmes alemães em geral e os de estrada em particular, Alice in den Städten, Im Lauf der Zeit e Falsche Bewegung, filmes que realizou quando ainda não sabia bem o que andava a fazer. Nos filmes que Wenders faz fora da Alemanha, e são muitos, parece que este nunca encontra o que anda à procura, seja isto na América, em Lisboa ou em Tóquio, e esta incapacidade cobre-o também de alguma humildade. Não deixo igualmente de confessar que acho todos os filmes de Wenders bastante úteis, mesmo que não saiba bem de onde vem (nem como usar) esta utilidade. É raro que deles não se desprenda um odor ou uma cor (aqui um movimento) que continuaremos a recordar ou a utilizar. Talvez por isso este seja um realizador que além de bom e humilde, é útil. Não tenho dúvidas que daqui a 30 anos os filmes de Wenders serão vistos, senão com muita paixão, pelo menos com muita comoção. Pina tem uma utilidade particular, que consiste em promover um exercício que os espectadores menos familiarizados

com a dança farão de um modo menos automático, que é o da aproximação da dança ao teatro e destas duas formas ao cinema. Mais não fosse, Pina serviria para lembrar como o cinema é, entre tantas outras coisas, uma sucessão de quadros de deslocação de corpos na paisagem. Uso aqui descaradamente a boa ideia de Ed Halter a propósito de um filme que não vi mas só pode ser bom, Once Upon a Time in Anatolia, de Nuri Bilge Ceylan. Lembro também agora, repentinamente, esse filme recente, extremamente balético, que é Aurora, de Cristi Puiu. Ou os filmes de Bresson e Weerasethakul. Pina obriga a pensar em outros filmes, como Vale Abraão, de Manoel de Oliveira, onde a palavra faz dançar os actores ao ritmo feroz e irónico de Oliveira e Bessa-Luís; ou nas longas passadas fantasmagóricas do Dreyer de Ordet ou Gertrud; ou nos stacattos de Gohatto, de Oshima. Acho que este filme de Wenders vai obrigar a olhar para os corpos dos outros filmes de modo diferente e obrigar a olhar para a dança como algo de muito mais democrático. A dança são os corpos dos filmes mas a dança também somos nós. O que eu menos gosto em Pina é que é um filme sentimental. Mas é um filme sentimental porque a sua intenção apologética dificilmente poderia ignorar as circunstâncias que rodearam a sua filmagem. No entanto, muitas das imagens de dança que ele nos mostra acabam por fazer esquecê-lo. O incómodo sentimental

que o filme pode causar provém de algo exterior a Bausch e a Wenders e são os comentários que os bailarinos fazem sobre a coreógrafa. Contudo, as palavras, aqui, são o menos importante. As circunstâncias que rodearam a morte de Bausch, muito repentina e brutal, terão deixado os seus colaboradores sem palavras, ou as palavras sem poder. Como a própria Bausch diz “... as palavras, também, pouco mais podem fazer do que evocar coisas. É aí que entra a dança”. E é isto mesmo que acontece, uma sucessão de planos de espectáculos de Pina Bausch entrecortados por pequenos tableaux baléticos executados na sua maioria ao ar livre e pequenos textos de louvor, de autoria dos seus bailarinos, em várias línguas – alemão, português, coreano, inglês, espanhol, russo, entre outras, numa mostra ecuménica do que se tornou a Tanztheater Wuppertal. Nestes quadros vemos como em Bausch há uma pujança da solidão e do desespero (o melhor exemplo Café Müller) que vive a par com a representação do pulsar vital dos elementos, da terra, do ar, da água, do minério (A Sagração da Primavera ou a peça em que os bailarinos dançam com a água e um enorme penedo - Vollmond). É como a solidão dos filmes de estrada de Wenders, e como a fixação do seu olhar no deserto ou em lotes vazios em Paris, Texas, em Land of Plenty, no filme do fim do mundo, o da Austrália, ou nas alturas dos anjos de Berlim. Places, Strange and Quiet é o título da exposição de fo-

tografias de Wenders que se mostrou em Londres há cerca de um ano e que está agora em Hamburgo. Nos dois, Bausch e Wenders, há também muitas vezes recurso ao humor. Neste filme ele está quase sempre presente. Se aqui só há um cliché tipicamente wenderiano, o primeiro plano, nocturno, da cidade, muitos dos trechos dos espectáculos de Pina Bausch escolhidos ecoam desesperos e espantos dos seus filmes. Este é o único plano nocturno de todo o filme, os outros quase todos solares. De admirar é que em Pina, que poderia ter adoptado um tom elegíaco, isso não aconteça. Ao contrário do que se passa, por exemplo, em Alice in den Städten ou Falsche Bewegung, as cenas de exterior são quase sempre filmadas sob um sol glorioso e celebratório. Mais comovente é que elas o sejam numa cidade, Wuppertal, que traz imediatas recordações do filme de Wenders que as pessoas mais amam: Alice in den Städten, Alice das Cidades no bonito nome português. Este não chega a ser um cliché, apenas uma outra homenagem certa a uma cidade - como haviam sido feitas a Berlim, Lisboa ou Tóquio. No final são estas imagens, as imagens de dança captadas pela cidade de Wuppertal, umas em ambientes industriais e outras em ambientes naturais, que mais estonteantemente nos chamam a atenção para a importância que no cinema tem a inscrição do corpo no cenário. Saímos da sala de cinema a pensar que todo o cinema é dança.


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T E R C E I R O O U V I D O

próximo oriente

Hugo Pinto

EM BUSCA DO TEMPLO PERDIDO “I am searching for faith, beauty and hip-hop I am searching for all those who died between hip-hop and heaven And all souls set adrift and free from bedlam With headstrong lyrics that rise like smoke from silver incense burners I wonder who stole the thunder with the rasping edge And who banged for baptisms with butterflies, serpentine roads and sunsets broken by cicadas Have we really lost our century in an hour? Are we devoured by blind faith in the powers that be? Are these words as tense as drawn bow strings? Shall we rebuild the tears like sap from rubber trees? Answer me! Answer me you T.S. Elliots in goose down jackets with your felt tip urban hieroglyphs, spliff smoke, and spray paint Answer me you soliloquists with clenched fists ‘round the mike Answer me you angels in adidas” Attica Blues, “The Quest” Houve um tempo em que, mais do que um género musical, o Hip-Hop era, juntamente com o Rap, uma força de expressão e um contra-poder, uma espécie de linguagem de oprimidos que servia para denunciar opressores (“The Black CNN”, nas palavras de Chuck D, dos lendários Public Enemy). Com origem nas comunidades afro-americanas, o Hip-Hop foi, desde o início e durante anos, uma expressão artística original dos guetos, mas com o passar dos anos alcançou uma universalidade que transformou substancialmente narrativas e discursos a ela associados. Hoje, conotações ideológicas, políticas e sociais foram, maioritariamente, substituídas por referências a artigos de luxo, sexo e machismo, sinais do estrondoso sucesso comercial daquela que, entretanto, se tornou numa das facetas mais lucrativas da indústria da música. A alteração do discurso não significa, necessariamente, que a realidade tenha mudado e que a opressão tenha acabado, ou que oprimidos e opressores tenham trocado de papéis ou desaparecido do mapa. Na verdade, continua, hoje como ontem e, com toda a probabilidade, como sempre, a haver razões para os “T.S. Elliots in goose down jackets”, como nas palavras dos Attica Blues, atirarem rimas que atingem como flechas o coração das injustiças. A mais popular forma de cultura urbana do nosso tempo é usada ainda como linguagem de protesto e transformação social, algo muito próximo das raízes deste género de música que deixou de ser

apenas isso para se tornar sobretudo num estilo de vida que aproximou gerações de jovens em todo o mundo. Foi isso que aconteceu em Myanmar, a antiga Birmânia, hoje a despertar de um período negro, depois de anos sob o jugo de ferro da Junta Militar. Num país que se pareceu com uma prisão gigante e onde o que chegava de fora era escasso, o Hip-Hop foi para muitos jovens um instrumento de resistência e esperança. Esta semana, Myanmar viveu mais um virar de página soprado pelo benigno vento da mudança: pela primeira vez em 24 anos, Aung San Suu Kyi viajou para fora do seu país. No passado dia 1 de Abril, a activista, líder da oposição e prémio Nobel da Paz foi eleita deputada pela Liga

Nacional para a Democracia, o partido que lidera e que inclui nas suas fileiras Zayar Thaw, igualmente eleito deputado nas históricas eleições de Abril. Em 2008, Zayar, actualmente com 31 anos de idade, foi condenado a 5 anos de prisão (cumpriu 3), acusado de espalhar mensagens anti-governo nas letras do seu grupo de Hip-Hop, Acid. A Amnistia Internacional considerou-o um dos muitos “prisioneiros de consciência” do país. “Beginning”, lançado em 2000 pelos Acid, foi o primeiro disco de Hip-Hop alguma vez editado em Myanmar. O disco, apesar dos esforços do governo da altura, foi um sucesso de vendas. Nas letras das músicas havia, de facto, referências veladas a desejos de liberdade, críticas e alusões a uma certa “Lady”, como é conhecida Aung San Suu Kyi. Zayar Thaw foi eleito deputado pelo círculo de Naypyidaw, a capital “inventada” em 2006, construída de raiz no meio da selva pela mesma Junta Militar que rebaptizou um país outrora conhecido como Birmânia. Curiosamente, o lugar de deputado de Zayar foi ocupado no passado pelo actual presidente do país, Thein Sein. As mudanças por que Myanmar tem passado nos últimos tempos são muitas e de significado profundo. Que um músico, neste caso de Hip-Hop, esteja envolvido, a vários níveis, nessas mudanças é um sinal de esperança para a juventude birmanesa. Oxalá não falte muito até que de Myanmar venha também Hip-Hop mundano e superficial – que haja liberdade. Para tudo e mais alguma coisa.

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Michel Reis Quando a tarde passa, abre-se outra porta. Se o morcego voa, a estrela desponta, Ser de hoje ou de sempre, nada disso importa, Todo o tempo corre só por nossa conta. Sei de praias brancas, de velas queimadas, Se perdi meus passos em longa carreira, Tive pais e filhos, tive namoradas, E encontrei-me logo aqui mesmo à beira. Jogo minhas cartas na mesa da vida, Recolho moedas e penas também, Alma incandescente, de frio transida, Quem me dá certezas que o livro não tem? O vinho bebido ao sangue juntei, E os frutos da terra descobri em mim, Que ninguém me diga que morreu sem lei, Que ninguém me diga que morreu assim! Mário Cláudio FAZ NO próximo dia 12 de Junho 3 anos que Bernardo Sassetti, Mário Laginha e Pedro Burmester apresentaram em estreia na Ásia o seu projecto “3 PIANOS” no Grande Auditório do Centro Cultural de Macau, a convite da Casa de Portugal em Macau, naquele que foi, estou certo, na opinião de muitos, um dos mais memoráveis concertos dos últimos anos em Macau. Tive não só o privilégio de apresentar este desafiante projecto à Casa de Portugal, mas sobretudo o enorme prazer de acompanhar os três velhos amigos e a sua agente de longa data, Olga Carneiro, no decorrer da sua estadia em Macau. Nessa ocasião, Bernardo Sassetti (pela segunda vez em Macau após a sua estreia no território no Festival Internacional de Jazz de Macau em Maio de 2001, em quarteto), brindou o público, primeiro a solo e depois a 6 mãos com Mário Laginha e Pedro Burmester, com as suas bonitas e imortais composições “Tema para uma leitura encenada” e “Sonho dos Outros”, que quem esteve presente no concerto dificilmente esquecerá. Numa conferência de imprensa realizada no dia anterior ao concerto, Sassetti revelava que “3 PIANOS” se tratava de um espectáculo poucas vezes visionado, uma vez que era desejo dos três pianistas “mantê-lo especial”. Comentava ainda, num ambiente compassado pela música do DVD de “3 PIANOS”, que “o primeiro concerto (2005) foi uma experiência”, em que nenhum dos três sabia muito bem o que ia acontecer em palco. Afirmando que existia “um gozo enorme” no trabalho que o trio desenvolvia em conjunto, salientou que cada um tem uma abordagem diferente ao piano, pelo que o espectáculo “é um desafio de concentração enorme”. Bernardo Sassetti, Mário Laginha e Pedro Burmester actuaram juntos pela primeira vez no dia 25 de Novembro de 2005, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, tendo obtido grande êxito. A ex­periência

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BERNARDO SEMPRE foi repetida no mesmo espaço em 2006 e, mais tarde, no Europarque, em Santa Maria da Feira. Em 2008, “3 PIANOS” voltou a subir aos palcos no Festival Internacional de Música do Algarve, em Lagoa. Com actuações sempre esgotadas, o trio, com créditos já dados no mundo da música, apresentava um repertório de Jazz e música clássica, em solos, duetos e trios. Após a apresentação em Macau, Vila Nova de Cerveira e Loulé, “3 PIANOS” seria ainda apresentado, com um novo conteúdo programático, em três concertos realizados na famosa Sala São Paulo, no Brasil, e em dois concertos realizados no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, nos dias 20 e 25 de Novembro de 2011. O súbito e trágico desaparecimento no passado dia 10 de Maio de um dos membros deste extraordinário trio, Bernardo Sassetti, caiu como uma bomba, deixando uma lacuna impreenchível no universo do Jazz. Todos lhe reconhecem a paixão, a beleza e a grandeza de alma, que punha em tudo quanto fazia. Uns conheciam-no melhor do que outros, mas para saber quem era Bernardo Sassetti bastava ouvi-lo. O piano falava por ele e é a ele que quero prestar uma humilde e sentida homenagem com estas linhas. Será de mais recordar quão frágil e efémera é a nossa existência e que o que tomamos tantas vezes por garantido afinal não está? Nascido em Lisboa em Junho de 1970, Bernardo da Costa Sassetti Pais, bisneto de Sidónio Pais, inicia os seus estudos de piano clássico aos nove anos com a professora Maria Fernanda Costa e, mais tarde, com o professor António Menéres Barbosa, tendo frequentado também a Academia dos Amadores de Música. Dedica-se ao Jazz, estudando com Zé Eduardo, Horace Parlan e Sir Roland Hanna. Em 1987 começa a sua carreira profissional, em concertos e clubes locais, com o quarteto de Carlos Martins e o Moreiras Jazztet; participa em inúmeros festivais com músicos tais como Al Grey, John Stubblefield, Frank Lacy e Andy Sheppard. Desde então, nos primeiros 15 anos de carreira, apresenta-se por todo o mundo ao lado de nomes famosos do Jazz como Art Farmer, Kenny Wheeler, Freddie Hubbard, Paquito D´Rivera, Benny Golson, Curtis Fuller, Eddie Henderson, Charles McPherson, Steve Nelson, integrado na United Nations Orchestra e no quinteto de Guy Barker com o qual gravou o CD “Into the blue” (Verve), nomeado para os Mercury Awards 95- Ten albuns of the year. Em Novembro de 1997, também com Guy Barker, grava “What Love is”, acompanhado pela London Philarmonic Orchestra e tendo como convidado especial o cantor Sting. O seu primeiro trabalho discográfico como líder, “Salsetti” (Groove/ Movieplay), foi gravado em Abril de 1994 com a par-

ticipação de Paquito D’Rivera, o segundo, “Mundos” (Emarcy/ Polygram), em Janeiro de 1996; “Nocturno” (2002/ Clean Feed), gravado em Belgais, em casa de Maria João Pires, seria distinguido com o 1º prémio Carlos Paredes. “Indigo” e “Livre” são outras das suas gravações de piano a solo para a mesma editora. Apresentou-se frequentemente em duo com o pianista Mário Laginha, com quem gravou os CD’s “Piano a 4 Mãos” (2003) e “Grândolas” (uma homenagem a Zeca Afonso e aos 30 anos do 25 de Abril - 2004) e em trio com Carlos Barretto e Alexandre Frazão em “Ascent” (Bernardo Sassetti Trio, 2005/ Clean Feed), “Alice” (banda sonora do filme, 2005/ Trem Azul), “Unreal: Sidewalk Cartoon” (2006/ Clean Feed), “Dúvida” (2007/ Trem Azul), “3 PIANOS” (2007/ Incubadora d’artes), “Um Amor de Perdição (2009/ Trem Azul), “Palace Ghosts And Drunken Hymns” (com Will Holshouser Trio, 2009/ Clean Feed), “Second Life” (2009), e “Motion Bernardo Sassetti Trio” (2010/ Clean Feed), entre muitos outros. A sua mais recente colaboração com o fadista Carlos do Carmo, em “Carlos do Carmo & Bernardo Sassetti” (2011/ Universal), é uma fusão entre as personalidades musicais dos dois músicos; não é um disco de Fado, nem é um disco de Jazz. José Afonso, Sérgio Godinho, Fausto e Rui Veloso foram os compositores nacionais escolhidos. Violeta Parra, Léo Ferré e Jacques Brel surgem revisitados neste encontro inédito. Pelo meio, um original de Bernardo Sassetti com poema original de Mário Cláudio, acima transcrito. De entre muitas outras muitas colaborações (como solista, acompanhador e compositor) podem destacar-se as seguintes: Conrad Herwing e Trio de Bernardo Sassetti – “Ao vivo no Guimarães Jazz”; Orquestra Cubana Sierra Maestra – “Dundumbanza” e “Tibiri tabara”; Carlos Barreto – “Impressões” e “Olhar”; Carlos Martins com Cindy Blackman – “Passagem”; Luis Represas – “Cumplicidades”; Carlos do Carmo “Ao vivo no Coliseu”; Guy Barker – “Into the blue”, “Timeswing” e “What love is”; Perico Sambeat – “Perico”; Guillermo McGill – “Cielo” e “Oración”; Tetvocal – “Desafinados”; Djurumani – “Reencontro” e Andy Hamilton – “Jamaica by night”. Dedicou-se regularmente à música para cinema, tendo realizado vários trabalhos, de entre os quais se destaca a sua participação no filme do realizador Anthony Minguella – “The Talented Mr. Ripley” (Paramount/ Miramax). Para este projecto gravou “My Funny Valentine” com o actor Matt Damon, entre outros temas. Compôs igualmente, em parceria com o trompetista Guy Barker, uma série de temas para serem apresentados na première deste filme realizada em Los Angeles, Nova Iorque, Chicago, Berlim, Paris Londres e Roma. Outros trabalhos impor-

tantes de composição para cinema incluem: “Maria do Mar” de Leitão Barros, “Facas e Anjos” de Eduardo Guedes, “Quaresma” de José Álvaro Morais, “O Milagre Segundo Salomé” de Mário Barroso, “A Costa dos Murmúrios” de Margarida Cardoso, “Alice” de Marco Martins, o documentário “Noite em Branco” de Olivier Blanc e a curta-metragem “As Terças da Bailarina Gorda” de Jeanne Waltz. Como solista, participou também no filme “Pax” de Eduardo Guedes e na curta-metragem “Bloodcount” de Bernard McLoughlan.

Como compositor destacam-se as suites “Ecos de África”, “Sons do Brasil”, “Mundos”, “Fragments (of Cinematic Illusion)”, “Entropé” (para piano e orquestra) e “4 Movimentos Soltos” (para piano, vibrafone, marimba e orquestra). Como refere Manuel Jorge Veloso, compositor, crítico e figura pioneira na divulgação do Jazz na televisão portuguesa, sobre o traçado da carreira fulgurante de Bernardo Sassetti, “Apesar dos traços reconhecíveis que aqui e ali sempre assomam na música que nos propôs, foi a sua criatividade multifacetada que cada vez mais se reforçou, não se remetendo o talentoso músico à contínua e eterna reiteração das opções pianísticas e de repertório com que, há vinte anos, brilhantemente irrompeu pela cena jazzística portuguesa. (…) A grande viragem nas apostas estéticas de Bernardo Sassetti a caminho da plena maturidade e hoje estendidas, para além do jazz, aos domínios da música para cinema e multimédia (…) julgo que se pode situar em inícios da década de 2000 – ou seja, meia dúzia de anos passados sobre a edição de


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metrópolis “Mundos” (1996). (…) Com efeito, a publicação de “Nocturno” (2002), com a mesma formação em trio (com Carlos Barreto e Alexandre Frazão), seguida dois anos mais tarde pela gravação em solo absoluto de “Indigo” (2004) e pouco depois reforçada (no que ao mesmo trio se refere) em certas peças de “Ascent” (2005), iriam contribuir para a revelação de uma nova identidade de compositor e, sobretudo, de uma atitude de não seguidismo em relação ao que de mais trivial se costuma fazer com os standards ou com composições provenientes de outros mundos culturais que sempre tanto atraíram Sassetti: as músicas latinas, populares ou eruditas. (…) Acentuando e tornando mais movimentada a componente harmónica e a polivalência rítmica das suas peças – e assim dando maior riqueza e diversidade às melodias temáticas que delas brotam – Bernardo Sassetti é hoje um compositor e um improvisador de muito maior fôlego, capaz de optar pela via do desenvolvimento em constante progresso (mais do que da simples variação sobre estruturas rígidas) e de reforçar, como uma componente importante da sua música, o uso e a valorização do silêncio. Ainda no plano da invenção, é hoje muito mais sensível e enérgica, no pianista, a distinção entre os momentos de introspecção racional e de extroversão emotiva. (…) Sassetti habituou-nos a um certo continuum de familiaridade no seu percurso criativo, como líder de enorme firmeza e personalidade musical, como solista inventivo entre os demais, como compositor de grande sensibilidade e, ainda, como sideman de poderosa intervenção e cumplicidade cooperativa.” Manuel Jorge Veloso refere ainda, a propósito do desaparecimento de Bernardo Sassetti: “Ao Bernardo só não se aplica em rigor a frase de circunstância ‘ainda tinha muito para dar’ porque já nos dera tanto que parecia indecente pedir-lhe mais. Embora se percebesse que, nas curvas intrincadas e contraditórias do caminho criativo, o ser sensível e de olhos espertos que buscava ir sempre mais além, encontraria, a todo o momento, como nos surpreender e reconfortar. Inventor instantâneo e compositor reflectido, Sassetti continuará, nos seus discos, nas suas bandas sonoras e ainda na memória do seu riso e cuidado espírito de humor, a estar presente entre nós, a dar-nos conta dos passos justos e certos que, muito para além do nosso entendimento, sempre acabam por dar os criadores singulares.” No dia 19 de Maio, em simultâneo com as eleições dos seus novos corpos sociais, o Jazz Club de Macau transmitiu no Auditório da Casa Garden dois espectáculos em homenagem a Bernardo Sassetti: “3 PIANOS” – Bernardo Sassetti, Mário Laginha e Pedro Burmester, no Centro Cultural de Belém (CCB), Lisboa, Outubro de 2006 e “Carlos do Carmo & Bernardo Sassetti”, realizado em Agosto de 2010. Esperemos que esta tenha sido apenas a primeira homenagem do, em boa hora renascido, Jazz Club de Macau ao grande artista e homem que foi Bernardo Sassetti.

Tiago Quadros*

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A MULHER NÓMADA DE TÓQUIO

NO 9 HOURS hotel a experiência de uma noite de sono é reduzida ao seu mínimo funcional: uma rotina de nove horas pré-determinadas: uma hora para tomar banho, sete horas de sono, uma hora de repouso e preparação (1 hour shower + 7 hour sleep + 1 hour rest = 9 hours)1. A escolha deste hotel em específico deve-se ao facto de este ser aquele que leva mais longe o conceito de hotel cápsula. Neste hotel, o sujeito deixa no check-in todos os pertences pessoais, incluindo a própria roupa. Tudo é providenciado, desde pijama a escova de dentes. Todos os objectos são cópias absolutamente iguais, sem qualquer espaço para a manifestação de subjectividades. No interior do hotel, é como se o homem se tornasse apenas mais um autómato, circulando de acordo com as setas no pavimento, deixando a possibilidade de escolha no cacifo dos seus pertences pessoais. Este apagamento da individualidade é reforçado pelo próprio design do espaço, onde os objectos que poderiam despoletar memórias e emoções, criar vínculos, foram totalmente removidos: “tudo foi desenhado para si e o seu propósito é sempre claro”2. Aqui, nada mais importa do que a função. O homem entra na sua cápsula, é arrumado na sua gaveta, e repousa. Nenhuma outra possibilidade existe para além daquela que está pré-determinada. No entanto, aqui reside um dos as-

pectos mais intrigantes em relação a estes hotéis. Estas cápsulas são como células que se assemelham curiosamente a um conjunto de tocas, de casulos, apertados uns contra os outros. Quando entramos nas cápsulas, destituídas de qualquer memória, objectos ou decoração, conseguimos isolar-nos no seu interior de tal forma que o exterior deixa de ter presença. Não existe subjectividade mas a ideia de refúgio parece exacerbar-se. Ao ser pensada como uma extensão ergonómica do próprio corpo, a cápsula acentua um certo ideal de protecção, uma imagem de um recanto onde nos aninhamos sobre nós próprios e esquecemos o mundo exterior, o conforto do ventre materno. Poderão estas cápsulas demonstrar que é possível um quarto ser refúgio íntimo sem ter qualquer identidade? Observemos um projecto teórico, desenvolvido entre 1985 e 1989, da autoria de Toyo Ito, arquitecto japonês. A Mulher Nómada de Tóquio não tem posses, não tem cozinha ou biblioteca, nem sequer guarda-roupa. A sua casa é a cidade inteira, e ela própria é um objecto de consumismo crescente, que demonstra o desfasamento provocado pelo capitalismo, e pelo seu sistema de circulação e troca constantes. Esta proposta tenta encontrar uma nova forma de o homem se instalar no mundo, de o habitar, agora que, de acordo com

Ito, a casa deixou de ser um modelo de integração, centralidade e estabilidade. Tal como afirmava Jonathan Crary, referindo-se aos textos de Walter Benjamin, “nem o espaço congelado de um museu consegue transcender um mundo onde tudo está em circulação”3. Assim sendo, o quarto da Mulher Nómada define-se pelos objectos e móveis que lhe permitem fundir-se com o meio urbano ao mesmo tempo que se perde qualquer ideia de privacidade. O espaço doméstico é, assim, transformado em “sistema de objectos”, de tal forma que o habitar passa a ser definido pelo uso que é feito dos objectos em vez de ser definido pelos espaços da casa, sendo com eles que o vínculo se estabelece. Não se implica aqui uma funcionalidade pura nem a ausência de identidade. Trata-se de uma nova forma de estabelecer laços, de uma relação de afectividade com objectos que são móveis, substituíveis, consumíveis. Que tipo de relação será possível estabelecer com o mundo, a partir de um quarto sem fixação a lugar nenhum? Como habitar o quarto nómada, uma casa que, como descreveu Iñaki Ábalos, deixou de ser um refúgio e passou a ser “um breve deter-se no caminho”4? Em Setembro deste ano, num ciclo de conferências que decorreu na Casa da Música, no Porto, o arquitecto Valerio Olgiati apresentou um projecto para uma habitação que desenhou para si mesmo, no Alentejo. No quarto dessa casa não desenhou um tecto simples, optando antes por um tecto semi-abobadado, capaz de transmitir um sentido de centralidade ao espaço do quarto. Olgiati afirmou nessa conferência que, o homem que tem sobre si um tecto horizontal sente-se parte de um edifício global, uma peça de um esquema maior. Quando o tecto é em ângulo ou abóbada, o sujeito sente-se no centro do seu próprio mundo, isolado, único. O quarto torna-se o nosso cosmos. Haverá, hoje, lugar para este quarto central de Olgiati? Ou será a dispersão de Toyo Ito que impera? Será o homem contemporâneo o habitante das cápsulas japonesas? *Arquitecto, Mestre em Cor na Arquitectura pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa 1 Ver http://9hours.jp, acedido a 9 de Maio de 2012. 2 Vídeo de apresentação do hotel, min. 00:54, Ver http://www.monocle.com/sections/design/WebArticles/9-hours/, acedido a 15 de Outubro de 2011. 3 CRARY, Jonathan, Techniques of the Observer, Cambridge, MIT Press, 1999, p. 20. 4 ÁBALOS, Iñaki, A Boa-Vida: Visita guiada às casas da modernidade, Barcelona, Gustavo Gili, 2003, p. 163.


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张道陵

O L H O S A O A L T O

gente sagrada

José Simões Morais

ZHANG DAO LING, O FUNDADOR DO DAOISMO A China é um país de filosofia. Com o aparecimento neste país do Budismo no século I, a sua população aderiu massivamente a esta religião, já que a ancestral filosofia do Tao (Dao) não dava ao povo nada compreensível para acreditar. Por isso os filósofos chineses, ao perceberem que estavam a perder o suporte dos seus conterrâneos, tiveram que transfigurar a filosofia e reorientá-la em religião. Assim nasceu a única religião proveniente da China: o Daoismo. O mestre Zhang, cujo nome era Zhang Ling (34-157), nasceu em Fengxian na província de Jiangsu e estudou no Colégio Imperial. No reinado do imperador Ming (57-75) da dinastia Han do Leste, Zhang Ling, com formação confucionista, esteve à frente da prefeitura de Jiangzhou, na prefeitura de Baling, hoje Chongqing. Insatisfeito com a instabilidade resultante da política de governação do país, resolveu procurar respostas por outras vias. Durante dez anos foi eremita em Hangzhou, na província de Zhejiang, onde em meditação procurou pela reflexão reconhecer o seu ser interior. No reinado do imperador Shun (125-144) foi para Sichuan, onde tomou contacto com os ensinamentos de Lao Zi e a arte da imortalidade, tendo-se retirado para meditar na montanha de Heming em Dayi, a 45 km de Chengdu. Compôs o Livro dos 24 Capítulos, que segundo ele foi ditado pelo Supremo Mestre Lao (Lao Zi). Começou a propagar a sua doutrina em 141, formando o grupo ‘Via dos 5 Alqueires de Arroz’, com 300 pessoas. Em 143 foi à montanha Qingcheng, onde matou monstros e curou doenças com mágicas águas. Conhecido também por Zhang Dao Ling, foi o fundador do daoismo religioso, tendo terminado a sua vida na Terra aos 122 anos. Após a sua morte, em 157 na montanha de Heming, sucedeu-lhe um dos seus filhos, Zhang Heng, que esteve à frente do grupo durante 23 anos e, após ter passado para a outra vida, é o neto Zhang Lu que fica com o lugar.

No século III foi conferido a Zhang Dao Ling o título de Mestre Celestial, que desde então passou para os seus descendentes. Na dinastia Tang, o imperador Xianzong (847859) deu-lhe o título de Grande Tutor e o imperador Xizong (874-888), o de Grande Mestre. Mais tarde, os imperadores da dinastia Song deram-lhe o título de Xian Sheng. Da dinastia Tang até aos tempos modernos, esse título era o símbolo da mais alta autoridade do ramo daoista Zhengyi, respeitado e reconhecido pelos Imperadores. Durante todo o período monárquico chinês, apenas duas famílias, a de Kong Fuzi (Confúcio) e a de Zhang Ling, tiveram o privilégio de perpetuar o honroso título transmitido hereditariamente às gerações dos seus descendentes, independentemente das dinastias que governavam o país. Essas sucessões estavam bem estipuladas e o título era passado de pai para filho e só quando não havia filhos, o lugar podia pertencer ao irmão. Havia três objectos que eram também transmitidos: o livro de Lao Zi, o selo do governador Yangping e a espada para matar os demónios. Esta linhagem terminou em 1969, quando o último descendente morreu em Taiwan. Em Macau, na Rua da Figueira há um conjunto três de templos que, apesar de se encontrarem num mesmo edifício, não têm ligação entre eles. No templo que se encontra no meio, conhecido por I Leng Miu, logo à entrada encontra-se um quadro com uma imagem muito apagada pelo tempo que nos dizem ser de Cheong Tin Su. Tal nome não nos diz nada e é já dentro do templo, após percorrermos um corredor para chegar às escadas que nos leva ao segundo andar que, numa sala do andar superior, encontramos uma estátua. Ao perguntar a outra pessoa quem era aquele deus, ouvimos o nome de Cheong Tou Leng, (em mandarim Zhang Dao Ling) e só então realizamos quem era Cheong Tin Su, o Mestre Celestial Cheong.


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L E T R A S S Í N I C A S

HUAI NAN ZI 淮南子

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O LIVRO DOS MESTRES DE HUAINAN

Os moralistas não conseguem fazer as pessoas parar de querer, mas podem proibir aquilo que as pessoas querem.

DO ESTADO E DA SOCIEDADE – 7 Nos dias de hoje, os moralistas proíbem aquilo que é objecto de desejo sem se preocuparem em descobrir as razões na raiz do desejo; proíbem aquilo que é desfrutado sem se preocuparem em descobrir as razões na raiz do desfrute. Ora, isto equivale a tentar criar uma barragem num rio com as próprias mãos. Os moralistas não conseguem fazer as pessoas parar de querer, mas podem proibir aquilo que as pessoas querem; não conseguem fazer as pessoas parar de desfrutar, mas podem proibir que as pessoas desfrutem. Ainda que a existência de castigos faça com que as pessoas temam roubar, como se poderia isso comparar com libertar as pessoas do desejo de roubar?

*** O governo das pessoas completas abafa o brilho, oblitera a ostentação, substitui o conhecimento intelectual pela realidade, emerge da imparcialidade partilhada com todos, livra-se de aspirações sedutoras, elimina o desejo habitual e reduz os pensamentos ansiosos. *** As razões pelas quais as pessoas cometem crimes que as levam ao cárcere, ou pelas quais se envolvem em problemas que resultam em serem executadas, nascem da insaciabilidade e da falta de meios. ***

Todos sabem que os malfeitores não têm escapatória e que os criminosos não se safarão. No entanto, os que não dispõem de inteligência não conseguem ultrapassar os seus desejos e, assim, cometem crimes que conduzem à sua destruição. *** O mundo só pode ser confiado àqueles que são capazes de evitar causar dano aos seus países através de ambições globais e que são, de igual modo, capazes de não se arruinarem através de ambições nacionais.

Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho

HUAI NAN ZI (淮南子), O Livro dos Mestres de Huainan foi composto por um conjunto de sábios taoistas na corte de Huainan (actual Província de Anhui), no século II a.C., no decorrer da Dinastia Han do Oeste (206 a.C. a 9 d.C.). Conhecidos como “Os Oito Imortais”, estes sábios destilaram e refinaram o corpo de ensinamentos taoistas já existente (ou seja, o Tao Te Qing e o Chuang Tzu) num só volume, sob o patrocínio e coordenação do lendário Príncipe Liu An de Huainan. A versão portuguesa que aqui se apresenta segue uma selecção de extractos fundamentais, efectuada a partir do texto canónico completo pelo Professor Thomas Cleary e por si traduzida em Taoist Classics, Volume I, Shambhala: Boston, 2003. Estes extractos encontram-se organizados em quatro grupos: “Da Sociedade e do Estado”; “Da Guerra”; “Da Paz” e “Da Sabedoria”. O texto original chinês pode ser consultado na íntegra em www.ctext.org, na secção intitulada “Miscellaneous Schools”.


FERNANDA DIAS Uma leitura do

YI JING O SOL, A LUA

E A VIA DO FIO DE SEDA A nova tradução do livro que há milénios ilumina a civilização chinesa


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