PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2632. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE
ARTES, LETRAS E IDEIAS
h SEXO
HE’S STILL LOOKING AT YOU, KID!
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SEXO HOJE
Prazer ou problemas? A força do interdito manda
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IZ-SE que já tudo foi inventado. O que está a dar é reinventar. E a fantasia humana é ilimitada. “Como é que nunca ninguém se lembrou disto?”, perguntaram, um dia, dois neurocientistas americanos, especializados na área computacional. Ogi Ogas e Sai Gaddam, da Universidade de Boston, decidiram criar um modelo da mente sexual de homens e mulheres de todo o mundo. A partir do que fazem, realmente, às escondidas, na grande aldeia global da net. Recolheram e analisaram 400 milhões de pesquisas em motores de busca com conteúdos para adultos: sites, vídeos, comentários, anúncios pessoais, histórias eróticas e romances. As conclusões estão no livro Milhões de Pensamentos Perversos (Lua de Papel, 344 págs., €15,90). Dado número um: nascemos com um equipamento sexual do desejo, programado para encontrar parceiros à medida das nossas mais estranhas taras e manias. Dado número dois: os circuitos mentais da mulher têm duas tomadas e os dos homens só possuem uma. Eles pensam, ao mesmo tempo, com as duas cabeças, perante estímulos visuais. Não admira que as achem complicadas: no equipamento delas, a excitação física e psicológica estão separadas e não há pílula do desejo que lhes valha. Por enquanto. Dado número três: a igualdade de género não funciona na cama. As mulheres raramente pagam para ver pornografia. O cérebro sexual feminino é ativado pelas pistas do enredo, onde todos os detalhes contam. A libido delas acorda diante do herói dominador da cultura pop, que as considera irresistíveis e se submete ou, melhor ainda, as submete com estilo. Numa versão mais obscura, a conflituosa relação entre dois machos alfa, que acabam emocionalmente envolvidos, dá-lhes arrepios e adrenalina (como esquecer a dupla Tom Cruise e Brad Pitt, no filme Entrevista com o Vampiro?). Um homem satisfaz-se com aventura, risco e diversidade. Quer ver pénis, rabos, mamas e pés. Mulheres tenrinhas e maduras. E todo o tipo de interditos, do sadismo à bestialidade. Uma mulher aquece com narrativas românticas e jogos de sedução, onde o contexto é tudo. A explosão de contos eróticos sobre ícones da cultura pop é disso a prova. A megaexperiência de Ogas e Gaddam está para o século XXI como as do investigador Alfred Kinsey para o século que passou. Sem falsos pudores, mostra que certas práticas, etiquetadas pelos
dominadora/homem pujante e barbudo; “mãe” de outrem, sedutora e marota/”pai” de terceiro, cativante e experiente; rapariga “boazona”/rapaz “pão”). No género porno, os vídeos mais populares mostram os corpos transpirados e as expressões faciais do homem, que agradam tanto aos homossexuais como às mulheres. Os filmes e ficções no feminino estão em franca expansão, por prolongarem a saga, repleta de momentos provocadores. E de elementos de tensão entre personagens, com desejos proibidos. A motivação central de todos é simples: “Surpreende-me com algo que eu ainda não saiba.” Os autores deste estudo espantaram cientistas e terapeutas sexuais. E não só. Ogi Ogas faz investigação em biodefesa para os puritanos serviços de segurança dos EUA. A ideia de concretizar o livro e transgredir o politicamente correto terá sido mais forte e falado mais alto.
SABIA QUE...
... os pés são uma pista sexual masculina que sugere submissão? ... ambos os sexos acham o rabo um must? ... em cada pesquisa online, por rapariga magra, há três com a menção “gorda”? ... grande nunca é de mais, sejam os pénis deles ou os seios delas? ‘Freud: A Secret Passion’, um filme de John Huston
especialistas como anormais ou perversas na sociedade dita civilizada, acontecem com mais frequência e normalidade do que é admitido.
(A)MORALIDADE SEXUAL
As “pegadas sexuais” dos internautas da amostra trazem à superfície tendências insólitas. Um homem que paga para ter sexo telefónico dispensa a imagem, porque a ideia é dizer palavrões e deixar-se dominar pela operadora. A mulher que aprecia romance também se imagina como prostituta, ou fica arrebatada pela ideia de ser raptada pelo homem das cavernas ou por aquele cavalheiro insuspeito, que a ata e a deixa indefesa. Tanto um como o outro género pela-se por uns bons açoites e excita-se com a possibilidade de enganar o parceiro. Mais bizarro ainda, ser alvo da traição dele (ou dela). A má da fita é a biologia da espécie. A evolução programou o macho para ser caçador reprodutor, cabendo à fêmea precaver-se de jogadas arriscadas, a menos que encontre um protetor forte, capaz de sustentar a prole. Não é de estranhar, por isso, que os adolescentes surjam no topo das preferências sexuais: a juventude é um potente afrodisíaco. O
que ainda não se sabia é que as mulheres e homens mais velhos, que surgem nas pesquisas da net com as tags (etiquetas de busca) “mãezinha”, “avozinha marota”, “paizinho” e “maduro”, fazem as delícias de muita gente (basta pensar nas versões masculina e feminina popularizadas em séries como Donas de Casa Desesperadas e Dr. House). Sair da norma é uma forma de evasão comparável à proporcionada pela gastronomia. Seja com picante, molho agridoce, gafanhotos ou cozinha de fusão, o princípio é divertir-se e sair da experiência com satisfação, sem dar relevância a quem veja nisso um gosto perverso. E a pesquisa de conteúdos eróticos gay continua a ser muito popular no ciberespaço. Já contrariando todos os cânones acerca da beleza feminina, as mulheres roliças, com seios a condizer, são delícias gourmet muito solicitadas por quem navega nos motores de busca.
PROIBIDO É DEVIDO
O sex appeal não escolhe idade, medida ou peso. Mas tem esquemas concretos na mente sexual. Por exemplo, cada “versão” heterossexual apelativa tem o seu equivalente gay (mulher robusta e
Ogi Ogas, neurocientista de 41 anos, o co-autor de “Milhões de Pensamentos Perversos” em discurso directo: O mais intrigante Fantasias como trair a namorada ou ser enganado pela mulher revelam-se comuns e populares. As práticas de domínio e submissão também estão inscritas no nosso cérebro sexual. Há muita ignorância científica sobre o que é, ou não, normal. E barreiras políticas. Colegas nossos aconselharam-nos a não nos metermos nisto, para preservar as nossas carreiras. Novo na “guerra dos sexos” As diferenças do desejo, no plano cerebral. O dos homens, visual, excita-se com partes do corpo - seios, rabos, pés e pénis. A mente feminina é como uma agência de detetives, fascina-se com traços de caráter e enredos. Desejo gay e lésbico São versões ampliadas de cada um dos géneros. Os homens, mais masculinos e visuais, fazem tudo em maior proporção do que os heterossexuais (sexo casual, consumo de porno...). As mulheres enfatizam mais os aspectos relacionais (diálogos, emoções) do que as que gostam de homens.
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h A INVENÇÃO DA SEXUALIDADE
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A SEXUALIDADE, TAL COMO A ENTENDEMOS, É EFECTIVAMENTE UMA INVENÇÃO HISTÓRICA, MAS QUE SE EFETIVOU PROGRESSIVAMENTE À MEDIDA QUE SE REALIZAVA O PROCESSO DE DIFERENCIAÇÃO DOS DIFERENTES CAMPOS E DE SUAS LÓGICAS ESPECÍFICAS. PIERRE BOURDIEU
Ana Cristina Salles Paulo Roberto Ceccarelli
in Reverso, Revista do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, 60, 2010
INTRODUÇÃO
Kate Moss, Lucian Freud
Com este titulo deliberadamente provocador, queremos lembrar que a sexualidade tal como a percebemos, a vivemos e, sobretudo, a teorizamos, é uma criação da cultura ocidental. Isto não significa, em absoluto, que outras culturas não sejam igualmente interpeladas pelo enigma do sexual e criem dispositivos para lidar com as reivindicações pulsionais. Mas, não fosse a particularidade do destino que a nossa cultura deu ao sexual não teria sido possível a infindável leitura que há séculos vem sendo feita sobre esta dimensão constitutiva do humano. O seu expoente máximo é, sem dúvida, a psicanálise: um dos seus textos princeps, os “Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade”, constitui a primeira formulação sistemática sobre o tema. Gostaríamos, neste trabalho, de esboçar uma primeira reflexão sobre como a cultura ocidental, com o sistema de valores que lhe é próprio, criou o discurso sobre a sexualidade, e como as premissas freudianas são produtos destes mesmo valores. Lembremos que os discursos sobre a sexualidade aparecem em momentos sócio-históricos precisos como uma tentativa de normatizar as prática sexuais de acordo com os padrões da época, pois o controle da via social e política só poderia ser alcançado pelo controle do corpo e da sexualidade (Foucault, 1985). Ou seja, a sexualidade é uma construção, uma invenção, inseparável do discurso e do jogo de poder dentro dos quais ela é constituída e, ao mesmo tempo, se constitui. O interesse em discutir este tema deve-se ao facto de que tanto as nossas teorias, quanto a nossa prática clínica, são tributárias da cultura. (Seria pouco provável que algo como a teoria psicanalítica surgisse em uma cultura na qual a moral sexual não produzisse doenças nervosas.) Todos nós, o queiramos ou não, estamos impregnados pelo imaginário da cultura ocidental. E mesmo aqueles que tem uma posição crítica em relação a ele não lhe são imunes, pois tais valores funcionam como suportes identificatórios para o sujeito em constituição. Tendo como ponto de partida o fato de que a regulamentação do sexo sempre foi um assunto do Estado, das elites dominantes e da religião (Foucault, 1984, 1985, 1985b), pretendemos neste texto fazer uma breve digressão para tentar
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compreender como a “moral” de cada uma destas instâncias cria tanto o discurso sobre a regulamentação da sexualidade, quanto os dispositivos que visam regulá-la, controlá-la ou mesmo curar as manifestações da sexualidade “desviantes”. Isto é, aquelas que não respondiam aos critérios estabelecidos e que ameaçam a ordem vigente.
A ORDEM RELIGIOSA
Como já discutido em trabalhos anteriores (Ceccarelli, 2000; Reis Santos & Ceccarelli, 2010), embora os valores ético-morais ocidentais encontrem suas raízes na tradição judaico-cristã, o ascetismo em relação aos prazeres, e o legado pessimista que hostilizava o corpo derivam-se sobretudo de considerações médicas, cujas origens remontam à Antigüidade (1). Pitágoras aconselha que as relações sexuais ocorressem preferencialmente no inverno, embora a perda do esperma fosse sempre prejudicial. Segundo Hipócrates, reter o sémen proporcionava ao corpo a máxima energia. O médico pessoal do Imperador Adriano, Sarano de Éfaso , defendia que o acto sexual só era justificado para a procriação. Esta visão da sexualidade foi intensificada por uma das maiores escolas da filosofia antiga – o estoicismo – cuja influência se deu sobretudo de 300 a.C. a 250 d.C. Esta corrente de pensamento transformou radicalmente a importância que os filósofos gregos reservavam à busca do prazer, fazendo com que sexualidade fosse concentrada no casamento. Este torna-se “uma permissão para a satisfação da luxúria ou do prazer para aqueles que os consideravam indispensáveis” (Ranke-Heinemann, 1996, 23). Mais tarde, quando o prazer carnal no acto conjugal se tornou um problema teológico, o próprio casamento passou a ser questionado: das mais fortes consequências desta nova posição foi a valorização do celibato. Os grandes Padres da Igreja – Agostinho, Jerónimo e Tomás de Aquino – contribuíram muito para a manutenção do negativismo em relação ao prazer sexual característico da influência estóica. O sexo só se justificava para a reprodução, caso contrário trará o “estigma negativo do prazer”: vemos emergir uma moralidade que é, essencialmente, moralidade sexual. No Antigo Testamento a origem do pecado é a desobediência. No capítulo III do Livro do Génesis, intitulado “A origem do mal”, Eva deixa-se convencer pela serpente e, tentada a igualar-se a Deus, come o fruto da árvore proibida e adquire discernimento. Como consequência, Adão e Eva “abrem os olhos e percebem que estavam nus” (Gen. 3, 7). Ainda que se possa argumentar que o discernimento, a percepção do outro, da morte, envolva o conhecimento da diferença entre os sexos, o que levou à queda, à perda do paraíso, não foi a sexualidade mas sim a vontade de igualar-se a Deus (2). Ao colocar a origem do mal na sexualidade, ou seja “sexualizar” o pecado original, Agostinho deixou seu maior legado
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à moral cristã: a concupiscência foi o pecado original; o homem é fruto do pecado. Esta concepção fez do mundo algo entravado pelas exigências do corpo que impediam a ascese da alma; o ser humano tornou-se fragilizado e culpabilizado pelo desejo, o que levou a uma exaltação sem precedentes da virgindade. Mais ainda, a visão sexualizada do pecado original, faz do homem uma vítima indefesa de uma mulher sem escrúpulos e sem princípios que o seduz, levando-o a pecar; pecado este, que é sempre sexual. Surge daí a imagem negativa da mulher, concepção ainda presente no Ocidente, como a responsável pela queda; em contrapartida o homem aparece com um ser espiritual na sua origem, mas vítima indefeso da mulher diabólica (3). Neste novo quadro, argumentar a favor do casamento era difícil pois, opunha-se à virgindade, incentivava o apego ao corpo trazendo o risco da volúpia carnal, o que impediria a ascese da alma. Ao mesmo tempo, um dilema foi criado: se, por um lado, todo o valor era dado à castidade, por outro lado, era necessário encontrar um forma para regulamentar o casamento como lugar de procriação. Para mais, como pregara o Apóstolo Paulo, ele era uma concessão para os que não conseguiam manter-se puros: “Mas, se não são capazes de dominar seus desejos, então casem-se, pois é melhor casar-se do que ficar fervendo” (I Cor., VII, 9). O casamento passou a ser tolerado, mas sob alta vigilância pois o que estava em jogo era a dimensão transcendente da salvação da alma. Dos males, o casamento era o menor. Uma das maiores contribuições para resolver o impasse virgindade/casamento veio, sem dúvida, da obra “Casamento e concupiscência” de Agostinho. Nela, o casamento é condenado como local de realização de desejos carnais, mas defendido como fonte de procriação, espaço de fidelidade e sacramento. Para Agostinho, “a castidade da contingência é melhor que a castidade das núpcias, embora as duas sejam boas” (apud Vainfas, 1992, 13). Leia-se: o casamento é inferior à virgindade, e não sendo para a procriação, não há justificativa para o acto carnal. O melhor seria a continência absoluta. Não se podendo alcançá-la, aprisiona-se o desejo no casamento. A partir do século XII a ideia de “natureza humana” passa a ser identificada à vontade divina, tornando-se um paradigma de reflexão moral: tudo que é natural, é bom e apraza a Deus. Surge, assim, a ideia de “coito natural” que deu origem ao discurso que separa as práticas sexuais em “normais”, identificadas à procriação, e “anormais”, que diziam respeito às práticas infecundas. A ideia é que existiria uma sexualidade normal, conforme as inclinações naturais das coisas, cujo desvio, a depravação (pravus) (4) é definido como “contra a natureza”. Toda vez que a sexualidade desvia da finalidade primeira que a referência animal nos mostra – união de dois órgãos sexuais diferentes para a preservação da espécie – estamos
diante de um pecado contra naturam: pedofilia, necrofilia, masturbação, heterossexualidade separada da procriação, homossexualismo, sodomia… Além dos actos abomináveis, certas posições eram proibidas, e certas épocas do ano impróprias às relações sexuais. A única posição “natural” era a do homem deitado sobre o ventre da mulher. A mulher de costas para o homem assemelhava-se a cópula dos animais; o homem em baixo da mulher era considerada uma inversão da natureza dos sexos já que denotaria a passividade masculina e a actividade feminina. No primeiro caso, a ideia era extirpar todo traço de animalidade no desejo humano e incluí-lo na razão natural. No segundo, reafirmar a submissão feminina ao homem. Um outro exemplo da infiltração do religioso no imaginário daqueles séculos diz respeito à sexualidade do casal: a esterilidade era um indicador de alguma forma de impureza na vida conjugal. Ela podia manifestar-se, em especial, nas mulheres bonitas como um castigo de Deus pelas suas vaidades; e nas feias como castigo pela inveja que tinham das bonitas. O interesse excessivo pelo sexo podia atrasar a gravidez quando não impedi-la (Del Priore, 2001). A impotência, de um ou de outro dos cônjuges, era vista como uma ameaça à sacralidade do matrimónio podendo levar a anulação do mesmo (5). A partir do século XII a moral que recusa o desejo e o prazer começa a abrandar-se com a aceitação do casamento como espaço legítimo para o uso dos prazeres. Todavia, a concepção do sexo como um mal em si mesmo persiste, sob forma do controle sistemático dos prazeres da carne, e com a inclusão de mais um pecado capital: a luxúria. Luxuriosos eram os que buscavam dentro do casamento principalmente o prazer e, fora dele, não observavam a castidade. Vimos, até aqui, como a sexualização do pecado e a criação da confissão permitiu à Igreja criar um discurso sobre a sexualidade, através do qual pode controlar e intervir de forma profunda na sexualidade dos fieis. É dentro deste espírito que a moralidade cristã, que “situa os principais pecados da humanidade nos quartos de dormir” (Ranke-Heinemamm, 1996, 47), se desenvolveu.
A ORDEM MÉDICA
Segundo Foucault (1985, 137), desde o século XVIII o sexo ocupou um lugar central que passou a definir tanto o sujeito quanto a população. E no século XIX, a sexualidade foi esmiuçada em cada existência, nos seus mínimos detalhes; foi desenterrada nas condutas; perseguida nos sonhos, suspeita por trás das mínimas loucuras, seguida até os primeiros anos da infância; tornou-se a chave da individualidade: ao mesmo tempo, tal permite analisá-la e torna possível constituí-la. A primeira grande ruptura nos mecanismos de controlo e repressão da sexualidade começa a esboçar-se no século XVII (Foucault, 1985). A concepção de uma “pulsão sexual” inerente ao ser humano,
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cuja forma de satisfação poderia ser boa, sadia ou, ao contrario, errada ou ainda perversa, data do Iluminismo, ou seja, do final do século XVII, início do XVIII. Nesta época, as questões de ordem sexual começam a influenciar cada vez mais o social, particularmente a sexualidade legitima no seio da família a fim de regular a procriação. Fato curioso que indica uma mudança profunda nos costumes: dois novos delitos aparecerem nos tratados de direito da época. As relações sexuais precoces, sem o compromisso claro do matrimónio, e a gravidez secreta, pois esta poderia levar ao aborto ou ao assassinato do recém-nascido. Desde o final do século XVII, sobretudo na França e na Alemanha, a questão de como gerir o controle da natalidade tornou-se um objecto de discussão social, pois a população passou a ser um recurso do Estado na produção de riqueza (Sarasin, 2002/3). Isto significa que foi a partir de uma perspectiva bio-política que se origina o dispositivo moderno da sexualidade. O passo seguinte foi a invenção da sexualidade, tal como a entendemos hoje: aquilo que marca o indivíduo em sua dimensão mais profunda. Segundo Sarasin (2002/3), o processo que levou a esta nova configuração possui quatro características: a descrição do sexo como qualidade constitutiva do sujeito; a passagem do sexo do registo religioso para o médico, acarretando uma transferência da competência sobre estes saberes dos experts religiosos para os da medicina; a diferenciação entre a sexualidade “perigosa” e a “sadia”; finalmente, a biologização da diferença dos sexos como base fundadora de toda sexualidade legítima. Em 1696 Nicolas Venette, professor de anatomia e de cirurgia em La Rochelle, França, publicou “Tableaux de l’amour conjugal”, livro pioneiro no género, várias vezes reeditado e traduzido em várias línguas. No livro, Venette mistura o conhecimento médico e as tradições populares para dar conselhos sobre a melhor maneira de se conseguir êxito, ou seja de procriar, nas relações conjugais; traz relatos etnográficos sobre as práticas sexuais de povos africanos; revela segredos e dá receitas farmacológicas para combater a impotência e reconstituir o hímen perdido. Graças as autópsias que fazia, Venette descrevia o interior do corpo, inclusive dos órgãos genitais, de forma nunca antes tratada: “os testículos estão guardados no interior de uma bolsa como algo de extremamente valioso. É daí que a natureza tira constantemente a matéria da qual ela produz todos os dias, miraculosamente, os hormónios” (Venette, 1778, 7). Sem dúvida, o que torna esta obra revolucionária é a clara determinação do seu autor em explicar, de permitir o acesso a um saber relativamente isento da contaminação religiosa. Para Venette, o que a natureza humana mais almeja é conhecer as suas origens, as quais propõe explicar no livro. A partir do momento em que o homem é visto como um ser natural, a sexualidade deixa de ser antagónica à
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espiritualidade, como era o caso na visão religiosa, para tornar-se algo que lhe é próprio e cuja satisfação, dentro do casamento é sábia, independentemente da reprodução. O Iluminismo coloca a questão das relações entre o instinto e a vontade, e entre o desejo e a virtude de uma forma totalmente nova, sem o moralismo que, até então, lhe era próprio. O homem não é mais entendido como um ser guiado pelos instintos mas, antes, como um ser civilizado capaz de conter-se, no que for necessário, para um valor maior: a sociedade. A nova concepção burguesa do casamento entendia o instinto sexual como algo primordial do sujeito, que deveria ser controlado para ser reutilizado em favor da sociedade (algo bem próximo da concepção freudiana de sublimação). Temos, então, as bases para aquilo que, no final do século XIX passou a ser chamado de “sexualidade”: não era mais possível pensar o sujeito sem o sexo. Ao mesmo tempo, privilegiar a razão como a nova instância que determina o sujeito autónomo teve um custo: a supremacia do cérebro masculino sobre o sistema nervoso feminino centrado no útero. Ocorreu então, de um lado, uma biologização da diferença sexual centrada sobre o sistema nervoso feminino e o cérebro masculino, e não sobre a diferença anatómica dos órgãos sexuais; e, por outro lado, toda a dis-
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cussão para se saber como o homem poderia dominar a sua sexualidade para dela obter os prazeres conforme as exigências da razão, da moral vigente e da higiene (Laqueur, 1992). Trata-se do modelo do sexo único. Como veremos mais adiante, por mais revolucionárias que tenham sido as posições de Freud, ele manteve-se conservador no que diz respeito a este modelo. A sua origem data da Antiguidade e o expoente máximo foi Aristóteles. Para ele, existiria uma hierarquia entre os sexos, sendo o masculino o mais perfeito. Após Aristóteles, Galeno construiu uma versão final deste modelo que perdurou por séculos no Ocidente. Introduzindo a teoria dos humores, Galeno sustentava que os humores quentes condensariam as virtudes do masculino; e a sua ausência na circulação geral dos humores, caracterizaria o feminino (Briman, 2001). Galeno conclui que a morfologia corporal decorre da circulação dos humores, e que o equilíbrio entre eles configuraria a morfologia genital dos sexos. Ou seja, não é a anatomia que determina os sexos, mas sim os humores: este é o paradigma do sexo único. Este paradigma só começou a mudar no século XVII quando, de forma esparsa, aparecem os primeiros atlas de anatomia nos quais as diferenças morfológicas entre o corpo do homem e o da mulher se começam a delinear. Embora a formulação
natural da diferença entre os sexos se tenha consolidado ao longo do século XVIII e no início do XIX, o que terá definitivamente subvertido o modelo do sexo único foi igualdade de direitos dos cidadãos proclamada pela Revolução Francesa (Laquer, 1992). Mas, as conquistas ali alcançadas não propiciaram o proclamado: as mulheres não tiveram os mesmos direitos que os homens. Com a falência do modelo do sexo único, fundaram-se novas bases de hierarquia, sustentadas pela natureza biológica, que determinavam as diferentes inserções sociais do homem e da mulher o que, no fundo, manteve inalterada a dominação masculina. É assim que, para avaliarmos correctamente a posição da mulher na cultura ocidental – posição que influenciou o discurso psicanalítico sobre a sexualidade feminina -, não basta, por exemplo, denunciarmos a sua exclusão em determinados sectores da sociedade, sobretudo na época de Freud. Mais do que isto: é necessário compreender as disposições hierárquicas que fizeram com que as mulheres, elas mesmas, participassem de sua própria exclusão (Bourdieu, 2002). Talvez, seja na maternidade que o peso deste discurso mostre toda a sua força. O “tornar-se mãe” passou a ser incentivado, como se se tratasse de algo natural – o instinto maternal – e não como uma construção ideológica que determinava sem apelo
a importância da mulher para o bem estar social (Badinter, 1988). Ou seja, a única forma de manter o novo paradigma sobre a diferença dos sexos e a existência de um instinto sexual inerente a todo ser humano foi fazendo das mulheres seres destinados à reprodução, úteis à sociedade no ofício de mãe e no casamento. Quanto aos homens, eles deveriam lançar mão da sua força espiritual superiora para manter o sexo no limite da decência e no casamento, sendo a masturbação entendida como o inverso da autodisciplina esperada, pois o reverso do instinto sexual “natural”. (Sarasin, 2002/3). São assim lançadas as bases da luta (desta vez médica e não mais religiosa) contra a masturbação que poderia levar à morte ou à loucura devido à perda desnecessária e excessiva de esperma. Até metade do século XIX o onanismo era a única forma de desvio reconhecida – perversão – em relação ao sexo “sadio”. Entretanto, algumas décadas mais tarde as coisas começam a mudar: a medicina e a psiquiatria legal interessaram-se por uma sexualidade não controlável que estaria presente na passagem ao acto em muitas formas de crimes. Em 1857 Ambroise Tardieu, professor de medicina legal na Universidade de Paris, “o mais eminente representante da medicina legal francesa” (Masson, 1984, 17) (6), publica o famoso “Étude médico-légale sur
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les attentats aux mœurs” (Estudo médico-legal sobre os atentados aos costumes), rapidamente traduzido em várias línguas. Neste clássico da época, ao lado dos excessos sexuais que podiam chegar aos crimes sexuais, mas que não eram classificados como perversões, uma outra forma de sexualidade aparece: the nameless crime: o crime sem nome. Trata-se da pederastia e da sodomia, hoje chamados de homossexualidade e coito anal. As teorias de Tardieu marcariam a passagem do conceito de perversão do Iluminismo – o onanismo – ao da época da industrialização – a homossexualidade (Sarasin, 2002/3). Mais tarde, em 1886 o visconde Richard Von Krafft-Ebing, especialista em medicina legal, escreve o famoso “Psychopathia Sexualis” no qual traça um longo inventário das perversões humanas e rediscute as pulsões heterossexuais. Este novo reexame do problema faz do desejo sexual uma energia fundamental, motor de toda acção humana. Entretanto, ainda que esta pulsão não possa ser devidamente apreciada sem levar em conta a genitalidade, cabia à psiquiatria garantir que ela fosse pelo menos “boa”, para o sujeito e para a sociedade, se diferenciando das disposições “perversas”. Isto significa que a ideia de que a pulsão era responsável não apenas para a reprodução e para o prazer, mas que também estava presente em todas as acções humanas já era teorizada. A pulsão em si é uma pulsão livre: ou ela consegue seguir o seu caminho segundo a moral, ou ela se perverte. O “Psychopathia Sexualis” traz algo de radicalmente novo: uma imagem da sexualidade que se divide em “sexualidade normal” na sua essência e uma sexualidade geneticamente perversa devido a taras hereditárias.
mais profundo do sujeito: não faz sentido falar de “bom ou de mau sexo”, de “sexo sadio ou doente”. Para Freud, finalmente, a sexualidade é dificilmente compatível com as exigências da civilização, constituindo-se mais como fonte de mal-estar do que de felicidade (Freud, 1929). Lacan, na sua teorização, contribuiu para a compreensão freudiana ao mostrar que o sujeito pode ficar preso numa captura narcísica, para evitar o encontro angustiante do que ele é como objecto para o Outro. No início, essa captura narcísica inscreve-se no sujeito quando ele reflecte a imagem que corresponde ao desejo dos pais ou da família e está articulada à constituição do sujeito como um tempo lógico necessário e estruturante, o Estado do Espelho, em que sua imagem ideal reflectida é autenticada pelo Outro. Essa ilusão narcísica de completude é a condição necessária para a constituição do sujeito e sua inscrição no campo do Outro, no simbólico. Corre-se entretanto o risco de se ficar preso ao imaginário, ao ideal, numa alienação à imagem e portanto detido, paralisado. O encontro com o desejo do Outro é sempre enigmático e angustiante para o sujeito, pois nunca se sabe o que pode advir. As relações amorosas, que são expressões de laços sociais, geralmente reflectem essa forma de vínculo alienante em que o sujeito evita a renúncia de ser o objecto imaginário que obtura a falta do Outro, renúncia que possibilita o acesso ao desejo.
REFLEXÕES FINAIS
A SUBVERSÃO FREUDIANA
Os grandes psiquiatras e sexólogos do século XIX esforçaram-se para traçar um “herbário” dos prazeres (Foucault, 1985, 63), que ia desde o tímido admirador de sapatos femininos até o “sentimento contrário”, ou seja, a homossexualidade. Um minucioso inventário das práticas sexuais que escapavam aos ditames morais foram inventariadas e etiquetadas, fazendo surgir novas formas de perversões. Dentro de uma perspectiva higienista e repressiva, discutiam-se os “efeitos nocivos da sexualidade”: práticas contra a natureza, os perigos da masturbação, do coito interrompido, uma vida conjugal insatisfatória… O pequeno ensaio de 40 páginas publicado em 1905 por Freud – “Três ensaios sobre a Teoria da Sexualidade” – subverte os esquemas explicativos tradicionais. A concepção de “pulsão natural versus pulsão perversa” é abandonada e o debate centra-se na diferença entre o objecto sexual e a finalidade sexual (entre o objecto desejado e a actividade sexual almejada com o objecto). Se a pulsão não tem objecto fixo, nada existe que seja biologicamente programado: toda forma de actividade sexual resulta de um percurso pulsional, de uma história individual e única. Ou seja, a sexualidade em cada ser huma-
no, devido à singularidade da história de cada um, terá um destino particular: não há uma única maneira que se proponha certa e universal para as manifestações da sexualidade. A civilização comete uma grande injustiça ao “exigir de todos uma idêntica conduta sexual” (Freud, 1908, 197). A fixação heterossexual, bem como a homossexual, necessitam igualmente de explicação, posto que a base da “escolha sexual” repousa tanto na disposição bissexual do ser humano, quanto na sexualidade infantil, cuja natureza é perversa e polimorfa numa dimensão essencialmente auto-erótica: na disposição a todas as perversões encontramos o humano e o original (Freud, 1905). Sem dúvida, a mudança de paradigma trazida por Freud foi de peso. Com Freud, a sexualidade, inclusive a perversa, torna-se humana, constituindo o núcleo
Com esta breve digressão sócio-histórica, procurámos mostrar como os discursos sobre a sexualidade são tentativas de nomear o Isso: a alteridade interna, aquilo que nos lembra que não somos senhores na nossa própria casa. Tais discursos foram sendo construídos ao longo dos séculos, até ocuparem uma parte central tanto na vida individual como na colectiva da sociedade ocidental. A cada momento histórico, este saber foi apresentado como uma verdade, fosse ditada pela Igreja, pelo Estado, ou pela medicina. O discurso ideológico sustentando por este saber e, atrelado aos interesses que sustentava o poder e à ordem política, estabeleciam o que deveria ser considerado “normal” e, por extensão, o patológico em termos de desejos e práticas sexuais. Foi no interior do discurso médico-psiquiátrico que a psicanálise surgiu. Por isso, a psicanálise, fruto da cultura ocidental, só pode ser entendida a partir da perspectiva histórica que a precedeu. Para que a psicanálise, que num primeiro momento foi libertadora ao denunciar a existência de uma outra cena que determina nossas escolhas objectais, não se transforme em mais uma prática normativa é necessário que os psicanalistas façam constantes incursões nos seus conceitos de base para confrontá-los com os movimentos sócio-históricos. Há que levar em conta as mudanças sociais, sob pena de ficarmos arraigados a teses não mais sustentáveis na contemporaneidade. (...)
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BIBLIOGRAFIA BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. São Paulo: Círculo do Livro, 1988. BIRMAN, Joel. Gramáticas do erotismo: A feminilidade e as suas formas de subjetivação em psicanálise. Rio de Janeiro Editora Civilização Brasileira, 2001. BOURDIEU, Pierre. La domination masculine. Paris: Seuil, 2002. CECCARELLI, Paulo R. Sexualidade e preconceito. In: Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, III, 3, 18-37, set. 2000. CECCARELLI, Paulo R. A patologização da normalidade. In: Estudos de Psicanálise. Rio de Janeiro, 33, p.125-136, julho, 2010. DEL PRIORE, Mary. Homens e mulheres: o imaginário sobre a esterilidade na América portuguesa. In: História, Ciências, Saúde. Manguinhos, vol. VIII(1): 98-112, mar.-jun. 2001. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985. 6ª ed. _________________. História da sexualidade II: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984. _________________. História da sexualidade III: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985b. FREUD, Sigmund (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: FREUD, S. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976. vol. VII. _____________. (1908) Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna. In: FREUD, S. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976. vol. IX. _____________. (1930). O mal-estar na civilização. In: FREUD, S. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974. vol. XXI. KRAFFT-EBING, Richard (1886). Psychopathia sexualis. Trad. francesa de E. Laurent E. e S. Csapo S. Paris: Georges Carré Editeur, 1895. LAQUEUR, Thomas. La fabrique du sexe. Paris : Gallimard, 1992. MASSON, Jeffrey Moussaieff. Atentado à verdade. Rio de Janeiro: José Olympio, 1984. RANKE-HEINEMANN, Utha. Eunucos pelo Reino de Deus. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 3º edição, 1996. REIS SANTOS, Adelson B. & CECCARELLI, Paulo R. Psicanálise e moral sexual. In: Reverso: Revista de Psicanálise, Belo Horizonte, 32, 59, 2330, 2010. SARASIN, Philipp., L’invention de la « sexualité », des Lumières à Freud. Esquisse. In: Le Mouvement Social 2002/3, N°200. TARDIEU, Ambroise. (1857) Étude médico-légale sur les attentats aux mœurs. Paris : Baillière, 1873, 6e éd. VAINFAS, Ronaldo. Casamento, amor e desejo no ocidente cristão. São Paulo: Ática, 1992. VENETTE, Nicolas. Tableaux de l’amour conjugal. Amsterdam: Ryckhoff, Libraire, 1778. (Nova edição revisada, corrigida e aumentada de considerações importantes, e enriquecida de novas gravuras, maiores e mais exatas que nas edições precedentes). 1998.
Ana Cristina Teixeira da Costa Salles Psicóloga. Psicananlista. Presidente do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais. Paulo Roberto Ceccarelli *Psicólogo; Psicanalista; Doutor em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise pela Universidade de Paris VII; Pós-doutor pela Universidade de Paris VII; Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental; Sócio de Círculo Psicanalítico de Minas Gerais; Membro da “Société de Psychanalyse Freudienne”, Paris, França; Membro fundador da Rede Internacional de Psicopatologia Transcultural; Professor Adjunto III da PUC-MG; Pesquisador e orientador de pesquisa credenciado na pós-graduação em Psicologia na Universidade Federal do Pará, em Belém; Professor na pós-graduação da Faculdade de Ciências Humanas Esuda -Associação Recifense de Educação e Cultura, Recife, PE.
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luz de inverno
Boi Luxo
GENDAI SEI HANZAI ZEKKYO HEN: RIYU NAKI BOKO (VIOLENCE WITHOUT A CAUSE), 1969
O que aconteceu ao ennui ? Todo o cansaço contemporâneo, no cinema, parece ou social ou apenas uma forma mal disfarçada de incompetência. No cinema japonês dos anos sessenta não era só assim. Aquele aparecia muitas vezes associado ao cinema pornográfico soft e ao cinema de preocupação social, senão mesmo, frequentemente, ao cinema dito revolucionário. A partir de certa altura, e isto é uma dor muito mais metálica, o ennui é pós-revolucionário, pós-olímpico e pós-tecnológico. É a fase do início da riqueza e da selecção dos que a ela terão acesso ou não. São os filmes de Wakamatsu Koji, alguns de Oshima, Masao Adachi, Hani Susumu ou Ko Nakahira que nos contam tudo isto. Fico-me por aqui não se transforme este texto numa alusão contínua ao livro de Jasper Sharp sobre o cinema erótico japonês já aqui tantas vezes referido. Há outros ennuis mais subtis no universo artístico japonês, o de Imamura ou um outro muito mais próprio e muito mais próximo, um pouco mais escondido mas provavelmente mais doloroso por vir de onde vem - o imenso ennui doméstico de Ozu. Mas não vale a pena ir por essa via. Igualmente me escuso a fazer considera-
ções mais específicas sobre a vida e a obra de Wakamatsu Koji, matéria mais do que exausta em vários textos aqui publicados dedicados a filmes seus e a filmes de realizadores seus semelhantes e contemporâneos. Este excesso trai uma admiração de uma natureza que se não coaduna com propósitos académicos. Por outro lado, a sua obra tem vindo a ser alvo, desde cerca de 2008, de uma re-apreciação e de uma re-visionação que já cobriu o assunto de uma banalização perniciosa. Identificar em Gendai sei hanzai zekkyo hen: riyu naki book matéria que ocorre em outros filmes seus ou em filmes que retratam um zeitgeist aparentado seria também um exercício fútil e contrário ao propósito fluvial deste filme pouco conhecido. A indefinição de género será uma das suas características mais marcantes. Este não é bem um filme erótico, como outros que Wakamatsu fez, porque as cenas de nudez e erotismo são escassas e parte delas quase invisíveis. Naquelas em que dois dos protagonistas espiam as actividades sexuais do vizinho as imagens derretem-se num conjunto quase abstracto, demasiado longo para que se cumpram as regras do género. Será mais um filme de
jovens a quem a grande cidade esvaziou de esperança, um processo denunciado com pouca subtileza, antes com um brutalismo poético que é a sublinha de todo o filme. É-nos dito directamente por um dos 3 protagonistas do filme que Osawa foi morto pela polícia, pelos professores, pela sociedade. A morte de Harada e Matsumoto torna-se, a partir de certa altura, também inevitável. São 3 os protagonistas desta história, 3 jovens de Aomori (Aomori é longe, rural e frio como a merda) e o que apetece fazer com este filme é vê-lo na cama a comer bolachas ou, como fazem 2 deles a dada altura, através de um buraco na parede. Este buraco na parede, que não é de modo nenhum único no cinema japonês com adolescentes, é o buraco que permite espiar o sexo alheio (o que não seria nada de novo) mas é também o buraco que protege das dificuldades e da inadequação social. Nele se vê um olho que é o mesmo de Kabe no Naka no Himegoto (Affairs Within Walls), também de Wakamatsu Koji, um filme cheio de uma lassitude de suburbia. Este, contudo, não é um filme de subúrbio mas mais um filme fascinado pelo interior vazio de Tóquio,
WAKAMATSU KOJI
pela sua ruidosa capacidade de engolimento e rejeição. Por vezes ter pouco dinheiro e ter de filmar numa semana origina estes esboços que, não sendo óleos, se vendem hoje por bom preço. Godard tinha razão: para fazer um filme basta uma arma e uns rapazes a tentar levar umas mulheres para a cama. Pobres Harada, Osawa e Matsumoto, usados, abusados, roubados, enganados, rejeitados. É, igualmente, quase impossível, por muito que se rejeite (particularmente hoje) o jogo das comparações, não lembrar Furyo Shonen (Bad Boys), 1961, de Hani Susumu. Particularmente porque nos dois se chega, de uma maneira ou de outra, ao mar e porque estes dois tipos de abandono se complementam. O primeiro um abandono mais realista e mais documental, este mais artificioso e ficcional mesmo que longe do pop. É esta viagem, que ocorre no início do filme, que me atrai irremediavelmente. Porque me parece que não há hoje um ennui que seja tão desculpável como este. Ou talvez por uma razão muito mais banal. Porque quero crer que no fim de uma viagem de comboio com destino desconhecido há sempre um mar e há sempre uma praia deserta no inverno.
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próximo oriente
Hugo Pinto
DOMO ARIGATO Repetidamente, “I think of you”. Um japonês sentado a um piano de cauda. Recordo-me de uma fotografia dele. Aparece com ar de yakuza arrependido a gozar um exílio dourado, debaixo de um chapéu branco de fita preta, a aba a encobrir a face que sorri. Segura na mão direita um copo de vinho tinto. Brande. Agora, sem ele o saber, faz-me companhia. Toca poucas e certas notas. Demora-se. Toca, como quem diz “I think of you”. Só como quem diz “penso em ti”. Só “penso em ti”. Repetidamente. Há músicas que podiam durar para sempre. Estender-se-iam independentemente da nossa existência passageira e atravessariam épocas, costumes e mares. A própria rotação do planeta serviria de força motriz de um imenso gira discos cósmico. A música perpetuar-se-ia no azul infinito do espaço inabitado. Antes e depois do tempo, fora do mundo. Agora que as noite de veraneio vieram para ficar, longas, cobertas por halos tremeluzentes onde se pressentem as luzes da cidade como um fantasma, há um disco que serve de bálsamo, que apazigua o calor que afronta e os fantasmas que desassossegam. “Nekono Topia Nekono Mania” é o quarto disco de Seigen Ono. Compositor, músico, engenheiro de gravação e remasterização. Foi nestas qualidades que trabalhou com Ryuichi Sakamoto, Joe Jackson, The Lounge Lizards, King Crimson, Golden Palominos, David Sylvian e outros de uma a lista infindável. Em 1984, lançou o primeiro disco, “Seigen”, a que se seguiu, quatro anos depois, “The Green Chinese Table”. No ano seguinte editou os dois volumes de “Comme des Garçons”, compilando música encomendada pela casa de moda japonesa. Em 1990, depois de ter juntado um grupo de amigos, deu ao mundo o disco que traz-me a estas páginas.
“Nekono Topia Nekono Mania” inspira-se, em iguais medidas, no torpor hipnótico e sedutor da música brasileira imaginada por Jobim e Gilberto, no Jazz “impossibly cool” e “avant-garde” da “downtown” nova-iorquina, na “new age” de Eno e Budd, e, claro, nas noites de verão, intermináveis, nos sussurros entre amigos e amantes, numa roda de conversa em torno da mesa, nas luzes que se apagam, na lua e nas estrelas. A primeira parte do disco é marcada pelo saxofone de John Zorn, aqui domado como nunca o ouvimos, “romântico até”, como nota surpreendido o excelente All Music, indeciso em que categoria arrumar “Nekono Topia Nekono Mania”. Não interessa onde. À oitava música, “1989”, é introduzida, em jeito de interlúdio, de ponte, uma toada ambiental em jeito de “suspense”. A inquietação logo se desvanece quando ouvimos as primeiras notas do tema seguinte: “I Think of You”. A mesma música, numa versão mais despojada, aparecerá mais à frente para fechar o disco. Trata-se de um tema ao piano. No All Music, diz-se desta música que “parece uma obra perdida e intimista de Samuel Barber”. O compositor norte-americano, autor do belíssimo “Adagio for Strings”, não desdenharia ter arranjado “I Think of You”, digo eu. Por muitas vezes desejei que certas músicas tivessem o dobro, o triplo e por aí fora da duração que realmente têm. Esta é aquela que encabeça a lista dessas músicas. Nietzsche terá dito que “sem a música, a vida seria um erro”. Certo. No entanto, sem certas músicas, a vida seria uma tragédia. Ainda pior, portanto. Alegremo-nos. “Nekono Topia Nekono Mania” Seigen Ono Crammed Discs/Made to Measure, 1990
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À S U P E R F Í C I E
CARLOS FUENTES
Escrever para ser
MUITO MAIS QUE UM GRANDE ESCRITOR, COM A MORTE DO MEXICANO CARLOS FUENTES, DE 83 ANOS, A AMÉRICA PERDEU UM HOMEM DO SEU TEMPO – DOS SEUS TEMPOS O escritor mexicano Carlos Fuentes, no centro da imagem, junto ao peruano Mario Vargas Llosa e ao colombiano Gabriel García Márzquez (El País)
Eric Nepomuceno
In Carta Maior
W.M. OBRAS COMPLETAS
VEJO ALGUMAS fotos em preto e branco. E detenho-me numa, feita nalgum dia incerto da Barcelona daqueles anos 70, mostrando um Vargas Llosa alto e sorridente, um Carlos Fuentes um tanto formal, e um Gabriel García Márquez cabeludo e com bigodes que parecem desenhados a carvão. Fuentes ainda fumava: na mão esquerda, posta fraternalmente sobre o ombro de García Márquez, aparece o cigarro. Ali estão eles: Vargas Llosa aparece à esquerda, Fuentes está no centro, García Márquez à direita. Exatamente o avesso do que a vida reservaria aos três, ou do que os três fariam das suas vidas. Na foto, os três são jovens, e parecem confiantes, e ocupam o inverso do espaço que o tempo e a realidade se encarregariam de colocar nos seus devidos lugares: quem à direita, ao centro, à esquerda. Volta e meia imagino como será ter sido ser jovem, ou melhor, ser um jovem Fuentes, um jovem Mario Vargas, um jovem García Márquez naqueles anos de turbilhão. Uma vez perguntei isso a Fuentes. Estávamos em São Paulo, caminhávamos ao léu com Silvia Lemus, sua mulher, para cima e para baixo por aquelas paralelas da rua Augusta, e ele contava-me coisas. Dizia assim: ‘É que a gente era muito jovem, e acreditávamos nas mesmas coisas, e tínhamos uma confiança enorme no futuro’. Insistia: sua amizade com García Márquez, que vinha de 1961, era a qualquer prova. E acabei sendo testemunha disso, dessa verdade. E lembro que algum tempo depois,
coisa de ano ou ano e meio, ao entrar num restaurante italiano em Buenos Aires, topei com ele e com Silvia. E ele, como sempre de uma elegância sem fim – e, atenção: estou a referir-me à elegância como postura diante da vida –, quis continuar uma conversa que eu nem lembrava qual era. Era a conversa sobre os nossos respetivos anos jovens. Disse ele, lembrando de Vargas Llosa, de García Márquez, de Cortázar: ‘A vida segue, e às vezes, nos separa. Bom mesmo é quando você consegue discordar de tudo e fazer com que nada separe os afetos, a amizade’. Tentou isso a vida inteira. Às vezes – com Cortázar, com García Márquez –, conseguiu. Aliás, sem maiores esforços. Quando me refiro a ele como um homem elegante, refiro-me a um pensamento que conseguia ser ao mesmo tempo ágil e contido, que não se limitava às barreiras que muitas vezes nos impomos a nós mesmos. Acreditava no que acreditava. Acreditava no futuro. No futuro da América Latina, no futuro do ser humano. Acreditava que, em algum momento desse nosso eterno recomeçar, nós, da América Latina, deixaríamos de recomeçar e começaríamos de verdade. E escrevia assim: acreditando. Não há dois livros dele que sejam iguais. Porque, no seu ofício, Carlos Fuentes era como na vida: sempre disposto a recomeçar, a reinventar. A sua obra é desigual, porque ao longo da vida somos desiguais. Escrevia cada livro como se fosse o primeiro. E por isso mesmo ele foi tantos, como tantos somos nós no nosso dia-a-dia. A única coisa que se manteve sempre em cada palavra, cada frase que desenhou, foi a fé no futuro. Jamais acre-
ditou em limites e fronteiras, quando escrevia. E nem quando vivia. Qualquer um que tenha a palavra escrita como matéria prima, e a memória como guia dos tempos, saberá descobrir no autor de ‘A região mais transparente’, ou ‘A morte de Artemio Cruz’, ou de ‘Terra Nostra’, de ‘Gringo Viejo’, um eterno contemporâneo, um companheiro de viagem, um parceiro de sonhos e ousadias. E uma testemunha de desesperanças e esperanças, de tudo aquilo que poderíamos ter sido e que não fomos. Fuentes dizia que, mais do que pela obra dos grandes historiadores, dos grandes sociólogos, dos grandes antropólogos – e ele foi amigo de vários dos grandes –, a verdadeira história nossa era escrita por escritores. Lembro bem da vez em que ele disse que escrever literatura não era um ato natural: era como dizer que a realidade não é suficiente. Que precisa de outra realidade, a da imaginação. E que isso era perigoso. Assim viveu, assim escreveu. Muito mais que um grande escritor, a América perdeu um homem de seu tempo – de seus tempos. Que soube defender as suas ideias com tamanha inteireza, com tamanha elegância, com tamanha firmeza, que mesmo os que tantas vezes discordaram dele poucas vezes deixaram de respeitá-lo. Eu perdi um amigo distante. Que teve uma vida coalhada de dramas tenebrosos – a ele e a Silvia foi reservada a pior das dores de um ser humano, a de enterrar os seus filhos – e conseguiu continuar caminhando. E sorrindo. Lembro de Carlos Fuentes como alguém que não se deixou abater. Que não deixou de sorrir e de acreditar. Certa vez, ele disse-me que escrevia para continuar sendo. E, assim, foi.
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C I D A D E S I N V I S Í V E I S
metrópolis
Tiago Quadros*
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EPICENTRO NA ALEMANHA do primeiro pós-guerra, Hans e Wassili Luckhardt em conjunto com os projectistas associados da Glaeserne Kette desenvolveram estudos para edifícios revestidos por grandes superfícies de vidro. De resto, o grupo, que integrava também Bruno Taut, lançaria as bases para aquela que viria a ser a arquitectura expressionista alemã. O princípio que parece ter inspirado Herzog & de Meuron na concepção do novo edifício para a Prada, em 2003, em Tóquio, no bairro de Aoyama, não é muito diferente. O cristal com poucas arestas, novo Epicentro, para usar o termo utilizado pela Prada para as suas mais importantes casas comerciais, não se reduz, apenas, a um “espaço para vender”. Se é verdade que os 2.800 m2, distribuídos em sete níveis, em Aoyama, têm a função de apresentar os produtos da prestigiada marca italiana, a configuração exterior definida pelos arquitectos Herzog & de Meuron torna a construção numa escultura fluorescente de tamanho dilatado. Dir-se-ia uma espécie de monumento hermético, isolado dentro do tecido urbano, confuso e incerto, da capital japonesa. Tanto a forma do edifício quanto a sua implantação no lote resultam das incertezas motivadas pela natureza do território em questão. Seja sobre o volume, seja sobre a sua implantação no terreno, as escolhas resultantes das diferentes interpretações possíveis dos métodos construtivos ou dos regulamentos em vigor, em Tóquio, ajudaram o edifício a encontrar a sua forma. O resultado é um corpo transparente, uma incrustração quase marinha aprisionada na robusta malha de uma rede. O edifício exibe a estrutura interior e difunde a luz, filtrada e comprimida, a partir de losangos que assinalam com contínuas linhas diagonais o revestimento de vidro. A pequena torre, ao crescer em altura, liberta uma parte do lote, tratado como uma praça, à qual é atribuída uma função essencialmente visual, em estreita relação com o objecto que a gerou. No interior, o espaço revela o conceito de construção adoptado. Na verdade, a sua modelação resulta da continuidade da estrutura em gaiola, que gera os alçados e inserção das janelas, apenas em alguns casos e de forma aparentemente aleatória, escurecidas. A homogeneidade da estrutura, projectada no exterior, constitui uma novidade que vale a pena referir, isto se pensarmos na insistência com que Herzog & de Meuron, no início de sua carreira, levaram ao limite, experiências realizadas em torno de questões de revestimento, como tema de estudo independente do âmbito da decoração. Os interiores, demonstrando como, provavelmente, a referência inicial aos principais intervenientes no Glaeserne Kette não é desajustada, têm uma configuração de sabor expressionista. Mesmo as telas de projecção, colocadas no interior das arestas do invólucro, permitindo ao público a visualização simultânea do que acontece no “mundo Prada” no mundo, parecem evocar
as atmosferas criadas por Hans Poelzig nas suas cenografias para filmes expressionistas, ou ainda aquelas que podem ser vistas em Metropolis de Fritz Lang. Mas ao contrário do que sucedeu no panorama expressionista, tudo neste Epicentro, implantado como um alienígena no centro de Tóquio, comunica a vontade para acomodar de modo confortável. As cores dos móveis, dos revestimentos metálicos, das arestas das paredes amaciadas, o som gerado pelos aparelhos electrónicos, tendem a anular o efeito apreensivo da passagem entre a praça e o interior da torre transparente. O modo suave como a luz é difundida, procura apaziguar o público no ambiente acolhedor que a Prada em Aoyama oferece. Com efeito, a atmosfera apresenta-se diversificada, nunca atormentada por qualquer cacofonia. A fluidez do espaço interior torna claro que, neste caso, Herzog & de Meuron procuraram de forma deliberada limpar, domesticando e tornando “comestíveis”, para lembrar uma expressão de Salvador Dalí, figuras e ambientes provenientes do imaginário expressionista. Este é o resultado de uma estratégia comercial e de uma concepção expositiva originais. Esta estratégia e o modo como os produtos em venda são apresentados ao público procuram envolver todos os que visitam este espaço num ambiente de requinte mas que ao mesmo tempo permite o óbvio: que cada comprador possa tocar, à distância do seu braço, os objectos expostos. O momento tornado experiência resume-se a um hiato espacio-temporal fora da comunidade que acolhe o comprador. Com isto, o que a Prada oferece é a ilusão do público poder cumprir a sua prórpia “missão” sem estar sujeito a qualquer compulsão, imaginando-se, na verdade, o protagonista de uma experiência privilegiada. A “mensagem” que um complexo como o Epicentro de Tóquio transmite é simples, directa e conhecida. Por um lado, o objectivo é contrariar a associação consumo-repetição; por outro lado, o mecanismo psicológico envolvido assume o preço dos bens como irrelevantes porque os próprios bens, como Walter Benjamin referiu passeando pelos Champs Elysées, apresentam-se como um espetáculo - muito mais quando, actualmente, para garantir o sucesso de uma determinada intervenção estão mobilizados recursos que à partida garantem o melhor da arquitectura. Ao contrário de outros projectos promovidos por empresários que trabalham na indústria da moda, o que a Prada fez e continua a fazer é a implementação de uma estratégia que visa exaltar a identificação do “sempre igual” da moda com o “sempre novo” da arquitectura. A casa de Milão subsiste como um dos principais territórios no qual a arquitectura pode deitar a cabeça. *Arquitecto, Mestre em Cor na Arquitectura pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa
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O L H O S A O A L T O
gente sagrada
José Simões Morais
O DRAGÃO SAIU DA ÁGUA Por toda a China realiza-se no quinto dia da quinta Lua, as regatas dos Barcos-Dragão, conhecido pelo Festival do Duplo 5 (Duan wu em mandarim), que está intimamente ligado às Festividades do Dragão Embriagado. A distância de tempo que as separa, celebrando-se no dia 8 do quarto mês lunar o Dragão Embriagado e 27 dias depois o Duplo 5. Mas este ano conta com mais um mês lunar e por isso só ocorrem passados 57 dias, altura em que o corpo do dragão se encontra fora de água. O ano de 2012 tem 13 meses lunares, já que se procede ao ajustamento do calendário lunar com o solar. Tal acontece de três em três anos, pois cada mês lunar é de 29,53059 dias e assim o ano fica com menos 10 dias, ganhos aos mais compridos meses do ano solar. No templo, onde ficaram expostas à protecção divina, as caudas e as cabeças que compõem a barca do Dragão são, após se fazer sacrifícios ao deus da Água, são retiradas no dia 8 do quarto mês lunar e transportadas ao longo da cidade durante as festividades do Dragão Embriagado (Wu Zhui long). Espargidas pela embriaguez do inconsciente de quem as transporta pelas ruas da cidade e lhes empresta o corpo ao dragão, servindo o vinho de arroz para elevar o “qi” dos in-
tervenientes e colocá-los livres de si mesmos. Esta acção serve para acordar o dragão e este tomar o “ling” (a Alma). Só aí se retira o barco para fora da água. Voltam então a ser colocadas nos longos, mas estreitos barcos, a cauda em forma de dragão e na proa a cabeça desse animal mitológico. Ficam assim os barcos preparados para as regatas do Duplo 5. Por isso este dia 8 do quarto mês lunar é conhecido como “fora da água” ou “qi shui” e é quando se começam a fazer os preparativos para as corridas dos barcos-Dragão. Todos os anos após as regatas dos barcos-dragão são retiradas aos barcos tanto a cabeça, como a cauda do dragão e levadas de novo para o templo ou para no caso de Macau, para a Associação de Barcos-Dragão, onde ficam até ao ano seguinte. O corpo do barco é afundado dentro da água do rio e em Macau guardam-se em armazéns. O espaço temporal entre o dia 8 do quarto mês lunar, o Dragão Embriagado e o Duplo 5, tem algo a ver com o primitivo Carnaval do mundo Ocidental greco-romano. Mas com o espírito materializado, nas imagens mentais se perderam pela evolução dos significados os conhecimentos animistas e apenas se observa a grandeza da figura material de como nos fazemos.
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L E T R A S S Í N I C A S
HUAI NAN ZI 淮南子
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O LIVRO DOS MESTRES DE HUAINAN
Quando homens mesquinhos ocupam altos cargos, não é possível descansar nem por um instante.
DO ESTADO E DA SOCIEDADE – 9 Os sábios encorajam o bem recorrendo àquilo de que as pessoas gostam e proíbem o mal recorrendo àquilo que as pessoas detestam. Recompensam uma pessoa e o mundo inteiro os elogia; punem uma pessoa e o mundo inteiro os admira. Desse modo, a melhor recompensa não é cara e o melhor castigo não é excessivo. *** Os sábios usam a cultura para comunicar com a sociedade e usam a realidade para executar aquilo que é apropriado. Não estão presos a um caminho fixo; não estagnam nem negligenciam a necessidade de se adaptarem. Como tal, os seus falhanços são
poucos e os seus sucessos são muitos; como tal, as suas directivas são levadas a cabo e ninguém as pode negar. *** Quando os sábios ocupam altos cargos, o povo se satisfaz com o seu governo; quando os sábios ocupam baixos cargos, o povo tem por referência as suas ideias. Quando homens mesquinhos ocupam altos cargos, não é possível descansar nem por um instante. *** Quando os líderes consideram os seus subordinados como seus próprios filhos, os subordinados os consideram como seus próprios pais. Quando os líderes consideram os seus subordinados como seus próprios irmãos mais
novos, os subordinados os consideram como seus irmãos mais velhos. Quando os líderes consideram os seus subordinados como seus próprios filhos, dominarão o mundo inteiro. Quando os subordinados consideram os líderes como seus próprios pais, rectificarão o mundo. Quando os líderes consideram os seus subordinados como seus próprios irmãos mais novos, estes não consideram difícil por eles morrer. Quando os subordinados consideram os líderes como seus próprios irmãos mais velhos, estes não consideram difícil morrer por eles. Não é possível lutar contra um exército de pais, filhos e irmãos, devido ao quão já fizeram uns pelos outros. Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho
HUAI NAN ZI (淮南子), O Livro dos Mestres de Huainan foi composto por um conjunto de sábios taoistas na corte de Huainan (actual Província de Anhui), no século II a.C., no decorrer da Dinastia Han do Oeste (206 a.C. a 9 d.C.). Conhecidos como “Os Oito Imortais”, estes sábios destilaram e refinaram o corpo de ensinamentos taoistas já existente (ou seja, o Tao Te Qing e o Chuang Tzu) num só volume, sob o patrocínio e coordenação do lendário Príncipe Liu An de Huainan. A versão portuguesa que aqui se apresenta segue uma selecção de extractos fundamentais, efectuada a partir do texto canónico completo pelo Professor Thomas Cleary e por si traduzida em Taoist Classics, Volume I, Shambhala: Boston, 2003. Estes extractos encontram-se organizados em quatro grupos: “Da Sociedade e do Estado”; “Da Guerra”; “Da Paz” e “Da Sabedoria”. O texto original chinês pode ser consultado na íntegra em www.ctext.org, na secção intitulada “Miscellaneous Schools”.
FERNANDA DIAS Uma leitura do
YI JING O SOL, A LUA
E A VIA DO FIO DE SEDA A nova tradução do livro que há milénios ilumina a civilização chinesa