h - Suplemento do Hoje Macau #43

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PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nツコ 2617. Nテグ PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

ARTES, LETRAS E IDEIAS

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O FIM DE UMA ILUSテグ


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MANIFESTO DOS ATERRADOS

ESTE ‘MANIFESTO’ É UMA INICIATIVA DE UM GRUPO DE ECONOMISTAS FRANCESES NEO-KEYNESIANOS, DE QUE SE DESTACAM ANDRÉ ORLÉAN, PRÉSIDENTE DA ASSOCIATION FRANÇAISE D’ÉCONOMIE POLITIQUE (AFEP), PHILIPPE ASKENAZY, THOMAS COUTROT E HENRI STERDYNIAK. TRADUÇÃO DE JOÃO ESTEVES DA SILVA.

A RETOMA económica mundial, permitida por uma injecção colossal de despesas públicas no circuito económico (desde ao Estados Unidos até à China) é frágil mas real. Um só continente continua travado. Reencontrar o caminho do crescimento não é a sua prioridade política. A Europa comprometeu-se numa via diferente: a da luta contra os défices públicos. Na União Europeia estes défices são elevados - 7% em média em 2010 – mas bem menor o que a exibida pelos Estados Unidos. Enquanto os Estados norte-americanos com um peso económico mais relevante do que o da Grécia, a Califórnia, por exemplo, estão em quase falência, os mercados financeiros decidiram especular sobre as dívidas soberanas dos países europeus, muito particularmente os do Sul. A Europa, de facto, está prisioneira da sua própria armadilha institucional: os Estados têm que tomar empréstimos junto de instituições financeiras privadas que obtêm liquidez a baixo preço junto da Banco Central Europeu. Os merca-

dos têm, portanto, a chave do financiamento dos Estados. Neste quadro, a ausência da solidariedade europeia suscita a especulação. Tanto mais que as agências de notação jogam na acentuação da desconfiança. Foi necessária a degradação da notação da Grécia, em 15 de Junho, pela agência Moody’s para que os dirigentes europeus tivessem reencontrado o termo “irracionalidade” que tanto haviam utilizado no início da crise das “subprimes”. Do mesmo modo, descobre-se agora que a Espanha está muito mais ameaçada pela fragilidade do seu modelo de crescimento e do seu sistema bancário do que pelo nível do seu endividamento público. Para “tranquilizar os mercados” foi improvisado um fundo de estabilização do euro, bem como foram lançados através da Europa planos drásticos e muitas vezes cegos de redução das despesas públicas. Os primeiros atingidos são os funcionários, inclusivamente em França, onde a baixa das cotizações da reforma será uma quebra mal disfarçada

do seu salário. O número de funcionários diminui por toda a parte, ameaçando os serviços públicos. As prestações sociais, da Holanda a Portugal, passando pela França, com a actual alteração da idade da reforma, estão em vias de ser gravemente amputadas. O desemprego e a precariedade de emprego desenvolver-se-ão necessariamente nos próximos anos. Estas medidas são irresponsáveis de um ponto de vista político e social, e mesmo no plano estritamente económico. Esta política, que acalmou muito provisoriamente a especulação, teve já consequências sociais muito negativas em numerosos países europeus, particularmente entre a juventude, o mundo do trabalho e os mais fragilizados. A termo, irá atiçar as tensões na Europa e ameaçará por isso a própria construção europeia que é bem mais do que um projecto económico. Ela supõe que economia é posta ao serviço da construção de um continente democrático, pacificado e unido. Em vez disso, o que emerge é uma forma de ditadura dos mercados que se impõe por toda a parte

e particularmente hoje em Portugal, na Grécia e em Espanha, três países que no início dos anos setenta, há pouco mais de trinta anos, eram ainda ditaduras. Quer seja interpretada como o desejo de “tranquilizar os mercados” por parte de governos amedrontados, ou como um pretexto para impor as escolhas ditadas pela ideologia, a submissão a esta ditadura não é aceitável e já deu provas da sua ineficácia económica e do seu potencial destrutivo no plano político e social. Um verdadeiro debate democrático sobre as escolhas de política económica tem necessariamente que ser aberto em França e na Europa. A maior parte dos economistas que intervêm no debate público fazem-no para justificar ou racionalizar a submissão dos políticos às exigências dos mercados financeiros. Certamente que os poderes públicos tiveram que improvisar alguns planos de recorte keynesiano e mesmo por vezes nacionalizar temporariamente bancos. Mas querem fechar este parêntesis o mais rapidamente


possível. O programa neo-liberal continua a ser o único reconhecido como legítimo, apesar dos seus patentes fracassos. Fundado sobre a hipótese da eficiência dos mercados financeiros, assenta na proposta de reduzir as despesas públicas, privatizar os serviços públicos, flexibilizar o mercado de trabalho, liberalizar o comércio, os serviços financeiros e os mercados de capitais e aumentar a concorrência em todos o tempos e em todos os lugares… Como economistas, estamos aterrados ao vermos que estas políticas continuam na ordem do dia e que os seus fundamentos teóricos não são postos em questão. Os argumentos que, desde há trinta anos, são avançados para orientar as escolhas das políticas económicas europeias, foram duramente atingidos pelos factos. A crise pôs a nu o carácter dogmático e infundado da maior parte das evidências repetidas à saciedade pelos decisores e pelos seus conselheiros. Quer se trate da eficiência e racionalidade dos mercados financeiros, da necessidade de cortar as despesas para reduzir a dívida pública, ou de reforçar “o pacto de estabilidade”, é preciso interrogar estas falsas evidências e mostrar a pluralidade de escolhas possíveis em matéria de política económica. Porque outras escolhas são possíveis e desejáveis, sob condição de que se desate o garrote imposto pela indústria financeira às políticas públicas. Apresentamos, em seguida, uma apreciação crítica dos dez postulados que continuam a inspirar todos ao dias as decisões dos poderes públicos por toda a parte na Europa, apesar dos desmentidos cortantes trazidos pela crise financeira e as suas sequelas. Trata-se de falsas evidências que inspiram medidas injustas e ineficazes face às quais apresentamos vinte e duas contra-propostas. Nem todas são unanimemente apoiadas entre ao signatários deste texto, mas elas devem ser tomadas a sério, para que a Europa possa sair do atoleiro em que se meteu. FALSA EVIDÊNCIA Nº1: OS MERCADOS FINANCEIROS SÃO EFICIENTES Há hoje um facto que se impõe aos olhos de toda a gente: o papel essencial que desempenham os mercados financeiros no funcionamento da economia. Foi o resultado de uma longa evolução que começou no final dos anos setenta. Seja qual for a forma sob a qual a mensuremos, esta evolução marca uma ruptura nítida, tanto qualitativa como quantitativa, em relação aos decénios precedentes. Sob a pressão dos mercados financeiros, a regulação de conjunto do capitalismo foi profundamente transformada dando origem a uma forma inédita de capitalismo a que alguns chamaram “capitalismo patrimonial”, “capitalismo financeiro” ou “capitalismo neo-liberal”. Estas mutações encontraram a sua justificação teórica na hipótese da eficiência informacional dos mercados financeiros. De facto, segundo esta hipótese, importa desenvolver os mercados financeiros, fazê-los funcionar o mais livremente possível, porque eles são o único mecanismo eficaz de alocação de capital. As políticas conduzidas com obstinação, desde há trinta anos, são conformes com esta recomendação. Trata-se de constituir um mercado financeiro mundialmente integrado no qual todos os actores (empresas, lares, Estados, instituições financeiras) podem trocar todos os tipos de títulos (acções, obrigações, dívidas, deriva-

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dos, divisas) de todas as maturidades (longo, médio ou curto prazo). Os mercados financeiros começaram assim a assemelhar-se ao “mercado sem fricção” dos manuais: o discurso económico tornou-se capaz de criar a realidade. Sendo os mercados cada vez mais “perfeitos”, no sentido da teoria económica dominante, os analistas começaram a acreditar que o do sistema financeiro se havia tornado muito mais estável do que no passado. A “grande moderação”, este período de crescimento económico, sem subida dos salários, que os Estados Unidos conheceram de 1990 a 2007, parecia confirmá-lo. Ainda hoje o G-20 persiste na ideia de que os mercados financeiros são o bom mecanismo de alocação do capital. A primazia e a integridade dos mercados financeiros continuam a ser os objectivos últimos da nova regulação financeira. A crise é interpretada, não como o resultado inevitável da lógica da desregulação dos mercados, mas como o efeito da desonestidade e da irresponsabilidade de certos actores mal enquadrados pelos poderes públicos. Todavia, a crise veio demonstrar que os mercados não são eficientes e que não permitem uma alocação eficaz do capital. As consequências deste facto, em matéria de regulação e de política económica são imensas. A teoria da eficiência assenta na ideia de que os investidores procuram e encontram a informação mais fiável sobre o valor dos projectos que estão em concorrência na procura de financiamento. A acreditar nesta teoria, o preço formado no mercado reflecte o juízo dos investidores e sintetiza o conjunto da informação disponível: esse preço constitui, portanto, uma boa estimativa do verdadeiro valor dos títulos. Ora, é este valor que se supõe capaz de resumir toda a informação necessária para orientar a actividade económica e, assim, a vida social. Nestes termos, os capitais serão investidos nos projectos mais rentáveis abandonando os projectos menos eficazes. É esta a ideia central da teoria: a concorrência financeira produz preços justos que constituem sinais fiáveis para os investidores e orientam eficazmente o desenvolvimento económico. Mas a crise veio confirmar os diferentes trabalhos críticos que tinham posto em dúvida esta teoria. A concorrência financeira não produz necessariamente preços justos. Pior: a concorrência é, muitas vezes, desestabilizadora e conduz a evoluções de preços excessivas e irracionais, as bolhas financeiras. O erro maior da teoria da eficiência dos mercados financeiros consiste em transpor para os mercados financeiros a teoria dos mercados dos bens comuns. Neste último caso, a concorrência é, em parte, auto-reguladora, em virtude do que se chama a “lei” da oferta e da procura: quando o preço de um bem aumenta, os produtores vão aumentar o volume da oferta e os compradores vão diminuir o nível da sua procura, pelo que o preço baixará até ao seu nível de equilíbrio. Dito de outro modo: quando o preço de um bem aumenta, as forças do mercado tendem a travar e depois a inverter esse curso altista. A concorrência produz o que se chama “retroacções negativas”, forças compensatórias que contrariam o choque inicial. A ideia de eficiência nasce da transposição directa deste mecanismo para o funcionamento dos mercados financeiros. Ora, em relação a estes últimos, a situação é muito diferente. Quando o preço aumenta, é frequente observar não uma baixa mas uma alta da procura! Com efeito, a

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subida do preço significa um rendimento acrescido para aqueles que detêm o título, por efeito da mais-valia realizada. A alta do preço atrai, portanto, novos compradores, o que reforça a subida inicial. As promessas de bónus levam os “traders” a amplificar ainda mais o movimento. Até ao incidente, imprevisível, mas todavia inevitável, que é a inversão das antecipações, na forma do crash. Este fenómeno, digno dos carneiros de Panurgio, constitui uma “retroacção positiva” que agrava os desequilíbrios. É o que se chama uma bolha especulativa: uma alta cumulativa dos preços que se alimenta a si mesma. Este tipo de processos não produz preços justos, mas, pelo contrário, preços inadequados. O lugar preponderante ocupado pelos mercados financeiros não pode conduzir a qualquer forma de eficácia. Mais ainda, é uma fonte permanente de instabilidade, como mostra claramente a série ininterrupta de bolhas especulativas que conhecemos ao

Medida nº 4: Estabelecer um plafond para as remunerações dos “traders”. FALSA EVIDÊNCIA Nº2: OS MERCADOS FINANCEIROS FAVORECEM O CRESCIMENTO ECONÓMICO A integração financeira levou o poder da finança ao seu ponto culminante pelo facto de unificar e centralizar a propriedade capitalista à escala mundial. Hoje, é ela que determina as normas de rentabilidade exigidas pelo conjunto dos capitais. O projecto era o de que a finança mercantil e bolsista se substituísse ao financiamento bancário dos investimentos. Projecto que, aliás, fracassou, dado que hoje, globalmente, são as empresas que financiam os accionistas e não o contrário. Entretanto, a gestão, ou, como hoje se diz, a “governância” das empresas, foi profundamente transformada para estar a par com as normas de rentabilidade do mercado. Com a ascensão do poder dos ac-

longo dos últimos 20 anos: Japão, Sudeste asiático, Internet, mercados emergentes, imobiliário, titularização. A instabilidade financeira traduz-se, assim, por fortes flutuações das taxas de câmbio e da Bolsa, que não têm, manifestamente, a menor relação com os fundamentos da economia. Esta instabilidade dos mercados financeiros propaga-se à economia real por numerosos mecanismos. Para reduzir a ineficiência e a instabilidade dos mercados financeiros, sugerimos quatro medidas: Medida nº 1: Separar estritamente os mercados financeiros e as actividades dos bancos e proibir os bancos de especular por conta própria, a fim de evitar a propagação das bolhas e dos crashes. Medida nº 2: Reduzir a liquidez e a especulação destabilizadora, através de controlos sobre os movimentos de capitais e taxas sobre as transacções financeiras. Medida nº 3: Limitar as transacções financeiras às que correspondem às necessidades da economia real (Ex: CSD, apenas para o detentores de títulos com seguro).

cionistas, impôs-se uma nova concepção da empresa e da sua gestão, que foi posta inteiramente ao serviço dos accionistas. A ideia de um interesse comum aos diferentes participantes na vida da empresa desapareceu completamente. Os dirigentes das empresas cotadas na Bolsa têm hoje por única e exclusiva missão a satisfação do desejo de enriquecimento dos accionistas. Em consequência, deixam eles mesmos de ser assalariados. Como mostra a ascensão desenfreada das suas remunerações. Trata-se de fazer com que os interesses dos dirigentes sejam coincidentes com os interesses dos accionistas. O ROE (return on equity, ou rendimento dos capitais próprios) entre os 15 e os 25% é hoje a norma que o poder da finança impõe às empresas e aos assalariados. A liquidez é o instrumento deste poder, permitindo que a todo o momento o capital não satisfeito possa voar para outras paragens. Perante este poderio, tanto a instituição salarial como a soberania política, aparecem, pelo seu fraccionamento, em nítida posição de inferioridade. Esta situação desequilibrada


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leva a exigências de lucro completamente irrazoáveis, porque quebram o crescimento económico e conduzem ao aumento continuado das desigualdades de rendimento. Por outro lado, as exigências de rentabilidade inibem fortemente o investimento: Quanto mais elevada for a exigência de rentabilidade, mais difícil se torna encontrar projectos que possam satisfazê-la. As taxas de investimento mantêm-se historicamente fracas, tanto na Europa como nos Estados Unidos. Por outro lado, tais exigências provocam uma pressão constante no sentido da baixa dos salários e do poder de compra que não é favorável ao crescimento da procura. A travagem simultânea do investimento e do consumo conduz a um crescimento fraco e a um desemprego endémico. Esta tendência foi contrabalançada, nos países anglo-saxónicos, por um crescimento do endividamento das famílias e das bolhas financeiras que criam uma riqueza fictícia e permitem um crescimento do consumo sem crescimento dos salários, mas terminam em crashes. Para remediar os efeitos nefastos dos mercados financeiros sobre a actividade económica, apresentamos para debate as seguintes medidas: Medida nº 5: Reforçar significativamente os contra-poderes no seio das empresas para obrigar as direcções a tomar em consideração os interesses de todas as partes envolvidas. Medida nº 6: Aumentar significativamente a imposição fiscal sobre os muito altos rendimentos, a fim de desencorajar a corrida aos rendimentos insustentáveis. Medida nº 7: Reduzir a dependência das empresas face aos mercados financeiros, desenvolvendo uma política de crédito (taxas preferenciais para as actividades prioritárias no plano social e ambiental). FALSA EVIDÊNCIA Nº 3: OS MERCADOS SÃO BONS JUÍZES DA SOLVABILIDADE DOS ESTADOS Segundo os defensores da eficiência dos mercados financeiros, os operadores de mercado tomariam em consideração a situação objectiva das finanças públicas para avaliar o risco de subscrição de um empréstimo de Estado. Tomemos o caso da dívida grega: os operadores financeiros e os decisores avaliam a situação apenas na base das avaliações financeiras. Assim, quando a taxa exigida à Grécia subia até um nível superior a 10 %, cada um calculou que o risco de incumprimento (défaut) estava próximo: se os investidores exigem um tal prémio de risco, o perigo deve ser extremo. Trata-se de um profundo equívoco se compreendermos a verdadeira natureza da avaliação pelos mercados financeiros. Como estes mercados não são eficientes, os preços que indicam são, muitas vezes, completamente desconectados dos fundamentos. Logo, é totalmente irrazoável fiarmo-nos apenas nas avaliações financeiras para julgar uma situação. Avaliar o valor de um título financeiro não é uma operação comparável à mensuração de uma grandeza objectiva, como, por exemplo, a medição do peso de um objecto. Um título financeiro é um direito sobre rendimentos futuros: para o avaliar é preciso prever o que será esse futuro. É um caso que tem que ver com um julgamento, não com uma medição objectiva. Porque no instante “t”, o futuro não é de forma alguma pré-determinado. Nas salas de mercado, o futuro é simplesmente aquilo que os operadores imaginam que será. Um preço financeiro resulta de uma crença, uma aposta

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sobre o futuro: nada garante que o juízo do mercado tenha uma superioridade qualquer sobre outras formas de julgar. Sobretudo, a avaliação financeira não é neutra: ela influi sobre o objecto que avalia, ela compromete o futuro que imagina. Assim, os agentes de notação financeira contribuem, em larga medida, para determinar as taxas de juro nos mercados de obrigações, atribuindo notas marcada por um elevado coeficiente de subjectividade e mesmo uma vontade de alimentar a instabilidade, fonte de ganhos especulativos. Quando elas degradam a notação de um Estado, aumentam o nível da taxa de juro exigida pelos actores financeiros que adquirem os títulos da dívida pública desse Estado, aumentando por isso mesmo o risco de incumprimento (défaut) que fora anunciado. A fim de reduzir o domínio da psicologia dos mercados sobre o financiamento dos Estados, avançamos estas duas medidas: Medida nº 8: As agências de notação financeira não devem ser autorizadas a influir arbitrariamente sobre as taxas de juro dos mercados obrigacionistas, degradando a notação de um Estado: deveria regulamentar-se a sua actividade exigindo que a nota atribuída resulte de um cálculo económico transparente. Medida nº 8 bis: Libertar os Estados da ameaça dos mercados financeiros, garantindo a recompra dos títulos da dívida pública pelo BCE. FALSA EVIDÊNCIA Nº 4: O ACRÉSCIMO DA DÍVIDA PÚBLICA RESULTA DE UM EXCESSO DAS DESPESAS Michel Pébereau, um dos “padrinhos” da banca francesa, descrevia, em 2005, num deste relatórios oficiaisad hoc, uma França afogada pela sua dívida pública e sacrifican-

do as gerações futuras, entregando-se a despesas sociais inconsideradas. Um Estado que se endivida como um chefe de família alcoólico que bebe acima dos seus meios: eis a visão ordinariamente propagada pela maior parte dos editorialistas. A recente explosão da dívida pública na Europa e no mundo deveu-se, no entanto, a algo completamente diferente: aos planos de salvação da finança e sobretudo à recessão provocada pela crise bancária e financeira que começou em 2008: o deficit público médio da zona euro não ultrapassava 0,6% do PIB em 2007, mas a crise fê-lo passar a 7% em 2010. No mesmo período, a dívida pública passou de 66 % a 84 % do PIB. Todavia, o aumento da dívida pública, em França e numerosos países europeus, foi inicialmente moderado e anterior à recessão: ela provém largamente, não de uma tendência para o acréscimo da despesas públicas – visto que, pelo contrário, elas se mantiveram, em proporção do PIB, estáveis ou em baixa desde o começo do anos 1990 – mas pelo enfraquecimento das receitas públicas devido ao facto da fraqueza do crescimento económico no período e da contra-revolução fiscal lançada pela maior parte dos governos nos últimos vinte e cinco anos. Num prazo mais alargado, a contra-revolução fiscal alimentou continuamente o aumento da dívida pública entre duas recessões. Assim, em França, um recente relatório parlamentar avalia em 100 biliões de euros, em 2010, o custo das baixas de impostos consentidas entre 2000 e 2010, mesmo sem incluir a exoneração das cotizações para a segurança social (30 biliões) e “outros gastos fiscais”. Na falta de uma harmonização fiscal, os Estados europeus lançaram-se numa furiosa concorrência fiscal, baixando os impostos sobre as sociedades, os altos rendimentos e os patrimónios. Mesmo se o peso relativo

das diferentes rubricas varia de um país para o outro, a alta quase geral dos deficits públicos e dos rácios da dívida pública na Europa, no decurso dos últimos anos, não resulta principalmente de uma deriva culposa das despesas públicas. Um diagnóstico que abre pistas diferentes da sempiterna redução da dívida pública. Para lançar um debate público sobre a origem da dívida e, portanto, sobre os meios de intervir, colocamos em debate esta proposição: Medida nº 10: Realizar uma auditoria pública e democrática para determinar as origens da dívida pública e conhecer a identidade dos principiais detentores de títulos dessa dívida e os montantes respectivos. FALSA EVIDÊNCIA Nº 5: É PRECISO REDUZIR AS DESPESAS PARA REDUZIR A DÍVIDA PÚBLICA Mesmo que o aumento da dívida pública resultasse parcialmente de uma alta das despesas públicas, cortar estas despesas não contribuiria forçosamente para a solução. Porque a dinâmica da dívida pública não tem muito que ver com a de uma família: a macroeconomia não é redutível à economia doméstica. A dinâmica da dívida depende, em toda a sua generalidade, de vários factores: o nível dos deficits primários, mas também da margem entre a taxa de juro e a taxa de crescimento nominal da economia. Porque se o crescimento é mais fraco do que a taxa de juro, a dívida aumentará mecanicamente pelo “efeito bola de neve”: o montante dos juros explode e deficit total (incluindo os juros da dívida) também. Assim, no princípio dos anos 1990, a política do franco forte, conduzida por Pierre Bérégovoy, e mantida apesar da recessão de 1993-94, traduziu-se por uma taxa de juro duradouramente mais elevada do que a taxa


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de crescimento, explicando o salto da dívida pública da França durante esse período. É o mesmo mecanismo que explicava o aumento da dívida na primeira metade dos anos 1980, debaixo do impacte da revolução neo-liberal e da política de taxas de juro elevadas, conduzida por Ronald Reagan e Margaret Thatcher. Mas a própria taxa de crescimento da economia não é independente da despesa pública: a curto prazo, a existência de uma dívida pública estável limita a amplitude das recessões (“estabilizadores automáticos”); a longo prazo, os investimentos e as despesas públicas (educação, saúde, investigação, infra-estruturas…) estimulam o crescimento. É falso afirmar que todo o deficit público aumenta a despesa pública na mesma medida ou que toda a redução do deficit permite reduzir a dívida. Se a redução dos deficits domina a actividade económica, a dívida aumentará ainda mais. Os comentadores liberais sublinham que certos países (Canadá, Suécia, Israel) realizaram ajustamentos brutais das suas contas públicas nos anos 1990 e conheceram logo a seguir um forte crescimento. Mas isso só é possível se o ajustamento se faz num país isolado que rapidamente reganha competitividade sobre o seus concorrentes. O que evidentemente esquecem os partidários do ajustamento estrutural europeu é que os países europeus têm por principais clientes e concorrentes os outros países europeus, estando a União Europeia globalmente pouco aberta para o exterior. Uma redução simultânea e massiva das despesas públicas do conjunto dos países europeus só pode ter por efeito uma recessão agravada e, portanto, um novo aumento da dívida pública. Para evitar que o restabelecimento das finanças públicas provoque um desastre social e político, colocamos em debate estas duas medidas: Medida nº 10: Manter o nível das protecções sociais ou mesmo melhorá-lo (seguro de desemprego, alojamento…). Medida nº 11: Aumentar o esforço orçamental em matéria de educação, de investigação e investimento na reconversão ecológica… para por em marcha as condições de um crescimento sustentável que permita uma significativa baixa do desemprego. FALSA EVIDÊNCIA Nº 6: A DÍVIDA PÚBLICA TRANSFERE O PREÇO DOS NOSSOS EXCESSOS PARA OS NOSSOS NETOS Há uma outra afirmação falaciosa que confunde a economia doméstica com macroeconomia, a de que a dívida pública representaria uma transferência de riqueza em detrimento das gerações futuras. A divida pública é realmente um mecanismo de transferência de riqueza mas sobretudo dos contribuintes comunas para os beneficiários de rendas. Com efeito, com base na crença raramente verificada de que baixar impostos estimularia o crescimento e aumentaria as receitas públicas, os Estados europeus, a partir de 1980, começaram a imitar os Estados Unidos numa política de desarmamento fiscal sistemático. As reduções de impostos e de cotizações foram múltiplas (sobre os lucros das sociedades, sobre o rendimento dos particulares mais favorecidos, sobre os patrimónios, sobre as cotizações patronais…) mas o seu impacte sobre o crescimento económico foi muito incerto. Estas políticas fiscais anti-redistributivas vieram agravar, de modo cumulativo, tanto os deficits públicos como as desigualdades sociais.

Estas políticas fiscais obrigaram as administrações públicas a endividarem-se junto dos mercados financeiros e de famílias com posses para financiar os deficits criados. É o que se pode chamar “o efeito jackpot”: com o dinheiro economizado com a baixa dos impostos, os ricos puderam adquirir títulos da dívida pública (que pagam juros) emitida para refinanciar os deficits provocados pela quebra dos impostos que deixaram de pagar. O serviço da dívida pública em França representa 40 biliões de euros por ano, quase tanto como as receitas dos impostos sobre o rendimento. Tratou-se de um feito tanto mais brilhante quanto é certo que se conseguiu criar a ideia de que e dívida deve-se ao peso dos funcionários, dos doentes e dos reformados. O aumento da dívida pública na Europa e nos Estados Unidos não foi o resultado de políticas keinesianas expansionistas nem de políticas sociais dispendiosas, mas de uma política de favorecimento das classes privilegiadas: os “gastos fiscais” (baixas de impostos e de cotizações) aumentam o rendimento disponível daqueles que menos precisam e facilitam as suas colocações em títulos do Tesouro, remunerados com os juros pagos com os impostos pagos pela generalidade dos contribuintes. Temos como que um regime de redistribuição às avessas, das classes populares em favor das classes mais favorecidas, em virtude da dívida pública cuja contrapartida é sempre a renda privada. Afim de endireitar, de um modo equitativo, as finanças públicas na Europa e em França, avançamos para debate duas medidas: Medida nº 12: restituir à fiscalidade directa sobre os rendimentos a sua natureza redistributiva (supressão dos nichos, criação de novos escalões e aumento das taxas do imposto sobre o rendimento…) Medida nº 13: suprimir as reduções consentidas às empresas que não tenham um efeito visível sobro o emprego. FALSA EVIDÊNCIA Nº 7: É PRECISO TRANQUILIZAR OS MERCADOS FINANCEIROS PARA PODER FINANCIAR A DÍVIDA PÚBLICA A nível mundial, o aumento das dívidas públicas deve ser analisado em correlação com o processo de financiarização da economia. Durante os últimos trinta anos, em favor da completa liberalização da circulação dos capitais, a finança aumentou consideravelmente o seu domínio sobre a economia. As grandes empresas recorrem cada vez menos ao crédito bancário e cada vez mais aos mercados financeiros. As famílias vêm uma parte crescente das suas poupanças ser drenada para a finança, para o financiamento das suas reformas, através dos diferentes produtos de colocação ou pela via do financiamento da sua habitação (empréstimos hipotecários). Os gestores de carteiras, que procuram diversificar os riscos, interessam-se por títulos públicos como complemento dos títulos privados. Encontram-nos facilmente no mercado, já que os governos conduzem políticas que levam à acumulação dos deficits: taxas de juro elevadas, baixas de impostos selectivas sobre os rendimentos elevados, incitamentos massivos à poupança financeira das famílias para favorecer as reformas por capitalização, etc.. A nível da União Europeia (UE), a financiarização da dívida pública foi inscrita nos Tratados; desde Maastricht, os Bancos centrais estão proibidos de financiar directamente os Estados que têm de encontrar quem lhes empreste nos mercados financeiros. Esta “repressão monetária” acompanha

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a “liberalização financeira” e toma o preciso contra-pé das políticas adoptadas depois da grande crise dos anos 1930, que eram de “repressão financeira” (restrições drásticas à liberdade da acção da finança) e de “liberalização monetária” (com o fim do padrão ouro). Trata-se de submeter os Estados, considerados, por natureza, demasiado gastadores, à disciplina dos mercados financeiros, que se supõem omniscientes e eficientes. Em resultado desta escolha doutrinária, o Banco Central Europeu (BCE) não tem o direito de subscrever as emissões de obrigações públicas emitidas pelos Estados europeus. Privados da possibilidade de se financiarem junto do BCE, os países do Sul tornaram-se vítimas de ataques especulativos. É certo que, desde há alguns meses, o Banco central que anteriormente recusava fazer isso em nome de uma ortodoxia sem falhas, começou a comprar obrigações de Estados para acalmar as tensões nos mercados obrigacionistas europeus. Mas nada indica que isso seja suficiente, se a crise vier a agravar-se e as taxas de juro começarem a disparar. Então, será muito difícil manter esta ortodoxia monetária destituída de fundamento científico sério. Para remediar este problema da dívida pública, apresentamos para debate duas medidas: Medida nº 14: Autorizar o BCE a financiar directamente os Estados (ou impor aos bancos comerciais a subscrição de obrigações públicas) a taxas de juro baixas, libertando-os do garrote que lhes é imposto pelos mercados financeiros. Medida nº 15: Em caso de necessidade, reestruturar a dívida pública, estabelecendo, por exemplo, umplafond a certo nível do PIB, e operando uma discriminação entre credores segundo o volume de títulos que detenham: os grandes detentores deverão consentir num alongamento sensível do perfil da dívida ou mesmo anulações parciais ou totais. É preciso igualmente renegociar as taxas de juro exorbitantes dos títulos emitidos, desde a crise, pelos países em dificuldades. FALSA EVIDÊNCIA Nº 8: A UNIÃO EUROPEIA DEFENDE O MODELO SOCIAL EUROPEU A construção europeia apresenta-se como uma experiência ambígua. Há duas visões da Europa que coexistem sem ousar afrontar-se directamente. Para os sociais-democratas, a Europa deveria ter por objectivo promover o modelo social europeu, fruto do compromisso social do após guerra, com a sua protecção social, os seus serviços públicos e as suas políticas industriais. Ela deveria constituir uma barreira face à mundialização liberal, um meio de fazer progredir e prosperar este modelo. A Europa deveria defender uma visão específica da organização da economia mundial, uma mundialização regulada por organismos de governação mundial. Ela deveria permitir aos países membros a manutenção de um nível elevado de despesas públicas e de redistribuição, protegendo a sua capacidade de os financiar, através da harmonização da fiscalidade sobre as pessoas, as empresas e os rendimentos do capital. Todavia, a Europa não quis assumir a sua especificidade. A visão actualmente dominante em Bruxelas e no seio da maior parte dos governos nacionais é, pelo contrário, a de uma Europa liberal cujo objectivo é o de adaptar as sociedades europeias às exigências da mundialização: a construção europeia é a oportunidade para pôr em causa o modelo social europeu e desregular a economia. A predominância do direito da concorrência sobre as regulações nacionais e sobre os di-

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reitos sociais, no Mercado Único, permite a introdução de uma maior concorrência nos mercados de produtos e serviços, diminuir a importância dos serviços públicos e organizar a colocação em concorrência dos trabalhadores europeus entre si. Esta concorrência social e fiscal permitiu reduzir os impostos, designadamente sobre os rendimentos do capital e das empresas (“as bases móveis”), fazendo pressão sobre as despesas sociais. Os Tratados garantem quatro liberdades fundamentais: a livre circulação das pessoas, das mercadorias, dos serviços e dos capitais. Mas, longe de se limitar ao mercado europeu, a liberdade de circulação dos capitais foi alargada aos investidores do mundo inteiro, submetendo assim o tecido produtivo europeu aos constrangimentos da valorização dos capitais internacionais. A construção europeia aparece assim como o meio de impor aos povos europeus as reformas neo-liberais. A organização da política macroeconómica (independência do Banco Central Europeu em relação à política, Pacto de Estabilidade) é marcada pela desconfiança em relação aos governos democraticamente eleitos. Trata-se de privar os países de toda a autonomia em matéria de política monetária, como em matéria de política orçamental. O equilíbrio orçamental tem que ser atingido, já que toda a política de relançamento foi banida, para deixar jogar apenas a “estabilização automática”. Nenhuma política conjuntural comum é executada ao nível da zona euro, nenhum objectivo comum em termos de crescimento ou de emprego é definido. As diferenças de situação entre os países não são tomadas em conta, visto que o pacto não se interessa nem pelas taxas de inflação nem pelos deficits externos nacionais. Os objectivos das finanças públicas não têm em conta as situações económicas nacionais. As instâncias europeias procuraram impulsionar, com êxito desigual, algumas reformas estruturais (por exemplo, as Grandes orientações de políticas económicas, o Método aberto de coordenação, ou a Agenda de Lisboa). O seu modo de elaboração não foi nem democrático nem mobilizador, a sua orientação neo-liberal não correspondia obrigatoriamente às políticas decididas ao nível nacional, tendo em conta a relação de forças existente em cada país. Tal orientação não conheceu os êxitos retumbantes que pudessem legitimá-la. O movimento de liberalização económica foi posto em causa (fracasso da directiva Bolkenstein); alguns países tentaram nacionalizar as suas políticas industriais enquanto que a maior parte se opôs à europeização das suas políticas fiscais ou sociais. A Europa social continua a ser uma palavra vã, só a Europa da concorrência e a da finança se afirmou realmente. Para que a Europa possa promover realmente um modelo social europeu, pomos em debate duas medidas: Medida nº 16: Pôr em causa a livre circulação dos capitais e da mercadorias entre a União Europeia e o resto do mundo, negociando os acordos bilaterais ou multilaterais que se mostrem necessários. Medida nº17: Em vez da política de concorrência, fazer da “harmonização no progresso” o fio director da construção europeia. Definir objectivos constrangentes comuns em matéria de progresso social e em matéria macroeconómica (GOPS – Grandes orientações de política social). FALSA EVIDÊNCIA Nº 9: O EURO É UM ESCUDO CONTRA A CRISE O euro poderia ter sido um factor de protecção contra a crise financeira mundial. A

supressão de toda a incerteza sobre as taxas de câmbio entre as moedas europeias eliminou um grande factor de instabilidade. No entanto, nada disso aconteceu: a Europa foi mais duramente afectada pela crise do que o resto do mundo. Isso tem que ver com as próprias modalidades da construção da união monetária. Desde 1999, a zona euro conheceu um crescimento relativamente medíocre e um acréscimo das divergências entre os Estados membros, em termos de crescimento, de inflação, de desemprego e de desequilíbrio das contas externas. O quadro da política económica da zona euro que tende a impor políticas macroeconómicas semelhantes para países em situações muito diferentes, alargou as disparidades de crescimento entre os Estados membros. Na maior parte dos países, em especial os maiores, a introdução do euro não provocou a prometida aceleração do crescimento. Para os outros houve crescimento mas ao preço de desequilíbrios dificilmente sustentáveis. A rigidez monetária e orçamental, reforçada pelo euro, permitiu que todo o peso do ajustamento fosse suportado pelo trabalho. Foi promovida a flexibilidade e a austeridade salarial, reduzindo a parte do trabalho no rendimento total, aumentando as desigualdades. Esta corrida para o fundo, no social, foi ganha pela Alemanha, que soube libertar enormes excedentes comerciais em detrimento dos seus concorrentes e, sobretudo, dos seus próprios assalariados, impondo uma baixa maior dos custos do trabalho e das prestações sociais, por comparação com os seus vizinhos, que não conseguiram tratar os seus trabalhadores com tanta dureza. Os excedentes comerciais alemães pesam sobre o crescimento dos outros países europeus. Os deficits orçamentais e comerciais de uns são a contrapartida dos excedentes dos outros. Porque os diferentes Estados não foram capazes de definir uma estratégia coordenada. A zona euro deveria ter sido menos atingida pela crise financeira do que os Estados Unidos ou o Reino Unido. As famílias estão menos envolvidas nos mercados financeiros que são menos sofisticados. As finanças públicas estavam em melhor situação: o deficit público do conjunto dos países da zona euro era de 0.6 % do PIB em 2007, contra perto de 3% nos Estados Unidos, Reino Unido e Japão. Mas a zona euro padecia de um cruzamento de desequilíbrios: os países do Norte (Alemanha, Áustria, Holanda, Países Escandinavos) refreavam os seus salários e a sua procura interna, acumulando excedentes no comércio externo, enquanto os países do Sul (Espanha, Grécia, Portugal) tinham um crescimento com algum vigor, com taxas de juro baixas mas acumulavam deficits exteriores. Quando a crise estalou nos Estados Unidos, estes tentaram implementar uma real politica de relançamento orçamental e monetário, iniciando um movimento de retorno à regulação financeira. A Europa, pelo contrário, não soube comprometer-se com uma política suficientemente reactiva. De 2007 a 2010, o impulso orçamental não foi além de 1,6 % do PIB na zona euro, contra 3,2 % no Reino Unido e 4,2 % no Estados Unidos. A quebra da produção devida à crise foi nítidamente mais forte na zona euro do que nos Estados Unidos. O crescimento dos deficits orçamentais na zona euro foi mais sofrido que o resultado de uma política activa. Ao mesmo tempo, a Comissão continuou a desencadear processos de deficit excessivo

contra os Estados membros, de tal sorte que, em 2010, praticamente a totalidade dos países europeus enfrentava um processo. A Comissão solicitou aos Estados membros que se comprometessem a regressar, antes de 2013 ou 2015, à barra de 3% independentemente da evolução económica de cada um. As instâncias europeias continuam a reclamar políticas salariais restritivas e a pôr em causa os sistemas públicos de reforma e de saúde, com o risco evidente de fazer mergulhar o Continente numa depressão e aumentar as tensões entre os países. Esta ausência de coordenação e, mais fundamentalmente, a ausência de um verdadeiro orçamento europeu capaz de permitir autêntica solidariedade entre os Estados membros incitou os operadores financeiros a afastarem-se do euro e a especular abertamente contra ele. Para que o euro possa realmente proteger os cidadãos europeus da crise, avançamos para debate duas medidas: Medida nº 18: Garantir uma verdadeira coordenação das políticas macroeconómicas e uma redução concertada dos desequilíbrios comerciais entre os países europeus. Medida nº 19: Compensar os desequilíbrios de pagamentos na Europa com um Banco de Pagamentos (organizadora dos empréstimos entre países europeus). Medida nº 20: Se a crise conduzir ao desaparecimento do euro e, enquanto esperamos a instalação de um regime de orçamento europeu (cf. infra), estabelecer um regime monetário intra-europeu (moeda comum do tipo “bancor”) que organize a reabsorção dos desequilíbrios das balanças comerciais no seio da Europa. FALSA EVIDÊNCIA Nº 10: A CRISE GREGA PERMITIU QUE FINALMENTE SE AVANÇASSE PARA UM GOVERNO ECONÓMICO E UMA VERDADEIRA SOLIDARIEDADE EUROPEIA A partir de meados de 2009, os mercados financeiros começaram a especular sobre as dívidas dos países europeus. Globalmente, o forte aumento das dívidas e dos deficits públicos à escala mundial (ainda) não acarretou a alta das taxas de juro de longo prazo: os operadores financeiros pensam que os bancos centrais manterão bastante tempo as taxas de juro reais a um nível próximo de zero e que não há risco de inflação ou de incumprimento (“défaut”) por parte de um grande país. Mas os especuladores perceberam as falhas da organização da zona euro. Enquanto os governos dos outros países desenvolvidos podem sempre ser financiados pelos seus respectivos bancos centrais, os países da zona euro renunciaram a essa possibilidade, e dependem totalmente dos mercados financeiros para o financiamento dos seus deficits. Em consequência, a especulação pôde desencadear-se sobre os países mais frágeis da zona euro: a Grécia, a Espanha, a Irlanda. As instâncias europeias e os governos tardaram em reagir, não querendo dar a impressão de que os países membros tinham direito a um apoio sem limite por parte dos seus parceiros e querendo sancionar a Grécia, culpada de haver mascarado – com a ajuda da Goldman Sachs – a dimensão dos seus deficits. Todavia, em Maio de 2010, o BCE e os países membros tiveram que criar, com urgência, um Fundo de estabilização para indicar aos mercados que aportariam um apoio sem limite aos países ameaçados. Em contrapartida, estes países foram obrigados a anunciar programas de austeridade orçamental sem precedentes, que irão condená-los a um longo período de recessão. Sob pressão do F.M.I. e


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da Comissão Europeia, a Grécia teve que privatizar os seus serviços públicos e a Espanha que flexibilizar o seu mercado de trabalho. Mesmo a França e a Alemanha, que não estão sob a ameaça da especulação, anunciaram medidas restritivas. No entanto, globalmente, a procura não é de modo algum excessiva na Europa. A situação das finanças públicas é melhor do que a dos Estados Unidos ou da Grã-Bretanha, permitindo uma ampla margem de manobra orçamental. É preciso reabsorver os desequilíbrios de um modo coordenado: os países excedentários do Norte e do Centro da Europa devem levar a cabo políticas expansionistas – alta dos salários e das despesas sociais – para compensar as políticas restritivas dos países do Sul. Globalmente, a política orçamental não deve ser restritiva na zona euro, enquanto a economia europeia não se aproxime do pleno emprego a uma velocidade satisfatória. Mas os partidários das políticas orçamentais automáticas e restritivas na Europa estão hoje, infelizmente, numa posição reforçada. A crise grega permite fazer esquecer as origens da crise financeira. Aqueles que aceitaram apoiar financeiramente os países do Sul querem impor, em contrapartida, um endurecimento do Pacto de estabilidade. A Comissão e a Alemanha querem impor a todos os países membros a inscrição do objectivo do equilíbrio orçamental nas suas constituições e exercer uma vigilância da política orçamental por comités de peritos independentes. A Comissão quer impor a todos os países uma longa cura de austeridade para regressarem a uma dívida pública inferior a 60 % do PIB. Se há um avanço no sentido de um governo económico europeu é um avanço para um governo que, em vez de

desapertar o garrote da finança, quer impor a austeridade e aprofundar as “reformas” estruturais em detrimento das solidariedades sociais em cada país e entre todos. A crise oferece às elites financeiras e às tecnocracias europeias a tentação de por em prática a “estratégia de choque”, aproveitando a crise para radicalizar a agenda neo-liberal. Mas esta política tem muito poucas possibilidades de êxito: - A diminuição das despesas públicas vai comprometer o esforço necessário, à escala europeia, para sustentar as despesas de futuro (investigação, educação, política familiar), para ajudar a indústria europeia a manter-se e a investir nos sectores de futuro (economia verde). - A crise vai permitir a imposição de fortes reduções das despesas sociais, objectivo incansavelmente prosseguido pelos defensores do neo-liberalismo, com o risco de comprometer a coesão social, reduzir a procura efectiva, levar as famílias a poupar mais - para a sua reforma e a sua saúde - junto de instituições financeiras responsáveis pela crise. - Os governos e as instâncias europeias recusam-se a realizar a harmonização fiscal que permitiria a necessária elevação dos impostos sobre o sector financeiro, sobre os patrimónios importantes e os rendimentos elevados. - Os países europeus estão em vias de instaurar duradoiramente políticas orçamentais restritivas que irão pesar enormemente sobre o crescimento. As receitas fiscais vão cair. Assim, os deficits públicos não irão melhorar, os rácios da dívida degradar-se-ão, os mercados não vão acalmar. - Os países europeus, dada a diversidade das suas culturas políticas e sociais, não têm que

vergar-se, na sua totalidade, à disciplina férrea imposta pelo Tratado de Maastricht; também não se vergarão todos ao reforço que pretende organizar-se actualmente. O perigo de desencadear uma dinâmica de recolhimento identitário generalizado é real. Para avançar no sentido de um governo económico e uma solidariedade europeia avançamos para debate duas medidas: Medida nº 21: Desenvolver uma fiscalidade europeia (taxa de carbono, imposto sobro os lucros e as mais valias…) e um verdadeiro orçamento europeu para facilitar a convergência das economias e tender para uma equalização das condições de acesso aos serviços públicos e sociais nos diferentes Estados membros, com base nas melhores práticas. Medida nº 22: Lançar um vasto plano europeu, financiado por subscrição junto do público, a uma taxa de juro baixa mas garantida e/ou por criação monetária do BCE, para fazer face à reconversão ecológica da economia europeia.

CONCLUSÃO

QUESTIONAR A POLÍTICA ECONÓMICA, TRAÇAR CAMINHOS PARA REFUNDAR A UNIÃO EUROPEIA A Europa tem vindo a construir-se, desde há três decénios, sobre uma base tecnocrática, excluindo as populações do debate da política económica. A doutrina neo-liberal que repousa sobre a hipótese hoje indefensável da eficiência dos mercados financeiros tem que ser abandonada. É preciso reabrir o espaço das políticas possíveis e colocar

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em debate propostas alternativas coerentes que travem o poder da finança e organizem a harmonização, no progresso, dos sistemas económicos e sociais europeus. Isto supõe a mutualização de importantes recursos orçamentais, possibilitada pelo desenvolvimento de uma fiscalidade europeia fortemente redistributiva. É preciso libertar os Estados do garrote dos mercados financeiros. Só assim, o projecto da construção europeia poderá reencontrar a legitimidade popular e democrática que hoje lhe falta. Evidentemente que não é realista imaginar que 27 países decidirão, ao mesmo tempo, uma ruptura deste tipo no método e nos objectivos da construção europeia. A Comunidade Económica Europeia começou com seis países: a refundação da União Europeia passará também, no princípio, por um começo de acordo entre alguns países desejosos de explorar caminhos alternativos. À medida em que se forem tornando evidentes as consequências desastrosas das políticas hoje adoptadas, o debate sobre as alternativas começará a crescer em toda a Europa. Lutas sociais e mudanças políticas advirão em ritmo diferente, segundo os países. Governos nacionais tomarão soluções inovadoras. Quem realmente o desejar, poderá participar em formas de cooperação inovadoras para tomar as medidas necessárias em matéria de regulação financeira, de política fiscal ou social. Através de propostas concretas, estenderão a mão a outros povos para que se juntem ao movimento. Foi por isso que nos pareceu importante esboçar e colocar ao debate, desde já, as grandes linhas da política económica alternativa que tornarão possível esta refundação da construção europeia.


Para assistir às celebrações em honra de Yan Di viajámos até Suizhou, na província de Hubei, onde conhecemos a terra natal de Shen Nong, um dos Imperadores Ancestrais

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EM SUIZHOU, CIDADE DA MÚSICA E DO VINHO

JOSÉ SIMÕES MORAIS

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NA PISTA DE YA

José Simões Morais A TRÊS horas de viagem de Wuhan, capital de Hubei, encontra-se uma pacata cidade envolvida por terrenos agrícolas, onde muitas são as preciosidades arqueológicas escondidas e outras por desenterrar. Ao atravessar a urbe, ainda cheia de céu e de um rural estar, caminhando parece que recuamos no tempo e 5000 anos tinham passado quando chegámos ao hotel, cujo nome era o da montanha Li, onde Shen Nong nasceu. Malas no quarto e telefonamos ao sr. Han, que em Macau nos tinha apresentado Suizhou. Mais nos tinha atraído, ao falar ser essa a terra onde nasceu Shen Nong, mas achámos estranho, já que vínhamos de uma viagem a Bao Ji, província de Shaanxi, onde também nos afirmaram o mesmo. Ainda na praça do Senado ficámos a saber que este ano, no dia 16 de Maio, ia haver uma grande festividade em honra de Yan Di em Suizhou. Que esta terra estava ligada ao vinho, à música, pois fora encontrado num túmulo, do período da dinastia Zhou, o maior instrumento musical conhecido por bianzhong. O repto, naquela pequena feira em Macau onde as províncias chinesas se davam a conhecer, estava aceite e foi assim que chegamos a Suizhou. Quando, voltando à realidade, demos conta outra vez de nós, estávamos perante a imensa imagem em metal a representar Shen Nong, no jardim de Yan Di. A cidade é pequena e após ver as muralhas, com os tijolos assinados a parecer dar a credibilidade ao monumento da dinastia Qing, onde não falta um ribeiro a fazer de fosso, seguimos para o museu. Soubemos mais tarde que a muralha admirada era uma recente produção, apesar de ainda existirem restos da verdadeira. Se em Wuhan, para conhecer a extensa cidade, se passeia ao longo de uma tarde nos autocarros citadinos, aqui em Suizhou é o museu que nos dará as pistas para conhecer melhor a História da cidade. Estarão os leitores a pensar a razão de

umas vezes aparecer Shen Nong e outras vezes lhe dar o nome de Yan Di. Mas não é que numa das salas de exposição havia uma questão que quase equivalia a essa. Por quê umas vezes aparecia o nome Zeng e noutras, o de Sui para falar sobre um reino, ou seriam dois diferentes? Se gravados nos objectos em bronze encontrados no túmulo do Marquês Yi só aparecia Zeng e nunca Sui, já nos outros registos era apenas Sui que estava escrito. Apesar de datados no mesmo local e tempo seriam o mesmo reino? Tantos eram os objectos

deslumbrantes pelo rendilhado e riqueza artística, que deixámos escapar essa resposta. O nosso olhar estava agora virado para o bianzhong, composto por 64 sinos de bronze cuja particularidade era cada um deles poder tocar com duas notas diferentes. A fina técnica de fundição e o alto nível atingido pelo seu vibrar, cuja ressonância tinha um conjunto de duas notas, só foi desviado quando olhando para o tecto vemos projectado o mapa das 28 constelações que dão o Céu de um ano


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R Ó N I C A

FESTIVIDADES EM HONRA DE YAN DI

AN DI

UM RITUAL PARA TODA A CHINA

com a descrição das peças acima expostas e a sua data, observamos a repetição da palavra vinho. Estamos numa zona ligada ao vinho chinês, como os habitantes de Suizhou gostam de dizer e lembrat que a maior parte dos objectos existentes no museu a ele está conectado. A nossa primeira recordação foi logo para o jantar do dia anterior, onde nos apresentaram o local vinho chinês “Yandi Shennong” e a que, mais ao menos por brincadeira, mais ao menos a sério, chamam o Moutai de Hubei. Com quarenta graus de teor alcoólico acompanhou perfeitamente os pratos de carne, com excepção do carneiro, pois a estação do frio terminara e o restaurante já não o tinha como prato, apesar de aparecer nas fotografias da ementa. Agora os vegetais ..., esses, com um sabor pleno enriquecido pelos minerais absorvidos da terra, apresentavam uma grande variedade e todos eram deliciosos. Salientamos o de nome pau pau xin. NO CAMINHO DE LIGAÇÃO

Solar. Numa sala ao lado escutamos o som cristalino do instrumento musical, mas quando lá chegamos, já o pequeno espectáculo de demonstração tinha terminado. O museu era a melhor forma de fugir ao calor do meio-dia e, segundo o que nos diziam, este começava a despontar pois faltava um dia para o aniversário de Yan Di, no meio da Primavera, quando começa o tempo a aquecer. Afirmam-nos também que aqui as quatro estações são bem definidas. Reparando agora numa série de placas escritas em chinês e inglês

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Suizhou encontra-se a meio caminho entre o vale médio do rio Amarelo (Huanghe) e o do rio Longo (Changjiang), mais conhecido por Yangtzé. Aqui no Neolítico viveu a tribo Jiang, talvez proveniente do povo Diaolongbei e liderada por Shen Nong. Esta tribo conheceu nesse período um grande desenvolvimento muito devido aos conhecimentos do seu chefe, tais como o ter ensinado as pessoas a semear, promovendo assim a produção agrícola e a produzir instrumentos a ela ligada, estimulando os mercados com o fim de incentivar as trocas comerciais dos produtos excedentários. A técnica de fazer vinho já então existia, como indicam os muitos objectos de cerâmica para esse fim encontrados na área, assim como o da tecelagem, que ele

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ÀS CINCO e meia da manhã já estamos de pé, pois ainda é preciso percorrer de autocarro um percurso de 16 km para chegar ao extenso parque Yan Di, onde se realizam as cerimónias de sacrifício ao Imperador da Terra, um dos três Ancestrais da civilização chinesa. Esperavam-se 20 mil pessoas, com todos os altos dirigentes de cada uma das prefeituras de Hubei, assim como o governador desta província, tal como representantes de outros locais da China. O movimento era enorme na estrada e por isso, a lentidão com que o nosso transporte percorreu o percurso, permitiu observar as inúmeras fábricas de veículos pesados que a ladeavam. Dizem-nos ser Suizhou a capital dos transportes pesados, já que aqui são feitos a maioria dos camiões, havendo muitas fábricas que os constroem para as mais variadas funções, como carros de bombeiros, até camiões betoneira. O grande mercado, para além da China, é o dos países de África e América do Sul. No dia anterior tínhamos sido avisados que, para assistir à cerimónia, teríamos que vestir calça escura e camisa branca e foi nesse mar branco de gente que percorremos o longo caminho até em frente ao grande palácio onde, no interior se encontra registados todos os apelidos chineses, para além da estátua de pedra com a imagem de Yan Di em cujo regaço repousam espigas, não fosse ele também o deus da Agricultura. Com os lugares divididos em sectores, em cada um dos assentos encontra-se um saco com uma garrafa de água, uma toalha e uma longa tira de seda amarela para ser colocada ao pescoço. A cerimónia, transmitida em directo pela CCTV e o canal Fênix de Taiwan, vai começar e todos os passos do antigo rito de sacrifício são seguidos. Com o toque do gongo e tambor cada um enorme e situado nas partes laterais do enorme edifício, o cortejo inicia-se, ladeado por bandeiras com todos os apelidos das famílias chinesas. À frente o mestre da cerimónia, que vai ler o discurso em honra de Yan Di, é acompanhado por seis pessoas, seguidos por 72 hou, que representam o número de tribos aquando da união de Yan Di a Huang Di. Depois, grupos de figurantes que transportam cada um, os símbolos do contributo de Sheh Nong ao seu povo e os produtos des-

ta terra, como são os cogumelos e os potes de cerâmica. Antes das personalidades governamentais que encerram o cortejo, vem o grupo de esbeltas raparigas que transportam cada uma, um instrumento musical conhecido por ‹se›. Começa a parte mais importante da cerimónia, com a leitura do discurso em honra de Yan Di e após este, quatro jovens, um da Universidade de Ciências e Tecnologia de Macau e os outros de Hong Kong, Taiwan e de Hubei, cada um empunhando uma tocha, dão início à celebração das oferendas e dos sacrifícios. Seguem-se as principais individualidade oficiais, com os mesmos gestos e seguidos, sem saírem dos seus lugares, todos os que assistem à cerimónia. Depois, já com as portas abertas do Palácio e de novo todos sentados, dá-se início ao espectáculo. No largo pátio exterior começam a evoluir com um agitado movimento, as bandeiras, que se misturam por entre a assistência. Danças e artistas famosos chineses dão também o seu contributo às festividades. O Sol forte incomodava a inúmera assistência que durante as duas horas de cerimónia e sem poder abrir os guardas sóis, na pele comprovam o saber local que diz: «o calor em Suizhou chega a 26 do quarto mês lunar, dia do aniversário de Shen Nong». Na despedida, o sr. Han, em jeito de nos trazer de volta a Suizhou, fala-nos do festival da flor Lan Hua, que irá acontecer entre Junho e Julho. Muitos são os coreanos que por essa altura aqui vêm para as ver e comprar, pois são verdadeiramente loucos por esta flor, cujo aroma é deslumbrante. As sementes apenas aqui nesta terra se dão. Com folhas verdes que nas extremidades passam a douradas, assim como cada uma das pétalas têm várias cores, sem ser usado nenhum corante. Quando abrem, duram um mês. Também daqui os coreanos e japoneses importam dois tipos de cogumelos, o ‹mu er› e o ‹xiang gu›. Voltamos à cidade de Suizhou, que é a capital de prefeitura com dois milhões de habitantes, para ir buscar a nossa bagagem. Tínhamos daqui comboio directo para Guangzhou (Cantão), numa viagem feita à noite que demora 12 horas. Tempo mais que suficiente para descansarmos do já longo dia e chegar frescos a Macau.


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Continuação da pág. anterior estimulou e desenvolveu. Ensinou a construir casas de barro e madeira, que vieram substituir as cavernas onde o povo até então habitava e levou as pessoas a cozinharem os alimentos. Entrando pela montanha dentro, Shen Nong, ao provar centenas de plantas, distinguiu as que o povo podia usar e as venenosas e assim a medicina apareceu. Com esse saber, ajudava a recuperar os enfermos, o que lhe valeu ficar com o nome ligado a um livro de medicina, Matéria Médica de Shen Nong, escrito entre as dinastias Qin e Han. Promoveu também a cultura musical construindo instrumentos como o ‘qin’ e o ‘se’. Shen Nong (Yan Di), em conjunto com o Imperador Amarelo (Huang Di), juntando as suas tribos, criaram um único povo, os Huaxia, que são os primogénitos do povo chinês. Já na dinastia Xia, o sexto rei, Shao Kang, em meados do século XIX a. C., criou o Estado Zeng e ofereceu o governo ao segundo filho, o príncipe Qu Lie. Situado na área entre Suizhou e Zaoyang, era controlada já pela dinastia Shang quando o rei Wu Ding, liderando as tropas Shang contra os Jing Chu, passou por esse corredor. Pelos objectos de bronze aí encontrados em 1977 num túmulo Shang percebe-se que também esta dinastia deu um impulso ao desenvolvimento desta zona. No período da dinastia Zhou, no inverno de 506 a.C., o rei do Estado Wu, He Lu ataca o Estado Chu e após o derrotar, marcha até Ying, a capital dos Chu, onde alguns dos seus oficiais escavam o túmulo do rei Ping e o profanam. Então, o rei Zhao em pânico escapou e refugiou-se no reino Sui. Ao saber de tal, He Lu enviou para aí o seu exército e

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advertiu o povo Sui com as seguintes palavras: “A maior parte dos reinos Ji, descendentes da casa real dos Zhou, que habitavam a área entre os rios Longo e o Yangtzé foram subjugados pelos Chu. Por favor entreguem o rei Chu.” Os Sui responderam: “Somos um pequeno reino vizinho dos Chu e eles sempre nos deixaram existir. Isto aconteceu porque há gerações que temos um pacto, que nunca foi quebrado.” Baseando-se nesse pacto, recusaram entregar o rei Zhao que, sendo protegido pelos Sui, ficou eternamente grato ao Marquês Yi, que governava o reino. Após o Marquês Yi morrer no ano 433 a.C., o filho de Zhao, o rei Hui (488432 a.C.) do Estado Chu foi assistir ao funeral e enviou o sino comemorativo Bo, como símbolo de amizade. Os achados arqueológicos do túmulo do Marquês Yi do reino Zeng, encontrado no verão de 1978 em Leiguden, a 2,5 km a NW da cidade de Suizhou, formam a parte mais preciosa do recheio do museu. Quinze mil peças, que vão desde as enormes caixas de madeira lacada pintada com símbolos astronómicos que serviram de sarcófagos, instrumentos musicais, vasos rituais, armas e carros de combate e armaduras, tanto para os guerreiros, como para os cavalos. Finas peças de bronze, ouro, prata e jade são alguns dos muitos objectos raros expostos, não faltando o sino comemorativo Bo. Foi também ao perceber que os objectos de laca encontrados no túmulo do marquês Yi perderam todo o seu brilho e cor, devido à exposição ao ar, que se achou preferível manter os novos achados arqueológicos resguardados, em vez de os trazer para a luz do dia. Agora não há pressa em desenterrar os novos túmulos já encontrados.

a revolta do emir

Pedro Lystmann

O ARTHUR’S Este é um cocktail improvável mas nele entram o reconhecimento de uma falta, a morte de um ídolo de juventude, um bar de Kuala Lumpur e uma conclusão importante sobre os bares de Macau. Quem sabe dizer o nome de um cocktail alemão? O que nos chega deste país poderoso mas, no entanto, desconhecido? Apenas o vinho e, principalmente, uma grande variedade de cervejas. O cocktail, se pensarmos na Alemanha de um modo tradicional, parece um distante e improvável capricho. Este país não deu ao mundo nenhuma mistura que tenha alcançado fama. Estas vêm dos ingleses, um povo que tem tido tempo e disposição para a bebida de fim de tarde (não consigo, admirativamente, deixar de pensar nos ingleses como um povo que não tem nada para fazer) ou dos americanos, cuja propensão, ao invés, convival e empresarial os atrai inevitavelmente aos lugares onde se possam beber martinis ou cosmopolitans. Quantas decisões importantes para o mundo foram tomadas na América fundadas nos vapores do gin e de uma insinuação pedante de vermoute? Quantas decisões foram tomadas como resultado do abandono deleitoso aos almoços de 3 martinis, hábito que Jimmy Carter considerou suficientemente pernicioso para o interesse nacional a ponto de o criticar directamente numa campanha eleitoral?

Da Alemanha, que gostamos de imaginar maioritariamente protestante (mas que em rigor não o é), em matéria de bebida transparece apenas uma austeridade setentrional e, sim, protestante. Se de Portugal se celebrizou o Porto, da Escócia o uísque, da Inglaterra o gin tónico e de Manhattan o martini, da Alemanha lembramos o quê? O Kir? Alsterwasser? Por favor. Estas considerações vêm a propósito de uma circunstância improvável - a morte, dia 18 de Maio, de um ídolo de juventude. Dietrich Fischer-Dieskau foi, sem discussão possível, o cantor de lieder mais importante e celebrado do século século XX. Este cultivou outras formas vocais que não o lieder, como a ópera ou a música religiosa, mas foi neste formato íntimo, de chambre, tantas vezes acompanhado por Gerald Moore, que, durante tantos anos, mais o apre-

ciei (a interpretar Schubert ou Schumann, mas também Mahler ou Wolf). A morte deste ídolo, que a imprensa local previsivelmente ignorou, obrigou-me a uma bebida celebratória e a pensar na pobreza da contribuição alemã nesta matéria. Tentar descrever, mesmo que sumariamente, a sua brilhante carreira, seria fastidioso e inútil. Abandonar a compostura e entrar em sentimentalismos pouco elegante. Hoje já não existe o culto do disco como objecto mas a música está cada vez mais disponível, sob variadíssimas formas, e a ideia de que poderá deixar de haver ídolos da juventude permanece impensável. Onde encontrar um bar em Macau em que se possa celebrar a vida de Fischer-Dieskau? Difícil. Porque falta algo que existe noutras capitais americanas, europeias e asiáticas: o hábito de beber antes de jantar num lugar onde se tenha criado já um conforto do tempo. Não havendo em Macau nenhum bar de hotel antigo, levará tempo para que se fixe a clientela essencial a uma convivência confortável e urbana. Apenas num lugar, que será certamente alvo de várias crónicas futuras, se criou um ambiente parecido: no Bar Temptations no Hotel Star World. Não me repugna prever que o tempo e a abertura de novos hotéis construam um complexo de lazer que permitam a sedimentação deste hábito necessário. Actualmente, uma das causas desta insuficiência é de fácil identificação: a permanência de uma cultura pequeno-burguesa dos valores da aparência profissional que obriga os clientes à fixação inútil nos escritórios e os afasta dos bares, onde a libertação das inibições promoveria a ousadia e a criatividade que tanto faltam ao território. O traço mental que inspira esta incapacidade reside numa circunstância dificilmente ultrapassável a curto prazo. A de que Macau é, estruturalmente, ainda, uma sociedade rural e sedentária. Num país muçulmano fui encontrar, recentemente, um estado de coisas muito diferente, mais precisamente em Kuala Lumpur. Em vários lugares se aprecia uma saudável disposição para o convívio e para a bebida, um aproveitamento dos arranha-céus (nunca a palavra foi tão apropriada) para bares de terraço e uma diversidade imensa de conceitos. No Arthur’s Bar and Grill do Hotel Shangri-la deparamos com uma cópia de um conceito nova-iorquino exótico a Macau e cuja celebração nunca será bastante - a da casa de bifes a que se junta um bar digno desse nome. Esta ideia, associada ao famoso enclave americano, pretende juntar os prazeres da bebida, da comida e da conversa, 3 valores essenciais que parecem andar, aqui, nesta pequena cidade chinesa, demasiado separados. No Arthur’s vi gente de muitas etnias diferentes, de todas as idades e de todos os sexos, o gelo é redondo, os bifes óptimos, os empregados eficientes, as luzes baixas e os Pimm’s servidos sem pestanejar.


próximo oriente

Hugo Pinto

SENTIR A ONDA Amanhã, dia 26 de Maio, Pequim acolhe a quarta edição do I.N.T.R.O (“Ideas Need To Reach Out”), o mais antigo e o maior festival de música electrónica da China. O espaço 751 D-Park (Designer Park), vizinho do bairro das artes “798”, volta a ser o palco do evento que serve de montra da cena da música electrónica na China. Para este ano, o cartaz do festival anuncia mais de 80 artistas, com o contingente da Acupuncture Records (editora de Pequim que organiza o festival) a dominar. A lista de convidados internacionais é encabeçada pelo brasileiro Gui Boratto, estrela do techno minimal, o sueco Christian Smith e o francês Anthony Collins. Há sensivelmente um ano, por ocasião do terceiro I.N.T.R.O, trouxe a estas páginas as palavras da grande impulsionadora do festival, a mulher forte da Acupuncture Records, Miao Wong, que conheci em 2009, na segunda edição do festival. Dizia Miao que “a cena da música electrónica é muito recente e ainda luta para sobreviver. À medida que vamos fazendo coisas vamos ficando melhores e vamos diversificando a nossa actividade, mas se queremos desenvolver a cena temos de ser nós a fazê-lo, até que ganhe maturidade.” O panorama não mudou muito desde então,

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mas a segunda pessoa do plural na qual Miao Wong conjugava o seu pensamento é cada vez mais plural, ou seja, a comunidade que anima o movimento da música de dança electrónica em Pequim continua em crescimento. Da família cada vez mais numerosa também faz parte, agora, o projecto Metrowaves, dinamizado por Markus M. Schneider, alemão residente em Pequim. Com origem na capital chinesa, Metrowaves centra a acção na promoção de novos formatos de encontro e diálogo entre produtores de música electrónica e a audiência. De carácter internacional, o projecto pretende ligar os produtores chineses a produtores de outras paragens, conferindo desta forma mundo à experiência chinesa, ainda fresca quando comparada com o que acontece na música electrónica noutros países, sobretudo europeus. Em cooperação com o Goethe-Institut (já por mais do que uma vez, nestes textos, salientei a actividade desempoeirada deste instituto com a missão de promover a cultura alemã no mundo, em contraste com a tibieza de outras instituições similares), Metrowaves estreou-se, na última quarta-feira, com a organização da conferência “ME:CON - Metrowaves Electronic Music Convention”, que termina no próximo dia 26, em Pequim.

O objectivo deste evento consiste no estabelecimento de uma plataforma, uma rede, dedicada especificamente à música electrónica, ao mesmo tempo que serve para debater as situações e condições locais e regionais, fazer uma avaliação das necessidades e definir desafios e estratégias possíveis para o futuro. O plano parece ambicioso, mas é necessário. Pela primeira vez, responsáveis de editoras, promotores de eventos, gestores de clubes nocturnos e de recintos de espectáculos, músicos, DJ e membros dos media vão, juntos, discutir o cenário do movimento da música electrónica na China. Para situar e destacar Pequim na rede internacional, ME:CON convidou pessoas que chegam à China vindas da Alemanha, Suíça, Espanha e dos Estados Unidos para partilhar experiências e, possivelmente, encetar uma série de colaborações. No entanto, nada disto faria sentido se faltasse a origem de tudo: a música. Por isso, ME:CON tem uma extensão da conferência no festival I.N.T.R.O deste ano, onde apresenta o “Metrowaves Stage”, com vários DJ de Pequim, Xangai, Hong Kong, Taiwan e da Alemanha. Na capital chinesa, o momento, oportuno, é de tomar o pulso e sentir a onda. É tempo.

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CAPÍTULO I DE UMA IDÉIA MIRÍFICA

Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a ideia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez. - Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo. Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para comunicar-lhe a ideia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio, ásperos de vingança, e disse consigo: - Vamos, é tempo. E rápido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias do abismo, arrancou da sombra para o infinito azul. II ENTRE DEUS E O DIABO

Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins que engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-no logo, e o Diabo deixou-se estar à entrada com os olhos no Senhor. - Que me queres tu? perguntou este. - Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos. - Explica-te. - Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros... - Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura. - Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de dissimulação... Boa ideia, não vos parece? - Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor,

A IGREJA DO DIABO Machado de Assis

- Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma tal exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra fundamental. - Vai - Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra? - Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja? O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e

triunfo. Tinha alguma ideia cruel no espírito, algum reparo picante no alforje da memória, qualquer coisa que, nesse breve instante da eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse: - Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê-las todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura...

- Velho retórico! murmurou o Senhor. - Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor, - a indiferença, ao menos, - com que esse cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que liberalmente espalha, - ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quaisquer dessas matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer


que me detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda... Vou a negócios mais altos... Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica, Deus interrompeu o Diabo. - Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez? - Já vos disse que não. - Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na eternidade. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas aí a franja de algodão? - Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega. - Negas esta morte? - Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los... - Retórico e subtil! exclamou o Senhor. Vai; vai, funda a tua igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas, vai! vai! Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as harmonias de seus cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra. III A BOA NOVA AOS HOMENS

Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas. - Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil a airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fa-

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zei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo... Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras cínica e deslavada. Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: «Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu»... O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos do Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento. As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes de eloquência, toda a nova ordem de coisas, trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs. Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no obscuro e no contradi-

tório. Pois não há mulheres que vendem os cabelos? não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrando assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente. E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele. Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo regímen: «Leve a breca o próximo! Não há próximo!» A única hipótese em que ele permitia amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra coisa mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal explicação, por metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: - Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria. IV FRANJAS E FRANJAS A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o tempo aben-

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çoou a instituição. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo. Um dia, porém, longos anos depois, notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros. A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais directamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que envenenara longamente uma geração inteira, e, com o produto das drogas socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogomano; roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditino cita muitas outra descobertas extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calabrês, varão de cinquenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele, numa capela solitária; e, conquanto não lhe desvendasse nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha aleivosia. Mas não havia duvidar; o caso era verdadeiro. Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de reflectir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenómeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse: - Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.


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O L H O S A O A L T O

gente sagrada

城隍

José Simões Morais

CHENG-HUANG, O DEUS DA CIDADE Desde os meados dos anos 70 do século XX, Macau deixou de prestar homenagem a Seng Vong e poucas são as pessoas que actualmente vão ao templo situado na avenida Coronel Mesquita acender pivetes. Seng Vong, em mandarim Cheng-Huang, significa respectivamente “muralha da cidade” e “terra seca para o interior da muralha” que assim cria um fosso. Inicialmente eram dois deuses diferenciados; o deus da Muralha e a deusa do Fosso. Só nas cidades importantes eram construídas à sua volta muralhas com fossos e por isso, só estas tinham um templo a Cheng-Huang. Estes dois deuses eram importantes na Hierarquia Celestial já que as cidades deles dependiam para assegurarem a paz, o bem-estar e segurança e proteger os habitantes dos maus espíritos, de fantasmas e demónios. Terá ficado reunido num só deus no período entre a dinastia Han e dos Três Reinos, século III, quando passou a estar ligado a uma imagem personificada, que após passar no mundo dos vivos, deixou aos seus conterrâneos um tributo de grande sentido ético e de justiça. Normalmente para lhe dar o rosto era escolhido um mandarim, mas podia também ser uma pessoa comum que, pelas suas acções terrenas, tivesse merecido ser lembrado pelos que na Terra viviam e assim o deificavam. Mas Cheng-Huang representa uma entidade abstracta e divina com funções na Administração Celeste, que protege e toma conta das ocorrências dos habitantes das principais cidades, que eram muralhadas, normalmente capitais de províncias ou cidades estratégicas. As cidades durante a dinastia Tang multiplicaram-se e este deus que as protegia ganhou uma maior importância. Foi durante o reinado do primeiro imperador da dinastia Ming que passou a estar regulado o culto a Cheng-Huang. Se no dia das suas festividades a cidade estava atacada por alguma epidemia então, a sua imagem passeava pelas ruas para as purificar e o

número de pessoas que transportava o andor estava de acordo com a importância da cidade. Na capital do país, o culto a Cheng-Huang era presidido pelo próprio Imperador. Cheng Huang tinha o conhecimento sobre os comportamentos dos cidadãos através dos relatórios enviados pelos deuses da terra e baseados nas informações do deus do Fogão. Controlando o que se passava nos seus domínios, Cheng Huang, como divindade celestial, ajudava os seus homólogos na Terra, os magistrados, a resolver processos muito difíceis de solucionar. Para isso, era ao templo de Cheng-Huang, que os magistrados vinham quando precisavam de conselhos, revelados em sonho. Jejuando por um dia, purificavam, oferecendo um sacrifício ao deus e à noite aí dormiam, contando com Cheng Huang, seu semelhante, mas na hierarquia Celestial, para os ajudar no veredicto. Ainda segundo Ana Maria Amaro, era ao templo de Seng Vong que, quando as pessoas perdiam a fé nos juízes terrenos ou, com a pressão de serem julgados por crimes que ocorreram nas suas imediações, logo ali iam reportar ao deus a sua inocência. Muitos foram os que após o assassínio do governador de Macau, Ferreira do Amaral, ali acenderam pivetes para, que pelo fumo, as suas vozes fossem ouvidas pelo deus. O deus Seng Vong era festejado em Macau no dia 21 da quinta Lua, no entanto a funcionária que toma conta do templo falou-nos noutra data, 13 da quinta Lua. Andando a indagar na biblioteca, complementamos a informação. Cada cidade com um templo a Cheng Huang tem diferentes datas para o festejar e no dia 25 do nono mês lunar celebrava-se o seu aniversário. Faziam-se celebrações a este deus também durante o Ano Novo Chinês, nas festividades solares do duplo 5 e nos dias de Lua Nova e Lua Cheia. Em Macau, desde meados dos anos 60 do século XX o culto declinou e já nos anos 70 se dava como extinto.


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L E T R A S S Í N I C A S

HUAI NAN ZI 淮南子

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O LIVRO DOS MESTRES DE HUAINAN

Sem ocultação na ausência de forma, quem poderá dominar a forma?

DO ESTADO E DA SOCIEDADE – 6 Não é possível confiar apenas nas capacidades humanas; as artes da Via devem ser postas publicamente em prática. As leis de uma sociedade disfuncional elevam as fasquias e punem aqueles que não as ultrapassam; tornam altas as responsabilidades e penalizam aqueles que não as podem suportar; tornam perigosas as dificuldades e abatem aqueles que não as conseguem encarar. Quando as pessoas se encontram sob esta espécie de tensão, recorrem ao ardil de maneira a enganarem os seus dirigentes e voltam-se para o engano na esperança de escaparem. Num tempo assim, nem severas leis, nem pesados castigos conseguem prevenir o crime, pois o seu poder é insuficiente. É por isso que o provérbio diz: “Os pássaros picam quando nada mais podem fazer;

as bestas esventram quando nada mais podem fazer; os homens enganam quando nada mais podem fazer”. *** Os iluminados criticam os dirigentes quando detectam um erro, pois não os preocupa a censura. São capazes de deferência para com os sábios quando os encontram, pois o estatuto social não os preocupa. São capazes de dar a quem precisa, pois a sua própria pobreza não os preocupa. *** As pessoas em posições de honra são chamadas honradas quando são imparciais e impessoais.

São, portanto, chamadas honradas, mas, por tanto, não são chamadas sábias. Aqueles que detêm a terra são chamadas justos quando mantêm padrões de prática e nenhum esquema escondido. São, portanto, chamados justos, mas, por tanto, não são chamados inteligentes. Quando não existe brutalidade oficial para alienar a gente comum, nem qualquer activismo intelectual que cause ressentimento aos demais líderes, as maneiras de todas as classes não quebram em nenhum ponto, de tal modo que os críticos nem da situação se apercebem e não nada têm a apontar. A tal se chama ocultação na ausência de forma. Sem ocultação na ausência de forma, quem poderá dominar a forma? Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho

Huai Nan Zi (淮南子), O Livro dos Mestres de Huainan foi composto por um conjunto de sábios taoistas na corte de Huainan (actual Província de Anhui), no século II a.C., no decorrer da Dinastia Han do Oeste (206 a.C. a 9 d.C.). Conhecidos como “Os Oito Imortais”, estes sábios destilaram e refinaram o corpo de ensinamentos taoistas já existente (ou seja, o Tao Te Qing e o Chuang Tzu) num só volume, sob o patrocínio e coordenação do lendário Príncipe Liu An de Huainan. A versão portuguesa que aqui se apresenta segue uma selecção de extractos fundamentais, efectuada a partir do texto canónico completo pelo Professor Thomas Cleary e por si traduzida em Taoist Classics, Volume I, Shambhala: Boston, 2003. Estes extractos encontram-se organizados em quatro grupos: “Da Sociedade e do Estado”; “Da Guerra”; “Da Paz” e “Da Sabedoria”. O texto original chinês pode ser consultado na íntegra em www.ctext.org, na secção intitulada “Miscellaneous Schools”.


FERNANDA DIAS Uma leitura do

YI JING O SOL, A LUA

E A VIA DO FIO DE SEDA A nova tradução do livro que há milénios ilumina a civilização chinesa


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