PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2482. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE
ARTES, LETRAS E IDEIAS
CONTO INÉDITO
BRUMAS DE KAMOGAWA ANTÓNIO CONCEIÇÃO JÚNIOR
FOTOGRAFIA DE ANTÓNIO CONCEIÇÃO JÚNIOR
h
28 10 2011
h 2
É D I T O S F O R T E S
BRUMAS DO KAMOGAWA Um conto inédito de ANTÓNIO CONCEIÇÃO JÚNIOR
1. KISERU NO YUME - SONHO DE CACHIMBO
Yamada Hiroshi san satisfez-me uma das minhas velhas aspirações, a de ter uma gravura de Kitagawa Utamaro, um do expoentes maiores do Ukyio-e. A gravura era de uma mulher jovem, o kimono verde languidamente solto, segurando um espelho que seria de laca preta, iniciando os preparos do dia. Comprei-lhe a estampa, impressa em washi, papel japonês, e levei-a cuidadosamente comigo a caminho do Ryokan (hospedaria tradicional) onde me tinha alojado, em Kyoto. No regresso, caminhando sem pressa, e procurando registar tudo o que via, deparou-se-me uma pequena casa tradicional de madeira escura, igual a muitas outras, que vendia antiguidades. A casa era estreita e comprida. Ao contrário de outras do género, esta possuía a austeridade de ter poucas coisas. Ao fundo, uma Ô-Yoroi (grande armadura) contemplava sentada, um vale invisível, distante mais no tempo que na geografia. Talvez quem envergara aquela espantosa armadura tivesse estado em Sekigahara, pensei. O ambiente era sombrio, o mês de Março estava fresco mas nesta velha casa respirava- -se uma grande serenidade. A luz era apenas a suficiente para se vislumbrarem os objectos, presenças silenciosas de tempos idos. À minha direita, sobre um armário, repousava uma caixa de laca com gavetas, encimada por uma calote de metal perfurado, a deixar adivinhar que serviria para nela se queimar carvão. A presença próxima de um tabuleiro repleto de cachimbos longilíneos convenceu-me de que a caixa tinha sido de um abastado fumador. Como por simpática necessidade suscitada pelos outros cachimbos, acendi o meu quando, por detrás de mim, uma voz feminina me dizia gentilmente: – ohaiogosaimasu. (saudação) Virei-me, e uma senhora de idade, envergando um kimono castanho e preto muito discreto, o obi totalmente negro, tudo em perfeita
consonância com as tonalidades do ambiente, sorria-me com um ar de bondade digna, algo que sendo acolhedor não era jovial. Na sua voz sussurante disse-me algo que não entendi no meu superficial conhecimento do japonês. É curioso como as japonesas dizem, ao iniciar uma frase, um ah, como quem se lembra de algo, uma como que tomada de fôlego, de que resulta, no subsequente discurso, uma espécie que acorde inicial, impregnado de uma harmoniosa forma de abordar um assunto novo. Dir-se-ia que essa aspiração significa o primeiro passo de um bailado verbal, com compassos suaves onde se percebe a delicadeza posta nas palavras. – Sumimasen, (desculpe) respondi-lhe como pude – watashi nihon go... ié, (eu, de língua japonesa...não) devolvendo à senhora o sorriso. Ela foi dizendo mais qualquer coisa de onde discerni a palavra tabacô enquanto se dirigia para o tabuleiro dos cachimbos, levando a palma da mão direita em direcção ao nariz, como que a aspirar o ar. Percebi que gostara do cheiro do tabaco. – Ah, imitei eu, gomen nasai (outra forma de dizer desculpe por incomodar). – Ié, ié, respondeu-me sorrindo. E percebi que poderia continuar a fumar. Cuidadosamente a mão direita foi percorrendo os cachimbos até pegar num cuja madeira brilhava, escurecida pelo uso. A fornalha tinha um pequeno ornato gravado e o metal estava despolido. Fez menção de mo entregar com as duas mãos mas vendo que tinha as minhas ocupadas uma com um saco onde trazia a gravura e a outra com o cachimbo, indicou-me uma mesa baixa para que os pousasse. Desajeitadamente coloquei o saco na mesa, mas tão incompletamente que a gravura resvalou para o chão limpo. – Ah, fez a senhora quando viu a estampa. Ambos nos baixámos para a apanhar, ela com a mão direita tapando o espanto que a boca revelaria. E ficou a contemplar longa e enigmaticamente aquela estampa, e eu a olhar a senhora do kimono escuro, perdida naquela inexplicavel contemplação. Caiu subitamente em si, novamente com um ah quase surdo, quase apenas um baque. Virou-se para mim e com uma profunda vénia disse-me: – gomen nasai e, apontando para a estampa com os olhos, segurou-a cuidadosamente, arrumou-a no saco, levantando-se com um sorriso, os olhos baixos. Pegando novamente no cachimbo que escolhera, entregou-mo com as duas mãos, dizendo Nihon no yume kiseru (cachimbo japonês de sonhos). Peguei no cachimbo e depois de o admirar, devolvi-lho. Ela disse que não, e com a palma da mão virada para cima, apontada para mim, repetiu o gesto para que o compreendesse. Entendi que era uma oferta. Ora olhava para o meu cachimbo ora apontava para o cachimbo que me entregara, arrastando meigamente as frases finais, imperceptíveis para mim. Senti-lhe porém a determinação e limitei-me a retribuír a vénia com um domo arigato gosaimashita (obrigado formal). Respondeu-me que não, que não era preciso agradecer. Depois dirigiu-se à caixa de laca, abrindo uma gaveta de onde retirou um estojo em esteira antiga e uma bolsa em brocado.
Por momentos julguei ver encostado à caixa, um espelho redondo com uma pega, todo em laca preta. Tabacô, disse-me, mostrando a bolsa. Nihon no tabacô. Aos meus agradecimentos respondeu ié, ié, entremeado de um sorriso bondoso. Embrulhou-me as ofertas que estranhamente me fizera, com grande perícia, num lenço de uma côr verde jade com padrão de corações e pintas brancas.
2. YUME – SONHO
Tomei um reconfortante banho quente, mergulhado na tina, enquanto meditava sobre o encontro com a velha senhora na casa de antiguidades, observando o vapor da água quente, como se nessa condensação estivesse a resposta. Vesti o yukata (espécie de kimono mais simples) que trouxera comigo, atei o hakata obi (cinto) com o nó de cauda de peixe que aprendera a fazer há muito, pus o haori (sobre-kimono curto) azul escuro e aguardei que me chamassem para o jantar no quarto forrado a tatami, onde uma pequena mesa baixa constituía, juntamente com um tabuleiro de pé e uma televisão, a mobília visível do quarto, uma divisão bastante grande, de oito tatami. Decidira que depois do jantar voltaria a examinar a gravura e as prendas que a senhora da casa de antiguidades me havia estranhamente dado. Jantei a pensar nas razões para aquele comportamento. Ter um cachimbo não era razão suficiente para receber outro, sobretudo um gaijin que ela nunca vira. Regressado ao quarto, já tinham colocado no chão um confortável e lindíssimo futton, forrado com uma protecção de linho alvo a anunciar uma noite confortável. Os embrulhos lá estavam sobre a mesa, agora arredada para o lado. Sentei-me no chão, retirei do saco a gravura de Utamaro e contemplei-a de novo. Sempre achara que o ponto mais erótico que uma mulher vestindo kimono apresentava era o anúncio da nuca e do pescoço. Mas aqui a mulher estaria a mirar-se num espelho ao acordar, examinando o seu rosto, o cabelo ainda protegido parcialmente por um lenço, o kimono deixando ver um breve decote solto pelo sono. Olhei para o embrulho de tecido que a antiquária fizera. Olhei de novo a gravura. Era certamente uma coincidência, talvez demasiada coincidência para o ser. O tecido do embrulho era muito macio, ligeiramente texturado. Ao desatar o embrulho pude ver que o lenço fora cuidadosamente debruado à mão. Trouxe-o para junto da gravura. Não havia dúvida, o tecido era exactamente igual ao do kimono da estampa de Utamaro. Apeteceu-me subitamente fumar. Olhei para o estojo de esteira antiga e decidi que iria provar o tabaco que a senhora me oferecera no respectivo cachimbo. Abrir o saco do tabaco que não tinha cheiro e era mais amarelo que o meu e enchê-lo devagar, serviu para me distraír, adiando todo o espanto de que me encontrava possuído. Peguei num cinzeiro, pu-lo ao pé do futton e decidi deitar-me. Fumaria deitado, consumindo rapidamente aquela pequena quantidade
de tabaco japonês que cabia na fornalha. O tabaco soube-me estranhamente ao sabor que uma flor pode ter. Aspirei o fumo para melhor o sentir. Mas o mais surpreendente era que este parecia desproporcionado em relação ao que eu exalara, originando uma espécie de nuvem que me deixou confuso e perplexo. A nuvem crescia por si, disseminando-se como névoa, a luz do candeeiro iluminando essa súbita cortina imaterial que ia lentamente ocupando o quarto todo. Em pouco tempo tudo mudara. Apenas se via uma névoa iluminada e o tatami no chão. E eu, estranho em terra estranha, a pensar se já teria adormecido e sonhava. Mas pelas minhas narinas perpassou um suave cheiro a óleo de flores, semelhante ao choji (cravo-da-índia), enquanto o silêncio nocturno do quarto era irrompido por um som de rua acordando, povoando-se, gente a falar, respirações ofegantes de homens que pareciam carregar algo pesado. Tudo foi acontecendo rapidamente, como o tempo que leva entre o fim da madrugada e a alvorada. Ali no quarto, mesmo além dos meus pés, ouvi um suave bocejo, sons femininos de uma mulher a acordar. Adivinhava o espaço distendido bastante para além do que sabia serem os limites do quarto. Pressenti que tudo aquilo que se estava a passar, ainda não sabia o que era, se sonho se alucinação, ou se efeito de tabaco estranho, começava a ter um sentido, uma lógica que obedecia a um ordem talvez onírica, portanto, imprevisível. A luz do dia inundou a neblina e ainda, eu sabia, a noite mal começara. Com algum esforço curioso pude descortinar um vulto soerguendo-se do chão, a luz iluminando a silhueta, dando-lhe enfim côr. E a côr se fez revelação. Como que a névoa cedendo à figura, uma jovem mulher japonesa acabara de se erguer lânguidamente, vestindo sobre a pele um kimono macio, exactamente igual ao da gravura, o decote mais aberto do que o normal, uma pele mais branca que o habitual. Num gesto elegante, passou a mão pela face direita e afagou a pele até ao pescoço, como que a avaliar a sua suavidade. Tinha o cabelo ligeiramente desalinhado e um lenço sobre a testa para proteger o penteado. Pegou num espelho de laca preta, que o seu corpo tinha ocultado, e olhou-se prescrutando o rosto, o fácies, as sobrancelhas erguidas como que ajudando a ver melhor. Lentamente, foi colocando alguns alfinetes no cabelo para o prender mais seguramente. Depois sorriu-se ao espelho. Pude então ver-lhe os dentes negros, tingidos. Curiosa e estranha esta deliberada remoção da presença dos dentes. Seria que o sorriso constituía uma interdição? Percebi, porque mo ensinaram, que era uma mulher casada do período Edo (1603 a 1868). Mas que fazia eu num tempo que já passara? As coordenadas tinham-se dilatado? O sentido do Tempo tinha-se modificado? O que era isto senão um sonho? – Ah, mas quem é você? O que faz no meu quarto? Nova estupefacção. Ela falava a minha língua, trazendo-me repentinamente de regresso das minhas dúvidas e cogitações. Era preciso responder-lhe: – No seu quarto? Mas eu estou no meu quarto, num
28 10 2011
h
É D I T O S F O R T E S
3
NO PRÓXIMO DIA 11 DE NOVEMBRO, A EDITORA LIVROS DO MEIO LANÇA, NO CLUBE C&C, O LIVRO DE CONTOS DE ANTÓNIO CONCEIÇÃO JÚNIOR “CONVERSAS DO CHÁ E DO CAFÉ”. À LAIA DE APERITIVO, AQUI DEIXAMOS UMA NARRATIVA INÉDITA DO AUTOR. Ryokan de Kyoto. A sua mão direita tapava familiarmente a boca. A outra mão fechava instintivamente o kimono solto. Olhou-me fixamente, os olhos procurando prescrutar-me a mente, depois pestanejou e pareceu acalmar-se. – Mas você é estrangeiro. Que faz aqui depois da interdição ? Quer desgraçar-me? Ah, mas como entrou? E como fala japonês? Sabe que sou uma mulher casada? Todas aquelas perguntas eram feitas num tom ligeiramente mais agudo, mas numa voz semi-sussurrada, suave, mesmo doce. Ouvi-me a ouvi-la e a deliciar-me com a maneira como falava. Neste ambiente insólito, percebia tudo o que ela me dizia. Para ela eu falava japonês, para mim o que dela ouvia não era definitivamente japonês. Deixei instintivamente que as perguntas se sucedessem, ritmadas, deixando nascer uma pausa antes de responder. – Tudo isto não tem uma explicação lógica. Ou por outra, eu não a encontro. Até há pouco tempo estava eu tranquilamente no meu quarto e quando acendi este cachimbo tudo começou a mudar… e mostrei-lhe o cachimbo já apagado, ainda que a neblina se mantivesse. Como é que explica que eu a entenda se não falo japonês fluente? E como é que me entende a mim? Isto parece um filme. A jovem mulher olhou para mim com um ar que eu não soube interpretar. Não havia no rosto dela nenhuma emoção. Apenas os olhos inquiriam de uma forma discreta, ora na minha direcção ora para o cachimbo que eu lhe mostrava, ora ainda para dentro de si própria. Baixou os olhos, respirou fundo, olhou a mão direita pousada sobre o regaço. Hesitou antes de falar : – O que é um filme? Custa-nos sempre adaptarmo-nos a novas circunstâncias onde o nosso vocabulário mental se tem de reconfigurar. Soube-o ali mesmo, com aquela simples pergunta vinda do século XVIII: – Olhe, é como termos um sonho, só que vamos a uma sala especial para vermos esse sonho retorqui, agora já plenamente consciente de que, por qualquer razão, a língua não era um obstáculo. – Ah, fez ela, e eu gostava da maneira inocente como o fazia, é como o Kabuki? Estabelecera-se entre nós uma maior tranquilidade e mútua curiosidade. A disputa dos nossos territórios – o meu quarto no Ryokan e o quarto dela fundidos num mesmo espaço pela eteriedade de uma persistente neblina – esmorecera, desaparecera mesmo, para dar lugar àquela forma de aprendizagem mútua, ainda não totalmente despojada de algum constrangimento. – Acho que sim. É isso mesmo, é como o Kabuki, mas não existe aqui neste tempo, disse, levantando o olhar para ela que, mais segura, levantara ambas as mãos para ajeitar os alfinetes do cabelo, peças de madeira de rara beleza. – Não existe neste tempo? Olhou-me espantada. Espere, você é muito estranho. Não é japonês mas fala-me em japonês, tem um penteado estranho que não é o dos nossos homens, tem a pele escura, mas as suas mãos não têm calos. Tem uma altura maior que a normal. Fez uma pausa prolongada, talvez tensa. – Você quem é ? O que é esta neblina que não me deixa ver os contornos das coisas? Veio da floresta? Sorri para dentro. Eu sabia que ela falava nos
espíritos que habitam as florestas. Enquanto o sonho durasse, se sonho era, eu tinha de perceber que estava na Kyoto do séc. XVIII. Tive de me concentrar: – Não, sou um viajante a quem uma velha senhora deu este cachimbo e este tabaco embrulhado num tecido igual ao kimono que veste. Deliberadamente omiti a alusão à gravura, estendendo-lhe o lenço. Inclinámo-nos para permitir que aquele testemunho passasse de mãos. Ela pegou no lenço com um gesto delicado, o decote abrindo-se pelo peso do próprio tecido, porventura esquecida de como estava. Endireitou-se, pegou no lenço com as duas mãos, dobrou-o cuidadosamente em três partes, analisou o debruado, levantou os olhos para mim com ar assustado. – Mas como pôde uma velha senhora ter-lhe dado este lenço se eu o fiz do resto deste kimono? Olhou em seu redor angustiada, o lenço de encontro ao peito. – Foi você que mo tirou enquanto dormia, certamente. A voz agora estava insegura, trémula. – Olhei-a com ar sereno. O que eu lhe disse foi a verdade. Uma velha senhora de uma loja de antiguidades embrulhou este cachimbo e este tabaco no lenço. Ela tinha uma maneira doce de olhar, mesmo quando incrédula. Transpirava feminilidade e olhou-me mais uma vez, prescrutando-me, os olhos por vezes semi-cerrando-se. As mãos estavam agora pousadas no regaço, alisando continuamente o lenço. – En murmurou. En, destino, ordem inatingível. Levantou-se graciosamente. Não era alta, mas era longilínea, delgada, frágil. A bruma desfazia-se à medida que ela se movia. Puxou uma mesa baixa para perto da janela, pegou numa caixa-estojo em madeira escura de onde retirou um pincel, vi a pedra de fazer tinta. Depois desenrolou uma folha de papel e escreveu, de costas para mim. Admirei-lhe a nuca suave e aquele cabelo sedoso e negro, abundante sem dúvida, talvez dando-lhe pela cintura, se não estivesse penteado. O obi (cinto japonês feito de uma longa faixa) que trazia era simples, de um branco jade, quase solto. Voltei a ouvir o ruído da rua. Os meus sentidos tinham-se deslocado, mas não descurei a jovem. Quando se virou para mim, a folha de papel tinha ficado dobrada inúmeras vezes, como se fosse uma régua. Dobrou-a ao meio à minha frente e fez um nó idêntico aos votos e promessas que tinha visto pendurados nas árvores do templo de Kyoto. – Por favor, disse-me, estendendo o papel e o lenço cuja pertença ela reivindicara – tomarei providências para que visite esta noite Sakura dayu. Leve tudo o que a velha senhora lhe deu. É uma visita que a mim me está interdita. Providenciarei para que seja conduzido à sua presença. Dissera aquilo com uma resolução tal que recebi a carta e o lenço sem questionar. Levantou-se, curvou-se na minha direcção, olhou-me uma vez mais e murmurou Adeus e afastou-se rapidamente. A bruma fechou-se, engolindo-a. –Conhece Utamaro, Kitagawa Utamaro? Quase gritei. Os passos quase silenciosos pararam. Ouvi-lhe apenas a voz: –Meu marido vive em Edo.(Tóquio) A névoa tudo cobriu de novo, rodeando-me
inexoravelmente, e os meus sentidos todos cederam a um sono profundo.
3. PREPAROS PARA UM ENCONTRO
Acordei de uma forma única: Uma mão passando os dedos pelos meus cabelos, penteando-os repetidamente para trás, ora massajando ora simplesmente acariciando. Primeiro tem-se a sensação de que o espírito e a alma se renovam. Um bem estar apoderava-se de mim ainda num estado de dormência. Mas a repetição dos movimentos tácteis, percebi depois, fazem-nos despertar de uma forma única, como recém-nascidos olhando o mundo. Abri os olhos lentamente, já sintonizado para aquela insólita forma de despertar. Olhei para a minha direita virando a cabeça, e vi a jovem acabar de retirar repentinamente a mão, os olhos fitando o colo. Estava agora rigorosamente arranjada mas, curiosamente, o kimono era o mesmo. E eu estava desperto, tão acordado que tinha reparado que não havia neblina O quarto não era o meu, mas não era muito diferente. Apenas as madeiras eram mais escuras. Uma lanterna sabiamente colocada atrás de mim iluminava o ambiente sem ferir os olhos. A jovem olhava-me. Não vislumbrava nela nenhum receio ou distância maior que aquela que era conveniente. E mesmo assim, eu tinha dúvidas. Ela acordara-me duma maneira que eu poderia interpretar de forma dúbia. Mas, mais que isso, ela voltara, apesar da sua despedida. – Esteve a dormir o dia todo e a hora de se avistar com Sakura san aproxima-se. É preciso que jante, não comeu nada. Espero que goste do jantar disse, virando-se e trazendo-me um tabuleiro de pé alto que me permitia comer sentado no chão, e que já deveria estar preparado quando ela me acordou. Tudo estava disposto numa rigorosa ordem. Comi o peixe, o arroz e bebi um delicioso caldo. Reparei que um pequeno caule ainda verde, com botões de amendoeira cor de rosa ornava a borda de um dos pratos. Durante todo o tempo em que estive a comer, ela permaneceu imóvel a observar-me sem trocarmos palavra alguma. Bebi o chá e, quando pousei a tigela no tabuleiro, dando por terminada a refeição, senti por detrás de mim um movimento de tecido roçando sobre um corpo e uma outra mulher, silenciosamente, ajoelhou-se, saudou-me curvando-se, pegou na bandeja e, erguendo-se, retirou-se do meu campo de visão. Percebi que saíra quando ouvi a porta deslizar para se abrir e fechar suavemente. Ficámos em silêncio, olhando por momentos um para o outro. Depois, da prega do seu kimono ela tirou a minha bolsa de cabedal e o meu cachimbo. Não estranhou o mecanismo que fazia abrir a bolsa. Devia já tê-la examinado, estava certo disso. Nada disse enquanto eu enchia o cachimbo com gestos tão diferentes dos que ela deveria estar habituada a ver. Extraí da bolsa o isqueiro e acendi o cachimbo. Pude perceber uma pequena centelha de surpresa. Quando expeli o fumo, ela olhou-o a subir e, segurando a manga do kimono, trouxe a palma da mão para diante do nariz e aspirou fechando os olhos. – Este tabaco tem um aroma agradável, murmurou.
Algo, como que prenúncio do fio de uma meada, começou a formar-se na minha mente. Olhou para trás de si nesse tempo que se distendia, como se procurassemos prolongar a presença um do outro. Segui-lhe o olhar. – Foi difícil encontrar um traje para o seu tamanho. Reconheci um hakama (calças largas tradicionais) azul cinza com um padrão de pintinhas, um kimono liso azul escuro e um haori da mesma cor com cordões brancos. Ao lado estava um capacete de oficial com um mon (símbolo de clã nipónico) dourado na frente. – Mesmo de noite é preciso ir bem disfarçado. É difícil passar despercebido, murmurou. Percebi que a altura do encontro se aproximava. Ela bateu as palmas e um homem com o penteado tradicional, a cabeça rapada por cima, o cabelo oleado e cuidadosamente penteado e atado numa espécie de trança curta que assentava sobre a parte superior do crânio, entrou de joelhos. Reparei que a sua expressão era impenetrável e a idade indefinida. – Muraoka Tsunetsugu ajudá-lo-á a vestir-se convenientemente. E saiu, deixando-me com aquele que designara para me ajudar. Quando ambos nos levantamos pude perceber que no século XVIII os homens eram sensivelmente mais baixos do que os do tempo de onde eu provinha. Rapidamente desatei o obi que Tsunetsugu pegou e dobrou cuidadosamente. Recebeu depois o yukata. Reparei que alguém me tinha vestido uma roupa interior tradicional, uma faixa branca que se enrolava até às minhas costelas, servindo simultaneamente de calções interiores. Tsunetsugu pegou em cada peça de roupa e ajudou-me a envergá-la, numa sequência lógica. Primeiro um sub-kimono de algodão branco. Depois o kimono azul escuro, a que se seguiu um hakata obi que ajudei a ajustar. Depois foi a vez do hakama, cuja atadura complicada ele fez rapidamente, apertando bem e esmerando-se no nó cruciforme. Calcei as tabi, meias japonesas em algodão que separam o dedo grande dos restantes. As minhas eram azuis escuras e, para cúmulo, serviam-me, o
28 10 2011
h 4
que não deixou de me intrigar pela eficiência da jovem. Seguidamente entregou-me um leque fechado com ar expectante. Tomei-o e pu-lo à cinta, do lado direito. Sabia que o leque era um elemento indispensável no vestuário tradicional. Tsunetsugu mantinha-se numa posição semi-ajoelhada que lhe permitia baixar-se e levantar-se harmoniosamente. Olhei para mim próprio, examinei o nó e o leque. Entregou-me de seguida o haori e ajustando-o à frente, atou cuidadosamente os cordões brancos. Olhei o nó e pensei como eram belos os nós chineses e japoneses. O haori ostentava à frente um mon de cada lado do peito. Quando levantei os olhos Tsunetsugu tinha nas mãos uma wakizashi cuja bainha estava lacada de azul escuro. Olhava intensamente para mim, a espada curta na horizontal, o lado convexo correspondente ao fio da lâmina virado para ele, o cabo do lado da sua mão direita. Sabia que me testava. Estendi a mão direita e agarrei na bainha, muito próximo do cabo, e já com o fio virado para cima, usei a mão esquerda para ajudar a inserir a bainha no hakata obi. A wakizashi deslizou suavemente, ficando num ângulo de cerca de 30 graus em relação ao meu plano frontal. Realizei estes movimentos sem tirar os olhos dele. De pé, de onde estava, sorri vagamente para dentro. Tsunetsugu baixou os olhos, levantou-se com a katana na mão direita, estendendo-ma com uma vénia curta e brusca: – Entre nós não basta um homem estar correctamente vestido. Precisa de se vestir no seu interior e saber enfrentar a morte de frente para ela. Era a primeira vez que falava. Não lhe respondi. Peguei na katana com a mão direita, trouxe-a para junto do meu corpo, o braço estendido, o fio cortante virado para trás. O meu corpo e o meu espírito, à medida que iam sendo investidos destas peças de vestuário, iam-se transformando. Os músculos relaxaram-se, mas estavam atentos. A mente estava clara, vazia, desperta, pronta a receber. Não precisava de me ver, sentia-me. Havia como que uma transformação que me permitia apreender o que o homem que fora encarregado de vestir um estrangeiro dissera. Não era uma crítica, não era uma repreensão sequer. Sentia-o antes como um apelo ao meu comportamento, mascarado na forma de uma afirmação. Muraoka Tsunetsugu fitou-me surpreendido. – Na tua terra, és da casta samurai? A evocação da minha terra derrubou a vontade de ostentação que eu quisera exibir face a alguma etiqueta que eu melhor conhecia. – Não, respondi – não sou. Não acredito em castas. A porta abriu-se e a jovem entrou, o olhar baixo. Devia ter estado a ouvir a conversa, sentada do outro lado da porta. Tsunetsugu pegou no capacete lacado de preto e, dirigindo-se à jovem, disse: – estamos prontos Osode san. Ouvi o seu nome pela primeira vez. – Osode san repeti eu. – Sim, disse, e o rosto enrubesceu, os olhos baixaram pudicamente. Via agora que era bastante mais alto que ela. Tinha-a visto sempre deitado ou sentado, não me tinha apercebido da sua fragilidade. Vamos, disse, abrindo-me a porta e esperando do lado de fora. – Tsunetsugu acompanhá-lo-á. Está uma liteira à espera em baixo. É conveniente que vá o mais discreto possível. Descíamos as escadas para o andar térreo. Fez questão de me levar a katana que segurou femininamente com as duas mãos. Um estrado em madeira escura terminava a meio da área inferior, onde o chão de terra começava. Ali mesmo estava uma liteira de aspecto leve, com as cortinas corridas. Os
É D I T O S F O R T E S
carregadores levantaram-se e olharam-me estupefactos. Havia quatro homens, dois dos quais traziam lanternas. Osode devolveu-me a espada, pegou no lenço verde, novamente tornado cuidado embrulho, e colocou-o entre o meu kimono, olhando-me com um ar ansioso, a mão esquecida sobre o volume do lenço. Pus o capacete que Tsunetsugu atou. Os carregadores tinham erguido a liteira, e um dos porta-lanternas segurava a cortina que me ocultaria. – Não sei quando é que isto tudo vai acabar. Osode olhou-me com ar controladamente ansioso e respondeu-me com uma pergunta. – Onde conseguiu a gravura?
4. REVELAÇÃO
A liteira serpenteava por ruas nocturnas que eu naturalmente desconhecia mesmo que as cortinas não estivessem cerradas. O movimento oscilante da liteira tornava-se num embalo, como regresso à infância. Só que agora as questões que punha não se limitavam ao porquê pueril, e não me tinha senão a mim, não para dar respostas, mas antes para as encontrar. Não fizera perguntas, apenas quisera uma gravura de Utamaro, nada mais. A cada passo que os carregadores davam, mais se acentuava a expectativa que sentia. Sakura dayu, quem seria para ter um nome destes? Porque é que Osode me fizera vestir desta maneira se o meu rosto não deixaria dúvidas a ninguém? As perguntas sucediam- -se. Olhei para a grossa corda de seda que pendia do tecto da liteira, onde eu me segurava com a mão direita e procurei afastar as perguntas que me punha. Era tudo, ironicamente, uma questão de tempo. Sorri perante a óbvia conclusão a que chegara. O Tempo, essa nossa invenção de contar as horas como se fosse aquele a variável e não nós, que por ele vamos deslizando. Os sons da rua mudaram, diluindo-se, bem como a luz nocturna que entrava. A liteira fez uma curva à esquerda e foi abrandando. Os pés dos carregadores mudaram o embalo ao pisarem cascalho e, a passo, a liteira parou. Ouvi vozes cumprimentando-se enquanto me poisavam no chão. Deixei que as formalidades terminassem e rapidamente decidi que me iria deixar conduzir pelos acontecimentos. Reagiria em função deles. A cortina foi levantada e a luz de um dos lampiões bateu-me em cheio na cara, ferindo-me os olhos já habituados àquela semi-obscuridade em que viera. Senti as pernas dormentes, mas ignorei-as. Tsunetsugu estava dobrado respeitosamente a uns passos de mim.
Senti que o chão era de gravilha, mas não o olhei. Intuí que não deveria olhar para o chão. Estávamos num jardim, mesmo depois do portal que interrompia o muro da casa. Havia uma ponte vermelha, onde em cada extremidade uma lanterna em forma de telhado, iluminava o caminho. – Seja bemvindo excelência, ouvi dizer e percebi, apesar da escuridão, a figura feminina curvada, vestida de tons que iam do rosa, ao vermelho e ao roxo. Quando se ergueu observei que tinha o rosto branco e um penteado elaboradíssimo onde se adivinhavam inúmeros ornamentos. – Espero que possa encontrar na nossa casa repouso para as suas inúmeras tarefas. Baixei a cabeça, e ela, indicando a ponte, iniciou o cortejo. Pude ver que o seu obi estava atado de tal modo que a parte final da faixa pendia, atrás, até à dobra dos seus joelhos. A ponte atravessava um lago, e o jardim tinha muito de influência chinesa, decididamente Tang. As luzes da casa estavam todas acesas. Descalcei as sandálias e subimos para o corredor exterior, que sem dúvida circundaria todo o edifício de dois pisos. Senti Tsunetsugu atrás de mim. Avançou com a mão direita estendida, como que a pedir passagem, embora o espaço fosse amplo. Com passos rápidos alcançou a mulher e sussurrou-lhe algo. – Ah, so deska! Wakarimasu. Hai! (Ah, pois. Compreendi. Sim) respondeu ela num tom que me pareceu estudado. Continuámos a andar como se nada tivesse acontecido. Tsunetsugu aguardou que eu passasse, fez-me nova vénia, pondo-se de seguida dois passos atrás de mim. Caminhámos contornando o conjunto de edifícios que se encaixavam uns nos outros. A jovem, que andava alguns passos à nossa frente, parou. Ajoelhou-se, fez deslizar uma porta até metade com uma das mãos, e finalizou a abertura da porta com a outra mão, tudo numa economia de gestos que fui fixando. Tudo era estudado até ao mais ínfimo pormenor. Nada cortava a harmonia. Do lado de lá da porta de correr, outra jovem igualmente de rosto pintado de branco, que eu já adivinhara ser uma gueixa, saudou-me harmoniosamente, curvando-se. Tsunetsugu abeirou-se de mim num instante e, com as mãos estendidas, murmurou: – a katana. Fiz uma revisão instantânea. Devia ter-lhe estendido a katana que levava na mão direita. Penitenciando-me por essa desatenção mantive a atitude altiva. Tsunetsugu ficaria portanto cá fora à minha espera. A jovem, levantando-se graciosamente, conduziu-me para o
interior. À medida que observava o percurso onde reinava um estranho silêncio, inquiria-me o que teria levado Osode a mandar-me para um lugar destes? Afinal ia-me divertir? Mas pensaria ela que eu me divertia assim? Novamente tentei afastar o chorrilho de perguntas que se avizinhava e concentrei-me no ambiente. Enquanto subia as escadas para o primeiro andar, senti um aroma suave, novamente de flores, apesar da fileira de velas que iluminavam os corredores. Seriam as próprias velas? Segui mecanicamente os passos da jovem ao longo do corredor. Ela abrandou, olhou para mim por cima do ombro direito, e parou. Ajoelhou-se graciosamente, repetiu os mesmos gestos de fazer deslizar a porta e, de novo, me saudou curvando-se, murmurando algo. Hesitei um segundo, lembrei-me do capacete que trazia. Desatei o nó que o segurava ao queixo e passei para o outro lado da porta que imediatamente se fechou por detrás de mim. À minha frente, a cerca de 4 metros, estava uma parede. No chão, um pequeno candeeiro quadrado de papel e madeira ocultavam a vela que dentro ardia e iluminava um biombo pintado a dourado, aves voando em formação. À minha direita, fechada, nova porta, cujo papel deixava antever uma luz suave, vagamente avermelhada. Senti a tensão do momento, sobretudo agora que nem o capacete ocultava o meu cabelo, sem dúvida estranho para aquela terra. Respirei fundo quando estendi a mão para afastar a porta que me separava de Sakura dayu. Abri-a rápida mas suavemente e entrei. Julgo que entrei. Reuni todas as minhas forças para me manter impávido, ainda que o que se me patenteava me invadisse a mente como alterosas vagas de insólito. ra-me dado ter uma magnificente visão do predomínio do vermelho, como o rubor anunciando o despertar dos sentidos. O amplo compartimento estava iluminado por uma única luz, estrategicamente colocada por detrás e à direita da estática e fulgurante figura que dominava toda a cena. Sakura dayu estava vestida de todas as cores de luxo, brocado e seda, vermelho e dourado, padrões hexagonais fundindo-se com cenas descritivas, uma flor que lhe dava o nome por cima do peito esquerdo, onde o pouco que se via do kimono era cor de rosa. O cabelo, soberbamente penteado, era uma coroa de decorações de alfinetes e pentes, talvez de madrepérola ou tartaruga. O rosto era espantoso. A tinta branca que cobria totalmente a pele criava uma máscara que era em simultâneo uma distância e uma proximidade. As pálpebras estavam levemente coradas a rosa. As sobrancelhas formavam suaves arcos e os cantos exteriores dos olhos estavam pintados a vermelho, tal como a boca, um desenho de um vermelho igual, intenso, que combinava esplendidamente com o liso kimono rubro interior que assimetricamente saía de entre outras camadas de vestuário sabiamente combinadas. Trazia uma capa segura pelos braços, espraiando-se pelo chão, coberto por um tapete de feltro igualmente vermelho, sobre o tatami. O corpo dela perdia-se nessa esplêndida capa que na frente ostentava, sobre fundo vermelho, o desenho de uma fénix. Fixava-me com o anúncio de um sorriso, a comissura esquerda da boca mais subida que a direita. Baixou lentamente a cabeça, numa saudação silenciosa. À sua frente, no prolongamento da mão que segurava um cachimbo, lacado também de vermelho, havia um tabacô bon (tabuleiro para cachimbo e tabaco). Foi com a mão direita que iniciou a conversa, num breve gesto. Por favor seja benvindo. Sente-se
28 10 2011
h
É D I T O S F O R T E S
confortavelmente. Falava pausada e seguramente, a voz mais grossa do que as que ouvira anteriormente, mais profunda. Mantive-me em silêncio enquanto me sentava, puxando para mim uma almofada vermelha das muitas que estavam harmoniosamente espalhadas. Ela sentiu a minha perturbação e delicadamente iniciou a conversa. – Sakê? Aquece o corpo e sossega o espírito. Sorri contrafeito. – Obrigado, por agora não. Sakura dayu sorriu cortêsmente, olhou para a mão que segurava o cachimbo. – Sei que já fumou dos nossos cachimbos. Gostou? Compreendi quão diferente era a função e o ritual de uma mulher como ela, das suas congéneres ocidentais. Perguntava-me mesmo se haveria correspondência. – Suspeito que foi essa experiência que hoje me conduziu aqui, recuperava lentamente o domínio dos meus pensamentos. – Não sabia o que iria encontrar… arrependi-me imediatamente. – O que faz a vida interessante é mais a busca que o encontro, o percurso em direcção ao aperfeiçoamento do que a perfeição, respondeu sem pressa, sorrindo. Sentia nela, por vezes, como que a emergência da sua pele real em relação à máscara de pintura de que se revestia. Mas ainda era cedo para tirar conclusões. Estudavamo-nos mutuamente, mas eu intuía que ela era profunda conhecedora dos homens. – Perdoe-me a pergunta, agora o tom era muito suave. Deixou que passassem alguns momentos, mexendo com a fornalha do cachimbo nas cinzas da tigela de porcelana. – Será que eu o intimido? A pausa estudada, não tinha sido suficiente para dissolver a perfurante pergunta. Seria uma provocação destinada a encaminhar a conversa para outros lados? Mas ela tinha rompido a etiqueta. Decidi que iria ser eu próprio e confrontar-me com as diferenças do tempo. – Não sei se me intimida. Admito que estou mais curioso e intrigado que intimidado. E apeteceu-me fumar para me segurar a algo. – Gostaria de fumar? perguntou-me imperturbável, lendo-me os pensamentos. Garanto-lhe que o tabaco não é o mesmo… Percebi que estava inteiramente informada. O que sabe disso tudo? Perguntei, recusando o cachimbo com um gesto. Sakura dayu sorriu vagamente, vagueou os olhos que pareciam raiados de sangue pela pintura. Depois olhou-me: – uma mulher como eu, mesmo tendo a categoria de Oiran (grande cortesã) não deixa de ser procurada pelos homens pelas mesmas razões que justificam estas casas. Ouvimos-lhes insondáveis segredos, somos como que o lenço dos seus prantos reprimidos, o poço que querem que seja regaço. Primeiro damo-lhes a importância que eles precisam de sentir que têm, por muito ilusória que seja, depois, quebrado o gelo e desfeitas as defesas, somos confidentes, recipendiárias de tudo. Compreenderá que estamos treinadas para ouvir, para receber e dar. Por muito que a dádiva seja supérflua, é importante para os que nos procuram sentirem que dando, recebem. A conversa tomava um rumo estimulante. Sempre gostei de mulheres inteligentes, e Sakura dayu, apesar de jovem, conhecia bem os homens. Não era um prelúdio para coisa nenhuma, começava a ser uma conversa onde ela transgredia deliberadamente os limites do comportamento que era suposto ter. – Mas, comecei, eu não sabia sequer que existia assim. Depois, Osode san arranjou este encontro. Ela sorriu de novo. Eu sei, e percebo que, não sendo japonês, não tem os mesmos valores, os mesmos códigos, o mesmo raciocínio. Acendeu o cachimbo, lançou uma baforada de fumo e continuou. – Fui educada não só por meus pais mas por homens que queriam converter-nos, estrangeiros como você. Hoje sei como pensam, suspirou discretamente olhando o fumo a desfazer-se.
– Entre nós há uma diferença radical, continuou suavemente implacável. Nós temos uma cultura baseada na vergonha, vocês têm uma cultura baseada na culpa. A vergonha a que me refiro não é a do corpo. Esse não nos envergonha, é parte de nós. Entende-me? Eu vim para este mundo nocturno mas não me culpabilizo. Aceito pacificamente o que está escrito. Aprendemos muito com os chineses. Depois transformámos, adaptámos os seus conhecimentos os seus clássicos confucionistas. Como eles também nos casámos com a Natureza, percebemos os seus múltiplos ensinamentos e apelos. Quisemos ir ao extremo da percepção. Fez uma pausa, poisou o cachimbo no tabuleiro. – Desde há muito que temos medo de ter vergonha. Por isso aprendemos desde cedo todos os preceitos do comportamento para todas as situações. Existe uma ordem que interpretamos como divina. Tal como os chineses, convivemos com mais do que uma religião. Não as incompatibilizamos porque a ordem do mundo é a consonância, o que significa que a harmonização implica necessariamente a conjugação de pelo menos duas fontes. Olhou para a sua direita e bateu as palmas suavemente, numa certa cadência. Havia como que um código estabelecido. Uma jovem entrou e entregou-lhe um instrumento de cordas e uma peça achatada, grande, feita de marfim, segundo me pareceu. Sakura dayu começou a tocar. Arrancava notas aparentemente soltas do shamisen (instrumento de três cordas). Havia uma linha melódica permanentemente descontínua. A enorme palheta tangia as cordas e aquela música ia-me entrando lentamente, fazendo-me intuir os mais ínfimos sons da terra, da inaudível floração até às nossas próprias pulsões. Estava embrenhado nos meus pensamentos quando o último som se finou. Lentamente, Sakura dayu pousou o shamisen e olhou para mim. – Acho que entendi, disse-lhe, até porque não suportava o silêncio daquele momento. Ela tinha dado o tom e a direcção à conversa. Eu iria continuá-la. Ouvi o que disse e estive a reflectir, mas nada é absoluto. No ocidente a razão preside… ela, insolitamente interrompeu-me. Transgredia todas as regras, entusiasmava-se, o que eu sabia ser contra toda a etiqueta. – Perdoe-me tirar-lhe a palavra. Mas a razão é subjectiva. Nem Platão com o seu discurso da justiça é linear. É preciso que cada um saiba exactamente o que fazer em cada momento. O inesperado não é tolerável. Provocava-me certamente, provocava-me até fora dos limites do seu papel. Talvez quisesse que eu perdesse a compostura para depois apontar a minha fraqueza. Ou talvez, quem sabe, me quisesse estimular. Mas atravessara completamente a fronteira da sua compostura de Oiran. - Ah, fez ela, levando a mão direita à boca.
– Gomen nasai disse humildemente, prostrando-se. Não tem importância, não se esqueça que eu não sou japonês, portanto não se obrigue a esta etiqueta. Ergueu-se lentamente, subitamente fragilizada. De cabeça baixa respondeu-me num murmúrio. – Perdão, excedi-me inadmissivelmente. Não tenho desculpas. Ela poderia ter aludido a que se entusiasmara com a conversa, que lhe era mais grato conversar e sair daquela máscara e daquela pele imposta do que repetir o que fazia quase sempre. Em vez disso evitou qualquer justificação, assumiu a responsabilidade. - Peço-lhe, continuemos. E jovialmente continuei perante o seu ar compungido que eu sabia genuíno. Quero confessar-lhe que não sou deste tempo. Não vim para este tempo de livre vontade. Vive-se aqui num regime feudal com o qual eu não posso, vindo do meu tempo, concordar. Mas não sei como sair disto. Não havia nenhum preconceito, suspeição ou surpresa na maneira como me olhava. – Sabe, disse já recomposta e algo apaziguada, alguém me ensinou alguns rudimentos de interpretação de situações… chamemo-lhes que enigmáticas. A natureza oferece-nos compostos naturais que, usados de determinadas maneiras, nos fazem avançar ou retroceder no tempo. O nosso espírito viaja através de memórias esquecidas de outras vidas de que não nos lembramos conscientemente. – Pode ser, repliquei. Mas que tenho eu a ver com tudo isto? Apenas entrei numa casa de antiguidades e uma senhora de idade deu-me um cachimbo e uma bolsa de tabaco embrulhado num lenço que Osode san diz pertencer-lhe. Sakura dayu, ouvindo atentamente, voltou a pegar no cachimbo e a acendê-lo. Fazia-o graciosamente, como graciosas eram as suas pausas. Uma conversa – tal como um desenho existe nos riscos e nos espaços brancos por riscar – é feita de pausas e de palavras. Mas é preciso que os interlocutores entendam isso. E aqui o nosso entendimento era perfeito. – A sua gravura desencadeou tudo isto, murmurou a Oiran, cujo conhecimento dos antecedentes já me não espantava. – Osode san foi a modelo preferido de Utamaro Sensei (Mestre). Por razões que ela nunca disse, depois de casarem, regressou a Kyoto, vinda de Edo e leva uma vida retirada, vivendo dos rendimentos que a sua família lhe deixou. A vela do candeeiro bruxuleou, dando pequenos estalidos. Senti um ar apreensivo em Sakura dayu. Com um ar de discernível ansiedade contida perguntou-me: – A casa de antiguidades fica perto de um rio, junto a uma ponte? Confirmei-lhe que sim, e que a ponte ainda tem aplicações de bronze nas madeiras. – Essa mesma, disse. Senti-lhe novo sobressalto quando a vela do candeeiro novamente trepidou.
5
Sakura dayu prostrou-se numa longa vénia. Receio que o privilégio de termos conversado me esteja a ser retirado em breve. A vela deu outro estalo grande e apagou-se. Fiquei mergulhado numa completa penumbra. Subitamente toda a cor tinha desaparecido. Não consegui vislumbrar quase nada. – Sakura san, chamei. Quase já de muito longe, ouvi qualquer coisa como – é preciso que queime a gravura. Fiquei sentado em quase total escuridão, não fosse o pequeno candeeiro exterior. Queimar a gravura de um autor que eu esperara décadas para poder ter uma...Porquê? Levantei-me e saí. O corredor estava escuro e silencioso. Desci cuidadosamente os degraus. A casa estava deserta. Quando saí para o exterior, o céu tinha o tom cinza azulado do anúncio do dia. Tsunetsugu ao sentir-me, levantou-se rapidamente. O sono espelhava-se no seu rosto. Sem uma palavra, saímos. Quando chegámos ao pé do palanquim, virei-me para ele e perguntei-lhe: – Por acaso Osode san mora ao pé de um rio e de uma ponte que o atravessa? – Sim. É para lá que vamos, ripostou Tsunetsugu. A minha mente cansada, tal como o dia, começava a clarear.
5. TODOS OS TEMPOS
Os acontecimentos sucediam-se num encadeamento que tinha certamente um sentido, conduzindo a uma interpretação que eu ia apenas suspeitando. Sentia-me exausto no caminho de regresso. O tempo invertera-se, ainda me recordava. Era agora manhã quando deveria ser noite. Ou será que eu estava tão inexoravelmente preso a este tempo que me era já impossível regressar ao meu? A liteira oscilando tornava-me ainda mais sonolento e a fome anunciava-se. O dia era já uma realidade e as ruas já se povoavam da mais variada gente. Regressei à memória do encontro com Sakura dayu. Perguntava-me como seria o seu passado, a exposição aos gaijin (estrangeiros) que ela me revelara, a razão da sua quebra de protocolo. A máscara que ela envergava fazia-me querer saber como seria diurnamente, que nome verdadeiro seria o seu. E o conhecimento que ela indiciara ter do ocidente parecia indicar que tinha nascido ou vivido em Nagasaki, onde tinham ficado confinados os estrangeiros. Tudo isto ocorria décadas depois de Tokugawa Ieyasu ter implantado o seu Shogunato, mas o Japão que eu fora demandar lançara-se há muito, numa feroz expansão económica. A chegada da liteira retirou-me dos meus pensamentos. Estava dentro do mesmo local de onde partira. Saí tirando imediatamente o capacete, entreguei a katana a Tsunetsugu, ansioso por me refrescar e comer. Movimentava-me agora com muito mais à-vontade, consciente porém de que mantinha uma postura condizente com as roupas que vestia. Osode san aguardava-me, bem como duas serviçais. O olhar dela era expectante. Passei familiarmente por ela. – Dormiu? Ela seguiu-me silenciosamente ao andar superior. As duas serviçais precediam-nos, atentas. – Prefere tomar banho primeiro ou comer? Osode falou pela primeira vez, como se nada se tivesse passado. Entrei no quarto onde ela me acordara, hesitando na escolha, mas o estômago falou mais alto. Ela deu ordens às duas raparigas que se retiraram correndo suavemente a porta. Ajudou-me a desatar o nó (conclui na página 11)
28 10 2011
h 6
C H I N A C
Província de Shanxi, cidade de Pingyao
António Graça de Abreu
C
HOVIA EM PINGYAO. A ÁGUA DO VERÃO CAÍA ABUNDANTE E CERTINHA SOBRE OS VELHOS TELHADOS DESTE ESPANTOSO BURGO DE PINGYAO, ENCHARCAVA TUDO, MOLHAVA AS GENTES ATÉ AO TUTANO DO OSSO. Eu tinha o dia inteiro para mim e saí de manhã cedo, de guarda-chuva lilás decorado com flores (uma útil mariquice que comprei lá mais a norte, em Datong!) e os sapatos de sola de borracha transformados em provisórias galochas. Há dez anos atrás, quando da primeira estada em Pingyao, o visita ao templo de Confúcio havia-me passado ao lado. Desta vez não falhei, mesmo com revoadas de chuva a assustar o obtuso turista de passagem. A chuva foi uma coisa má que acabou
por se transformar numa coisa boa, havia pouca gente nas ruas e o templo do velho mestre era quase só para mim. Os templos dedicados a Confúcio (551 a.C-469 a.C) encontram-se quase em todas as cidades chinesas. Começaram a ser levantados na dinastia Han (206 a.C.-220) em honra do filósofo, educador e moralista, conselheiro de príncipes e poderosos cujos ensinamentos, raramente cumpridos, modelaram o modo de pensar da sociedade chinesa durante mais de vinte séculos. Muitos dos templos de Confúcio funcionavam também como escolas e este em Pingyao não escapou ao costume. Já com o regime comunista, depois de 1949, parte do templo foi ainda aproveitado, nele funcionando uma escola do ensino secundário, Os complexos arquitectónicos dedicados a Confúcio seguem aproximadamente o modelo de construção dos templos budistas e taoistas, ou seja, um vasto es-
CHUVA
paço rectangular quase sempre de acordo com um eixo norte-sul, com entrada e saída pelo lado menor do rectângulo e dentro, uma sucessão de pavilhões até chegarmos ao principal com uma grande estátua ou pintura representando Confúcio. Nos pequenos pavilhões situados nas alas laterais vemos caligrafias, estelas em pedra gravadas com citações do mestre e, muitas vezes, como acontece neste templo de Pingyao, encontrarmos estátuas em tamanho natural dos 72 discípulos de Confúcio. Nos melhores templos budistas e taoistas, nas alas laterais, existem também estátuas dos luohan, os discípulos de Buda ou das mais destacadas figuras do taoismo. Confúcio chegou a ser seguido por 3.000 pessoas mas apenas 72 discípulos, com nome e tudo, ficaram na história como os grandes divulgadores do confucionismo. De resto, desde os Han (sec. III a.C), o nú-
mero 72 passou a estar associado a um conjunto de excelentes realizações. Não é por acaso que a cidade de Pinyao, -muralhada ao longo dos 6,2 kms. que a circundam --, tem 72 torres, o número mágico que traz felicidade e boa governação ao pequeno burgo. Não por acaso as maiores cidades do império tinham 72 grandes ruas, não por acaso algumas das mais famosas montanhas da China têm 72 picos, não por acaso o ideal do bom mandarim de antanho era possuir 72 concubinas para encher de prazeres o seu leito ora requentado, ora requintado e fresco. Nas capitais de província, nos maiores centros urbanos da China Clássica, ao lado dos templos de Confúcio construíam-se grandes complexos onde centenas ou milhares de jovens, e até gente mais entrada na idade, se submetia, por norma de dois em dois anos, os exames imperiais. Constituí-
28 10 2011
h
R Ó N I C A
7
A NO TEMPLO DE CONFÚCIO
dos por complicadas provas democraticamente abertas a todos, tinham como tema principal a análise dos Quatro Livros e dos Cinco Clássicos, obras do grande cânone confuciano, algumas delas presumivelmente compiladas pelo próprio Confúcio, com algumas semelhanças, pelo menos na importância dos textos, com os nossos Antigo e Novo Testamento. Uma vez vencidos os exames imperiais, o que não era tarefa fácil, os letrados iriam desempenhar funções no governo do império, seriam os mandarins do poder e do mando. No templo de Pingyao, tal como nos dez mil outros existentes em incontáveis cidades da China, não se realizavam exames para a ascensão ao mandarinato, mas os espaços dedicados a Confúcio tinham, têm ainda nos nossos dias, uma função didáctica e de crença na potencial ajuda do velho mestre para a obtenção de um grau académico que possibilite uma vida melhor,
com poder e desafogo económico. É vulgar ver hoje nos templos dedicados Confúcio mães ajoelhadas diante da gravura do mestre, solicitando-lhe que interceda e apoie, por exemplo, a entrada dos filhos numa universidade. O templo, como toda a Pingyao histórica e monumental, sofreu grandes obras de restauro há dúzia e meia de anos atrás. Depois da tormenta e destruições selvagens dos “guardas vermelhos”, na desgraçada e inculta Revolução Cultural, em 1966/67, tudo foi refeito e melhorado, e na China basta passarem uns dez anos sobre as reconstruções de arquitectura antiga para começarmos outra vez a sentir a ambiência e o cheiro dos séculos. E o templo é mesmo antiquíssimo. Foi construído no início da dinastia Tang (618-907) e sofreu grandes obras de ampliação e restauro no século XII, na dinastia Song (960-1279), período em que uns tantos ilustres filósofos e man-
darins como Zhu Xi e Wang Anshi fizeram revivescer a doutrina e os valores de Confúcio, e deram corpo à corrente neo-confucionista. Chovia em Pingyao. Não reverenciei o mestre mas passeei-me pela cidade e pelo templo. Há algo em mim que faz com que, quanto melhor conheço Confúcio e a sua doutrina, me afaste cada vez mais da filosofia confuciana. Os princípios são bons, exaltar os ritos do passado, pretender a rectidão, a benevolência, a justiça, a grande harmonia entre todos os homens são ideais elevados cuja intenção é conduzir a sociedades mais humanas e justas. A questão é que os ideais confucianos na China Antiga, na China Clássica, na China de sempre, em todos os mil recantos do mundo, nunca são cumpridos, ou pior, os homens fingem que os cumprem ou que os querem cumprir mas apropriam-se oportunisticamente dos valores e da moral do
mestre, jamais a põem em prática e usam-na para mascarar os mais aviltantes comportamentos. Du Fu (712-770), um dos maiores poetas dos quarenta séculos de poesia chinesa, educado nos moldes confucianos, escrevia como fecho de um seus mais famosos poemas: Os ensinamentos de Confúcio, afinal para que servem? Sábio, salteador de estradas, todos regressam ao pó. Para quê tanto sofrimento, tanto queixume? Estamos vivos, vamos beber umas taças de vinho. Chovia em Pingyao. Passeei-me pelo templo, um sorriso molhado e triste entre mim e o velho Confúcio. Depois continuei viagem.
Areias, Estoril, 12 de Outubro de 2011
28 10 2011
h 8
P R I M E I R O B A L C Ã O
luz de inverno
Boi Luxo
SHATTEN - EINE NÄCHTLICHE HALLUZINATION (WARNING SHADOWS), 1923
Não causará muito espanto que o cinema se tenha apropriado, desde muito cedo, de um material científico que desde o início do século XX se começara a popularizar: o resultado dos estudos de Freud sobre os sonhos e a construção da psicanálise. Jung já escrevera, igualmente, algumas das suas obras mais importantes quando este filme de Robison foi realizado. O cinema não deixou de continuar a usar, ao longo da sua história, muita da ganga que daquelas obras se tem separado. Não há sonhos a propósito dos quais não se fale imediatamente de Freud. Ao pensarmos na psicanálise e nas maneiras como o cinema mudo escolheu mostrá-la, pensaremos mais imediatamente em Pabst e no seu filme Geheimnisse einer Seele, de 1926, que trata de uma cura através do uso da psicanálise. Pouco mais alcance tem este filme que uma exibição desse processo. Nele também há muitos sonhos - as cenas visualmente mais interessantes de um filme que pouco mais tem para oferecer de admirável, um filme que se mantém longe do fulgor que atingiram outros filmes deste autor. Shatten - Eine Nächtliche Halluzination é um filme mais antigo e pode ou não ser um sonho. Pode ser, como o seu título original anuncia, uma alucinação nocturna. O que ele é certamente é um filme mais ousado, no modo como não conta quase nada mas mostra muito. O filme, originalmente, não tinha sequer intertítulos, valendo-se apenas da eficácia narrativa das suas imagens. Este é um filme epidérmico, erótico, quase exclusivamente nocturno e interior e cheio de sombras. Do seu atrevimento retiro um
outro que é de me abster de fazer referências (que já aqui foram feitas a propósito de outros filmes da mesma época e naturalidade) sobre o clima estético que o informa. Esta é a época de Golem, Doktor Caligari, Nosferatu, Orlacs Hände, entre muitos outros filmes alemães que definiram os contornos da vanguarda mais ousada da altura (incluindo a soviética). Ver cinema mudo hoje em dia sublinha a impressão, arrogante e moderna, que o cinema mudo faz mais sentido agora que nunca. Na era da captação digital de imagens, e do cortejo orgiástico de facilidades que esta permite e promove, reencontramos no cinema mudo uma modernidade e uma vertigem de mostrar que por vezes quase anula a tentação pequeno burguesa e mesquinha de contar. O cinema mudo e a captação digital de imagens têm como missão incontornável a abolição desta ditadura. O que não quer dizer que este filme não tenha uma trama. Há é uma atenção máxima no efeito da imagem que a ausência de qualquer texto sublinha. Para que são precisas explicações neste mundo de sombras (mais do que de sonhos) e desejos ? Nele, um artista de sombras chinesas aproveita-se de um banquete oferecido por um homem-rico para dar um espectáculo (tudo aqui é espectáculo) e ajudar a transformar a noite de festa num teatro de sombras e de espelhos. Esta é a história da ilusão total através de um meio, o cinema, que se tem historicamente orgulhado de se ter tornado no meio ilusório por excelência. Há prova desta sua capacidade no fim do filme, irrefutável, mesmo que desnecessária.
No centro deste filme em um prólogo e três actos está uma mulher, a mulher do homemrico, e o desejo sexual que ela desperta nos convidados para o banquete. Na intoxicação que este provoca abrem-se as artes de palco num jogo especular e de luzes e sombras. Reina suprema como arte do desejo a dança feminina (como em outros filmes da época), num processo de sacerdotização da mulher sobre quem recaem, abundantes e em seu redor, as sombras e as imagens do desejo, rodopiando em sua volta, iluminando o desejo da própria mulher, no centro deste sonho bom e possivelmente terrível. Lembremos que o ambiente electrizante que caracterizou a produção artística alemã em geral, e de Berlim em particular, durante os anos 20, teve expressão brilhante nas artes de palco. O teatro e a dança tiveram importância maior durante o início e meados desta década de frenética actividade. Em dois filmes tão diferentes como Metropolis e Der Heilige Berg, de Arnold Fanck, 1926, aqui objecto de atenção não há muito tempo, encontramos cenas exemplares de como a dança se insinuou ruidosamente no cinema, no primeiro destes filmes com a dança de Brigitte Helm, e no segundo com as de Leni Riefensthal junto ao mar e em palco. Lembre-se que esta é a altura de Josephine Baker, do Jazz, de Mary Wigman e das suas “danças expressionistas” e de Valeska Gert e das suas “Groteske Tänze”, para além da popularização intensa do Charleston e do Foxtrot, do cabaret e dos serões passados em salões de dança. Enquanto a mulher do filme dança, voluptuosa, neo-clássica na roupagem e penteado mas
ARTHUR ROBISON
num exagero expressionista, cresce, ao lado do desejo dos homens, lúbricos como macacos1, o ciúme grosso e medonho do marido. No segundo acto, como acontecera já um pouco no primeiro, a sobreposição das sombras continua a criar a ilusão de uma transgressão. Não há praticamente nenhuma cena de exterior ou diurna e esta interiorização concorre para que a festa do senhor rico tome uma atmosfera cada vez mais febril e íntima. A sua intimidade provém assim do cenário onde se desenrola, da sua decorrência nocturna, e provém igualmente de se tratar de um assunto pequeno e doméstico, longe da convulsão diabólica da história de Fausto, do perigo muito real que representa Nosferatu, do grande fresco humanista, ruidoso e metálico que é Metropolis ou da exaltação épica da saga dos Nibelungo, para dar apenas alguns exemplos do vastíssimo corpus que é o do cinema alemão dos anos 20. Ao mesmo tempo, este filme actua na nossa intimidade por outra via. Insinuando-se na dúvida que construimos sobre a realidade do que nele se passa. O filme, que é luz, colocase numa posição (por trás) em que nos obriga a projectar uma sombra, a sombra da nossa própria dúvida. No fim do filme, quando algumas dessas dúvidas são dissipadas e se passa da clausura da noite para a claridade da manhã, há um desejo subterrâneo de regressar à dúvida e à dança grotesca e voluptuosa da mulher do homem-rico.
1 Como diria Agustina Bessa Luís
h
28 10 2011
T E R C E I R O O U V I D O
próximo oriente
Hugo Pinto
EM NOME DO PAI DO ROCK CHINÊS 1986, por decisão das Nações Unidas, foi considerado o Ano Internacional da Paz. O desarmamento nuclear era a grande questão que dominava a actualidade política e, por todo o mundo, o pacifismo foi promovido com marchas e exposições, conferências e concertos. A China não foi excepção. Em Maio desse ano, o Ginásio dos Trabalhadores, em Pequim, acolheu um concerto comemorativo do Ano Internacional da Paz, no qual participaram uma centena de artistas. A certa altura, o longo desfile de baladas românticas melosas e canções das colectividades revolucionárias foi interrompido quando subiu ao palco um homem vestido como mandarim, com uma guitarra pendurada nas costas. Fez-se silêncio e ouviram-se os primeiros acordes de “Nothing To My Name”. A letra estava escrita na primeira pessoa de um despojado: “I want to give you my hope / I want to help make you free / But you always laugh at me / For I have nothing to my name”. A canção durou 10 minutos. No final, o homem “sem nada no seu nome”, Cui Jian, foi aplaudido de pé pela audiência que testemunhava o nascimento da primeira estrela de rock chinesa e também do hino de uma geração que, poucos anos mais tarde, haveria de ser entoado pelos milhares de estudantes que se juntaram na Praça de Tiananmen para pedir reformas políticas. Filho de pais de etnia coreana com forte ligação à música, Cui Jiang (diz-se “sway-jen”) aprendeu a tocar trompete aos 14 anos de idade. Seis anos depois, entrou para a Orquestra Filarmónica de Pequim. Nesta altura, Cui começa a interessar-se pela música que se fazia no Ocidente e que ouvia nas cassetes que os estudantes estrangeiros em Pequim e turistas lhe faziam chegar. Cedo formou a sua primeira banda de rock, Seven-Ply Board, com quem tocava “covers” dos artistas que gostava: Simon and Garfunkel, John Denver, Rolling Stones, The Clash, Talking Heads, The Beatles. Para os dirigentes da Orquestra Filarmónica de Pequim, zelosos seguidores da cartilha comunista, as influências ocidentais corrompiam os valores chineses, pelo que Cui Jian foi convidado a abandonar o seu lugar de trompetista. O rock chamava. Em 1987, Cui Jian edita o seu primeiro disco, “Rock and Roll on The New Long March”. O título acabaria por revelar-se certeiro no que ao género de música dizia respeito, mas também adivinhava com exactidão o que seriam os anos seguintes da carreira e vida de Cui Jiang: uma longa odisseia. Em 1989, em Abril, dezenas de milhares de estudantes juntaram-se na Praça de Tiananmen. O que começou por ser um grande encontro de homenagem e luto pela morte de Hu Yaobang, um dos políticos em quem os estudantes depositavam
grandes esperanças de reformas, tornar-se-ia num imenso movimento de protesto. Em Maio, Cui Jiang actuou na Praça de Tiananmen. O cantor recorda que se vivia o ambiente de “uma grande festa, não havia medo”. “Nothing To My Name” foi um dos temas que se ouviram, não só da boca de Cui, mas de muitos outros que resistiram na Praça Celestial até que por ali irrompessem os tanques e os soldados, no fatal 4 de Junho. Depois desse dia, as coisas nunca mais foram as mesmas. Logo no ano seguinte ao massacre que matou um número, ainda hoje, desconhecido de pessoas, em 1990, Cui Jiang começou a actuar nos concertos vestido com roupas que um pobre camponês usaria e com os olhos vendados por um pedaço de tecido vermelho. O cerco das autoridades apertou. Cui Jiang foi banido dos grandes palcos chineses e os alinhamentos dos concertos sujeitos a censura; no entanto, nem a criatividade, nem a veia contestatária se extinguiram. Cui continuou a “longa marcha” e a gravar discos. O segundo álbum, sucessor do histórico “Rock and Roll on The New Long March”, foi “Solution”, lançado em 1991. Três anos depois, edita “Balls Under the Red Flag” (título que em chinês é depreciativo q.b. para as autoridades). Em 1998, Cui chama ao seu quarto disco “The Power of the Powerless”, onde continua a combinar instrumentos chineses tradicionais e linguagens do rock, a que acrescenta influências dos “rappers” norte-americanos com consciência social Public Enemy. Os elementos electrónicos e as referências oriundas do hip-hop regressam no quinto e último, até à data, disco de originais de Cui Jiang – “Show You Colour”, de 2005. Em entrevista concedida ao jornal britânico The Independent, em 2005, Cui Jian falou sobre o que terá significado a canção “Nothing To My Name” para as pessoas que a ouviram, pela primeira vez, no Ginásio dos Trabalhadores: “Naquela altura, as pessoas estava acostumadas a ouvir antigas canções revolucionárias e nada mais. Quando me ouviram cantar sobre aquilo que eu queria enquanto indivíduo, isso captou a sua atenção. Quando cantavam ‘Nothing To My Name’, era como se estivessem a exprimir o que sentiam.” Hoje, numa China onde uma boa parte dos jovens parecem mais dispostos a lutar por um iPhone do que pela liberdade, a música de Cui Jian continua a fazer tanto sentido como há 25 anos. Mas, apesar da “nova longa marcha” estar ainda longe de terminar, quem, ainda, segue o cortejo e entoa as palavras em nome do pai do rock chinês? Cui Jian 1 de Novembro, 20:00 Praia de Hac Sa Entrada Livre
9
28 10 2011
h
10
L E T R A S S Í N I C A S
WEN ZI 文子
A COMPREENSÃO DOS MISTÉRIOS
Se alguém houver que ouse opor-se à Via do Céu, rufiões a incomodar o povo, deverá morrer e ver seu clã destruído.
CAPÍTULO 169 Lao Tzu disse: o rumo dos dirigentes é calculado e planeado estrategicamente. A acção em nome da causa da justiça não é conduzida para a sua própria sobrevivência, mas para a daqueles que estão a perecer. Assim, quando ouvem que o líder de um pais inimigo trata o seu povo com violenta crueldade, levantam exércitos e juntam-se na sua fronteira, acusando-o de injustiça e excesso. Quando os exércitos chegam aos campos, os comandantes recebem estas ordens: “Que não se cortem árvores, que não se abram campas, que não se destruam colheitas, que não se façam cativos, que não se apanhem animais domésticos”. Depois, a directiva é dada nestes termos: “O líder daquele pais rebela-se contra o Céu e a Terra, insultando os fantasmas e os espíritos; os seus julgamentos legais são
injustos e massacra os inocentes. Deve ser punido pela Natureza, o inimigo do povo.” A vinda dos exércitos é para escorraçar os injustos e dar poder aos virtuosos. Se alguém houver que ouse opor-se à Via do Céu, rufiões a incomodar o povo, deverá morrer e ver seu clã destruído. Aqueles que capitulam com as suas famílias devem ter direito às suas casas; aqueles que capitulam com as suas aldeias devem ser recompensados com as suas aldeias. Aqueles que capitulam com os seus países devem receber senhorio dos seus países; aqueles que capitulam com as suas províncias devem ser feitos lordes das suas províncias. Conquistar um pais não deve afectar a populaça, mas destronar o soberano e mudar o governo, honrando os mais notáveis cavaleiros, conferindo distinção aos sábios e bons, ajudando os órfãos e viúvos, aliviando os pobres e destituídos, libertando os
prisioneiros e recompensando os meritórios. Assim, os camponeses abrirão as portas e acolherão os exércitos invasores, para eles cozinhado e apenas temendo que não cheguem a vir. As forças da justiça se detêm sem combater quando atingem a fronteira, enquanto que as forças da injustiça vêem para a carnificina e derramamento de sangue. Como tal, aqueles que combatem por território não cumprem a essência da liderança e os que para si próprios buscam não têm sucesso. Aqueles cujos projectos se destinam ao bem de outros são ajudados pelas massas. Aqueles para quem agem as massas serão fortes, ainda que em si mesmos sejam fracos, mas aqueles que as massas abandonam perecerão, ainda que sejam em si mesmos poderosos. Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho
O texto conhecido por Wen Tzu, ou Wen Zi, tem por subtítulo a expressão “A Compreensão dos Mistérios”. Este subtítulo honorífico teve origem na renascença taoista da Dinastia Tang, embora o texto fosse conhecido e estudado desde pelo menos quatro a três séculos antes da era comum. O Wen Tzu terá sido compilado por um discípulo de Lao Tzu, sendo muito do seu conteúdo atribuído ao próprio Lao Tzu. O historiador Su Ma Qian (145-90 a.C.) dá nota destes factos nos seus “Registos do Grande Historiador” compostos durante a predominantemente confucionista Dinastia Han. A obra parece consistir de um destilar do corpus central da sabedoria Taoista constituído pelo Tao Te Qing, pelo Chuang Tzu e pelo Huainan-zi. Para esta versão portuguesa foi utilizada a primeira e, até à data, única tradução inglesa do texto, da autoria do Professor Thomas Cleary, publicada em Taoist Classics, Volume I, Shambala, Boston 2003. Foi ainda utilizada uma versão do texto chinês editada por Shiung Duen Sheng e publicada online.
28 10 2011
h
À S U P E R F Í C I E
11
JOSÉ RODRIGUES DOS SANTOS
IGREJA CATÓLICA ARRASA ÚLTIMO ROMANCE O
ÚLTIMO SEGREDO É “UMA IMITAÇÃO REQUENTADA, SUPERFICIAL E MAÇUDA”, SEGUNDO SECRETARIADO NACIONAL PASTORAL DA CULTURA. O último romance de José Rodrigues dos Santos “não é verdadeira literatura”. “É uma imitação requentada, superficial e maçuda [de outras obras]”, acusa o Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura (SNPC), numa nota demolidora sobre O Último Segredo, o romance em que o jornalista da RTP se propõe, com recurso a “fontes religiosas e informações históricas e científicas”, revelar “a verdadeira identidade de Jesus Cristo”. Sem discutir a qualidade literária da obra, o SNPC não disfarça a irritação face ao “tom de intolerância desabrida” com que, no entender deste organismo da Igreja Católica, o autor pretende entrar “na história da formação da Bíblia”, por um lado, e na “fiabilidade das verdades de Fé em que os católicos acreditam, por outro”. Na nota publicada ontem no site do SNPC, José Rodrigues dos Santos é acusado de pretender “abrir com grande estrondo uma porta que há muito está aberta”. Pior: “Confunde datas e factos, promete o que não tem, fala do que não sabe”, lê-se ainda na nota do organismo dirigido pelo padre e poeta José Tolentino Mendonça, na qual o romancista é acusado de escrever “centenas de páginas sobre um assunto tão complexo sem fazer ideia do que fala”. José Rodrigues dos Santos reagiu num único parágrafo. “O mais interessante nesta crítica é que não é contestado um único facto que apresentei em O Último Segredosobre a vida de Jesus. Há uma boa razão para isso. É que tudo o que no romance escrevi, no que diz respeito a citações biblicas ou informações históricas ou científicas, é verdadeiro - e a Igreja sabe.” Apesar de Rodrigues dos Santos ter vendido mais de um milhão de exemplares das suas obras e estar traduzi-
Brumas do Kamogawa (Conclusão da página 5) do Haori, recebeu-o e, em passos pequenos pousou-o cuidadosamente em silêncio. Tirei a wakisashi, olhei para a arma por momentos, retirei uns centímetros de lâmina da saya e, deliberadamente, poisei o polegar direito na face da lâmina. Queria deixar uma marca minha. Osode recebeu a espada. O seu silêncio subsistia tanto como as suas atenções para comigo. Decididamente havia um tempo para tudo. Retirei do kimono o embrulho intacto. Entreguei-o novamente neste ritual de nos despojarmos das coisas quando chegamos a casa. Osode recebeu-o com as duas mãos, mas manteve-se imóvel, o embrulho junto ao peito, as mãos envolvendo-o e o olhar cobrindo-me de mudas perguntas suprimidas. – Sumimasen, disseram do outro lado da porta. E um tabuleiro com comida foi trazido e cuidadosamente colocado no lugar que lhe estava destinado, por etiqueta, no aposento. – Coma, disse a jovem docemente – deve estar com fome. E avançou para o tabuleiro ajoelhando-se à sua esquerda, destapando o arroz que fumegava. Sentei-me no lugar que sabia ser o correspondente ao de quem come. – Osode san, porque não come? Perguntei, embaraçado por comer só e a ser observado. Ela
do para 17 línguas, não é de esperar que em torno deste nono romance se desencadeie uma polémica semelhante à ocorrida em 1992 quando o então subsecretário de Estado da Cultura, Sousa Lara, decidiu vetar o livro “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, de José Saramago, a uma candidatura ao Prémio Literário Europeu, com a alegação de que este não representava Portugal. Mesmo assim, não é todos os dias que a Igreja Católica se põe a tecer considerandos sobre uma obra literária. Em tom tão desabrido, ainda por cima. “É impensável, por exemplo, para qualquer estudioso da Bíblia atrever-se a falar dela, como José Rodrigues dos Santos o faz, recorrendo a uma simples tradução. A quantidade de incorrecções produzidas em apenas três linhas, que o autor dedica a falar da tradução que usa, são esclarecedoras quanto à indigência do seu estado de arte.” Em O Último Segredo, José Rodrigues dos Santos recupera a personagem do historiador e criptanalista Tomás de Noronha para a pôr “no trilho dos enigmas da Bíblia”, a pretexto da investigação sobre o assassínio de uma paleógrafa na Biblioteca Vaticana. Na apresentação que do romance é feita pela Editora Gradiva, lê-se que a história se baseia em “informações genuínas” para desvendar “a chave do mais desconcertante enigma das Escrituras”. Muito ao estilo de Dan Brown, portanto. E uma das coisas que está a irritar a Igreja Católica é a nota, “colocada estrategicamente à entrada do livro, a garantir que tudo é verdade”, como explica ainda o SNPC. No documento, Rodrigues dos Santos é acusado de ter assumido para si as teses que o teólogo norte-americano Bart D. Ehrman fez constar na sua obra Misquoting Jesus. The Story Behind who Changed the Bible and Why, a qual o SNPC acusa de partir de “uma tese radical, claramente ideológica, longe de ser reconhecida credível”. Comparar as duas obras é, conclui o SNPC, “tarefa com resultados tão previsíveis que chega a ser deprimente”.
encheu-me cuidadosamente a tigela com chá procurando ganhar tempo. –É, hesitou, é meu dever cuidar do seu bem estar… O apetite abandonou-me. Percebi a angústia controlada dela. – Osode san, comecei, procurando as palavras – Por favor coma ao menos um pouco. – Não tenho fome, interrompeu-me ela. Olhei-a lentamente. Tinha os olhos com lágrimas lutando para não resvalarem. Suspirei para dentro, impotente. No ar pairava uma espécie de fatalismo, uma inevitabilidade de algo que eu ainda não percebera. Olhei para a janela fechada, levantei-me de repente na sua direcção. Osode correu atrás de mim. – Não, não abra, vai apanhar frio. A voz dela era angustiada, implorante. Fui mais rápido e, correndo a janela, pus a cabeça e os ombros de fora, respirando o ar frio daquela manhã cinzenta. Olhei instintivamente para a minha esquerda, e lá em baixo, tristemente, corriam as águas do Kamogawa (rio Kamo) por entre uma neblina que dele saía. Senti as mãos de Osode nas minhas costas, tentando puxar-me para trás, lutando para fechar a janela. Cerrei os olhos e por mim perpassou uma enorme nostalgia que deu lugar a uma inexplicável tristeza. Osode chorava silenciosamente, as lágrimas transbordando, pequenos rios no seu rosto suave. Levantei-lhe o queixo para
que me olhasse. As mãos torcendo-se uma na outra, não soluçava sequer. Apenas os sulcos húmidos na pele delicada, e os olhos erguendo-se com tristeza. – Porquê? Inquiri com a suavidade que pude reunir. Osode olhou para além de mim, para um ponto que se situava no infinito do tempo. Senti as suas pequenas mãos procurando as minhas, agarrando-as ansiosamente. Tinha entretanto arrefecido. Olhei em volta. Uma neblina que eu já temia voltava a formar-se, rasteira, pelo chão. Osode soluçou, as mãos apertaram-me com toda a força, as unhas dela magoando-me a carne como se quisesse que eu percebesse a sua dor. O quarto arrefecera e a manhã ia escurecendo rapidamente. A jovem abraçou-me, o rosto dela no meu peito, empurrando-o como se quisesse colar-se a mim. A neblina cercava-nos já pela cintura. Osode afastou-se rapidamente, correu para um canto da sala, mergulhou na bruma e retornou para junto de mim. Acalmara-se e, tirando as mãos de trás dela, olhou a gravura e entregando-ma, disse: – foi o único homem além dele que me viu acordar… Recebi a estampa que ela me estendia com as mãos ambas. Tudo se precipitava, e havia em mim um inesperado conformismo que me enchia a alma de amargura. – O embrulho com o cachimbo, murmurei pedin-
do, a bruma quase submergindo-a. Osode olhou-me, os seus olhos marejaram-se de lágrimas novamente. – Por favor, deixe-os ficar. Por favor... O tom era pungente, suplicante. Pude entrever no seu olhar a tristeza do rio que corria lá fora. A névoa tapava-a já totalmente, eu sentia-a apenas, as mãos agarrando-me os braços. Soluçava agora profundamente. Eu próprio começava a ver apenas uma nuvem branca, luminiscente. – Claro, claro que sim, sosseguei-a. – Mas porquê? Tinha de fazer a pergunta. Senti as mãos dela soltarem-se, como que puxadas pela voragem de algo tão forte como o tempo. Por fim soltaram-se definitivamente. Ficou apenas na minha pele a sensação da presença delas. – Mas porquê? gritei. Um murmúrio já distante rompeu a bruma que tudo cobria. – Para que lho possa oferecer novamente. Nostálgicas notas de shamisen fizeram-se ouvir então, ecoando sons de vários tempos num mesmo. Percebi a intrínseca dissonância harmónica daquela música. Osode san ainda não está emoldurada. Não pode haver nada de estranho, nenhuma barreira. Aquela gravura é uma promessa de um eterno retorno. Kyoto 200