h - Suplemento do Hoje Macau #32

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PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2542. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

ARTES, LETRAS E IDEIAS

h Jin Pei Ming

e o erotismo

&

REALEZA SAGRADA

As origens do materialismo

na filosofia chinesa

ZULEIKA GREGANYCK

A SUPERAÇÃO E O MEDO


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O REI SAGRADO E A SUPERAÇÃO DO MEDO

Carlos Morais José The more I study religions the more I am convinced that man never worshiped anything but himself. Richard Francis Burton, Terminal Essay, in Arabian Nights, Vol. XVII PELO ESTUDO das sociedades e culturas, há muito que considero fundamental para o entendimento das relações de poder o advento do devaraja (deus-rei, em sânscrito), ou seja, da realeza sagrada. É nesta instituição, presente em quase todos os continentes, que se esconde o segredo da submissão voluntária e é nessa dramaturgia que as culturas se ancoram para balbuciar o seu registo narcísico. Ao contrário, as sociedades tribais caracterizam-se não só pela ausência de órgãos de poder político diferenciado do tecido social, mas sobretudo pela existência de mecanismos que esconjuram o aparecimento desses aparelhos e da consequente divisão social que ele em si transporta. Nelas predomina uma concepção do mundo que separa simbolicamente o espaço da cultura do espaço da natureza, sendo que os limites do primeiro coincidem com os limites físicos da própria tribo. Isto é, para além da aldeia fica o mundo dos animais e dos deuses, das florestas e dos desertos, que os homens não controlam e temem. Apenas um personagem serve de mediador entre estes dois mundos: o xamane. Entende-se então que o xamane viva nas margens das aldeias e jamais no seu centro. Senhor de um corpo estranho (alterado pela ingestão de alteradores de consciência e a adopção de outros comportamentos marginais), surge como mediador entre a cultura e o sagrado, que se confunde com natureza. É como se estas sociedades compreendessem o perigo real de permitir a existência do divino no espaço da cultura, sobretudo do seu representante ou daquele que manuseia matérias perigosas. Ao proporcionar ao corpo do xamane um destino náufrago, a sociedade retira-lhe a sua parte de intervenção social e política, fixando-o como marginal à própria ordem cultural, ou seja, à parte das linhagens que constituem o núcleo duro da tribo.

Como explicar então que, num determinado momento, uma sociedade instale no seu centro um rei-deus e a partir desse centro passe a regular a sua vida política e simbólica? E como abordar este fenómeno? Antes de mais, urge delimitar e problematizar o nosso objecto. Tal será efectuado em dois vectores de análise que, contudo, se entrelaçam. Eis o primeiro: a) Tratar-se-á a realeza sagrada de um dispositivo eminentemente político, que asseguraria privilégios e direitos a um determinado grupo, através de um discurso mitológico e ritual, uma dramaturgia onde o trágico encobriria a farsa, um desvio ideológico que, em determinadas condições históricas, emergiria como armadilha legitimadora de uma situação efectiva de dominação? Ou, pelo contrário, lidamos com uma instituição que, na sua potência extrema, inibe precisamente a detenção do poder por um grupo específico, ao manter a fragmentação das linhagens e uma fraca diferenciação dos órgãos políticos face ao tecido social (Evans-Pritchard)? Os dados etnográficos demonstram que nenhuma destas hipóteses se revela plenamente satisfatória: se, por um lado, encontramos formações sociais, dotadas de realeza sagrada, onde não se verifica a efectivação de uma detenção de poder por parte de uma linhagem ou clã específicos, onde o rei “reina mas não governa”, surgindo até como um mecanismo de segmentação, na medida em que não se identifica com nenhuma das linhagens em particular; por outro, são também abundantes os exemplos de realezas sagradas que, funcionando como megamáquinas, engendram relações de domínio e exploração, dando ocasião a que, de modo definitivo, ocorra uma divisão irreparável no tecido social. Ora as duas hipóteses, apesar de aparentemente contraditórias, levam-nos a encarar o nosso objecto de forma idêntica: a realeza como divinização de determinadas relações políticas. Assim, a sacralidade do rei deverá ser encarada não como dependente da qualidade do poder temporal daquele que a incarna (ou daqueles que o rodeiam) ou como expressão superestrutural de uma determinada formação social, mas como um

fenómeno que se situa para lá de qualquer situação concreta, inscrevendo-se na ordem das representações simbólicas que cada sociedade tece acerca de si própria e do cosmos englobante. O fenómeno terá, portanto, de ser analisado pelos resultados e pelos efeitos que o dispositivo produz, isto é, interrogar a sua eficácia simbólica como operador excelente, discernir nos seus mecanismos a estratégia que preside à sua formação, o carácter do laço que sociedade e rei sagrado entretecem.

A emergência da realeza sagrada vem operar, definitivamente, a acoplagem do modelo à ordem social, fusão da ordem dos deuses com a ordem dos homens. Ela é um dispositivo totalizante, pelo qual a sociedade se faz possuir, numa espécie de adorcismo. b) Eis, em segundo lugar, a via genealógica: Terá a realeza sagrada uma origem comum ao Estado, forjada na guerra, fundada por uma horda de guerreiros imprevisíveis e cruéis que, ao espalhar o terror, originam um culto, ou seja, um fenómeno exógeno à própria sociedade onde se instala? Ou, pelo contrário, tratar-se-á de um fenómeno interno, de um ritual que se recusa a morrer, que permaneceu e se foi complexificando, como um corpo alienígeno que se separa do resto da sociedade e redefine a cultura? Não existem repostas seguras a estas duas perguntas. No entanto, é possível deixar aqui uma hipótese baseada no

facto de todos os proto-Estados conhecidos assentarem a sua base numa realeza sagrada: A realeza sagrada é anterior ao Estado. Ela é o terreno onde germinará a planta estatal que em breve se tornará numa carnívora insaciável. Sublinhe-se que esta anterioridade é somente real no plano lógico, já que de facto não encontramos nenhuma realeza sagrada que não possua o Estado inscrito em si, ainda que como horizonte. Com a realeza sagrada é o Outro e a Lei, o inominável que entre na esfera do humano. Conservando a sua exterioridade, ela penetra-a e nela se materializa. Isto é, o corte que existia entre homens e deuses é deslocado para o interior da ordem social e cultural, originando dominantes e dominados. Nasce toda uma burocracia, relacionada com a megamáquina, com a função de a manter activa, especializa-se o trabalho. Padres (os grandes inimigos dos xamanes), esposas, cortesãos, protegidos, funcionários, todo um rol de privilegiados que cercam o rei e se apossam do poder. A emergência da realeza sagrada vem operar, definitivamente, a acoplagem do modelo à ordem social, fusão da ordem dos deuses com a ordem dos homens. Ela é um dispositivo totalizante, pelo qual a sociedade se faz possuir, numa espécie de adorcismo celebrado no sacrifício (incluindo o imposto), que garante a essa sociedade o domínio do tempo e da natureza. Tal como o xamane invocava os espíritos para que habitassem o seu próprio corpo, a sociedade faz-se agora possuir por essa divindade. O rei sagrado constitui um corpo estranho, que ocupa o centro físico e simbólico de toda a vida social e cultural dos homens. Estes, na sua presença, não podem deixar de experimentar um temor divino, fazendo neles germinar a excitação nervosa que precede a ideia de sublime. Ora o sublime não persuade, nem agrada: conduz ao êxtase e à admiração. Edmund Burke esclarece, com rigor, a fonte de tal emoção: é quando o espírito se encontra de tal modo obcecado por um objecto, que não pode nem raciocinar sobre ele, nem debruçar-se sobre qual-


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A realeza sagrada é anterior ao Estado. Ela é o terreno onde germinará a planta estatal que em breve se tornará numa carnívora insaciável.

quer outro, que surge o imparável poder do sublime. A paixão que mais radicalmente assim opera é, segundo Burke, o medo. A questão do sublime joga-se na manipulação da distância à morte, na medida em tal jogo nos embriaga de terror, de nós afasta a inércia e o abatimento: “Quando o perigo e a dor são demasiados próximos, não proporcionam qualquer delícia; são, simplesmente, terríveis: mas a certa distância, e com certas modificações, essas afecções podem tornar-se e tornam-se realmente deliciosas”. Tudo se passa como se a exaltação da vida estivesse intimamente relacionada com a presença da morte. E não é precisamente a morte a máscara do rei? A presença do rei povoa o mundo de um terror divino que é, certamente, fonte de sublime. Daí que certos reis sagrados não possam ser confrontados, como relata James Frazer, com outras fontes de sublime, como o mar. A experimentação do sublime, eis uma dádiva do rei aos seus mais renitentes súbditos. Se o medo, como dizia Hegel, remete o sujeito para si próprio e origina a cultura, este temor colectivo reforça a imagem especular que a sociedade tem de si mesma, exponencializando o seu poder, à medida da presença divina no seu seio e não no seu exterior. A realeza sagrada permite e justifica a ideia de império. Sabe-se que esses reis se apresentavam sempre como “Senhores do Mundo”, o que dá sentido a qualquer expansão territorial e mesmo ao domínio do Outro. Ela é o mais absorvente e fascinante dispositivo de poder: um imenso maquinismo cuja estranheza perante a sociedade lhe permitirá a sobrevivência, enquanto forma, na história das formações sociais e na geografia das ideias. As suas metamorfoses, das quais o Estado é talvez a mais grosseira, não ocultam o que entendemos como o mais essencial: o fascínio sempre renovado que os seres humanos experimentam face à exterioridade e cujo controlo, através de uma introjecção sagrada, terá sido uma das suas mais audaciosas aventuras. Superação: eis o horizonte que não abandona a humanidade, quer a consideremos como colectivo ou a sonhemos individualmente.


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FILOSOFIA CHINESA NO SÉCULO XVII

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RETORNO A HAN E MATERIALISMO O mundo consiste nas coisas concretas Wang Fuzi in Chuan-shan i-shu

Carlos Morais José

O imperador Kang Xi relançou os estudos do confucionismo e mandou fazer a maior enciclopédia do mundo

NO PRIMEIRO século da dinastia Qing assistimos a uma nova versão do pensamento filosófico predominante, não somente por acção dos novos detentores do poder, mas sobretudo por esgotamento dos modelos anteriores. O século XVII caracteriza-se por um abandono gradual das Escolas Sung e Ming, que tinham caído (no dizer dos sábios seiscentistas) no aperfeiçoamento estéril de exercícios de retórica a partir dos textos clássicos do confucionismo. A doutrina do regime inspirava-se no pensamento de Zhu Xi e dos letrados confucionistas, dilectos da Escola Sung. O imperador Kangxi patrocinava a Escola do Princípio (li xue), de filiação Sung, dela retirando os princípios básicos da sua ortodoxia: lealdade ao soberano, educação moral e o poder do exemplo. Em Anhui, a Escola Tongcheng desbravava os caminhos sinuosos do pensamento de Zhu Xi, ao mesmo tempo que as suas pesquisas se voltavam para a literatura como espaço de expressão do conceito confuciano de Fé. Estas escolas permaneceram e floresceram com o auxílio do Estado, mas muitos letrados apercebiam-se que o exagero das discussões metafísicas, levara a dinastia Ming à ruína, por falta de pragmatismo e de virtude dos seus intérpretes. Exigiam que o pensamento voltasse a ser predominantemente ético para que as práticas se voltassem a imbuir de virtude. Um empirismo nascia a par com a permanência do idealismo claramente Ming e Sung. Yan Yuan (1635-1704) escreve que os letrados da Escola Sung “representam o culminar dos Budistas e Daoístas Han e Qin” em vez de serem “verdadeiros seguidores de Yao, Shun, do duque de Zhou e de Confúcio”. Ele e seu discípulo Li Kung (1659-1746) reprovam os métodos dos seus antecessores porque : “Diligentemente enfatuaram a ‘pura conversação’, sem realizar que esta ‘pura conversação’ era simplesmente um meio para explicar os ensinamentos dos sábios e merecedores; em si mesma não constituía esses ensinamentos. Esta foi a causa


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do crescimento da superficialidade vazia e o universo assistiu ao virtual desaparecimento dos princípios de Yao e Shun respeitantes aos ‘seis tesouros’ (água, fogo, madeira, metal, terra e grão) e às ‘três tarefas’ (rectificação pelo governante da virtude do povo, a utilização dos recursos em benefício comum e abundante provisão para a sua existência); bem como os ensinamentos do duque de Zhou e de Confúcio respeitantes às ‘seis virtudes’ (prudência, amor, sabedoria, honestidade, lealdade e harmonia), aos ‘seis padrões de conduta’ (piedade filial, devoção aos irmãos, afeição pelos companheiros, constância marital, respeito aos antepassados e compaixão) e às ‘seis artes liberais’ (rituais, música, tiro ao arco, condução de carros, escrita e matemática) — todas elas destinadas a dar verdadeiro suporte ao Céu e à Terra, e verdadeiro alimento a todas as criaturas”. Vemos que Yan Yuan rejeita a retórica pela retórica exigindo uma concretização do saber, a sua aplicação no quotidiano, mostrando-se por uma ética da existência, na linha do mais puro confucionismo, ao invés de uma metafísica explicativa do mundo, ornada de belos conceitos nos quais ele não vislumbra nenhuma aplicação prática e que, portanto, cuidava desprovidos de interesse e de virtude. Sobra o famoso conceito “investigação das coisas (gewu)”, de “O Grande Estudo”, Li Gong escreve que gewu significa a “prática concreta das actividades” e não, como quer Zhu Xi e é reproduzido na generalidade das traduções, a “investigação das coisas”; e Lu Shih-yi (1611-1672) refere que “(No tempo das três Dinastias) no interior das escolas recitava-se o Livro de Odes e o Livro da História, praticavam-se música e rituais, e era tudo. Nunca exercitaram as suas bocas e línguas em controvérsias, simplesmente pelo prazer de verem quem saíria vencedor”. Advogava-se a procura da pureza original dos textos Han, considerava-se que a sua interpretação fora corrompida por influências daoístas e budistas, que estas lhes teria acrescentado um carácter acentuadamente metafísico e transcendental. No delta do Yangzi surgiu a Escola da Investigação Factual (kaozheng xue), que tomaram como divisa “procurar a verdade nos factos” (shishi qiu shi). Viriam a desenvolver uma forte componente filológica, porque se dedicaram à crítica de textos. Os seus fundadores Gu Yanwu (1613-1682) e Yan Ruoju (1636-1704) rejeitam as fontes Sung e Ming preferindo procurar directamente nas fontes Han. Através da reavaliação dos Clássicos, releitura atenta dos originais, a sua abordagem questionou muitas das interpretações consideradas ortodoxas dos clás-

YAN YUAN rejeita a retórica pela retórica exigindo uma concretização do saber, a sua aplicação no quotidiano, mostrando-se por uma ética da existência, na linha do mais puro confucionismo sicos confucianos, sendo por isso rotulados de subversivos. Este regresso ao passado introduziu o interesse pela restituição textual dos livros antigos, sem o crivo dos comentadores, o que levou necessariamente ao desenvolvimento e aperfeiçoamento de novas técnicas de linguística , filologia, análise textual, paleografia, avaliações de autenticidade, enfim toda uma parafernália de novos métodos e conceitos. A sua institucionalização chamou-se Escola do Novo Texto. Esta escola só atingiu um pleno desenvolvimento em finais do século XVIII, sob o imperador Qianlong.

O MATERIALISMO DE WANG FUZI

Não se pode considerar este retorno a Han como um ajustamento ao poder manchu ou uma forma de acompanhar o interesse dos soberanos Qing pelo confucionismo. O primeiro a efectuar uma drástica inversão foi Wang Fuzi (16191692) que, por acaso, era um dos maiores opositores ao domínio manchu, na medida em que, inclusivamente, condenava os letrados que possibilitavam ao imperador estrangeiro os ensinamentos da tradição da Via. Wang era profundamente anti-Qing porque considerava qualquer bár-

A frase de WANG FUZI “o mundo consiste nas coisas concretas” tornou-se numa pedra basilar no materialismo chinês. O conceito “coisas concretas” (qi) é representado por um caracter diferente de “força material”, embora exista uma homofonia. baro incapaz de atingir a essência mais profunda do pensamento chinês e como tal ser-lhes impossível merecer o Mandato Celestial, apesar da sua adopção superficial da cultura confuciana. Kangxi parece ser o destinatário óbvio deste recado. Estas ideias não o impediram de se afastar das Escolas Sung e Ming, inaugurando um caminho novo no pensamento chinês. Wang considerava errada a dicotomia entre princípio (li), universal transcendente e apriorístico, e força material (qi). As sínteses efectuadas a partir das racionalizações do conceito de li, como o Princípio Celeste (tian li), não lhe interessavam porque não acreditava na sua existência separada da força material (qi). A sua frase “o mundo consiste nas coisas concretas” tornou-se numa pedra basilar no materialismo chinês. O conceito “coisas concretas” (qi) é representado por um caracter diferente de “força material”, embora exista uma homofonia. Neste caso refere-se objectos ou sistemas específicos e tangíveis, por oposição ao dao que é espacialmente indefinível. Ora as coisas concretas possuem uma ordem e princípios inerentes a si mesmas, isto é o princípio (li) só existe nas coisas concretas e não lhes é independente. Quando

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muito princípio e força material são dois aspectos da mesma entidade, embora afirme claramente que “o princípio depende da força material”. Wang Fuzi escreveu: “Antes da existência dos carros e dos cavalos não existia a Via do condutor. Antes de se sacrificar gado, vinho, dádivas de jade e seda, antes que os sinos, carrilhões, flautas e cordas existissem não existia a Via das cerimónias e da música. Logo não existe a Via do Pai antes que exista um filho, como não existe a Via do irmão mais velho sem que exista um mais novo (...). Portanto, sem uma coisa concreta não pode haver a sua Via”. Está aqui implícita uma crítica do Daoísmo e do Budismo que, concretamente, explicitará: “Lao Zi era cego perante isto e dizia que a Via existia no Vazio. Mas o Vazio é o Vazio das coisas concretas. O Buda era cego perante isto e dizia que a Via existia no Silêncio. Mas Silêncio é o Silêncio das coisas concretas”.

A EVOLUÇÃO DAS COISAS CONCRETAS E DA HISTÓRIA

Outro aspecto interessante do seu pensamento prende-se com a sua concepção da História. Como negava a existência de um Princípio Celestial não é admitia ser possível a sua utilização como fundamento da governação. Para ele, as coisas concretas estão em permanente mutação, devido à constante fusão e movimento dos elementos yin e yang que constituem a força material, sendo a cada momento diferentes do que eram no passado. Isto também resulta verdadeiro para os regimes: “(...) as antigas instituições foram feitas para governar o mundo antigo não podem, em geral, ser seguidas hoje; o homem superior não baseia nelas a sua actividade e, porque o que hoje é aceitável e pode governar o mundo de hoje não significa que seja aceitável no futuro, o homem superior não legará à posteridade como modelo”. Logo o passado não pode servir de modelo para o presente. Os sistemas, as condições concretas de existência, enquanto coisas concretas, agitadas pela constante mutação yin-yang da sua força material, têm de mudar continuamente para se ajustarem, nomeadamente nos detalhes aos problemas que o presente constantemente levanta. Estes pensamentos, extremamente ousados, conduzem inevitavelmente a uma posição próxima do evolucionismo. Wang Fuzi, inclusivamente, acreditava que as sociedades têm tendência para progressivamente se aperfeiçoarem, aproximando-se de doutrinas que viriam a surgir no Ocidente oitocentista.


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Nanquim A GRANDE PONTE António Graça de Abreu A Grande Ponte de Nanquim é uma das obras emblemáticas concluída durante a chamada Grande Revolução Cultural Proletária, exactamente no ano de 1968. A construção iniciou-se em 1959, com a ajuda, a tecnologia e a supervisão de engenheiros e operários soviéticos. A ponte de Nanquim ia unir não só as margens norte e sul do rio Yangtsé, também os povos da grande União Soviética e da China Popular irmanados pelo comunismo. Mas as desavenças políticas entre os dois países seguidores de Marx depressa descambaram em desentendimentos irreconciliáveis e, logo em 1960, os técnicos soviéticos, às dezenas de milhar, abandonaram a China. Era altura de os chineses, “contando apenas com as próprias forças”, redesenharem o complexo projecto e concluírem a ponte. Tudo foi repensado e refeito, a ritmo lento.

Chegaram a trabalhar na construção cinco mil operários chineses, em simultâneo, mas a verdade é que só em 1968 a ponte estava terminada. Vivia-se o período áureo da linha esquerdista que dois anos antes dera origem à Grande Revolução Cultural Proletária. A inauguração e abertura da Grande Ponte de Nanquim transformou-se então, sobretudo a nível interno, num enorme panegírico às virtudes do Partido Comunista, num hino avassalador sobre as ilimitadas virtualidades do socialismo e do engenho do povo chinês. A ponte, com quase sete quilómetros de extensão, incluindo os acessos, tem dois tabuleiros, um rodoviário e outro ferroviário, tal como a nossa sobre o Tejo, e desempenhou na realidade, durante muitos anos, um papel importantíssimo na união entre o norte e o sul da China. Passou, por exemplo, a ser possível a ligação directa por comboio e automóvel entre Pequim e Xangai. Antes da ponte, era necessário atravessar o Yangtsé em barcaças.

Hoje já existem mais duas pontes sobre o rio em Nanquim, mas são tão recentes que ainda não têm história. A Grande Ponte de Nanquim, de 1968, continua a ser um lugar de visita obrigatória para o turista que jornadeia pela cidade. Além do mais, do alto dos quatro torreões com bandeiras vermelhas a 70 metros de altura, tem-se umas exaltantes vistas sobre o Yangtsé, os barcos no rio e o vasto burgo ribeirinho. Sobe-se de elevador até ao alto e entra-se numa varanda panorâmica, onde até podemos tocar com a mão as enormes estátuas, magnifícos exemplares do realismo socialista, figuras de um operário, um camponês, um soldado, um estudante e um homem de negócios. Dentro do torreão, encontra-se uma pequena livraria, com brochuras turísticas e uns tantos livros que, não sei porquê, não costumam aparecer em outros lugares da China. Ao longo dos anos, nas várias idas ao lugar, tenho sempre comprado aí uma ou outra raridade

bibliográfica. Desta vez, Primavera de 2011, para o meu controlado espanto, vejo no escaparate da pequena livraria, entre outros, um baralho de cartas decorado com imagens alusivas ao famosíssimo romance Jin Ping Mei. Ora os cem capítulos deste romance, atribuído com muitas dúvidas a um tal Wang Shizhen (1526-1590), fazem do livro, na opinião do seu tradutor e um dos actuais maiores sinólogos franceses “un chef-d’oeuvre reconnu comme tel dans toutes les histoires de la littérature chinoise, mais pratiquement inacessible encore aujourd’hui en Republique populaire de Chine.”1 A Jin Ping Mei inacessível, proibida, porquê? Porque a história, nem sempre edificante de Ximen, o personagem principal, da sua amante Jinlian e das quatro concubinas, “reste en effet insurpassé dans sa description des comportements sexuels, ” no dizer do mesmo André Levy. Em 2010, a Companhia


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E O JING PING MEI de Teatro e Dança de Pequim criou, com alguma ousadia, um bailado recreando docemente algumas cenas do romance. Foi estreado em Hong Kong em Janeiro de 2011, mas a sua apresentação foi proibida na China porque estamos diante de uma obra que, nestes últimos quatrocentos anos, os poderes instituídos, não os literatos e os artistas, têm associado á pornografia. Vou dar um exemplo tirado do romance. No capítulo LXXII da Jin Ping Mei aparece este singular texto, exemplo acabado do refinado erotismo, ou talvez pornografia, que enxameia, com elevadíssimo nível artístico, o mais famoso romance de costumes de toda a literatura chinesa. Neste imaginoso excerto, a linguagem é mais do que brejeira, licenciosa e crua. Não resisto no entanto a traduzir, também a partir do francês e ainda da mesma pena de André Lévy, na prestigiada e seriíssima colecção Que Sai-je, igualmente das Presses Universitaires de France:

Desta vez, Primavera de 2011, para o meu controlado espanto, vejo no escaparate da pequena livraria, entre outros, um baralho de cartas decorado com imagens alusivas ao famosíssimo romance Jin Ping Mei.

Ximen sentiu necessidade de sair da cama porque queria urinar. Mas a menina não queria largar a verga que conservava na boca. Ela disse: “Meu querido, mija dentro de mim o que te incomoda. Eu engolirei tudo. Estás no quentinho e evitarás apanhar frio. É melhor assim do que gelares lá fora.” “Minha putinha esperta! Minha querida, ninguém gosta tanto de mim como tu!” exclamou Ximen infinitamente feliz com tanta atenção. Em seguida, começou a urinar na boca da menina. Ela bebeu com prazer, lentamente, um gole atrás do outro, sem deixar cair uma gota. “É bom ?” perguntou Ximen. “Um pouco amargo. Se tiveres por aí chá de jasmim, isso ajudar-me-á a tirar o gosto.” [...] Caros leitores, deixem que vos diga que esta é, em geral, a conduta das concubinas, dispostas a tudo para enfeitiçar os seus homens. Elas não têm vergonha por estas condescendências humilhantes. Jamais uma

esposa legítima, honrando a sua eminente posição, desceria a tais práticas.2 Agora sou eu que me dirijo ao benevolente leitor e peço desculpa por esta menos conforme incursão pela literatura erótica chinesa, mas a culpa é do baralho de cartas à venda na livraria no alto da Grande Ponte de Nanquim. Ou então, como escreveu o grande poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987): Oh! Sejamos pornográficos (docemente pornográficos). Por que seremos mais castos Que o nosso avô português? 1- André Lévy, Dictionnaire de Littérature Chinoise, Paris, PUF, 2000, pag.141. 2- André Lévy, La littérature chinoise ancienne et classique, col. Que Sais-je, Paris, PUF, 1991, pag. 89.


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D E P R O F U N D I S

a revolta do emir

Pedro Lystmann

INTRODUÇÃO Convirá talvez começar por referir o que é que está por trás deste conjunto de textos. Convirá talvez referir que a sua existência tem origem numa dolorosa desilusão, uma desilusão sentida pelos fins de uma tarde tropical, na cidade vibrante e morna de Saigão. Sim, foi em Saigão, bem sentado e bem servido, que percebi que em Macau o gosto presidente não permitira ainda o aparecimento de um bar com o requinte do bar de hotel em que me encontrava. A desilusão reforçou-se ao transitar para o bar do lado, um Martini Bar, ainda dentro do mesmo hotel. Se o primeiro afecta um requinte conservador, o segundo agrada pelo desenho mais arrojado e pela quantidade de martinis à disposição, suficientes nesse fim de tarde, no entanto, para apenas disfarçar a desilusão que se apoderara de mim. O peso do desapontamento levou-me de seguida ao banalíssimo bar do terraço do antigo hotel dos franceses, remodelado para acolher a quantidade em esquecimento surdo da qualidade, o velho Caravelle. Vergado pelo desapontamento sujeitei-me a uma longa noite militante de reflexão e vodkas. Com tantos hotéis novos em Macau onde é que encontro o bom gosto e a qualidade? Os martinis levaram-me a pensar que uma coisa não está sempre associada à outra. Em Macau há bares de hotel com algumas qualidades. Essas qualidades podem ser uma boa lista de bebidas, uma boa iluminação, a vista, a própria clientela ou mesmo o desempenho dos empregados. O bom gosto e o requinte é que terá de ser procurado noutra cidade (ia dizer infelizmente mas prefiro dizer inexplicavelmente). Tome-se esta severidade crítica como uma prova de amor. Também não há em Macau um bar que impressione pela ousadia do desenho. Sem requinte e sem desenho resta beber em homenagem àquele que Caravaggio pintou, sem tirsos mas com a languidez necessária ao usufruto total dos vinhos. Este estado impossível de coisas impede-me de me deslocar a um lugar apenas pelo prazer da sua frequência. Impede-

-me de ler os jornais de um modo urbano. Não é a primeira vez que isso me acontece. É sábado à tarde e não tenho absolutamente nada para fazer para além de me sentar a ler o jornal. Carrego comigo o melhor jornal de fim de semana do mundo (cujo nome não desvendo) e deparo com esta grande dificuldade - a de encontrar um bar que esteja à altura deste supremo luxo, da dissipação do tempo e da consciência, do gosto de me aborrecer e de começar a não perceber, ao terceiro gin, o que me estão a tentar dizer do outro lado do jornal. Impede-me igualmente o prazer de mostrar um bar que a memória não apague rapidamente a quem quer que me visite. Tive de o fazer há pouco tempo e não consegui esconder o meu embaraço. Esta desilusão leva-me a percorrer os bancos, cadeiras e sofás onde nesta cidade de tanto potencial se possa esquecer que no meio de tanto tapete e de tanta presunção não se tenham conseguido reunir as peças que construam um bom bar de hotel. A escassez terá, assim, de funcionar como modo de se saber apreciar o que temos. Este jornal, intento na incansável missão de proporcionar aos seus estimadíssimos leitores e outros habitantes desta leal cidade um acréscimo de bem estar, não se descuida em emprestar um desinteressado concurso para o seu merecido enriquecimento espiritual. É a confiança no reconhecimento que os seus leitores acabarão por estender sobre este alto desígnio que me leva a humildemente percorrer os lugares próprios à extinção da sede e à elevação dos espíritos. Finalmente, consciente de que o serviço público, tratado no território de Macau como um favor e não como um dever, é, fundamentalmente, a razão de existir deste jornal, este não se escusará igualmente a enviar a Hong Kong ou a outros territórios vizinhos um representante que, no espírito da correspondência jornalística, possa manter os seus leitores informados sobre os lugares onde a excelência se substitua à vulgaridade.


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próximo oriente

Hugo Pinto

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A DAMA DE NEGRO “Here she comes, you better watch your step” “Femme Fatale”, Velvet Underground & Nico No último dia 17 de Janeiro passaram dois anos desde que morreu Asakawa Maki. Em 2010, a notícia da morte da cantora japonesa pouco além foi de uma notícia discreta na comunicação social nipónica e também no resto do mundo pouca ou nenhuma comoção houve pelo passamento da mulher de quem se disse ter sido um cruzamento entre Billie Holiday e Nico, a impassível alemã estrela de Andy Warhol e dos Velvet Underground. O silêncio que pesou na hora morte, no entanto, evidencia um profundo contraste com a tinta que correu e os suspiros que se ouviram sobre esta mulher quando começou a carreira, tornando-se, quase de imediato, na coroada “queen of the japanese underground”. Ao jeito das ‘femmes fatales’ da história da cultura popular, no Japão, Asakawa Maki tomou com ímpeto a cena ‘avant garde’ que começava a despontar no final da década de 1960, numa altura em que o país vivia um período de renascimento da indústria musical e as editoras discográficas ocupavam-se, empenhadas, em reproduzir no país o sucesso estrondoso de grupos estrangeiros como os Beach Boys ou The Beatles, fabricando projectos musicais que, esperan-

çosamente, fossem os correspondentes japoneses de norte-americanos e ingleses. A intensiva produção industrial apontada ao centro do mercado de massas abriu espaços nas margens e da necessidade de alternativas surgiu uma nova leva de músicos de cariz experimental e arrojado. No heterogéneo “bando à parte”, sobressaía Asakawa Maki. A estreia, em disco, acontece em 1967, com a edição do ‘single’ “Tokyo Banka/Amen Jiro”. Por esta altura, a “dama de negro” (Asakawa Maki ficaria para sempre conhecida pela invariável indumentária de cor preta e pelos infindáveis cigarros que a envolviam numa nuvem de fumo) atrai a atenção de Shuji Terayama, figura seminal da contra-cultura da época, dramaturgo, poeta, fotógrafo e realizador de cinema. Em 1968, Asakawa Maki começa a aparecer, com destaque, nas produções de teatro experimental da trupe de Terayama e rapidamente é alcandorada a ícone da emergente cultura da “nova esquerda”. Em 1970, é publicado “Asakawa Maki no Sekai”, o primeiro longa-duração de Asakawa Maki. O álbum transpunha para as doze canções o ambiente que se esperava de um clube de jazz ‘noir’ fora de horas. O piano marca o compasso, as escovas arrastam o ritmo e a voz de Asakawa Maki irrompe, penetrante, de veludo, seduzindo com a sua terna

melancolia. Na maneira de cantar percebiam-se mundos e tradições que iam das divas do jazz ao blues, passando pela “chanson”, a que Asakawa Maki presta homenagem no disco de estreia com uma versão de “Tombe La Neige”, de Adamo, cantada em japonês. É também no primeiro disco que, a certa altura, Asakawa Maki canta, em inglês, “sometimes I feel like a motherless child”, os versos iniciais que dão título ao espiritual negro que data do tempo da escravatura nos Estados Unidos, a raiz dos blues e de tudo o mais que veio a seguir. Até meados dos anos 1990, Asakawa Maki continuou a gravar discos e a colaborar com diversas figuras do mundo da música japonesa, entre as quais Ryuichi Sakamoto. Mas aquilo que Asakwa Maki mais gostava de fazer, e que fez até ao último dia, era dar concertos, de preferência em salas acolhedoras e intimistas. Nos últimos anos de vida, foram muitos os espectáculos na sala Pit Inn, em Shinjuku, um dos distritos de Tóquio onde Asakawa Maki tinha as suas raízes e onde viva sozinha. A morte, todavia, encontrou-a, aos 67 anos, num hotel da cidade de Nagoya. Era domingo. Naquela noite, a “dama de negro” iria dar o seu terceiro concerto do fim-de-semana, mas o coração não aguentou mais e calou-se. Para sempre.


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À S U P E R F Í C I E

“Nós estamos num estado comparável apenas à Grécia: a mesma pobreza, a mesma indignidade política, a mesma trapalhada económica, a mesmo baixeza de carácter, a mesma decadência de espírito. Nos livros estrangeiros, nas revistas quando se fala num país caótico e que pela sua decadência progressiva, poderá vir a ser riscado do mapa da Europa, citam-se em paralelo, a Grécia e Portugal” (in As Farpas) 1872

“Que fazer? Que esperar? Portugal tem atravessado crises igualmente más: - mas nelas nunca nos faltaram nem homens de valor e carácter, nem dinheiro ou crédito. Hoje crédito não temos, dinheiro também não - pelo menos o Estado não tem: - e homens não os há, ou os raros que há são postos na sombra pela política. De sorte que esta crise me parece a pior - e sem cura.” In “Correspondência” (1891)

“Diz-se geralmente que, em Portugal, o público tem ideia de que o Governo deve fazer tudo, pensar em tudo, iniciar tudo: tirase daqui a conclusão que somos um povo sem poderes iniciadores, bons para ser tutelados, indignos de uma larga liberdade, e inaptos para a independência. A nossa pobreza relativa é atribuída a este hábito político e social de depender para tudo do Governo, e de volver constantemente as mãos e os olhos para ele como para uma Providência sempre presente.” In “Citações e Pensamentos”

HORA

EÇA

“Os políticos e as fraldas devem ser mudados frequentemente e pela mesma razão” “Este governo não cairá porque não é um edifício. Sairá com benzina porque é uma nódoa” In O Conde de Abranhos

“Em Portugal não há ciência de governar nem há ciência de organizar oposição. Falta igualmente a aptidão, e o engenho, e o bom senso, e a moralidade, nestes dois factos que constituem o movimento político das nações. A ciência de governar é neste país uma habilidade, uma rotina de acaso, diversamente influenciada pela paixão, pela inveja, pela intriga, pela vaidade, pela frivolidade e pelo interesse. A política é uma arma, em todos os pontos revolta pelas vontades contraditórias; ali dominam as más paixões; ali luta-se pela avidez do ganho ou pelo gozo da vaidade; ali há a postergação dos princípios e o desprezo dos sentimentos; ali há a abdicação de tudo o que o homem tem na alma de nobre, de generoso, de grande, de racional e de justo; em volta daquela arena enxameiam os aventureiros inteligentes, os grandes vaidosos, os especuladores ásperos; há a tristeza e a miséria; dentro há a corrupção, o patrono, o privilégio. A refrega é dura; combatese, atraiçoa-se, brada-se, foge-se, destrói-se, corrompe-se. Todos os desperdícios, todas as violências, todas as indignidades se entrechocam ali com dor e com raiva. À escalada sobem todos os homens inteligentes, nervosos, ambiciosos (...) todos querem penetrar na arena, ambiciosos dos espectáculos cortesãos, ávidos de consideração e de dinheiro, insaciáveis dos gozos da vaidade.” In ‘Distrito de Évora” (1867)


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L E T R A S S Í N I C A S

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WEN ZI 文子

A COMPREENSÃO DOS MISTÉRIOS

A etiqueta inibe os sentimentos e trava os desejos.

CAPÍTULO 175 Lao Tzu disse: Aqueles que deliberadamente praticam a etiqueta depuram a natureza humana e apuram os seus sentimentos: podem seus olhos desejar algo, mas o comedimento os restringe; podem seus corações amar algo, mas a etiqueta os regula. O seu comportamento é contido e regulado, humilde e subserviente; não comem da carne gorda, nem bebem do claro vinho. Por fora são de aparência contida e por dentro se preocupam com as suas virtudes – suprimem a harmonia de yin e yang e se preocupam com os seus sentimentos da própria vida. São, portanto, pessoas infelizes durante toda a vida. Porquê? Porque proíbem aquilo que desejam sem irem à raiz da razão de desejarem. Previnem aquilo que apreciam sem

descobrirem porque apreciam. É como acurralar animais selvagens sem fechar o curral; tentar impedi-los de serem ambiciosos é como tentar parar a corrente de um rio com as mãos. É por isso que se diz que quando se abrem os olhos e se gerem os afazeres nunca se está salvo para o resto da vida. A etiqueta inibe os sentimentos e trava os desejos; quando nos protegemos com deveres, ainda que as nossas emoções e coração estejam sufocando e engasgando e os nossos corpos e natureza mortos de fome e sede, mesmo assim nos forçamos com a ideia de necessidade, sendo, por isso, incapazes de viver uma plena vida natural. A etiqueta é incapaz de impedir as pessoas de terem desejos, mas pode reprimi-los; a música é incapaz de impedir as pessoas de se divertirem, mas pode inibi-las. Ainda que consigas tornar toda a gente tão rece-

osa de castigos que ninguém roube, como se pode isso comparar com fazê-las não sentir qualquer desejo de roubar? Por isso sabemos que mesmo os invejosos recusarão aquilo que reconhecem ser inútil e que mesmo os comedidos não saberão recusar aquilo que sabem ser útil. A razão pela qual as pessoas perdem as suas terras, morrem às mãos de outros e se tornam motivo de troça acaba sempre por ser a ganância. Se sabes que um leque no inverno e um casaco de pele no Verão de nada te servem, tudo se tornará em pó e poeira. Se usares água quente para impedir que uma panela ferva, ela só ferverá mais ainda; aqueles que conhecem a raiz do problema limitam-se a remover o fogo. Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho

O texto conhecido por Wen Tzu, ou Wen Zi, tem por subtítulo a expressão “A Compreensão dos Mistérios”. Este subtítulo honorífico teve origem na renascença taoista da Dinastia Tang, embora o texto fosse conhecido e estudado desde pelo menos quatro a três séculos antes da era comum. O Wen Tzu terá sido compilado por um discípulo de Lao Tzu, sendo muito do seu conteúdo atribuído ao próprio Lao Tzu. O historiador Su Ma Qian (145-90 a.C.) dá nota destes factos nos seus “Registos do Grande Historiador” compostos durante a predominantemente confucionista Dinastia Han. A obra parece consistir de um destilar do corpus central da sabedoria Taoista constituído pelo Tao Te Qing, pelo Chuang Tzu e pelo Huainan-zi. Para esta versão portuguesa foi utilizada a primeira e, até à data, única tradução inglesa do texto, da autoria do Professor Thomas Cleary, publicada em Taoist Classics, Volume I, Shambala, Boston 2003. Foi ainda utilizada uma versão do texto chinês editada por Shiung Duen Sheng e publicada online.



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