ARTES, LETRAS E IDEIAS
h CHINA/PORTUGAL
NA ESTESIA DO POEMA PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nツコ 2465. Nテグ PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE
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A POESIA CHINESA CONTEMPORÂNEA E AS RELAÇÕES COM A LITERATURA PORTUGUESA
NA POEIRA DO POEMA DE LI BAI
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Uma trindade pagã: Pessoa, porque universal, Saramago enquanto nóbel, e Eugénio de Andrade, uma identificação espiritual e poética, que a tradução de “Branco no Branco” consagrou entre a comunidade poética chinesa.
Carlos Picassinos
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E que falamos quando escrevemos literatura? E, concretamente, literatura chinesa? E ainda mais micro, poesia chinesa? Que relações mantêm os poetas chineses de agora com os seus congéneres de língua portuguesa? É um universo relativamente obscuro, ainda, o da produção poética chinesa contemporânea. Pela contingência da língua, pelas condições materiais e políticas do contexto chinês, mas também pela especificidade do género. Se no primeiro encontro de poetas chineses e portugueses, em Macau, em 2006, era evidente o efeito de uma certa diáspora poética estabelecida em Nova Iorque, ou em cidades do Canadá, na visibilidade da sua escrita, estes anos passados, os poetas que estiveram esta semana na UMAC celebrando os dez anos da Revista de Poesia Sino-Ocidental parecem ter expresso menos essa ideia de diáspora, ou de refúgio, e mais uma preocupação de estabelecer pontes a partir da pátria-mãe, ou no caso de Taiwan, manter a abertura que sempre caracterizou o mundo editorial formosino. Ainda que, neste caso, essa ligação se tenha materializado mais com o mundo anglo-saxónico ou com literaturas, comercialmente, mais poderosas que a portuguesa. Entre os poetas continentais a palavra em português não é, de todo, desconhecida. Graças aos esforços de publicações, de universidades, ao mérito de encontros e de revistas como a aniversariante, e ao empenho de tradutores como Yao Jingming, a produção literária do português europeu conseguiu seduzir e, mesmo, influenciar alguma escrita e imaginários, em Cantão como em Pequim.
TRINDADE PROFÉTICA
Os embaixadores literários estão bem identificados - escassos, efeitos de marketing cultural, certamente, mas, ao mesmo tempo, construtores da imagem de um Portugal contemporâneo além Camões ou Sá de Miranda, do messianismo profético de António Vieira, ou das variantes simbolistas de Wenceslau e Pessanha. Trata-se de uma trindade pagã: Pessoa, porque universal, Saramago enquanto nobel, e Eugénio de Andrade, uma identificação espiritual e poética, que a tradução de “Branco no Branco” consagrou entre os literati chineses. Huang Lihai, editor da revista “Poesia e Pessoas”, de Cantão, estebelece, desde logo, o cânone português na China. “Existe uma grande influência da poesia portuguesa junto do poetas chineses. Em especial, atrevo-me a dizer, Fernando Pessoa. Mas não só. Para além de Pessoa, claro que Saramago e depois, muito, Eugénio de Andrade. Penso que este três foram os que mais conseguiram sensibilizar o grande público ou ter mais leitores na China”. Primeiro, o último. Eugénio ou, como dizem, Andrade. Aos leitores do poeta de “As Mãos e os Frutos” não é difícil compreender as afinidades que o vinculam ao naturalismo e à inquietação transcendental comum a
vária poesia chinesa contemporânea. Li Bai (701-762) é a referência. Surge explícita no poema “A chuva cai na poeira como no poema de Li Bai” de “Branco no Branco”: A chuva cai na poeira como no poema/ de Li Bai. No sul/ os dias têm olhos grandes/ e redondos;/ no sul o trigo ondula,/ as suas crinas dançam no vento/ são a bandeira/ desfraldada da minha embarcação;/ [...] É esta produção de imagens, “a atenção que dedica à natureza, ao minúsculo, às coisas pequenas que passam despercebidas à generalidade das pessoas, ao que é vulgar e que, aparentemente, não teria dignidade para aparecer num poema’, identifica Huang. “E, no entanto, essa atenção cativou os poetas chineses porque, em substância, existe esse interesse comum pelo pequeno, embora a estrutura da sua escrita seja outra, embora a maneira como escrevemos não seja exactamente a mesma de Eugénio de Andrade”. Daí a prevalência de Pessoa, o ortónimo. Pessoa. Não os heterónimos. Pessoa do desassossego. Bernardo Soares, portanto. “Os poetas do continente preferem mais esse Pessoa da prosa do que o da poesia, isto porque a sua escrita radica numa reflexão muito pertinente sobre a condição humana, sobre as experiências mais singulares das pessoas. Mas também”, acrescenta ainda o poeta e editor de Cantão “pelo efeito de estranhamento que a sua escrita provoca nos leitores, e isso por contaditório que parece é um sentimento que os escritores chineses reconhecem, esse estranhamento”.
TAIWAN, JANGADA DE PEDRA
Oriundo de Pequim, o romancista Qiu Huadong, coleccionador de romances portugueses, e cinéfilo de Manuel de Oliveira, não hesita em falar de Saramago. E do nobel, o que escolhe? O pré-nobel, a metáfora política da “Jangada de Pedra”, a Ibéria flutuante. Qiu leu o livro, “metade em chinês e a outra metade em inglês”. “A imaginação de Saramago é aguda e a metáfora da Jangada de Pedra é, simplesmente, fabulosa.
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“Os poetas do continente preferem mais esse Pessoa da prosa do que o da poesia, isto porque a sua escrita radica numa reflexão muito pertinente sobre a condição humana, sobre as experiências mais singulares das pessoas”, observa Huang Lihai Imagine-se a Austrália rumo ao continente euro-asiático? Ou se fosse Taiwan!”. Não é preciso um grande esforço. Em Taiwan, a realidade antecipou-se à ficção, em pelos menos três décadas. A Formosa é um jangada de pedra vagando nos mares da China sem destino ainda nenhum. Daqui a sua força e o seu privilégio. “Taiwan tem um historial de tradução de cerca de cem anos”, começa por exeplicar Yan Ailin, editora há mais de vinte anos, em Taipé. “Antes de 1949, e da criação da República Popular da China, muitos intelectuais que tinham vivido fora da ilha dedicaram-se à tradução de inúmeros ensaios, romances, livros de poesia estrangeiros. Depois de 1949, a tradução continuou a cargos de intelectuais que ali residiam ou que ali se refugiaram, entre os quais, se destacou Yu Guangzhong, por exemplo, que também ficou conhecido por traduzir as letras das músicas de Bob Dylan”. Essa abertura não passou, evidentemente, pela China continental, a braços com uma destravada Revolução Cultural que comprometeu qualquer abertura ao mundo. Ao contrário, no refúgio nacionalista, por necessidade de sobrevivência política, a estratágia cultural dependia grandemente dos vínculos com o mundo ocidental, e em particular, com os Estados Unidos. “Houve, nesse aspecto, uma imensa abertura”e
permeabilidade, sublinha Yan. “As letras do movimento hippie eram conhecidas de todos graças áqueles intelectuais que, nos anos sessenta, estavam entre os trinta e tal e os cinquenta anos” e que mantinham contactos no exterior, “o que não acontecia no continente, como é sabido, quando a China estava a passar pela Revolução Cultural maoísta e era um país, absolutamente, fechado”.
A PRINCESA E A LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Herdeiro dessa história de sangue e lágrimas, a cultura política no continente ainda não extirpou os fantasmas do autoritarismo e junto da comunidade de poetas, escritores, pedagogos, intelectuais, a questão dos direitos civis e, particularmente, do direito à liberdade de expressão é ainda a ervilha na cama da princesa. O problema “não é tanto falar. Podemos falar à vontade. O problema é quando publicamos aquilo que não deve ser publicado, do ponto de vista do governo”, assinala, de novo, Huang Lihai. “Mas quer dizer, não há propriamente um regime concreto de censura. Só que toda a gente sabe até onde pode ir e o ponto que não pode ultrapassar. As regras são invisíveis mas estão lá e domina mais uma atitude de auto-censura, particularmente em questões políticas, claro, mas também religiosas e culturais porque estas são também políticas”. Daí a relevância destas reuniões, como as que a Revista de Poesia Sino-Ocidental, organizou esta semana, ou como a própria existência de uma publicação charneira desta natureza. Ou, como os encontros de poetas chineses e portugueses, nota, por sua vez, o romancista de Pequim. “Tudo é muito importante porque nos permite trocar conhecimentos e experiências, especialmente, entre os escritores de Taiwan, de Hong Kong, de Macau e do continente. É importante que estas partilhas se façam”. Mas ainda que não haja publicação, existe uma memória futura para quem, nota Huang Lihai, há hoje muita gente a escrever. “Não publicam mas guardam na gaveta à espera dos leitores que vêm”.
Pessoa, Saramago e Eugénio: Um terceto de sucesso na China
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Huang Lihai e Yao Jingming
No sexto dia do sexto mês, no Porto
sobre o rio, onde as nuvens voam o tempo desse dia detém os seus passos o ouvido desse dia inclina-se ao rumor em direcção do paraíso. Nesse dia, você é um homem mais tranquilo.
No sexto dia do sexto mês, no Porto um cavalo guiado pelas palavras ou uma rédea da transparência levou a brisa nocturna e o prado mas arraigou o aroma de milhares de plantas. Nesse dia, com aroma todas as coisas adormecem e nos ramos da eternidade desabrocham os segredos. No sexto dia do sexto mês, no Porto apenas você está acordado, como um velhote a murmurar ao ver que os pinheiros saem pela porta do Verão ou que um esquilo se aproxima gritando Os amantes cantam pisando os raios da lua o que, para si, já é um apelo do silêncio. No sexto dia do sexto mês, no Porto
onde as cartas não chegam, onde não há cinzas apenas a chama, chama a arder apenas a solidão transformada no mar apenas uma memória a ser cristalizada apenas um gesto calado, fixo numa homenagem eterna
No sexto dia do sexto mês, no Porto um jovem chinês está a avistar o paraíso quando a terra recua dos flancos do prado Um cavalo cansado, após ter percorrido a Ásia a África, a América, a Europa e todas as paragens da terra chega finalmente à sua casa própria. Autor: Huang Lihai Tradução: Yao Jingming
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MARIA JOÃO E MÁRIO LAGINHA, NAS VÉSPERAS DO CONCERTO ÚNICO, SEGUNDA-FEIRA, NO AUDITÓRIO DA UMAC
DUAS REPÚBLICAS DE IMPROVISO Carlos Picassinos
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M concerto por duas repúblicas: a chinesa cuja ruptura com o império assinala, este mês, cem anos, e a portuguesa que, na próxima quarta-feira, chega aos 101. Sob o signo destas duas efemérides, e em plenas comemorações da fundação do actual regime chinês, em 1949, na próxima segunda-feira, dois músicos portugueses, Mário Laginha e Maria João regressam a Macau para um concerto único no auditório da Universidade. Ambos são reincidentes, em projectos autónomos, mas desta vez ac-
“O fado tem essa apetência para ser identificado imediatamente com Portugal e, nesse sentido, permitiu que o mercado se abrisse a outras músicas. Mas acho que nós entramos mais pela via das músicas do mundo. Acho que é assim que nos identificam” MÁRIO LAGINHA
tuam juntos, depois do concerto esta noite em Hong Kong, com intepretações do seu trabalho mais recente “Chocolate”. Os dois concederam esta entrevista ao Hoje Macau em que elogiam o papel que o fado desempenhou na abertura, destes mercados longínquos, à música portuguesa mas sublinham que a diversidade cultural de Portugal é agora a que não era no país, culturalmente, deprimido de há quarenta anos. Regressam à China e a Macau, o Mário esteve aqui há pouco tempo, com os “Três Pianos”, a Maria João há mais tempo, em 2004, mas esta vossa presença, mais ou menos regular, acham que tem que ver com uma certa abertura dos públicos asiáticos a uma sonoridade portuguesa, mais jazzística, em detrimento do eterno fado? Mário Laginha (ML) – Eu acho que o público na Ásia conhece alguma música portuguesa, mais do que nos conhece a nós, mas eu não gosto muito de fazer comparações com esses grupos de música mais popular que aí vão e em que é mais fácil deixar um público mais alargado. O fado, claro, tem essa apetência para ser identificado imediatamente com Portugal e, nesse sentido, permitiu que o mercado se abrisse a outras músicas. Mas acho que nós entramos mais pela via das músicas do mundo. Acho que é assim que nos identificam, a partir desta ideia, e depois então tentam perceber de que de país é que nós vimos. Isso tem, pelo menos, o mérito de mostrar que em Portugal há outras músicas que não apenas o fado o que é bom. Há quarenta anos, no fim da ditadura éramos um país, culturalmenre, muito pobre em que o que se conhecia em termos musicais era o fado e o folclore. Acho que, nesse aspecto, tudo mudou. Somos diferentes, há músicas em todas as áreas, há muita coisa a acontecer e vale sempre a pena ouvir. Que expectativas é que têm? Maria João (MJ) – Espero que vá haver
alguma afluência aos nossos concertos. Acho que nos consideram umas avas raras, qualquer coisa esquisita e eu, ainda por cima, uso a voz de uma forma a que as pessoas aqui não estão muito habituadas. Mas, na Ásia, nunca tive um público hostil. Todos são muito generosos durante os espectáculos. Que repertório vão apresentar aqui em Macau? ML - Vamos apresentar músicas entre o “Chocolate” e alguma coisa de lá mais para trás do “Chorinho Feliz”. Também alguma coisa de “Coral” que tem alguns temas mais ligados ao Oriente, embora mais à Índia
incrível e de uma grande categoria. Mas, afinal, correu muito bem. Claro que toquei umas coisas com ritmo e isso ajuda sempre. Agora com a Maria João, primeiro em Hong Kong e depois em Macau, acho que vão gostar. A nossa música é muito telúrica e isso mexe com a pele de cada um. Estou com muita esperanças no concerto. Acumula vários projectos, colaborações, participações. Como é se adapta? Que músico é o Mário Laginha em cada um dos projectos? ML - Eu adapto-me bem. Quando estou nos vários projectos, dedico-me completamente, entrego-me por inteiro.
“Há lugares com os quais já temos familiaridade. Com o Brasil, por exemplo, mas a cultura asiática ainda é qualquer coisa de muito distante para nós. É muito complicado, a linguagem, o facto de não irmos tantas vezes quanto gostaríamos...” MARIA JOÃO e não tanto essa parte da Ásia, e depois vamos interpretar outros temas de “Tralha”. Já esteve em Macau e, na China, já tocou? ML - Já fui à China, mas em Hong Kong só fui ainda com o [Pedro] Burmester. Na China, foi maravilhoso. Não quero estar a armar mas acho que nos correu muito bem. Fui há 15 anos a Pequim. Fomos ver uns miúdos que estavam a aprender piano e o nível era impressionante. Mas reparamos que tocavam todos muito igual. Lembrome de ter ficado em pânico quando reparei que um miúdo de doze anos que tocava deslumbrantemente foi recebido com muito poucas palmas. Pensei cá para mim: amanhã vamos ser apupados. Eu, pelo menos, que o Pedro é um profissional
Sinto-me completamente integrado. Sinto que aquilo é uma das muitas minhas peles. Se achasse que não tinha nada a ver nunca teria entrado. Tenho é que sentir que aquilo é uma pele para mim. Se tem várias peles, como diz, a improvisação funciona, também neste projecto, como o corpo. É-vos estrutural, a interpretação, aos dois? ML - Sim, a improvisação é o pilar do meu trabalho. Nos “Três Pianos” há algumas coisas que não têm improvisção mas, em regra, improvisar é o meu maior fascínio. Eu tenho sempre de experimentar. Quem nunca fez nada de errado foi porque nunca experimentou nada, mas para isso era preferível ser
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teólogo que foi o que, em certa altura da minha vida pensei ser. Mas esta procura é fascinante. MJ - Eu acho que a improvisação é uma necessidade. Já participei em projectos em que não podia participar. Às tantas, tornava-se um sofrimento. Só que, por outro lado, também era um bom exercício para mim, mas sofria. A minha fascinação é essa, poder mudar as coisas... Implica riscos. ML - Implica, é verdade, mas eu prefiro correr esses riscos do que ficar numa zona de conforto.
Mas isso não terá também a ver com uma certa atitude de indisciplina? MJ - Claro que sim [risos] como também na vida. Mas, sim, é verdade que no processo de aprendizagem se tem que ter uma grande disciplina... Consegue aproveitar alguma coisa em termos de sonoridades locais quando está assim em tournée? MJ - Isso não é financeiramente possível. Não é viável uma coisa assim. Adoraria mas na música há a arte e o negócio, se quisermos viver. As pessoas nunca pensam nisto. Pensam sempre que a arte é uma
coisa sonhadora, magnífica, ousada, o que é, mas é também o que paga a escola dos filhos.... É impossível ir para um sítio e ficar lá uma semana. Seria um luxo! Mas, enfim, há lugares com os quais já temos familiaridade. Com o Brasil, por exemplo, mas a cultura asiática ainda é qualquer coisa de muito distante para nós. É muito complicado, a linguagem, o facto de não irmos tantas vezes quanto gostaríamos... Falou do Brasil que, na sua obra, tem uma maior proximidade, de África com a qual tem uma relação mais vital. E a Ásia é-lhe, afectivamente, mais indiferente?
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MJ - Afectivamente mais indiferente, não acho. Só porque é mais distante e menos conhecida, mas tenho feito uma aproximação ao Japão por via do aikido que pratico há quase trinta anos, e também através da Aki Takase, uma pianista japonesa que me trouxe alguma coisa desse mundo. Levou tempo para nos habituarmos uma à outra. E até foi complicado, a princípio. Teve a ver com o facto de não dizermos as coisas uma à outra. Tivemos vários problemas. Até houve uma vez que, na Polónia, ia havendo tareia! Eu achava que ela não dizia as coisas na cara, falava nas costas e que isso não era nada por uma questão de delicadeza como me diziam que era... Mas, enfim, superamos esses problemas e hoje somos as maiores amigas. Arranjámos ali um meio termo. E de Macau, o que reteve? MJ - Já fui a Macau há tanto tempo. Em 2004, acho... A primeira recordação é a da delicadeza das pessoas. Depois, a humidade que eu ficava com um volume no cabelo que nem faz ideia, como em África, e ainda a viagem. As horas infindáveis para aí chegar. Eu fico sempre muito enjoada, demoro a recuperar mas gosto muito do que intuo ser essa cultura. Leram o livro recente de António Pinho Vargas ,“Música e Poder”, em que o compositor fala da ausência permanente da música portuguesa do cânone europeu? ML - Ainda não li mas sei que faz considerações pertinentes e certeiras. Li uma entrevista do António Pinho Vargas e subscrevo o que ele ali diz. Sou seu amigo, admirador, só discordo é duma coisa: eu acho graça à ideia de misturar os mundos e ele prefere não misturar. É mais disciplinário... Quando é jazz é jazz, e eu não sou assim. Eu acho que é sempre perfeitamente possível misturar. Agora no resto, o que ele diz é um bocado verdade. Ele fala ali de muitos temas, não é! Eu acho que se criaram muitos mitos que não se apoiam na arte que está a acontecer dandose relevo a coisas menores que nem por isso são melhores e que estão no cânone. Outra ideia engraçada: ele diz que o livro seria incómodo mas não vai sê-lo porque as pessoas não se vão dar ao trabalho de discuti-lo, vão remeter o livro para um limbo. MJ - Eu não li mas discordo [dessa ideia]. Acho que a música portuguesa sempre existiu. Assumiu várias formas mas sempre existiu. Claro que a televisão, a internet, a rádio tem um poder que a todos influência e que influência também o que nós ouvimos o que torna mais difícil isolarmo-nos do que quer que seja. A música que ouvimos de não sei onde, às vezes, é difícil não a reproduzirmos, não a misturar também na nossa salada. E o que é que se vai fazer? Matar as influências para nos mantermos intactos?! Já pensou no fado? O fado é o que se exporta, sempre foi o que se exportou. Mas as músicas em Portugal são sempre mais mestiças, o pop/rock, o jazz... O jazz então é completamente mestiço, é essa a sua glória.
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SERÁ QUE UM NEUTRINO VELO
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OZ PODE DESMENTIR EINSTEIN? No decorrer das décadas, houve inúmeros desafios à teoria da relatividade, e demonstrou-se que estavam todos errados. Michio Kaku*
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INSTEIN ERRADO? IMPOSSÍVEL! ESSA FOI A REACÇÃO DE FÍSICOS EM TODO O MUNDO NA SEMANA PASSADA QUANDO OUVIRAM QUE AS EXPERIÊNCIAS NA SUÍÇA INDICAM QUE A TEORIA DA RELATIVIDADE DE EINSTEIN PODE ESTAR ERRADA. DESDE 1905, QUANDO EINSTEIN DECLAROU QUE NADA NO UNIVERSO PODE SE MOVER MAIS RÁPIDO QUE A LUZ, A TEORIA TEM SIDO O PILAR DA FÍSICA MODERNA. ALIÁS, A MAIORIA DOS NOSSOS APARELHOS ELECTRÓNICOS DE ALTA TECNOLOGIA DEPENDEM DELA. Excêntricos há anos denunciam a teoria da relatividade de Einstein, é claro. Como muitos físicos, tenho caixas cheias de monografias amadoras que me foram enviadas por pessoas alegando que Einstein estava errado. Nos anos 30, o Partido Nazista criticou a teoria de Einstein, publicando um livro chamado “Cem Autoridades Denunciam a Relatividade”. Einstein brincaria mais tarde que não é necessário ter cem intelectuais famosos para destruir sua teoria. Tudo o que é preciso é um simples facto. Bom, esse simples facto pode estar na forma das experiências mais recentes dos maiores aceleradores de partículas do mundo, que ficam no CERN, nos arredores de Genebra. Os físicos dispararam um feixe de neutrinos (partículas exóticas, parecidas com fantasmas, que conseguem penetrar até mesmo no mais denso dos materiais) da Suíça até a Itália, numa distância de 730 quilómetros. Para seu grande espanto, depois de analisar 15.000 neutrinos, descobriram que viajaram mais rápido que a velocidade da luz — 60 bilionésimos de segundo mais veloz, para ser preciso. Em 1 bilionésimo de segundo, um feixe de luz viaja cerca de 30 centímetros. Assim, uma diferença de 18 metros foi bem surpreendente.
Romper a barreira da luz viola o núcleo da teoria de Einstein. De acordo com a relatividade, à medida que nos aproximamos da velocidade da luz, o tempo desacelera, e tornamo-nos mais pesados e ficamos mais planos (tudo isso já foi medido em laboratório). Mas se viajarmos mais rápido que a luz, o impossível acontece. O tempo anda para trás. Ficamos mais leves do que nada, e ficamos com espessura negativa. Como isso é ridículo, não dá para viajar mais rápido que a luz, disse Einstein. A revelação do CERN foi electrizante. Alguns físicos ficaram radiantes de alegria, porque isso significa que a porta está aberta para uma nova física. Teorias novas e ousadas precisam ser propostas para explicar o resultado. Outros começaram a suar frio, ao dar-se conta de que todo o fundamento da física moderna talvez precise ser revisto. Todos os livros escolares precisam ser reescritos, todos as experiências recalibradas. A cosmologia, ou a própria maneira como pensamos o espaço, seria alterada para sempre. A distância até os astros e galáxias e a idade do universo (13,7 mil milhões de anos) seriam colocadas em dúvida. Até mesmo a teoria da expansão do universo, a teoria do big-bang e os buracos negros teriam que ser reexaminados. Além do mais, tudo o que pensamos que entendemos sobre física nuclear precisaria ser reexaminado. Toda criança em idade escolar conhece a famosa equação de Einstein, E=MC2, em que uma pequena quantidade de massa M consegue criar uma vasta quantidade de energia E, porque a velocidade da luz C ao quadrado é um número tão enorme. Mas se C é retirada, isso significa que toda a física nuclear precisa ser recalibrada. Armas nucleares, medicina nuclear, datação radioactiva, todas seriam afectadas porque todas as reacções nucleares são baseadas na relação de Einstein entre matéria e energia. Se tudo isso já não fosse o bastante, a mudança significaria que os princípios fundamentais da física estão incorrectos. A física moderna é baseada em duas teorias,
a da relatividade e a teoria quântica, logo a metade da física moderna teria que ser substituída por uma nova teoria. O meu próprio campo, a teoria das cordas, não é uma excepção. Pessoalmente, eu teria que rever todas as minhas teorias porque a relatividade está embutida na teoria das cordas desde o princípio. Como será que essa descoberta fascinante se vai desenrolar? Como disse um dia Carl Sagan, afirmações notáveis exigem provas notáveis. Laboratórios em todo o mundo, como o Fermilab nos arredores de Chicago, refazerão as experiências do CERN e tentar provar ou negar os seus resultados. A minha reacção instintiva, entretanto, é que esse é um falso alarme. No decorrer das décadas, houve inúmeros desafios à teoria da relatividade, e demonstrou-se que estavam todos errados. Nos anos 60, por exemplo, os físicos estavam a medir os minúsculos efeitos da gravidade sobre um feixe de luz. Num estudo, os físicos descobriram que a velocidade da luz parecia oscilar junto com a hora do dia. Surpreendentemente, a velocidade da luz subia durante o dia, e caía à noite. Depois, descobriu-se que, como o aparato era usado ao ar livre, os sensores eram afectados pela temperatura da luz do dia. Reputações podem crescer ou diminuir. Mas, no final, esta é uma vitória para a ciência. Nenhuma teoria é talhada em pedra. A ciência é implacável quando se trata de testar todas as teorias repetidas vezes, a qualquer tempo, em qualquer lugar. Diferentemente da religião e da política, a ciência é decidida no final pelos experimentos, feitos repetidas vezes e de várias maneiras. Não há vacas sagradas. Na ciência, cem autoridades não valem nada. A experiência vale tudo.
*Professor de física teórica na faculdade City College de Nova York, é o autor de “Física do Futuro: como a ciência vai moldar o destino do homem e nossa vidas diária até o ano 2100”
O QUE É UM NEUTRINO? Partícula elementar da matéria, fantasma ou camaleão, o neutrino é incrivelmente difícil de detectar, por mais que sua presença seja muito maior no universo do que quaisquer dos constituintes do átomo. Esta partícula subatómica, que intriga os físicos desde os anos 1960, é de fato desprovida de carga eléctrica, o que lhe permite atravessar paredes. A cada segundo, 66 bilhões destas partículas fantasmas atravessam o equivalente a uma unha humana. Libertados pelas estrelas e a atmosfera,
os neutrinos podem, assim, ser gerados pela radioactividade chamada beta, como a das centrais nucleares. Quando um protão se transforma em neutrão (electricamente neutro) ou um neutrão em protão, esta mutação é acompanhada da emissão de um electrão negativo ou positivo ou de um neutrino (ou de um “antineutrino”). O comportamento destas partículas imperceptíveis interessa muito aos cientistas porque permitiria particularmente explicar porque o
mundo é maioritariamente constituído de matéria e não de antimatéria, enquanto que os dois deveriam estar presentes em quantidades equivalentes depois do Big Bang. A observação das “oscilações” dos neutrinos, que às vezes se transformam e dão origem a outras formas, também é relevante para a Física, pois para oscilar, estas partículas deveriam ter uma massa, ou o “modelo padrão” utilizado para explicar o comportamento das partículas
fundamentais implica que elas seriam desprovidas de massa. No entanto, a existência de sua massa, certamente ínfima, foi estabelecida com certeza em 1998, após trinta anos de pesquisas. “A existência de um modelo que pudesse explicar porque o neutrino é tão pequeno, sem se dissipar, teria profundas implicações na compreensão do nosso universo: como ele era, como evoluiu, e como eventualmente, morrerá”, explicou Antonio Ereditato, físico do Instituto Macional de Física Nuclear da Itália.
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luz de inverno
Boi Luxo
OTOSHIANA (PITFALL), 1962
O que causa especial inspiração na carreira de Teshigahara é este ter sido um autor que sempre esteve um pouco para lá do cinema, um autor que dedicou parte significativa do seu esforço artístico e admirativo ao ikebana, à escultura e à pintura, à arquitectura, à exibição desportiva ou a formas de cinema fora da ficção, além da encenação de peças de teatro e ópera. A algums destas actividades dedicou alguns conhecidos (se bem que de interesse cinematográfico relativo) documentários. Há nele, mesmo nesta primeira fase da sua história como cineasta, uma atitude forasteira, uma atitude que vai continuar de um modo quase encantadoramente diletante até ao fim da sua carreira. De Teshigahara já aqui se falou, a propósito de Basara, a Princesa Goh, de 1992, seu último filme, e de outros dois filmes que com este convivem no tempo, ambos dos anos 60, Suna no Onna (Woman in the Dunes, 1964) e Tanin no Kao (The Face of Another, 1966), os dois muito mais conhecidos do que este Otoshiana que, no entanto, introduz material que naqueles Teshigahara desenvolveria. Se Suna no Onna foi o filme que lançou este realizador internacionalmente, permanecendo ainda hoje como um dos grandes filmes da história do cinema japonês e mundial, Tanin no Kao foi recebido com uma frieza talvez injusta (“como uma mulher que se admira mas não se deseja”, alguém observou com propriedade). Otoshiana é o começo de tudo isto e é um objecto já maduro mas ao mesmo tempo delicadamente imberbe. Belo como os outros dois, um pouco rude mas admirável na mistura que faz de uma história policial com uma história de fantasmas e uma propensão realista social.
TESHIGAHARA HIROSHI
Também já aqui se falara, pelo que me não estendo por esse caminho labiríntico e pleno de surpresas, da frutosa colaboração que o realizador manteve com o escritor Kobo Abe. Em todos estes três filmes Teshigahara e Kobo Abe obrigam-nos a dirigir-nos a um local de onde a fuga é difícil, impossível ou, no fim, indesejável. A estes dois nomes juntou-se uma outra figura que acompanha de muito perto todo aquele cinema japonês que, desde o início dos anos 60, se exibira e propusera como novo e ousado de uma maneira que não se repetiu nunca mais – o compositor Toru Takemitsu. Seria difícil falar de Toru Takemitsu, que colaborou em cerca de 100 filmes de alguns dos realizadores japoneses mais importantes, sem cair num excesso que não traísse, ainda assim, uma enorme falha. Chegue lembrar que é da sua responsabilidade parte do aspecto moderno que o cinema japonês mostra ao longo da sua história desde os anos 50 até aos anos 90. Moderno é também este filme de Teshigahara, o seu primeiro filme de longa metragem. Nele, o realizador mistura uma trama que se mostra casa vez mais policial à medida que o filme avança, com uma presença natural do mundo dos mortos que naquela se encaixa na perfeição. A uma conspiração para assassinar um dirigente sindical junta-se a reacção dos mortos errados que não entendem o seu lugar dentro de toda esta rede para que se viram arrastados. Essa incompreensão percorre o filme de um modo kafkiano e irresolúvel e é a sua marca mais pessoal. Este é o filme ideal para quem acordar na disposição de ver um pobre rapazinho perdido em uns campos de minas, abandonado e ignorado por todos, o pai morto duas vezes e
os bolsos cheios de rebuçados roubados numa cidade fantasma. A tudo isto vem igualmente juntar-se um filme onde apercebemos uma preocupação social e documental muito típica do cinema japonês dos anos 60 e que ilustra vários filmes que já aqui foram alvo de atenção; uma paisagem árida que se verá em parte repetida na paisagem (parecidíssima) de Suna no Onna e mesmo na aridez urbana de Tanin no Kao - uma mulher demasiadamente sensual e transpirada (que só pode ser uma obsessão se nos lembrarmos de Suna no Onna) e um assassino vestido de branco cujo desígnio, cumprido até à perfeição, não divulgo. Aos poucos somos levados para a viagem descendente a que estes filmes nos obrigam - em Tanin no Kao a uma viagem à perda da identidade no cenário alucinante da cidade, em Suna no Onna a um buraco numa paisagem de areia de que o protagonista, de início, não se consegue libertar e por que, mais tarde, indolentemente se deixa encantar, e aqui, em Otoshiana, na metáfora perfeita da descida e da perda de contacto com a realidade, a paisagem da exploração mineira presente e passada. Duas paisagens, para ser mais preciso. A da mina em actividade, futurista no ruído do entrecruzar das linhas da maquinaria que assegura a extracção, e a da mina em desuso, onde se dão os assassínios, eficientes e belos, por um homem enigmático vestido de branco, eficaz e preciso, observado pela mulher desnecessariamente sensual e transpirada. A beleza da ganga mineira. Quem nunca brincou junto de uma mina abandonada abandone também imediatamente estas linhas que lhes dedico. *1 Como acontece em várias passagens da
obra de Kobo Abe, há também neste filme uma tentação de enobrecer o poder do olhar distante. O olhar insistente e omnipresente do pequeno miúdo, filho do mineiro, é usado de um modo que não esconde a obsessão com a estranheza de ver de fora, a estranheza de ver do lado da inocência. Mas também o olhar da mulher que contempla o assassinato, longínquo mas nítido, e o olhar interrogativo dos mortos, muito mais longínquo mas também perfeitamente nítido. Assim, esta mulher, que é a testemunha do crime, pode ser, se assim nos aprouver, a peça central do filme. Que venha a ser a possuidora de dois tipos de olhar distante (de uma outra margem, como referira a propósito de Tanin no Kao, filme que também tem um “aspecto” policial e um “aspecto” de terror, para além de um que o identifica com o filme de ficção científica) só vem reforçar uma deliciosa tentação. Uma deliciosa tentação que provém também da distância a que o filme se mantém. Isso poderá ser dito de outros filmes de Teshigahara, lembrar a presença de uma atracção que se não desenvolve, no entanto, em uma grande paixão. Algo nos mantém sempre renitentes a uma entrega total e neste filme essa reticência é quase obrigatória e semelhante à paisagem da mina abandonada. É a partir dessa distância que se define uma finura especial que nos faz sentir, de modo quase epidérmico mas nunca violento, a textura do absurdo da obra de Kobo Abe e Teshigahara. *1 - ver com urgência as fotografias de Edward Burtynsky sobre este assunto e/ou o documentário “Manufactured Landscapes”, de Jennifer Baichwal.
30 9 2011
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T E R C E I R O O U V I D O
próximo oriente
Hugo Pinto
NUM MUNDO SEMPRE NOVO: “COSMIC SOUNDS MADE IN INDONESIA” (II) Jacarta, Setembro de 2006. Provavelmente no limite do tédio, fartos das noites sempre iguais nas discotecas da capital indonésia, repletas de foliões de fim de semana a abanarem-se ao som dos últimos sucessos saídos directamente de linhas de montagem industriais, três amigos fundam a editora Space Records. Com o objectivo de criar uma plataforma de distribuição da música que eles próprios e outros nas suas órbitas faziam, em breve, a casa com nome espacial tornar-se-ia no centro de gravidade das forças independentes e alternativas do campo da música electrónica de dança e quejandos, funcionando como ponto de equilíbrio da energia criativa que ia ganhando forma em Jacarta. Magnanimamente aglutinadora, a Space Records fez da interacção de ideias e culturas uma máxima e, hoje, é um repositório fiel ao espírito que brotou da “balearic beat” de Ibiza. Até agora, são 14 os títulos com selo “Space Rec”. Apesar de um ou outro nome repetido, no catálogo da editora não há espaço para repisar ideias. Diferentes sonoridades, modernas e tradicionais, são cruzadas com recurso a linguagens electrónicas e acústicas. “Dub”, “house”, “disco”, “dream-pop” e música folclore indonésia servem a inspiração. A atenção internacional não tardou. Em 2008, Pattraditya, Jonathan Kusuma e Aryo Adhianto (os três fundadores) foram contactados pela italiana Pizzico Records, interessada em editar material do duo Space System (Jonathan Kusuma e Aryo Adhianto). O EP
“Master of the Sky” saiu em Maio de 2010: quatro versões para o mesmo tema, “Master of the Sky”, com tratamentos que vão desde o psicadelismo relaxado ao “Hi-NRG”, passando pelo “disco” cósmico e espacial. Para este ano, aguarda-se o resultado da colaboração entre os Space System e a lendária dupla de DJ e produtores de Glasgow, Optimo, que, através da sua Optimo Music, lançaram já, em 2010, “Sorrow Show EP”, do duo indonésio. A história dos Space System com os escoceses JD Twitch e JG Wilkes começou em 2009, depois de Kusuma e Adhianto terem respondido ao convite que está na página electrónica da Optimo Music, sugerindo a músicos e produtores o envio de material. Da Indonésia seguiu para a caixa de correio da editora escocesa o primeiro disco com chancela Space Records, a compilação “Mysteries”. Uma boa parte dos nomes fortes da editora estavam lá: Voyagers of Icarie, Curah Melodia Mandiri ou Svarghi. Contudo, rezam as crónicas, JD Twitch ficou particularmente rendido à originalidade do som dos Space System. De “Mysteries” foi escolhido o tema “Sorrow Show”; do primeiro longa duração dos Space System, “Nature”, também editado pela Space Records, os escoceses escolheram “Nocturnal” e “Petik” para fazer parte de “Sorrow Show EP”. Na promoção do disco, a Optimo Music fala no que Carl Craig teria feito se fosse natural de Jacarta – “Fourth World Disco”, sintetizava a editora, para descrever temas como
“Petik”, um exercício de desconstrução “house” com recurso a “gamelan”, um conjunto de instrumentos típico de Bali e Java. Além dos elogios, curiosidade e apetite despertados fora de portas, as experiências em torno do exotismo alterado a que o colectivo Space Records se dedica são caucionadas também entre a própria comunidade de músicos tradicionais indonésios. Um dos mais recentes lançamentos da editora é “Music Composition by I Wayan Sadra: Beringin Kurung”. I Wayan Sadra é um dos compositores influentes do país muçulmano mais populoso do Mundo, com currículo vasto nas experiências com a tradição, abrindo artes populares e tradicionais a estéticas ocidentais, construindo organismos simultaneamente modernos e de raízes profundas, locais e universais. Para Pattraditya, Jonathan Kusuma e Aryo Adhianto, I Wayan Sadra é, sobretudo, um “professor” e os três, mais a restante família Space Records, têm mostrado que, na verdade, pouco respeito existe por um mestre quando se fica seu aluno para sempre, ao procurarem, constantemente, ultrapassar os limites e alargar os horizontes que herdaram. A lição é, pois, conhecer bem a terra que se pisa para depois abraçar o Mundo. Como dizia Sun Ra: “Love and life interested me so that I dared to knock at the door of the cosmos.”
(Continua)
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L E T R A S S Í N I C A S
WEN ZI 文子
A COMPREENSÃO DOS MISTÉRIOS
Nem uma pérola como a brilhante lua pode ser perfeitamente clara.
CAPÍTULO 165 Lao Tzu disse: Nunca na história houve alguém capaz de tornar sua conduta perfeita. Assim, os homens superiores não buscam completude num só indivíduo. São probos sem causarem divisão; honestos sem serem mordazes; directos sem serem extremos; a sua mestria não implica crítica. Em questões da Via e da virtude, os sábios reis de outrora não exigiam tudo de todos. Cultivavam-se por meio da Via e não pressionavam os outros. Como tal, eram facilmente apreciados. Se te cultivares por meio da Via, então não terás problemas. Mesmo as jóias da coroa da dinastia Xia não eram perfeitamente impecáveis e nem uma pérola como a brilhante lua pode ser perfeitamente clara. Todavia, toda a gente as estima, pois não deixam que um pequeno defeito obstrua a grande beleza. Agora, se te concentrares nos defeitos das pessoas e te esqueceres das suas virtudes, será difícil de tal modo encontrar gente boa no mundo. Quando as pessoas comuns vêem alguém cuja posição e estatuo social são baixos e cujo trabalho é ignominioso, são incapazes de destrinçar se a sua estratégia é boa. Assim, o modo de avaliar as pessoas é o seguinte: se forem de elevado estatuto, observa aquilo que promovem; se forem ricas, observa aquilo que dão; se forem empobrecidos, observa aquilo que aceitam; se forem de baixo estatuto, observa aquilo que fazem. Observa quais as dificuldades que consideram mais problemáticas de modo a saber quão corajosos são. Comove-os com alegria e felicidade de modo a observar a sua disciplina. Confia-lhes dinheiro e bens de modo a observar quão benevolentes são. Agita-os com medo de modo a observar o seu controlo. Deste modo, descobrirás a real condição das pessoas. Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho
O texto conhecido por Wen Tzu, ou Wen Zi, tem por subtítulo a expressão “A Compreensão dos Mistérios”. Este subtítulo honorífico teve origem na renascença taoista da Dinastia Tang, embora o texto fosse conhecido e estudado desde pelo menos quatro a três séculos antes da era comum. O Wen Tzu terá sido compilado por um discípulo de Lao Tzu, sendo muito do seu conteúdo atribuído ao próprio Lao Tzu. O historiador Su Ma Qian (145-90 a.C.) dá nota destes factos nos seus “Registos do Grande Historiador” compostos durante a predominantemente confucionista Dinastia Han. A obra parece consistir de um destilar do corpus central da sabedoria Taoista constituído pelo Tao Te Qing, pelo Chuang Tzu e pelo Huainan-zi. Para esta versão portuguesa foi utilizada a primeira e, até à data, única tradução inglesa do texto, da autoria do Professor Thomas Cleary, publicada em Taoist Classics, Volume I, Shambala, Boston 2003. Foi ainda utilizada uma versão do texto chinês editada por Shiung Duen Sheng e publicada online.
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À S U P E R F Í C I E
A China contra a própria história Isabel Hilton
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HISTÓRIA SEMPRE FOI IMPORTANTE PARA A CHINA, PAÍS CUJOS GOVERNANTES LUTARAM PARA UNIR OS MUITOS GRUPOS ÉTNICOS DIFERENTES, MAS CUJAS FRONTEIRAS MODERNAS DATAM DE APENAS ALGUMAS CENTENAS DE ANOS. Desde 1949, o Partido Comunista tem-se valido da sua visão da história para excluir a democracia e consolidar sua construção de um país moderno. Em 1989, depois da sangrenta repressão às manifestações pela democracia na Praça Tiananmen, estrategas do partido declararam que a história era uma questão de segurança nacional. Mas talvez o mais notável seja que este ano, que marca o centenário do fim de mais de dois mil anos de sistema imperial na China, ocorrido em 1911, tenha passado sem nenhuma comemoração mais expressiva. O partido preferiu celebrar seu próprio 90.º aniversário em Julho, talvez por não querer lembrar aos chineses que a causa defendida pelos revolucionários de 1911 não era inspirada pelas ideias de Karl Marx, mas a democracia. Aqueles que defendem os mesmos valores enfrentaram dificuldades este ano, sejam eles artistas como Ai Weiwei, detido em Abril e mantido sob custódia por 81 dias enquanto era alvo de uma investigação das Finanças, ou apenas amigos e parentes do vencedor do Nobel da Paz, Liu Xiaobo, um prisioneiro político. Nos altos escalões, ninguém parece interessado em lembrar a população dos ferozes debates políticos de cem anos atrás. O resultado é um país ostensivamente moderno no qual um quinto da humanidade deve fingir que acredita numa história nacional inventada para manter perpetuamente o Partido Comunista no controlo. Para um partido que não pratica mais o socialismo, o problema é definir como esta história nacional deveria ser, e como, numa era de comunicação em massa, o partido poderá defender sua versão como a única verdade. As coisas costumavam ser mais simples. Quando o país era comandado pela ideologia, a história oficial da China consistia numa longa noite de escuridão feudal e semi-feudal que chegou ao fim em 1949 quando o partido liderou os trabalhadores, camponeses e soldados e os conduziu à libertação. Depois disso, de acordo com a lenda, a situação melhorou continuamente, excepção feita ao período da Revolução Cultural. Na China de hoje, poucos discordam do facto de que a Revolução Cultural iniciada por Mao Zedong em 1966 foi, nas palavras da avaliação oficial, uma desastrosa década de caos. O tratamento oficial de inconveniências narrativas como esta tem sido o de ignorá-las ou redefini-las. A fome que se seguiu ao Grande Salto para Frente, em 1958, tornou-se o período chamado de três anos de desastres
naturais. As dificuldades narrativas só começaram de facto após a morte de Mao, em 1976, quando Deng Xiaoping começou a abandonar a ideologia, que tinha praticamente quebrado o país, e a avançar discretamente rumo a algo mais parecido com o capitalismo. As exigências populares pela democracia aumentaram constantemente. Quando o movimento da Praça Tiananmen foi esmagado em 1989, o partido decidiu que o seu direito de governar nunca mais deveria ser questionado daquela maneira. A missão da história pública passou a ser a de demonstrar que os estrangeiros tinham sido os responsáveis pelos principais fracassos do país desde o início do século XIX. Nesta narrativa de excepções, a China escapa da ameaça da democracia por causa da longevidade de sua história contínua, da superioridade geral e da força da sua cultura. Mas há vários problemas nesta história. Para começar, há cinco mil anos a China não existia sob nenhuma forma que reconheceríamos hoje. O verdadeiro pai político do Estado chinês é Qin Shihuangdi, primeiro imperador da dinastia Qin, que conquistou Estados vizinhos há dois mil anos atrás e fundou uma dinastia que deveria durar 10 mil anos. Esta ruiu poucos anos depois da morte desse imperador, mas um dos seus feitos, a imposição de uma única forma de escrita a todo seu diversificado reino, foi um elemento-chave para a construção de uma identidade central entre povos que falavam idiomas diferentes. Mas o território governado pelos Qin ainda era apenas uma fracção do tamanho da República Popular de hoje. As fronteiras actuais da China existem desde o século XVII, quando os manchus invadiram e conquistaram a China em 1644. Eles fundaram a dinastia Qing, a última e também a maior das casas imperiais, e governaram até 1911. Quando a dinastia ruiu, a China tinha dobrado de tamanho e reivindicava domínio sobre uma série de povos que tinham habitado a periferia extrema da China da dinastia Ming, como os tibetanos e mongóis. Não surpreende que o partido tenha se recusado a celebrar o centenário deste ano: o motivo não foi apenas a luta pela democracia, mas também a fragmentação do império que se seguiu. Assim que a notícia da queda da dinastia Qing chegou ao Tibete e à Mongólia, estes países declararam independência. Esta história é apresentada de forma nebulosa às novas gerações. Em 1974, os crimes de guerra cometidos pelos japoneses que invadiram a Manchúria em 1931, e depois a China em 1937, estavam tão esquecidos que quando uma delegação japonesa visitou a Universidade Fudan em Xangai, onde eu estudava na época, o campus foi enfeitado com bandeiras que proclamavam amizade entre os povos japonês e chinês, de geração em geração. Parecia que a ocupação japonesa da China (19371945) nunca ocorrera. Nem a Guerra do Ópio com a Grã-Bretanha tinha grande importância na memória colectiva. Mas, depois de 1989, tanto a invasão japo-
nesa quanto a Guerra do Ópio foram elevadas ao status de desastre nacional, servindo à nova narrativa patriótica. Ainda assim, a história continua a ser um problema para o Partido Comunista na transição para o capitalismo. O Museu Nacional da China, em Pequim, passou quase tanto tempo fechado quanto aberto desde a sua inauguração, em 1959. Recentemente, foi fechado para reforma, mas as obras foram paralisadas por causa dos violentos debates a respeito do que deveria ou não ser exposto, e o museu não pôde ser inaugurado a tempo das Olimpíadas de 2008. Quando finalmente reabriu, nem a Revolução Cultural nem o Grande Salto para Frente mereceram menção. A China ainda está a construir a sua identidade moderna. Muitos cidadãos ainda nutrem a esperança de uma sociedade na qual a liberdade de expressão e o direito de participar da vida política serão finalmente alcançados. Para eles a questão não é se a reforma ocorrerá, mas quando. Para o partido, entretanto, a resposta é nunca. Convencer o povo chinês que a história do país é o que a partido lhe oferece, levando inexoravelmente à perpetuação dos comunistas no poder, é fundamental para sua estratégia. Na China de hoje, a história continua a ser uma questão de segurança não para a nação, mas para o próprio Partido Comunista.
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