h - Suplemento do Hoje Macau #20

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h ARTES, LETRAS E IDEIAS

PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2467. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

ANTÓNIO JÚLIO DUARTE WHITE NOISE

CASINO, HIPNOSE E EXTINÇÃO


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h NOCTURNO, INERTE, HIPNÓTICO 2

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WHITE NOISE LIVRO DE FOTOGRAFIAS DE ANTÓNIO JÚLIO DUARTE NOS CASINOS DE MACAU

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no enésimo regresso a Macau, António Júlio Duarte publica “White Noise”, livro de 36 fotografias a cor, em redor dos casinos, da atmosfera insone dos lobbies, dos objectos e da ausência que percorre a geografia do jogo local. Editado pela Pierre von Kleist Editions, o livro deverá estar disponível ao público no próximo mês de Dezembro. António Júlio Duarte regista o insólito dos casinos com a distância familiar própria de um antropólogo romântico em busca dos mais eloquentes vestígios de uma civilização em perda, no caso, em busca de despojos da humanidade anulada pelo fulgor das luzes, dos materiais e das arquitecturas. Trata-se de uma humanidade ausente, de corpos inertes feridos pela disciplina do espaço e daí o sentimento onírico ou labiríntico a que a promoção do livro se refere. “Durante os últimos dez anos, António Júlio Duarte tem fotografado os lobbies dos casinos de Macau. Em jet lag, à noite, com um flash e uma câmara de médio formato, Duarte fez dos lobbies o seu território pessoal. A lúxuria destes locais, a estranheza dos seus objectos e a ausência humana criam um forte sentimento onírico. Como que flutuando somos guiados por um labirinto. O trabalho é, ao mesmo tempo, um importante documento sobre a pouco vista realidade dos casinos de Macau nos nossos dias e uma reflexão muito pessoal sobre o Ocidente e o Oriente, sobre como nos relacionamos com o mundo através da fotografia”. O título do livro “White Noise”, como afirma na entrevista que aqui publicamos, remete para esse barulho nocturno e indistinto que o fotógrafo identifica com a insónia, um estado prolongado de (in) consciência materializado no universo do casino. Mais do que espaço de insónia será, antes de tudo, um espaço de desolação, e mais ainda, de desconsolo pessoal. Este parece ser, aliás, a fundação do edíficio que constitui todo o livro porque é a partir dessa angústia, ou da depressão, ou da tristeza, ou do ódio, em todo o caso, a partir de um sentimento de disconformidade face a este objecto, afectivamente, violento que o fótografo constrói o seu discurso. Não é, por isso, de surpreender a sua afinidade com os trabalhos do japonês Daido Moriyama que, embora monocromáticos, percorrem também os lados mais obscuros, intrigantes, invisíveis ou marginais de Tóquio.

ESTADOS GERAIS

A presença de António Júlio Duarte em Macau tem sido recorrente e o seu trabalho na RAEM não é estranho. Uma

IMAGEM DE LOBBY DE CASINO PUBLICADA EM “WHITE NOISE”

das mais recentes estadias do fotógrafo ocorreu em Julho de 2009 quando, no âmbito do projecto mundial “Estados Gerais” do colectivo “Kamera Photo” a que pertence, António Júlio permaneceu uma semana na redacção do Hoje Macau acompanhando os jornalistas nos seus trabalhos diários. Foi, exactamente, a semana da eleição do actual Chefe do Executivo, Fernando Chui Sai On, fotografo por António Júlio cujos trabalhos

É a partir da angústia, ou da depressão, ou da tristeza, ou do ódio, em todo o caso, a partir de um sentimento de disconformidade face a este objecto, afectivamente, violento dos casinos que o fótografo constrói o seu discurso


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se reuniram, depois, aos dos outros fotógrafos do “Kamera Photo” que durante os mesmos sete dias de Julho estiveram espalhados em redacções de jornais em vários países do mundo. O resultado pretendia registar essa semana do Verão de 2009 no mundo e ser, depois, apresentado no Festival Internacional de Fotojornalismo “Visa pour le image”, em Perpignam, sul de França. “Todos os integrantes no projecto escolheram jornais que se preocupam com as notícias do sítio onde estão inseridos, numa abordagem local. Um pouco para comparar com o que difundido pelas grandes agências. E também para analisar como vimos a notícia e como o jornal em que estamos inseridos a viu”, afirmava, então, António Júlio na entrevista que concedeu a este jornal no final do projecto. Em 2008, a passagem do fotógrafo por Macau haveria ainda de produzir um trabalho sobre um dos mais insólitos aspectos da cidade, patente em Espanha, em Fevereiro do ano passado, numa mostra colectiva intitulada “Montaña”, comissariada pelo espanhol Horácio Fernandez, na Galeria de Arte “Sonado” de Segóvia. Tratava-se da imagem do vulcão do parque temático da Doca dos Pescadores intitulada “Vulcania. The highest man-made volcano in Southeast Asia”.

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ANTÓNIO JÚLIO DUARTE DIZ QUE O REAL É FANTASMAGÓRICO

“PARA ATINGIR O PHOTO MODE PRECISO DE ESTAR DEPRIMIDO” Os lobbies dos casinos como teu território pessoal, diz o texto de promoção de “White Noise”. Parece que há um sentido de fantasmagoria nessas fotos, uma encenação do desconsolo desumano, mas o que o leva a esses espaços, a fotografar (ou documentar?) esses espaços? A fotografia é na sua essência fantasmagórica, registo do que já não é. Uma ruptura no fluir do espaço-tempo. Mas o que é realmente fantasmagórico é o real. Não há encenação, é mais uma projecção do meu desconsolo, antes um desconsolo humano. Sinto muitas vezes que estou a assistir aos últimos dias de uma espécie em extinção. Sou atraído para espaços ou situações que reflectem esse meu mal-estar. Os casinos, com toda a sua estratégia de anulação temporal, tornaram-se o arquétipo de tudo isso.

Michel Foucault falava de heterotopias, espaços que acumulam outros espaços, outros tempos, condições desviantes. Podemos falar desta ideia neste seu trabalhos? Pode-se falar efectivamente da ideia de heterotopia, na condição de que se compreenda que ela está presente só a um nível superficial, e que aquilo que está nos meus trabalhos é antes o meu espaço, o meu tempo, e as condições predominantes. A norma é em si desviante. É uma heterotopia que paira sobre a hegemonia. Em que medida entende a fotografia como dispositivo de mediação/ representação do mundo? Ou, serão antes as fotos dispositivos de inscrição no mundo contrariando a ideia da fotografia documental, a foto como revelação de algo que está ali mas não se vê, que é preciso revelar? São sempre dispositivos de representação do mundo e sempre dispositivos de inscrição no mundo. Por que tenho que escolher? Não gosto de pensar nas imagens fotográficas como reveladoras, mas como algo que se vê e faz ver. O texto também afirma que fotografa em jet lag, à noite. Procura também, de algum modo, fazer fotografia em estados de consciência alterada? Para atingir o estado a que Daido Moriyama chama photo mode, preciso de estar relativamente deprimido. Outras emoções, como a tristeza ou o ódio, quando

“Não há encenação, é mais uma projecção do meu desconsolo, antes um desconsolo humano. Sinto muitas vezes que estou a assistir aos últimos dias de uma espécie em extinção” atingem um certo ponto, podem induzir este estado. Todos temos os nossos métodos, não digo para criar, mas para fazer. É também uma reflexão pessoal sobre ocidente e oriente, e em que medida? Só na medida em que os próprios termos ocidente e oriente já são clichés. Por fim, White Noise, porquê este titulo para o livro? É um título aberto, até porque não remete para a imagem. Uma amiga minha, quando viu a maquete do livro, achou que white noise se referia ao ruído das slot machines. Para mim, é o som da insónia.

UM VIDRO RACHADO DE UMA MONTRA DA RUA DE SÃO BENTO. LISBOA. 27/01/2010.


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A IMAGINAÇÃO DA ÁGUA

Carlos Morais José Escrever sobre a água é um convite à reflexão sobre um dos símbolos mais arcaicos da nossa imaginação e pensamento. Através da água, como elemento primordial, exprimiu Heráclito a unidade do mundo, uma unidade movente que sem cessar se transforma e nos transforma, que nos aflige com a imagem da morte pela dissolução do mundo. Escrever sobre a água é empreender uma viagem, imaginária como a do rei Artur moribundo que tenha até talvez atravessado um oceano e fundado uma utopia. O tema afigura-se-nos depois tão vasto, tão essencial, que desde já afastamos qualquer propósito racional ou objectivo. A água é para mergulhar, para sentir no seu seio um outro peso, para permitir à imaginação essa viagem para lá do rio Letes. A água separa e a água une, contém em si o odor da vida e a paz da morte calma.

É pela água, pelos seus segredos monstruosos ou afáveis, que realizaremos a última viagem. Longe de pretender ser exaustivo ou criar teorias, simplesmente deixarei correr a escrita, à laia das ribeiras selvagens da minha terra, por entre a sensibilidade da memória, da poesia e das lendas. A água primordial é o mar. Dele veio a vida e a ele retornará, como nas lendas da cavalaria. Espaço de medos, de imensas massas negras na escuridão das noites atlânticas, local habitado por monstros inconcebíveis, certamente produtos de um deus enraivecido pela ousadia dos humanos, o mar estende-se aos pés dos homens nas praias e nas falésias como um limite insuperável, infinito, sem fim visível e real. A doçura da morte no mar é comparável ao carinho protector da mãe que acolhe ao seu regaço e nos pousa a mão fresca na fronte para recolher a paz um último suspiro, numa paz inexcedí-

vel. Os olhos muito abertos perante o mar, como perante a morte, porque ele é também um dos últimos segredos a demandar e encontrar. Uma noite muito escura, no estreito de Batangas nas Filipinas, senti muito perto o fim. Navegava num pequeno barco em alto mar quando subitamente a noite caíu e nos deparámos rodeados de ondas enormes e negras. O mar transformou-se então num enorme abismo, numa garganta horrenda e sem fim, prestes a devorar a pequena embarcação. Esta, espancada pelas ondas, gemia e saltava, timidamente conduzida por um pescador de mão experiente mas cujas preces eu entendia como um murmúrio de mau agouro. O barquito subia de lado numa vaga maior e eu via lá embaixo um rumor de espuma branca que se destacava na massa negra das águas. Aprendi então que o medo tem um limite a partir do qual fazemos sentido e descobrimos que

a nossa humanidade, essa capacidade de espanto e indiferença perante a morte, é capaz de uma curiosidade mórbida, de uma vontade de saber que afoga o próprio medo e o instinto de sobrevivência. O mar é uma lição e um limite. Perante a sua majestade perdem sentido os nossos valores, os nossos ódios, as paixões mais arrebatadas. Face à sua grandeza irracional, esvaem-se ambições terrenas, erigimo-nos então noutro qualquer ser que desconhecíamos, que talvez temessemos encontrar em nós próprios e que surge gigante como um arrebatamento de uma consciência apenas pressentida mas agora poderosa, indiferente e magnífica. * Homme libre, toujours tu chériras la mer! La mer est ton mirroir; tu contemples ton âme Baudelaire


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Sim, porque o mar é, sobretudo, uma lição de liberdade. Perante a visão do seu horizonte, o homem descobre em si mesmo o infinito e aprende a coragem de se crer indivíduo, não somente pela constatação da dor mas pela contemplação e sentimento do sublime. Face à sua diversidade, à sua riqueza, ao seu poder absoluto, compreendemos como participamos da sua natureza, dos seus mistérios, como eles nos assombram as noites de paixão lúcida, repletas de monstros e sereias. O mar é a metáfora suprema de uma certa desordem, lugar por excelência da dissolução da matéria na matéria. O mar não é somente um líquido amniótico, mas um espaço de assombrações. Por mar se chega às ilhas dos mortos. Só estes estão condenados a navegar eternamente, sem nunca poderem atracar a nenhum porto, sem praia que os acolha e agasalhe, sem nenhum conforto tépido de carícias, sem o crepitar das lareiras, no meio da família ou, simplesmente, um riso fraterno e são numa taverna obscura de um porto pouco frequentado. Este mar será então o palco das nossas emoções solitárias, do confronto que os homens pressentem com a imortalidade dentro de si mesmos. Quem domina o mar, domina o mundo, eis a antiga crença do mare nostrum, o mar dos impérios. Mas no mar predomina a liberdade dos grandes espaços, o mar ensina o infinito que mais não é que a descoberta dessa mesma liberdade. O mar é repositório de vida e espaço de morte. O mar é tudo e os seus movimentos, calmos ou tempestuosos, são metáfora do nosso espírito, das nossas vontades e desatinos. Quem domina o espírito, domina-se a si próprio e essa é a mais estóica e distante das virtudes. * Mas porque a água é o mais plástico dos elementos na nossa imaginação, não nos podemos cingir a estas concepções. No seu eterno ciclo de evaporação, chuvas e fertilização, a água passa por diversos estados, ganha aos olhos do nosso espírito tipos diversos de características. Se ao mar são essencialmente atribuídas características de um ser feminino, já as águas da chuva, as águas que caem dos céus, assumem um simbolismo masculino praticamente universal. Água masculina, esperma que fertiliza a terra imóvel e receptiva, as chuvas desempenham no imaginário dos homens um papel cuja operacionalidade é sinónimo de sobrevivência. Sem chuva, a vegetação desvanece-se, os homens e os animais confundem-se com a terra e regressam ao pó. São incontáveis os rituais que, em todo o mundo, os mais diversos povos praticam para exercer controlo sobre essa água que fertiliza o campos e garante a vida. Entre os sumérios a mesma palavra designava água, esperma, concepção e geração. Certas tribos melanésias acreditam que uma jovem pode perder a virgindade se tiver contacto com a chuva. Na Europa exis-

tem também crenças segundo as quais uma mulher estéril pode tornar-se fértil se beber de uma determinada fonte sagrada. Trata-se neste exemplo europeu de água considerada como lugar da vida e mesmo como ser vivo. Nas mitologias clássicas, cada rio e ribeira eram considerados vivos e dominado por um deus que habitava nos mais profundos leitos desse mesmo rio. Essa água que canta, que salta sobre as pedras e se despenha em pequenas cascatas, era adorada e nem séculos de repressão cristã conseguiu anular a profunda impressão que os cursos de água provocam na imaginação dos homens.

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O sábio é um pescador que esgota o seu tempo na contemplação das águas, numa quietude impassível aos movimentos do mundo. A imagem do pescador percorre a poesia chinesa exprimindo exactamente este simbolismo.

* O mundo odeia o que é claro e puro, O homem sábio oculta o seu fulgor Na margem do rio, um velho pescador. Eu e ele regressaremos juntos Li Bai Já na China encontramos concepções radicalmente diferentes porque elaboradas num grau diverso e com objectivos não mágicos mas como degraus de uma sabedoria. Para os tauístas, a água é um símbolo fundamental pois a sua natureza adaptativa serve às mil maravilhas como metáfora do sábio e do pensamento. Em primeiro lugar, as águas paradas. Nelas se reflecte o mundo, tal como este se deve reflectir no pensamento do sábio. A sua claridade é uma metáfora da luminosidade do pensamento. Na água o mundo surge perfeitamente reflectido e assim pretende o sábio que em si se passe. Parado junto ao lago, absorve as qualidades da água, medita no seu valor e no mundo. O sábio é um pescador que esgota o seu tempo na contemplação das águas, numa quietude impassível aos movimentos do mundo. A imagem do pescador percorre a poesia chinesa exprimindo exactamente este simbolismo. A água pode depois fluir como o pensamento e este deve ser embalado pelo seu ritmo, possuir as suas características. Nomeadamente, a sua capacidade de mudar de forma consoante o recipiente em que se encontra, numa metáfora da alma huma que transita de corpo para corpo. O pensamento não pretende, deste modo, um percurso dialético e evolutivo, mas um ajustamento à Natureza da qual ele também faz parte. O pensamento pretende as qualidades do elemento que é considerado primordial, efectuando um retorno às origens, à laia de peregrinação às fontes, sem o contacto enganador do mundo. Como certos gregos acreditavam que o mundo consistia na degradação infinita de uma unidade original, os sábios tauístas preconizam a aproximação ao primordial. A água é também espaço de metamorfoses. Quem atravessa um mar ou determinados rios não será nunca mais o mesmo. É o caso do rio Letes que separa os vivos dos mortos. As almas atravessam para o Inferno na barca de Caronte, de óbulo na mão para pagar ao terrível barqueiro.

Essa água que canta, que salta sobre as pedras e se despenha em pequenas cascatas, era adorada e nem séculos de repressão cristã conseguiu anular a profunda impressão que os cursos de água provocam na imaginação dos homens. Não há retorno desta viagem, salvo rara excepção. As águas são um limite que ultrapassado exigem a metamorfose, a emergência de novas qualidades no viajante. Reflectir neste simbolismo empresta uma outra dimensão à aventurta das descobertas portuguesas. Muito ficará aqui por dizer. Nomeadamente sobre a simbologia de fontes como a do Nilau, que nos remete para reflexões sobre a memória e a saudade. Mas águas são, também neste sentido, símbolo de separação e esquecimento. A presença

das águas numa imaginação conturbada prenuncia o desejo de suicídio, de desaparecimento através da dissolução na primordialidade. Não resisto assim terminar sem invocar a surpresa que a memória de um período final de um conto, que escrevi há algum tempo, de repente me provocou: Deve-se acreditar nos estrangeiros, pensei na noite seguinte, enquanto me dirigia ao rio para mergulhar suavemente nas águas negras, sulfurosas, pela última vez, à procura das pérolas.


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C H I N A C

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Magia nas dunas e g

De súbito, em pleno deserto, anichado entre enormes aparece um lago em forma de lua, um pomar de ANTÓNIO GRAÇA DE ABREU

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ÃO ME POSSO QUEIXAR DE, AO LONGO DOS ANOS, NÃO TER SIDO BAFEJADO PELOS DEUSES COM MIL AVENTURAS E DESVENTURAS SÍNICAS. Em termos de país -- para além de incontáveis tropeções, de dez mil desentendimentos e ignorâncias naturais num obtuso cidadão da pátria lusitana que há mais de trinta anos caminha, meio à deriva, pelo Império do Meio --, a verdade é que, de quando em quando mergulho feliz, em pleno, no húmus fértil da terra chinesa. No Verão de 2004, outra vez no Verão de 2010 eis-me em 敦煌 Dunhuang, o mítico entreposto na Rota da Seda, na província de Gansu. Desta última vez, chego às três horas da manhã a Liuyuan, a estação de caminhos de ferro mais próxima,

perdida no deserto de Gobi, a cento e vinte quilómetros do burgo. Na escuridão da noite, mal dormido, mal instalado no autocarro que me leva à cidade e chia por tudo quanto é junta e molas -- gasto pelos anos e pelas péssimas estradas --, saltito no banco com o subir e o descer das lombas e a queda nos buracos do deprimente e escalavrado asfalto. São duas horas e meia de viagem para esquecer. Mas em redor, com o lusco-fusco do amanhecer, começa a entrever-se o deserto de areia e pedra solta, a magnífica solidão, a lonjura de tudo. Depois surgem, delapidados pelos séculos, restos da Grande Muralha aqui construída na dinastia Han (206 a.C.-220). Chego a Dunghuang com a luz do novo dia. A cidade situa-se num bonito oásis, no extremo oeste do deserto de Gobi, paredes meias com outro vasto deserto, o

Taklamakan. Aqui há água, o solo do oásis é generoso, dá quase tudo o que se lança à terra e os campos verdes estendem-se por quilómetros e quilómetros. Lugar de passagem e descanso das longas caravanas que percorriam a antiga Rota da Seda, o ponto alto de qualquer visita à região são as grutas de Mogao, Património Cultural da Humanidade pela Unesco e as altíssimas dunas de areia de Mingshashan, cujo nome significa exactamente “monte das areias que cantam.” Nestas dunas, faz parte da original visita um passeio de cerca de três quilómetros, montando cada pessoa o seu próprio camelo encavalitada entre as duas bossas dos simpatiquíssimos animais. Em fila, numa extensa caravana, o turista oscila, sobe, desce pelo areal imenso, extasiado diante da magia das dunas. Sente-se no século XIII, a viajar pela Rota da Seda. Mas de súbito, em pleno deserto, anichado

entre enormes montes de areia com mais de 200 metros de altura, aparece um lago em forma de lua, um pomar de laranjeiras, um pagode, corredores e pavilhões chineses. Muitos dos poetas da velha China tinham o bom hábito de escrever um poema sempre que, em viagem, chegavam a um qualquer lugar esplendoroso do império. Imitando-os, consciente das limitações da minha própria língua, tão diferente da chinesa, e do meu não muito engenho poético, escrevi nas dunas de Mingshashan: Mais de cem léguas de viagem [pelo deserto de Gobi, areia, montes de pedra, [os espaços luminosos do vazio. De súbito, um pedaço de lua caído [do céu, um lago verde onde o sol brilha [como uma bola de fogo


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grutas de Dunhuang

montes de areia com mais de 200 metros de altura, laranjeiras, um pagode, corredores e pavilhões chineses. entre areais e o nada. A harmonia dos espaços, pavilhões, [pagodes, um pomar de brincar rodeando [o crescente da lua. Ao fundo, as dunas sobem ao encontro [do cetim azul, mudam de cor nos tons quentes [do cair da tarde, descem para os homens, cantam [como pássaros. Depois, à noite, as areias, suaves como seda, recolhem-se para descansar e, antes de adormecer, ciciam segredos às águas do lago e ao luar. Situadas a trinta quilómetros de Dunhuang, sempre na aridez do deserto, as grutas de Mogao começaram a ser esca-

vadas na dinastia Wei do Norte, no século V, no rebordo da falésia de um extenso monte de pedra calcárea. São quase quinhentas extraordinárias caves construídas e decoradas em honra das divindades budistas, e os trabalhos só pararam na dinastia Yuan, já no século XIV. Há grutas para todos os gostos, a nº. 465 foi dedicada aos prazeres de uma opulenta vida sexual, com desenhos bem explícitos e, por decoro, não é visitável. Mas são os motivos budistas que enchem as grutas de cor e de todos os fascínios. Escrevi também um poema sobre as fantásticas grutas de Mogao. Assim: Balaustradas, escadarias, mil pavilhões, andares, caves sobrepostas embutidas [na falésia, alpendres, murais mágicos, estátuas, [altares,

florões da vida, discípulos de Buda, [bailarinas, música de cítaras, timbales, sinos [e tambores, acrobatas, dragões alados, macacos, tigres de fogo, elefantes flutuando [em nuvens.

demónios zangados, caprichosos palácios [de fadas da paz, budas de duas cabeças, evanescentes príncipes [do luar, até uma gruta escondida, de olhos semi-cerrados, foi dedicada ao amor, aos prazeres do jogo das nuvens e da chuva.

As grutas adormecem no silêncio [da pedra dos séculos, dez mil budas respiram a serena poeira do tempo, cem mil figuras esvoaçam na penumbra [das paredes de jade, iluminados e deuses passeiam nos jardins [do paraíso budista, apsaras, ninfas da benevolência, abrem os braços [para a brisa. Os murais falam, contam histórias de medos, [sortilégios, alegrias: quinhentos bandidos por honra transformados [em monges,

Cores cálidas de tectos e paredes, amarelos de ouro, verdes de musgo velho, vermelhos secos e carregados, azuis diluídos na névoa e na magia, castanhos de terra e mel, ocres temperados nas areias quentes do deserto. Em Mogao, Dunhuang, há quinze séculos, a luz de Buda, o génio dos deuses, o traço sublime da passagem dos homens. 8 de Junho de 2011


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P R I M E I R O B A L C Ã O

luz de inverno

Boi Luxo

O ENIGMA DE KASPAR HAUSER, 1974

Este é outro daqueles filmes de Herzog que se centra obsessivamente no retrato de uma figura masculina. Assim é na maioria dos seus filmes mais conhecidos, os filmes que fez até Cobra Verde, carregando muitas vezes os seus títulos esta mesma intenção : Aguirre, der Zorn Gottes, Stroszek, Nosferatu, Fitzcarraldo ou Woyzeck. É costume lembrarmos Werner Herzog como retratista de homens excessivos e enlouquecidos porque Nosferatu, Aguirre, der Zorn Gottes, Fitzcarraldo e Cobra Verde (todos com Klaus Kinski) são os seus filmes mais conhecidos, assim como é costume atribuir-se a Herzog algumas das qualidades egocêntricas e malévolas que se desprendem destes homens. Mas nem sempre assim se passa e poucas vezes isso acontece nos seus muitos documentários. Esta figura, Kaspar Hauser, é uma das figuras de homem bom (interpretadas por Bruno S.), por oposição às figuras que projectam em seu redor (geralmente as que são interpretadas por Klaus Kinski) um individualismo maléfico com origem na cobiça, na soberba ou dem um mal inevitável (solitário) como é o mal de Nosferatu. Impossível não lembrar, a propósito da história de Kaspar Hauser, L’Enfant Sauvage, de Truffaut, estreado 4 anos antes. Tal como no filme francês, aqui se trata da tentativa de integrar socialmente uma figura que vivera durante vários anos num estado bestial. No caso do filme de Tru-

ffaut, um rapazinho encontrado num bosque. No caso do de Herzog, Kaspar Hauser, um jovem encerrado numa cela desde a nascença até ao início da idade adulta e encontrado na rua, em 1828, sem que se saiba até hoje quem o encarcerou ou o libertou. Depois de um período de desconfiança por parte das autoridades, um homem bom da terra toma conta dele e, sob o seu tecto e o seu amor, tenta fazer dele um homem normal. É esta a história simples e comovente deste filme. Talvez que mais que o excesso e a megalomania, o que Herzog tenta filmar e dar a mostrar é a diversidade da estranheza e da excepcionalidade. Ver os seus documentários vem reforçar esta impressão bondosa a que geralmente não associamos a sua filmografia. Este filme, como Herz aus Glas ou Stroszek, este último feito à medida de Bruno S. numa tentativa falhada de recriar a sua interpretação em Kaspar Hauser, não se dirige às alturas a que outros, os mais famosos, se propõem. Antes segue uma horizontalidade quase provinciana e benigna, ao longo dos progressos que o bom selvagem vai registando durante os anos que vive com o seu benfeitor. Habituados a essa planura narrativa e de intenções compreendemos melhor a vastidão do mundo de Herzog, os seus momentos de tranquilidade. Os desejos excessivos que alguns dos seus retratos mais conhecidos ilustram são gran-

WERNER HERZOG

des como o mundo que ele, Herzog, tanto admira. Nesta admiração pelo mundo notamos não um elogio do mal mas uma compreensão de que ele faz parte da beleza e da complexidade daquele. Por isso mesmo Aguirre… e Fitzcarraldo se passam numa floresta amazónica, Cobra Verde no Brazil, no Gana e na Colômbia, e outros dos seus filmes de ficção nas Canárias, no Deserto do Sahara, nas Ilhas Skellig, num deserto australiano, no espaço, nos Estados Unidos da América (imagens que fazem lembrar algumas imagens americanas de Wim Wenders), em Creta, nos Andes (no Cerro Torre, no filme Scream of Stone). De repente, a propósito deste último filme, e lembrando Herz aus Glas, um dos meus filmes preferidos de Herzog, que contém a atmosfera exploratória que caracteriza os anos 70 – o filme é de 1976 – penso que Herzog é o único cineasta alemão contemporâneo que continua a tradição do Bergfilm, a tradição alemã da exaltação operática da paisagem de montanha (também em, pelo menos, um dos seus documentários). Acrescente-se que a sua extensa cinematografia de documentário se serviu igualmente da sua obsessão com a viagem, passando-se estes em muitos lugares diferentes, tantos que uma enumeração se tornaria fastidiosa. O tom operático dos filmes que se centram em figuras e projectos excessivos en-

tende-se melhor se lembrarmos que Herzog se dedica igualmente à encenação de espectáculos de ópera. Que quase metade desses projectos sejam óperas de Wagner espanta também muito pouco, e o tipo de desconfiança que por vezes (será medo ?) é dispensada a estas duas figuras, Herzog e Wagner, é de uma categoria muito semelhante. Um dos seus documentários, sobre o Festival de Bayreuth, chama-se A Transformação do Mundo em Música. Pode pensar-se, sem grande exercício de imaginação, que o seu corpus fílmico é também uma tentativa de transformar o Mundo em Filme. Abandone-se a linearidade destas considerações e atente-se nas imagens “espaciais” que Herzog criou para Herz aus Glas que, igualmente, mostra a vida de um homem bom, solitário e contemplativo que tem o dom de ver o futuro. No fim deste filme, pouco conhecido e muito belo, Herzog leva-nos às Ilhas Skellig, um grupo de imagens captadas do ar, enigmáticas como o resto do filme. É tempo de dedicar a Herzog a atenção que ele merece e pôr de parte a reserva e a desconfiança com que tem sido apreciado, fruto da excentricidade dos caracteres que desenha e de uma suposta estetização do mal. É legítimo temer-se que, no entanto, Herzog, num futuro próximo, não tendo mais sítios para ir, entre num livro de Murakami Haruki, e de lá nunca mais volte.


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T E R C E I R O O U V I D O

próximo oriente

Hugo Pinto

NUM MUNDO SEMPRE NOVO: “COSMIC SOUNDS MADE IN INDONESIA” (III) Na Indonésia, os primeiros músicos a invocar os auspícios cósmicos foram os Shark Move, que, em 1970, com o disco “Ghede Chokra’s”, inauguraram o (ainda) exótico rock progressivo “made in Jakarta”. O disco está bem cotado no excelente “progarchives. com”, que regista pouco mais de uma dezena de entradas na categoria de “bandas de rock progressivo da Indonésia”. Hoje, 40 anos depois, o “rock progressivo”, indonésio, britânico ou mexicano, é (ainda) uma coutada exclusiva de uma fina fatia de melómanos, permanecendo olhado com relativo desdém e apupado por falhadas manias grandiloquentes por parte de quase todos os outros. No entanto, os caminhos da senhora música são misteriosos e, por isso, deve ser sem surpresa que vemos, em 2011, gente como os Mjolnir, trio de Jacarta que faz o que chamam de “electrodisco funk”, reclamar inspiração dos Shark Move. Nunca, como hoje, os sons “retro” estiveram tanto na moda, sendo usados e abusados para todos os fins nos mais diversos quadrantes musicais. A tendência vem explicada no mais recente livro do jornalista inglês Simon Reynolds, “Retromania: Pop Culture’s Addiction

to Its Own Past” (Faber and Faber, 2011), que descreve um universo obcecado pelo passado, comemorações, reunificações de bandas, álbuns de homenagem e etc. A questão é velha e recorrente: o que fazer quando tudo parece já ter sido inventado? No mundo da música electrónica de dança a resposta vem na forma de “remixes”, “edits” e “re-edits”. Ou seja, vestir com novas roupas velhas ideias e vice-versa. A meio da década passada vulgarizou-se o termo “Nu Disco”, expressão que define tudo o que possa soar às produções dos finais dos anos 1970 e inícios dos anos 1980: “disco”, “boogie”, “cosmic”, “balearic” e o que mais houver(a). São estas, precisamente, as referências que Ken Adhitya me confessa. As apresentações: assinando como Midnight Savari, Ken Adhitya (Jacarta) é talvez o mais interessante produtor da nova vaga “nu disco” saída da Indonésia. Com uma mão cheia de máxis originais e outra de remisturas, Midnight Savari é presença assídua nas “playlists” de nomes como Erol Alkan, The Magician (Aeroplane) ou Chris Duckenfield (Swag). Apesar de ter produzido temas como “Pinisi” ou “Rimshots”, autênticos “floor fillers”,

cheios de “synths” espaciais e linhas de baixo gordas e pulsantes, Ken Adhitya revela que, na verdade, não é cliente habitual de discotecas, nem se mostra um particular entusiasta da cena DJ. Para este estudante de arquitectura, a inspiração “vem de tudo o que ouço e experimento”. Apesar de, na sua música, estarem identificadas todas as referências que definem o “nu disco”, Midnight Savari arrisca incursões para lá dessa zona de conforto, desvendando salutares possibilidades de ruptura que não escaparam aos críticos do sítio electrónico “Resident Advisor”, rendidos a uma música que consegue ser deliciosamente “abrupta e brutal”. Em 2001, num artigo publicado na nova-iorquina Village Voice, a propósito da cena “underground disco” que então começava a agitar a “Big Apple”, Simon Reynolds alertava que a recusa em cortar com o passado iria impedir novos desenvolvimentos. O jornalista chamava a atenção para a ténue fronteira entre prestar homenagem ao passado e viver nesse mesmo tempo pretérito. A solução? “Um pouco menos de reverência, talvez”, concluía Reynolds. Na Indonésia, a lição, parece, está bem estudada.

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C I D A D E S I N V I S Í V E I S

metrópolis

Tiago Quadros*

UM POEMA DO ÂNGULO RECTO L

E CORBUSIER NÃO FOI A PRIMEIRA ESCOLHA DE JAWAHARLAL NEHRU PARA A CONCEPÇÃO DA NOVA CAPITAL ADMINISTRATIVA, QUE SE TORNARA NECESSÁRIA PELA SECESSÃO DO PAQUISTÃO, QUE TINHA PRIVADO O PUNJABE DA SUA CAPITAL HISTÓRICA, LAHORE. O plano director de Chandigarh foi primeiro entregue ao nova-iorquino Albert Mayer que tinha estado na Índia durante a guerra, ficando o arquitecto Matthew Nowicki encarregado de conceber o desenho do centro da cidade. Depois de Nowicki ter morrido num desastre de avião, Le Corbusier foi contratado em 1950 para executar o projecto de uma capital, que Nehru pretendia que “simbolizasse a liberdade da Índia, liberta das tradições do passado... uma expressão da fé da nação no seu futuro.” Vers une architecture, livro publicado em 1923, assinala a primeira declaração teórica de Le Corbusier, onde se defende que uma casa é uma máquina para viver e por isso deve ser tão perfeita e funcionalmente eficaz como um automóvel, um avião ou um navio. Antes deste amadurecimento teórico, que leva ao anúncio dos cinco princípios em 1927, Le Corbusier desenvolve pesquisas plásticas noutros domínios artísticos, criando então um género de pintura a que dá o nome de purismo, e que lhe soluciona alguns dos problemas que o cubismo não pode resolver por trabalhar com formas excessivamente fraccionadas. As formas puras retratadas nas naturezas mortas de Le Corbusier são transportadas para as casas que antecedem a Villa Savoye – o atelier Ozenfant, de 1922, ou A Villa La Roche, de 1923, interessando-lhe sobretudo a possibilidade de reduzir a arquitectura aos seus elementos geométricos mais simples. Nos anos vinte, época de L’Esprit Nouveau, Le Corbusier propôs a superação do cubismo porque a seu ver os no-

vos tempos exigiam um espírito de exactidão que era, aparentemente, inalcançável através do alfabeto cubista. Nesse sentido, o arquitecto suíço lançou uma estética ainda mais radical, na qual as superfícies eram executadas por forma a resultarem completamente lisas e “puras”. Nos anos trinta, Le Corbusier afasta-se gradualmente do purismo e os seus edifícios apresentam formas mais densas e complexas. No Pavilhão Suíço da Cidade Universitária de Paris, construído entre 1930 e 1932, o betão dos pilotis não é polido e pintado de branco, como nas suas obras iniciais, mas manifesta o vigor da textura resultante da cofragem. O abandono das superfícies lisas é entendido como um sintoma de desagregação da forma pura, assinalando um momento de mudança no interior do Movimento Moderno. É neste contexto que surge Chandigarh. Pela primeira vez, Le Corbusier desenha um centro urbano que acolhe os edifícios governamentais, em oposição ao centro de negócios, que se apresentava como ponto focal nos seus projectos anteriores. Nesse sentido, a proposta de Le Corbusier para Chandigarh revelar-se-á inovadora. Com grandes edifícios autónomos, cujos eixos estruturam os espaços abertos, muitas das soluções adoptadas em Chandigarh têm origem na arquitectura local. A esse propósito, Le Corbusier refere a descoberta feita dos palácios mongóis, como o Forte Vermelho, em Deli, nos quais o ar é arrefecido pela passagem por locais em sombra. É na extremidade noroeste da nova capital administrativa que Le Corbusier ergue dois edifícios, sede do centro politico e administrativo do Punjabe indiano – o Secretariado (sete ministérios) e a Assembleia. Na sua concepção, o Palácio da Assembleia, projectado e construído entre 1951 e 1962, recorda o Mosteiro de La Tourette, cujo pátio foi preenchido, e pela disposição dos corpos dos edifícios na periferia, uma Villa Savoye expandida. Os três principais

componentes são o pórtico, de frente para o resto do complexo, e as duas salas de sessões, com coberturas diferenciadas. Estes três volumes estão rodeados por escritórios em U. As formas usadas parecem ter diversas origens. A título de exemplo a revolucionária hiperbolóide que abriga a Câmara Baixa deriva das torres de refrigeração estudadas e desenhadas em Ahmedabad em 1951. Contudo, o jogo que estes objectos, a sua torre de acesso e a cobertura piramidal da Câmara Alta, projectam no telhado, recorda um estranho ritual do sol. A este propósito, Le Corbusier declara que “este chapéu vai tornar-se um verdadeiro laboratório de física, equipado para garantir o jogo de luz e sombra... Esta rolha será usada para festivais solares, lembrando os homens que uma vez por ano são filhos do Sol.” Se os dois estranhos cornos colocados no topo da hiperbolóide evocam os das vacas indianas desenhadas por Le Corbusier, a paisagem do telhado recorda os instrumentos astronómicos do Jantar Mantar, o observatório do século XVIII que o arquitecto suíço visitara em Deli. À medida que Le Corbusier se ocupa de programas de grande escala e se afasta das pequenas moradias, os seus edifícios adquirem uma crescente expressividade assente nas formas e nos materiais. O acesso mais majestoso ao Palácio da Assembleia, reflectido numa grande superfície de água, criando uma espécie de cubo virtual, não se alcança pela passagem que a liga ao Secretariado, mas pelo grande pórtico do outro lado da esplanada. A entrada principal é encerrada por uma porta de aço esmaltado, uma oferta da França ao Punjabe, na qual Le Corbusier figurou muitos dos motivos que na altura atravessavam a sua obra plástica, em particular Le Poème de l’angle droit (O Poema do Ângulo Recto), de 1955. *Arquitecto, Mestre em Cor na Arquitectura pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa


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L E T R A S S Í N I C A S

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A COMPREENSÃO DOS MISTÉRIOS

O corpo vale mais que o mundo; a justiça é mais importante que o corpo.

CAPÍTULO 166 Lao Tzu disse: Contrair é um modo de buscar expansão, dobrar é uma forma de procurar endireitar. Encolher um centímetro para crescer um metro, ou dobrar o pequeno para endireitar o grande, são coisas que o homem superior fará. Se cem rios correrem paralelos, sem vazarem no oceano, não se pode falar de nenhum vale; se os cursos de acção forem em direcções diferentes sem resultado, não se pode falar de liderança. As palavras sensatas são estimadas na medida em que possam ser postas em prática; as boas obras são estimadas na medida em que sejam humanas e justas. Os erros dos homens superiores são como eclipses solares e lunares, que não destroem a luz. Assim, os sábios não agem arbitrariamente

e os corajosos não matam arbitrariamente. Escolhe o que for certo e fá-lo, afere o que for adequado e executa-o. Desse modo, teus afazeres serão realizados e o teu feito será suficiente para nele se depositar confiança; e o teu nome será digno de elogio mesmo depois de teres morrido. Mesmo que disponhas de conhecimento e capacidade, é necessário fazer da humanidade e da justiça uma base, sobre a qual conhecimento e capacidade possam ser praticados em concerto. Os sábios fazem uniformemente da humanidade e da justiça a sua linha mestra: aqueles que seguem a linha mestra são chamados homens superiores, aqueles que não seguem a linha mestra são chamados homens inferiores. Mesmo que os homens superiores sejam destruídos, a sua reputação não é diminuída; mesmo que os homens inferiores

obtenham poder, os seus erros não serão eliminados. Nem mesmo um ignorante seguraria na sua mão esquerda um mapa do mundo cortando o seu pescoço com a direita; o corpo vale mais que o mundo. Aqueles que vão à morte em tempos de tumulto para seus líderes ou familiares vêem a morte como um regresso a casa; a justiça é mais importante que o corpo. Como tal, o enorme lucro a tirar do mundo é pequeno em comparação com o corpo e aquilo que é considerado importante para o corpo é menor em comparação com a humanidade e com a justiça. É por isso que humanidade e justiça são consideradas linhas mestras. Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho

O texto conhecido por Wen Tzu, ou Wen Zi, tem por subtítulo a expressão “A Compreensão dos Mistérios”. Este subtítulo honorífico teve origem na renascença taoista da Dinastia Tang, embora o texto fosse conhecido e estudado desde pelo menos quatro a três séculos antes da era comum. O Wen Tzu terá sido compilado por um discípulo de Lao Tzu, sendo muito do seu conteúdo atribuído ao próprio Lao Tzu. O historiador Su Ma Qian (145-90 a.C.) dá nota destes factos nos seus “Registos do Grande Historiador” compostos durante a predominantemente confucionista Dinastia Han. A obra parece consistir de um destilar do corpus central da sabedoria Taoista constituído pelo Tao Te Qing, pelo Chuang Tzu e pelo Huainan-zi. Para esta versão portuguesa foi utilizada a primeira e, até à data, única tradução inglesa do texto, da autoria do Professor Thomas Cleary, publicada em Taoist Classics, Volume I, Shambala, Boston 2003. Foi ainda utilizada uma versão do texto chinês editada por Shiung Duen Sheng e publicada online.


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DA REBELDIA À GLOBALIZAÇÃO José Drummond

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