h - Suplemento do Hoje Macau #45

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PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2627. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

ARTES, LETRAS E IDEIAS

h BOAVENTURA SOUSA SANTOS

CARTAS À ESQUERDA


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GRÉCIA

Vermelho Syriza A COLIGAÇÃO da Esquerda Radical (Syriza) surgiu em 2004 e resulta de um processo de diálogo iniciado em 2001 entre muitas correntes da esquerda grega, de inspiração socialista, eurocomunista, ecologista, maoísta e trotskista. Hoje a Syriza é composta por doze organizações e muitas personalidades independentes, entre elas algumas figuras que se afastaram do PASOK nos últimos anos. Em 2001, o movimento alterglobal atingia um dos seus pontos mais altos, com centenas de milhares de europeus nas ruas de Génova contra os senhores do mundo que eram hóspedes de Berlusconi na cimeira do G8. A repressão policial demorou anos a ser condenada na justiça italiana, mas as cimeiras passaram a realizar-se ainda mais às escondidas. A mobilização grega para esse protesto foi uma das primeiras tarefas do Espaço de Diálogo para a Unidade e Ação Comum da Esquerda, que agrupava várias correntes que já se tinham encontrado noutras lutas, como a oposição à intervenção militar no Kosovo, as privatizações ou a legislação antiterrorista que ameaçava as liberdades civis na Grécia. O “Espaço” foi também determinante para organizar o Fórum Social Grego em 2003. A figura de referência do “Espaço” era Manolis Glezos, o conhecido resistente ao nazismo que em maio de 1941 subiu à Acrópole e tirou de lá a bandeira da suástica, no que ficou conhecido como o primeiro acto de resistência do povo de Atenas contra a ocupação da cidade no mês anterior. Glezos foi o candidato da aliança eleitoral promovida pelo “Espaço” em 2002 à super-autarquia de Atenas-Piraeus, obtendo 10,8% dos votos. Dez anos depois, voltou a aparecer ao lado de Alexis Tsipras no comício da Syriza em Atenas antes de encerrar a campanha eleitoral. A coligação Syriza apresenta-se pela primeira vez a votos com programa eleitoral próprio nas legislativas de 2004 e consegue passar a barreira dos 3% para eleger seis deputados, todos pertencentes à corrente maioritária, o Synaspismos. A coligação conseguiu sobreviver à tensão interna com a substituição da liderança do Synaspismos no fim desse ano e ganhou novo fôlego com a organização do Fórum Social Europeu em Atenas dois anos depois. 2006 foi também ano de eleições autárquicas, com um jovem de 32 anos a ser lançado para a disputa eleitoral em Atenas com o objetivo de abrir o movimento às novas gerações. Alexis Tsipras, líder estudantil nos anos 90 e responsável pelo sector juvenil do Synaspismos, repetiu o resultado de Glezos

quatro anos antes e tornou a Syriza na terceira força política na capital grega. As eleições seguintes (legislativas em 2007 e 2009 e europeias de 2009) vieram confirmar a coligação como uma força ascendente no panorama político nacional, ao mesmo tempo que registaram um alargamento das forças que compõem a coligação. Alexis Tsipras sucedeu a Alekos Alavanos na liderança do Synaspismos e tornou-se líder parlamentar após as eleições de 2009. No ano seguinte enfrentou uma cisão importante no seu partido, que retirou quatro dos treze deputados da coligação para formarem um novo partido, a Esquerda Democrática. Actualmente, fazem parte da Syriza doze organizações. A corrente maioritária é o Synaspismos, uma antiga coligação entre comunistas que se transformou em partido na sequência da purga de 45% do Comité Central do PC grego após o fim da URSS. As outras organizações são a AKOA (Esquerda Comunista Ecológica e Renovadora, membro observador do Partido da Esquerda Europeia); DEA (Esquerda Internacionalista dos Trabalhadores, próxima da tendência trotskista internacional IST, fundada por Tony Cliff); DKKI (Movimento Democrático Social, corrente que saiu do PASOK em 1995); KOE (Organização Comunista da Grécia, de inspiração maoísta, integrou a Syriza em 2007); Kokkino (Vermelho, corrente de inspiração trotskista); Ecosocialistas da Grécia; Cidadãos Activos (corrente fundada pelo herói da Resistência Manolis Glezos); KEDA (Movimento pela Esquerda Unida na Ação, cisão do PC grego em 2000); Rizospastes (Radicais, cisão dos Cidadãos Activos, sublinham o patriotismo no discurso); Omada Roza (Grupo Rosa, esquerda radical); e APO (Grupo Político Anticapitalista, corrente de inspiração trotskista). Para além destas organizações e partidos, e principalmente durante este ano, o Syriza tem sido apoiada por pessoas com diferentes experiências de militância. Nesta campanha para as eleições de 6 de Maio, as mais fortes na polarização contra a troika, deram a cara pela coligação antigas figuras do PASOK como a ex-deputada e atleta olímpica Sofia Sakorafa - que acabou por ser a candidata mais votada – ou Alexis Mitropoulos, responsável pelo desenho das leis laborais nos anos 80. Também Stathis Kouvelakis, professor de Filosofia no King´s College em Londres e Despina Spanou, dirigente do sindicato da função publica Adedy, deram o seu apoio à Syriza nesta campanha.

“Há uma guerra entre o povo e o capitalismo” “EU NÃO ACREDITO em heróis ou salvadores”, afirmou Alexis Tsipras ao Guardian, sublinhando que acredita, isso sim, “em lutar por direitos”. “Ninguém tem o direito de reduzir um povo orgulhoso a tal estado de miséria e de indignidade”, enfatizou o líder da Syriza. Em entrevista ao jornal britânico, Tsipras realçou que o que está em marcha não é uma guerra “entre as nações e povos”. Na realidade, avançou, este é um conflito que opõe “os trabalhadores e a maioria das pessoas” aos “capitalistas globais, banqueiros, especuladores nas bolsas de valores, os grandes fundos”. “É uma guerra entre os povos e o capitalismo”, frisou Alex Tsipras, adiantando que, “tal como acontece em cada guerra, o que ocorre na linha de frente define a batalha, que será decisiva para a guerra noutros lugares”.

O presidente do Grupo Parlamentar da coligação de esquerda Syriza sustentou que a Grécia foi escolhida como balão de ensaio para a implementação das políticas de choque neo-liberais e que os gregos “foram as cobaias” e alertou também para o facto de, caso a experiência continue, ela será “considerada um sucesso e as políticas serão aplicadas noutros países”. “É por isso que é tão importante interromper a experiência”, frisou Tsipras, realçando que pôr fim a este ataque “não será apenas uma vitória para a Grécia, mas para toda a Europa”.

“NUNCA ESTIVEMOS TÃO MAL”

“Após dois anos e meio de catástrofe”, e depois de sofrerem um longo bombardeamento de “choque neo-liberal” - aumentos de impostos draconianos e cortes nas despesas implementados

A Grécia foi escolhida como balão de ensaio para a implementação das políticas de choque neo-liberais e os gregos “foram as cobaias”. Caso a experiência continue, será “considerada um sucesso e as políticas serão aplicadas noutros países”.


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sem quaisquer remorsos – “os gregos estão de joelhos”, referiu Tsipras. “ O Estado Social entrou em colapso, um em cada dois jovens está desempregado, há cada vez mais pessoas a emigrar, o clima psicológico é de pessimismo, depressão, suicídios em massa”, relatou, avançando que o povo grego nunca esteve “tão mal”. Interrogado sobre se teria medo, Alex Tsipras respondeu que teria, de facto, caso “continuássemos por este caminho, um caminho para o inferno social”, contudo, destacou, “quando alguém luta tem uma grande hipótese de ganhar e nós estamos a lutar para vencer”.

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A SYRIZA NÃO É CONTRA O EURO OU A UNIÃO MONETÁRIA

Durante a entrevista, o líder da Syriza sublinhou que não é contra o euro ou a união monetária e que essa chantagem está a ser utilizada para que as pessoas se sintam aterrorizadas de modo a manter o status quo. “Não somos contra uma Europa unificada ou a união monetária”, “nós não queremos fazer chantagem, queremos convencer os nossos parceiros europeus, que o caminho que foi escolhido para enfrentar a Grécia é totalmente contra producente. É como jogar dinheiro num poço sem fundo”, esclareceu. Para Tsipras, é importante que os europeus saibam que o dinheiro com que contribuem para a suposta resolução da crise grega não está a ser aplicado em investimento e crescimento nem a ser utilizado para, efectivamente, fazer face ao problema da dívida. Na realidade, se a Grécia se mantiver no mesmo rumo, “em seis meses seremos forçados a discutir um terceiro pacote e depois um quarto”, alertou o dirigente da coligação Syriza. Por outro lado, também é importante para Alex Tsipras que os europeus compreendam que o Syriza não tem “qualquer intenção de avançar num movimento unilateral”. “Nós [só] seremos forçados a agir, se eles agirem de forma unilateral e derem o primeiro passo”, afirmou. “Se eles não nos pagarem, se pararem o financiamento, então não seremos capazes de pagar os credores. O que estou a dizer é muito simples”, adiantou ainda o político grego. Alex Tsipras fez também questão de lembrar que a crise da Grécia não é somente um problema do país. “Keynes disse-o há muitos anos. Não é apenas a pessoa que pede emprestado que pode ficar numa posição difícil, mas também a pessoa que empresta. Se você deve 6.200 euros ao banco, é um problema seu, mas se você deve 620 000 euros, é problema do banco”, ilustrou Tsipras. “Este é um problema comum. É o nosso problema. É o problema de Merkel. É um problema europeu. É um problema mundial”, rematou Alexis Tsipras, o líder do Syriza.

QUEM É

ALEXIS TSIPRAS? AOS 37 ANOS, o engenheiro civil nascido poucos dias depois da queda da junta militar grega, em julho de 1974, diz estar preparado para corresponder ao apoio popular e vir a liderar o primeiro governo de esquerda decidido a romper com a receita neoliberal que afundou o seu país. O batismo de Tsipras nas lutas sociais ocorreu em 1990 nas mobilizações do ensino secundário grego, numa altura em que já militava na Juventude Comunista Grega (KNE). A participação no movimento estudantil prosseguiu na Universidade Técnica de Atenas, onde fez o curso de engenharia civil ao mesmo tempo que se tornou dirigente associativo e membro eleito pelos estudantes do Senado da Universidade. Em 1995, Tsipras foi eleito dirigente do Sindicato Nacional de Estudantes Gregos.

Em 1999, Alexis Tsipras tornou-se o primeiro líder da juventude do Synaspismos, mantendo-se à frente da ala juvenil do partido até 2003, tendo organizado a sua participação nos movimentos pela globalização alternativa e no Fórum Social Grego. Um ano depois foi eleito dirigente do Synaspismos, passando ser o responsável pela juventude e política de educação no Secretariado da organização. Aos 32 anos, foi lançado nas autárquicas de 2006 como primeiro candidato à autarquia de Atenas na lista “Cidade Aberta”, apoiada pela coligação Syriza, entretanto já formada. Tsipras obteve o terceiro lugar com 10,5% dos votos e a lista elegeu quatro membros para o Conselho Municipal. A entrada no Parlamento grego veio nas eleições de 2009, quando Tsipras já era

presidente do Synaspismos, a principal força que integra a coligação Syriza. À frente da bancada da Syriza, Tsipras é considerado um orador temido pelos adversários nos debates sobre a austeridade e raramente é visto a usar gravata. Quem o conhece aponta-lhe o perfecionismo como uma das principais características, e quanto a hobbies destacam o gosto por passeios de motocicleta e pelo clube de futebol Panathinaikos, que este ano voltou a ser ultrapassado pelo rival Olympiakos na luta pelo título. Dizem que é grande admirador de Hugo Chávez e até faz anos no mesmo dia do comandante da Revolução Bolivariana, com duas décadas de diferença. Vive com a companheira dos tempos da escola secundária e esperam o segundo filho já no mês seguinte às eleições de 17 de Junho.


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CARTAS ÀS ESQUERDAS BOAVENTURA SOUSA SANTOS TEM UMA VISÃO PARA AS ESQUERDAS. QUE PASSA POR QUESTIONAR O QUE UNE DIFERENTES MOVIMENTOS. SEIS CARTAS PARA PENSAR CARTA I

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ÃO ponho em causa que haja um futuro para as esquerdas mas o seu futuro não vai ser uma continuação linear do seu passado. Definir o que têm em comum equivale a responder à pergunta: o que é a esquerda? A esquerda é um conjunto de posições políticas que partilham o ideal de que os humanos têm todos o mesmo valor, e são o valor mais alto. Esse ideal é posto em causa sempre que há relações sociais de poder desigual, isto é, de dominação. Neste caso, alguns indivíduos ou grupos satisfazem algumas das suas necessidades, transformando outros indivíduos ou grupos em meios para os seus fins. O capitalismo não é a única fonte de dominação mas é uma fonte importante.

da do Muro de Berlim. Os últimos trinta anos foram, por um lado, uma gestão de ruínas e de inércias e, por outro, a emergência de novas lutas contra a dominação, com outros actores e linguagens que as esquerdas não puderam entender. Entretanto, livre das esquerdas, o capitalismo voltou a mostrar a sua vocação anti-social. Voltou a ser urgente reconstruir as esquerdas para evitar a barbárie. Como recomeçar? Pela aceitação das seguintes ideias. Primeiro, o mundo diversificou-se e a diversidade instalou-se no interior de cada país. A compreensão do mundo é muito mais ampla que a compreensão ocidental do mundo; não há internacionalismo sem interculturalismo. Segundo, o capitalismo concebe a democracia como um instrumento de acumulação; se for preciso, redu-la à irre-

Com estas ideias, vão continuar a ser várias as esquerdas, mas já não é provável que se matem umas às outras e é possível que se unam para travar a barbárie que se aproxima. Os diferentes entendimentos deste ideal levaram a diferentes clivagens. As principais resultaram de respostas opostas às seguintes perguntas. Poderá o capitalismo ser reformado de modo a melhorar a sorte dos dominados, ou tal só é possível para além do capitalismo? A luta social deve ser conduzida por uma classe (a classe operária) ou por diferentes classes ou grupos sociais? Deve ser conduzida dentro das instituições democráticas ou fora delas? O Estado é, ele próprio, uma relação de dominação, ou pode ser mobilizado para combater as relações de dominação? As respostas opostas as estas perguntas estiveram na origem de violentas clivagens. Em nome da esquerda cometeram-se atrocidades contra a esquerda; mas, no seu conjunto, as esquerdas dominaram o século XX (apesar do nazismo, do fascismo e do colonialismo) e o mundo tornou-se mais livre e mais igual graças a elas. Este curto século de todas as esquerdas terminou com a que-

levância e, se encontrar outro instrumento mais eficiente, dispensa-a (o caso da China). A defesa da democracia de alta intensidade é a grande bandeira das esquerdas. Terceiro, o capitalismo é amoral e não entende o conceito de dignidade humana; a defesa desta é uma luta contra o capitalismo e nunca com o capitalismo (no capitalismo, mesmo as esmolas só existem como relações públicas). Quarto, a experiência do mundo mostra que há imensas realidades não capitalistas, guiadas pela reciprocidade e pelo cooperativismo, à espera de serem valorizadas como o futuro dentro do presente. Quinto, o século passado revelou que a relação dos humanos com a natureza é uma relação de dominação contra a qual há que lutar; o crescimento económico não é infinito. Sexto, a propriedade privada só é um bem social se for uma entre várias formas de propriedade e se todas forem protegidas; há bens comuns da humanidade (como a água e o ar). Sétimo,


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o curto século das esquerdas foi suficiente para criar um espírito igualitário entre os humanos que sobressai em todos os inquéritos; este é um património das esquerdas que estas têm vindo a dilapidar. Oitavo, o capitalismo precisa de outras formas de dominação para florescer, do racismo ao sexismo e à guerra e todas devem ser combatidas. Nono, o Estado é um animal estranho, meio anjo meio monstro, mas, sem ele, muitos outros monstros andariam à solta, insaciáveis à cata de anjos indefesos. Melhor Estado, sempre; menos Estado, nunca. Com estas ideias, vão continuar a ser várias as esquerdas, mas já não é provável que se matem umas às outras e é possível que se unam para travar a barbárie que se aproxima.

cassa quem toma más decisões ou tem pouca sorte. As condições diferenciadas do nascimento ou do país não devem ser significativamente alteradas pelo Estado. Segunda: da ação do Estado baseada na tributação para a ação do Estado baseada no crédito. A lógica distributiva da tributação permite ao Estado expandir-se à custa dos rendimentos mais altos, o que, segundo os neoliberais, é injusto, enquanto a lógica distributiva do crédito obriga o Estado a conter-se e a pagar o devido a quem lhe empresta. Esta transição garante a asfixia financeira do Estado, a única medida eficaz contra as políticas sociais. Terceira: do reconhecimento da existên-

cia de bens públicos (educação, saúde) e interesses estratégicos (água, telecomunicações, correios) a serem zelados pelo Estado no interesse de todos para a ideia de que cada intervenção do Estado em área potencialmente rentável é uma limitação ilegítima das oportunidades de lucro privado. Quarta: do princípio da primazia do Estado para o princípio da primazia da sociedade civil e do mercado. O Estado é sempre ineficiente e autoritário. A força coercitiva do Estado é hostil ao consenso e à coordenação dos interesses e limita a liberdade dos empresários que são quem cria riqueza (dos trabalhadores não há menção). A lógica imperativa do gover-

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no deve ser substituída na medida do possível pela lógica cooperativa de governança entre interesses setoriais, entre os quais o do Estado. Quinta: dos direitos sociais para os apoios em situações extremas de pobreza ou incapacidade e para a filantropia. O Estado social exagerou na solidariedade entre cidadãos e transformou a desigualdade social num mal quando, de facto, é um bem. Entre quem dá esmola e quem a recebe não há igualdade possível, um é sujeito da caridade e o outro é objecto dela. Perante este perturbador receituário neoliberal, é difícil imaginar que as esquerdas não estejam de acordo sobre o

CARTA II

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democracia política pressupõe a existência do Estado. Os problemas que vivemos hoje na Europa mostram que não há democracia europeia porque não há Estado europeu. E porque muitas prerrogativas soberanas foram transferidas para instituições europeias, as democracias nacionais são hoje menos robustas porque os Estados nacionais são pós-soberanos. Os défices democráticos nacionais e o défice democrático europeu alimentam-se uns aos outros e todos se agravam por, entretanto, as instituições europeias terem decidido transferir para os mercados financeiros parte das prerrogativas transferidas para elas pelos Estados nacionais. Ao cidadão comum será hoje fácil concluir (lamentavelmente só hoje) que foi uma trama bem urdida para incapacitar os Estados europeus no desempenho das suas funções de proteção dos cidadãos contra riscos coletivos e de promoção do bem-estar social. Esta trama neoliberal tem vindo a ser urdida em todo o mundo, e a Europa só teve o privilégio de ser “tramada” à europeia. Vejamos como aconteceu. Está em curso um processo global de desorganização do Estado democrático. A organização deste tipo de Estado baseia-se em três funções: a função de confiança, por via da qual o Estado protege os cidadãos contra forças estrangeiras, crimes e riscos coletivos; a função de legitimidade, através da qual o Estado garante a promoção do bem-estar; e a função de acumulação, com a qual o Estado garante a reprodução do capital a troco de recursos (tributação, controle de setores estratégicos) que lhe permitam desempenhar as duas outras funções. Os neoliberais pretendem desorganizar o Estado democrático através da inculcação na opinião pública da suposta necessidade de várias transições. Primeira: da responsabilidade coletiva para a responsabilidade individual. Para os neoliberais, as expectativas da vida dos cidadãos derivam do que eles fazem por si e não do que a sociedade pode fazer por eles. Tem êxito na vida quem toma boas decisões ou tem sorte e fra-

A democracia liberal agoniza sob o peso dos poderes fáticos (Máfias, Maçonaria, Opus Dei, transnacionais, FMI, Banco Mundial) e da impunidade da corrupção, do abuso do poder e do tráfico de influências. O resultado é a fusão crescente entre o mercado político das ideias e o mercado económico dos interesses.

princípio “melhor Estado, sempre; menos Estado, nunca” e que disso não tirem consequências.

CARTA III

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UANDO estão no poder, as esquerdas não têm tempo para refletir sobre as transformações que ocorrem nas sociedades. Quando não estão no poder, dividem-se internamente para definir quem vai ser o líder nas próximas eleições, e as reflexões ficam vinculadas a esse objetivo. Esta indisponibilidade para a reflexão foi sempre perniciosa e


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agora é suicida. Por duas razões. A direita tem à sua disposição todos os intelectuais orgânicos do capital financeiro, das associações empresariais, das instituições multilaterais, dos think tanks, dos lobistas, os quais lhe fornecem diariamente dados e interpretações que não são sempre faltos de rigor e sempre interpretam a realidade de modo a levar a água ao seu moinho. Pelo contrário, as esquerdas estão desprovidas de instrumentos de reflexão abertos aos não militantes e, internamente, a reflexão segue a linha estéril das fações. O desequilíbrio entre as esquerdas e a direita no que respeita ao conhecimento estratégico do mundo é hoje maior que nunca. A segunda razão é que as novas mobilizações e militâncias políticas por causas pertencentes às esquerdas estão a ser feitas sem referência a elas (salvo ao anarquismo) e muitas vezes em oposição a elas. Proponho duas linhas de reflexão. Das enormes desigualdades sociais está a emergir uma forte polarização social. Vivemos um tempo que tem algumas semelhanças com o das revoluções democráticas que avassalaram a Europa em 1848. A polarização social era enorme porque o operariado (então uma classe jovem) dependia do trabalho para sobreviver mas (ao contrário dos seus pais e avós) o trabalho não dependia dele, dependia de quem o dava ou retirava a seu bel-prazer, o patrão; se trabalhasse, os salários eram tão baixos e a jornada tão longa que a saúde perigava e a família vivia sempre à beira da fome; se fosse despedido, não tinha qualquer suporte exceto o de alguma economia solidária ou do recurso ao crime. Não admira que, nessas revoluções, as duas bandeiras de luta tenham sido o direito ao trabalho e o direito a uma jornada de trabalho mais curta. 150 anos depois, a situação não é totalmente a mesma, mas as bandeiras continuam a ser atuais. E talvez o sejam hoje mais do que o eram há 30 anos. As revoluções foram sangrentas e falharam, mas os próprios governos conservadores que se seguiram tiveram de fazer concessões para que a questão social não descambasse em catástrofe. A que distância estamos nós da catástrofe? Por enquanto, a mobilização contra a escandalosa desigualdade social é pacífica e tem um forte pendor moralista-denunciador. Não mete medo ao sistema financeiro-democrático. A direita está preparada para a resposta repressiva a qualquer alteração que se torne ameaçadora. Quais são os planos das esquerdas? Vão voltar a dividir-se como no passado, umas tomando a posição da repressão e outras a da luta contra a repressão? A segunda linha de reflexão tem igualmente a ver com as revoluções de 1848 e consiste em saber como voltar a conetar a democracia com as aspirações e as opções dos cidadãos. Das palavras de ordem de 1848, sobressaíam liberalismo e democracia. Liberalismo significava governo republicano, separação entre estado e religião, liberdade de imprensa; democracia significava sufrágio “uni-

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Sendo certo que a direita só se interessa pela democracia na medida em que esta serve os seus interesses, as esquerdas são hoje a grande garantia do resgate da democracia. Estarão à altura da tarefa? versal” para os homens. Neste domínio, muito se avançou nos últimos 150 anos. No entanto, as conquistas têm vindo a ser postas em causa nos últimos 30 e nos últimos tempos a democracia mais parece uma casa fechada ocupada por um grupo de extraterrestres que decide democraticamente pelos seus interesses e ditatorialmente pelos interesses das grandes maiorias. Um regime misto, uma “democradura”. O movimento dos indignados e do occupy recusam a expropriação da democracia e optam por tomar decisões por consenso nas suas assembleias. São loucos ou são um sinal das exigências que vêm aí? As esquerdas já terão pensado que se não se sentirem confortáveis com formas de democracia de alta intensidade (no interior dos partidos e na República), esse será o sinal de que devem retirar-se ou refundar-se?

CARTA IV

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S divisões históricas entre as esquerdas foram justificadas por uma imponente construção ideológica mas,

na verdade, a sua sustentabilidade prática—ou seja, a credibilidade das propostas políticas que lhes permitiram colher adeptos—assentou em três fatores: o colonialismo, que permitiu a deslocação da acumulação primitiva de capital (por despossessão violenta, com incontável sacrifício humano, muitas vezes ilegal mas sempre impune) para fora dos países capitalistas centrais onde se travavam as lutas sociais consideradas decisivas; a emergência de capitalismos nacionais com características tão diferenciadas (capitalismo de estado, corporativo, liberal, social-democrático) que davam credibilidade à ideia de que haveria várias alternativas para superar o capitalismo; e, finalmente, as transformações que as lutas socias foram operando na democracia liberal, permitindo alguma redistribuição social e separando, até certo ponto, o mercado das mercadorias (dos valores que têm preço e se compram e se vendem) do mercado das convicções (das opções e dos valores políticos que, não tendo preço, não se compram nem se vendem). Se para algumas esquerdas tal separação era um fato novo, para outras, era um ludíbrio perigoso.

Os últimos anos alteraram tão profundamente qualquer destes fatores que nada será como dantes para as esquerdas tal como as conhecemos. No que respeita ao colonialismo as mudanças radicais são de dois tipos. Por um lado, a acumulação de capital por despossessão violenta voltou às ex-metrópoles (furtos de salários e pensões; transferências ilegais de fundos colectivos para resgatar bancos privados; impunidade total do gangsterismo financeiro) pelo que uma luta de tipo anti-colonial terá de ser agora travada também nas metrópoles, uma luta que, como sabemos, nunca se pautou pelas cortesias parlamentares. Por outro lado, apesar de o neocolonialismo (a continuação de relações de tipo colonial entre as ex-colónias e as ex-metrópoles ou seus substitutos, caso dos EUA) ter permitido que a acumulação por despossessão no mundo ex-colonial tenha prosseguido até hoje, parte deste está a assumir um novo protagonismo (India, Brasil, Africa do Sul, e o caso especial da China, humilhada pelo imperialismo ocidental durante o século XIX) e a tal ponto que não sabemos se haverá no futuro novas metrópoles e, por implicação, novas colónias. Quanto aos capitalismos nacionais, o seu fim parece traçado pela máquina trituradora do neoliberalismo. É certo que na América Latina e na China parecem emergir novas versões de dominação capitalista mas intrigantemente todas elas se prevalecem das oportunidades que o neoliberalismo lhes confere. Ora, 2011 provou que a esquerda e o neoliberalismo são incompatíveis. Basta ver como as cotações das bolsas sobem na exata medida em que aumenta desigualdade social e se destrói a proteção social. Quanto tempo levarão as esquerdas a tirar as consequências? Finalmente, a democracia liberal agoniza sob o peso dos poderes fáticos (Máfias, Maçonaria, Opus Dei, transnacionais, FMI, Banco Mundial) e da impunidade da corrupção, do abuso do poder e do tráfico de influências. O resultado é a fusão crescente entre o mercado político das ideias e o mercado económico dos interesses. Está tudo à venda e só não se vende mais porque não há quem compre. Nos últimos cinquenta anos as esquerdas (todas elas) deram uma contribuição fundamental para que a democracia liberal tivesse alguma credibilidade junto das classes populares e os conflitos sociais pudessem ser resolvidos em paz. Sendo certo que a direita só se interessa pela democracia na medida em que esta serve os seus interesses, as esquerdas são hoje a grande garantia do resgate da democracia. Estarão à altura da tarefa? Terão a coragem de refundar a democracia para além do liberalismo? Uma democracia robusta contra a antidemocracia, que combine a democracia representativa com a democracia participativa e a democracia direta? Uma democracia anticapitalista ante um capitalismo cada vez mais antidemocrático?


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CARTA V

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ORQUE é que a actual crise do capitalismo fortalece quem a causou? Porque é que a racionalidade da “solução” da crise assenta nas previsões que faz e não nas consequências que quase sempre as desmentem? Porque é que está ser tão fácil ao Estado trocar o bem-estar dos cidadãos pelo bem-estar dos bancos? Porque é que a grande maioria dos cidadãos assiste ao seu empobrecimento como se fosse inevitável e ao enriquecimento escandaloso de poucos como se fosse necessário para a sua situação não piorar ainda mais? Porque é que a estabilidade dos mercados financeiros só é possível à custa da instabilidade da vida da grande maioria da população? Porque é que os capitalistas individualmente são, em geral, gente de bem e o capitalismo, no seu todo, é amoral? Porque é que o crescimento económico é hoje a panaceia para todos os males da economia e da sociedade sem que se pergunte se os custos sociais e ambientais são ou não sustentáveis? Porque é que Malcom X estava cheio de razão quando advertiu: “se não tiverdes cuidado, os jornais convencer-vos-ão de que a culpa dos problemas sociais é dos oprimidos, e não de quem os oprime”? Porque é que as críticas que as esquerdas fazem ao neoliberalismo entram nos noticiários com a mesma rapidez e irrelevância com que saem? Porque é que as alternativas escasseiam no momento em que são mais necessárias? Estas questões devem estar na agenda de reflexão política das esquerdas sob pena de, a prazo, serem remetidas ao museu das felicidades passadas. Isso não seria grave se esse facto não significasse, como significa, o fim da felicidade futura das classes populares. A reflexão deve começar por aí: o neoliberalismo é, antes de tudo, uma cultura de medo, de sofrimento e de morte para as grandes maiorias; não se combate com eficácia se não se lhe opuser uma cultura de esperança, de felicidade e de vida. A dificuldade que as esquerdas têm em assumirem-se como portadoras desta outra cultura decorre de terem caído durante demasiado tempo na armadilha

com que as direitas sempre se mantiveram no poder: reduzir a realidade ao que existe, por mais injusta e cruel que seja, para que a esperança das maiorias pareça irreal. O medo na espera mata a esperança na felicidade. Contra esta armadilha é preciso partir da ideia de que a realidade é a soma do que existe e de tudo o que nela é emergente como possibilidade e como luta pela sua concretização. Se não souberem detectar as emergências, as esquerdas submergem ou vão para o museu, o que dá no mesmo. Este é o novo ponto de partida das esquerdas, a nova base comum que lhes permitirá depois divergirem fraternalmente nas respostas que derem às perguntas que formulei. Uma vez ampliada a realidade sobre que se deve actuar politicamente, as propostas das esquerdas devem ser credivelmente percebidas pelas grandes maiorias como prova de que é possível lutar contra a suposta fatalidade do medo, do sofrimento e da morte em nome do direito à esperança, à felicidade e à vida. Essa luta deve ser conduzida por três palavras-guia: democratizar, desmercantilizar, descolonizar. Democratizar a própria democracia, já que a actual se deixou sequestrar por poderes anti-democráticos. É preciso tornar evidente que uma decisão democraticamente tomada não pode ser destruída no dia seguinte por uma agência de rating ou por uma baixa de cotação nas bolsas (como pode vir a acontecer proximamente em França). Desmercantilizar significa mostrar que usamos, produzimos e trocamos mercadorias mas que não somos mercadorias nem aceitamos relacionar-nos com os outros e com a natureza como se fossem apenas mercadorias. Somos cidadãos antes de sermos empreendedores ou consumidores e para o sermos é imperativo que nem tudo se compre e nem tudo se venda, que haja bens públicos e bens comuns como a água, a saúde, a educação. Descolonizar significa erradicar das relações sociais a autorização para dominar os outros sob o pretexto de que são inferiores: porque são mulheres, porque têm uma cor de pele diferente, ou porque pertencem a uma religião estranha.

CARTA VI

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ISTORICAMENTE, as esquerdas dividiram-se sobre os modelos de socialismo e as vias para os realizar. Não estando o socialismo, por agora, na agenda política, as esquerdas em várias regiões do mundo dividem-se sobre os modelos de capitalismo. À primeira vista, esta divisão faz pouco sentido pois, por um lado, há neste momento um modelo global de capitalismo, de longe hegemónico, dominado pela lógica do capital financeiro, assente na busca do máximo lucro no mais curto espaço de tempo, quaisquer que sejam os custos sociais ou o grau de destruição da natureza. Por outro lado, a disputa por modelos de capitalismo deveria ser mais uma disputa entre as direitas do que entre as esquerdas. De facto, assim não é. Apesar da sua globalidade, o modelo de capitalismo agora dominante assume características distintas em diferentes regiões do mundo, e as esquerdas têm um interesse vital em discuti-las, não só porque estão em causa as condições de vida, aqui e agora, das classes populares que são o suporte político das esquerdas, como também porque a luta por horizontes pós-capitalistas - de que algumas esquerdas ainda não desistiram, e bem dependerá muito do capitalismo real de que se partir. Curiosamente, ao contrário do que se passa em outras regiões do mundo, há um consenso perturbador entre as esquerdas europeias. As esquerdas europeias parecem estar de acordo em que o crescimento é a solução para todos os males da Europa. A aposta no crescimento económico é o que as distingue das direitas, apostadas na consolidação orçamental e na austeridade. O crescimento significa emprego e este a melhoria das condições de vida das maiorias. Este consenso é perturbador porque não problematizar o crescimento implica a ideia de que qualquer crescimento é bom, inclusive aquele que é obtido à custa da exploração desenfreada dos recursos naturais, da destruição ambiental e dos modos de vida de populações inteiras no

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mundo, seja europeu ou extraeuropeu, precisamente o tipo de crescimento que divide, por exemplo, a esquerda latino-americana. Ora, a ideia de que todo o crescimento é bom é suicida para as esquerdas. Por um lado, as direitas facilmente a aceitam (como já estão a aceitar, por estarem convencidas de que será o seu tipo de crescimento a prevalecer). Por outro lado, significa um retrocesso histórico grave em relação aos avanços das lutas ecológicas das últimas décadas. Ou seja, omite-se o facto hoje comprovado de que o modelo de crescimento dominante é insustentável. Em pleno período preparatório da Conferência da ONU Rio+20, não se fala de sustentabilidade, não se questiona o conceito de economia verde, mesmo que, para além da cor das notas de dólar, seja difícil imaginar um capitalismo verde. Este consenso entre as esquerdas europeias decorre do “pacto colonial” que sempre subscreveram, segundo o qual os avanços do capitalismo valem por si, mesmo que tenham sido (e continuem a ser) obtidos à custa da opressão de tipo colonial dos povos extraeuropeus. Nada de novo na frente ocidental enquanto for possível fazer o outsourcing da miséria humana e da destruição da natureza. Mesmo quando é cada vez mais visível que este outsourcing se complementa com o insourcing, isto é, com o empobrecimento e a miséria humana dos europeus. É urgente que as esquerdas europeias ponham em causa o consenso do crescimento, o qual ou é falso ou significa uma cumplicidade repugnante com uma injustiça histórica. É imperioso recomeçar a discutir a questão da sustentabilidade, pôr em causa o mito do crescimento infinito e a ideia da inesgotável disponibilidade da natureza, assumir que os crescentes custos socioambientais do capitalismo não são superáveis com imaginárias economias verdes, defender que a prosperidade e a felicidade da sociedade dependem menos do crescimento do que da justiça social e da racionalidade ambiental, ter a coragem de afirmar que a luta pela redução da pobreza é uma burla para disfarçar a luta que não se quer travar contra a concentração da riqueza.


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C H I N A C

NOS ATALHOS DA CIDA PUB

António Graça de Abreu EMBORA atravessada pelo rio Haihe -- e um curso de água costuma sempre alindar qualquer burgo --, a cidade de Tianjin (ou Tientsin) é feia e não costuma constar de quase nenhum itinerário turístico chinês. Está cheia de fábricas, de armazéns, de camiões, de movimento intenso, do bulício infernal das enormes metrópoles. Tianjin (ou Tientsin) terá hoje quase 11 milhões de habitantes. Duzentos e vinte quilómetros a sudeste de Pequim situa-se perto de Dagu, o porto no mar de Bohai por onde se escoa muita da produção industrial da vasta região norte da China que se estende desde Pequim a Tianjin, pontilhada por pequena e grande indústria. No passado, era já um centro importante de comércio e de distribuição de produtos, atravessada pelo troço final do Grande Canal que, com quase dois mil quilómetros de extensão, unia as regiões do sul com o norte da China Conheci Tianjin pela primeira vez em 1980 e no ano seguinte estava de regresso, já conto porquê. Depois a cidade tem-me ficado distante porque é um lugar que não me diz quase nada, com que não me identifico, que me passa ao lado da sensibilidade e do mediano gosto. Em 1980, com o embaixador João de Deus Ramos, de automóvel, percorri pela primeira vez os quilómetros que separam Pequim da cidade de Tianjin. Queríamos ambos conhecer o grande burgo e o nosso diplomata, amante dos livros como eu, ouvira falar no meio diplomático de Pequim de dois ou três alfarrabistas que em Tianjin vendiam livros antigos, obras das já então raríssimas edições publicadas em

inglês e francês nas primeiras décadas do século XX pela Commercial Press, Xangai, pela editora Henri Vetch, de Pequim, pela Imprimerie de la Mission Catholique, de Sien Sien, traduções de textos clássicos sobre a História, Filosofia, Civilização Chinesa. Depois de muito calcorrear as ruas do enorme burgo, lá chegámos a bom porto e regressámos a Pequim com a mala do carro carregada com uma colecção completa iniciada em 1898 do Toung Pao, Archives por servir à l’Étude e L’Histoire, des Langues, de la Géographie et de l’Etnographie de L’Asie Orientale, uma History of Chinese Philosophy, de Feng Yu-lan, de 1937, e mais uns tantos valiosos e raros livrinhos. Em 1981 viajei outra vez para Tianjin, de comboio, agora para aí permanecer durante quatro dias. Em Pequim conhecera um brasileiro de São Paulo chamado Tao Yu-shing, filho de pai e mãe chinesa, mas cidadão do Brasil, país onde já nascera. Os pais eram originários da província de Shandong e haviam emigrado para as terras brasileiras nos anos quarenta do século passado. Tao era o filho mais velho de três irmãos, tinha 25 anos, estava na altura de casar. O pai, para o colocar à frente dos seus negócios (possuía restaurantes, etc.), apresentou uma condição ao rapaz. O primogénito tinha de casar com uma mulher chinesa e de a ir buscar às origens, à China, a pátria que o Tao nem sequer conhecia. Ora na vasta família da província de Shandong existiam umas tantas meninas casadoiras. Troca de correspondência, o trabalho de uma casamenteira local que, pelos signos chineses dos potenciais nubentes ia


ADE DE

descobrindo compatibilidades, afinidades e gostos comuns, e aí estava encontrada a eleita, uma prima em terceiro grau, Tian Meichun, da família de Shandong mas há vários anos a residir com a mãe em Tianjin. O brasileiro Tao veio de São Paulo conhecê-la e concordou com a escolha. A menina não seria uma beldade mas era dócil, abria-se num sorriso afável, e prometia aturar todos os desvairos paulistas do seu chinês do Brasil, até ao fim da vida. Foi nesta fase, Julho ou Agosto de 1981, que conheci o Tao Yu-shing em Pequim. Eu estava então quase de partida para Portugal, a desfazer a minha casa no Youyi Binguan, o Hotel da Amizade onde residira nos

天津 TIANJIN

meus primeiros quatro anos de China. Algumas das coisas do meu lar foram vendidas ao Tao e embarcadas numa camioneta que veio buscá-las, desde Tianjin. Eram um frigorífico, um forno, móveis, uma aparelhagem Hi-Fi e destinavam-se a parte do dote para a mãe da Tian Meichun. Convidado pela família, visitei-as em Tianjin e fui impecavelmente bem recebido. Depois, na embaixada brasileira o Tao esperou meses e meses pelo visto de entrada no Brasil para a esposa Tian, que entretanto engravidou e acabou por ter um filho varão, já em terras brasileiras, para enorme satisfação dos avós paternos. A continuidade da família chinesa estava garantida e o Tao, em São

Paulo, passou a gerir os restaurantes e empresas do pai. Escreveu-me ainda uma vez a dar conta dos seus sucessos e a convidar-me para ir ao Brasil. Que será hoje feito do Tao Yu-shing e da Tian Meichun? A cidade de Tianjin não parou de crescer, acompanhando os ventos de modernidade que têm assolado a China. Conserva felizmente -- ao lado de recentes e horrorosos aranha-céus –, muitos dos edifícios dos anos dez e vinte do século XX quando era uma concessão estrangeira, uma espécie de “Xangai do norte” habitada por gente dos quatro cantos do mundo que por aqui soube acumular pequenas e grandes fortunas.

Estes estrangeiros deixaram a atestar a sua presença, significativa até 1949, cerca de uma centena de magníficos exemplares da arquitectura europeia de outrora. Até a igreja católica de Xikai construída em 1917 por jesuítas franceses, num estranho estilo neo-gótico com suas torres verdes a sobressair quase no centro da cidade, é um curioso exemplar da arquitectura com marca europeia na China. Tianjin é uma óptima cidade para compras. Nos shoppings, com a roupa tão barata e de alguma qualidade, as mulheres chinesas, sempre tão vaidosas, não param de vasculhar montras e prateleiras. Nestes últimos vinte e cinco anos foram reconstruídos uns tanto bairros antigos como a

Guwenhua Jie, a rua da Velha Cultura ou o Guwan Shichang, isto é, o Mercado Antigo, onde se podem encontrar, com a vetusta ambiência a flutuar pelos lugares, e a bons preços depois da necessária discussãozinha com o vendedor, os mais diversos produtos, como livros antigos (quase todos em chinês), móveis, pinturas, porcelanas (atenção que 4/5 das jarras, potes e vasos Ming e Qing são falsificações, puras antiguidades modernas), moedas, pincéis, tinta da China, lacas, cloisonnés, selos, pratas, cobres, madeiras gravadas, frasquinhos de rapé, relógios, os mais diversos objectos relacionados com Mao Zedong e a Revolução Cultural, enfim, “chinoiserie”, chinesices ao montes.

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D E P R O F U N D I S

a revolta do emir

Pedro Lystmann

ACNE PAPER Ir sozinho a um bar pode ser um supremo prazer, livros, jornais ou revistas companhias quase insubstituíveis e garante da sua observância. No primeiro desta série de textos lamentava-se a inexistência de um bar que proporcionasse o conforto necessário a este exercício, de modo nenhum exclusivamente masculino como alguns misóginos insistem em alardear. Esse lamento pode ter sido exagerado mas nasceu de uma indignação precisa e bem intencionada, resultante da falta de um lugar onde se aliasse o conforto ao bom gosto. Estou preparado para mudar um pouco de opinião e aceitar que há em Macau sítios decentes. Há, por exemplo, hotéis com lounges à altura, mas isso será conversa para outra sexta-feira. O lugar escolhido para esta é parte daquele que é, incontornavelmente, o bar mais animado da cidade e ilhas: O bar do décimo sexto andar do Hotel Star World. Em altura mais oportuna se falará da diversidade da sua geografia e da sua animação, hoje lembre-se apenas que a sua sala de fumo é um lugar decentíssimo para dissipar parte destas semanas que medeiam entre Roland Garros e Wimbledon, o início oficial do Verão. Mas não nos antecipemos. Esta Primavera aparece adornada com a saída de mais um número de uma revista de leitura imprescindível, companhia suprema de um fim de tarde: uma revista que trai uma legítima ambição, a

de Criar uma Nova Expressão – a Acne Paper. A sala de fumo do bar do décimo sexto andar é suficiente à celebração da chegada do número de Primavera, este dedicado ao corpo. Nela (na revista, não na sala de fumo), se estendem, inscrevem, encolhem, exibem e surpreendem, corpos femininos e masculinos (muitos), mais ou menos despidos, contemporâneos, seiscentistas e setecentistas, cheios e delgados, numa mesma celebração de qualquer coisa, que eu não sei bem o que é mas que faz antecipar com muita ansiedade a chegada ao território de cada um dos seus números, poucos, cerimoniosos, quase tímidos. Torsos, pernas, genitalia, mãos de homens e mulheres novos e velhos, o mesmo papel macio e as palavras expostas num lettering elegante e miúdo. Esta sala, uma pequena chambre, propicia intimidade bastante para a satisfação deste prazer, de desfrute preferencialmente solitário. A bebida de abertura será obrigatoriamente algo erótico e primaveril, um martini líchea. A esta hora da tarde praticamente não há outros clientes e ainda está sol. São variadíssimos os assuntos tratados na Acne Paper da Primavera deste ano. Estudos anatómicos de Leonardo da Vinci, a imagem do corpo de Cristo, a arte perturbante, feminista e violenta de Louise Bourgeois, o corpo no Egipto Antigo, muita moda, dança, desenhos a carvão, uma separatazinha deliciosa sobre

Lillian Bassman e Paul Himmel, 15 reproduções de quadros de Rubens cheios de mulheres gordinhas barrocas fofinhas, fotografias de Gillian Wearing, futilidades utilíssimas e um longo et cetera de mais de 250 páginas. Se isto começa a parecer uma lista é que há aqui um deleitoso delírio e uma vertiginosa abundância. Faz lembrar que perder tempo com revistas como a Wallpaper ou a Monocle (gazetas oficiais de um tipo de ditadura do gosto) é um puro disparate, um suicídio, penso eu a meio do cosmopolitan onde vou buscar o açúcar que o martini parece que não tem. Neste número 13 da revista sueca há uma entrevista com a irmã Wendy Beckett sobre um assunto de especial relevância pascal e erótica (perdoar-me-ão decerto o atraso), o da representação da imagem do corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo. Confesso-me. De entre as imagens crísticas em que este aparece quase nu tenho as minhas preferidas. Às pietàs, aos baptismos e às crucificações prefiro uma outra, mais contorcida e dramática, despida de esperança - a apokathelosis (a descida, ou descimento da cruz), precisamente a décima terceira estação da via dolorosa. Admito que o meu quadro preferido é uma escolha um pouco banal, o famoso quadro de van der Weyden que está no Prado, em Madrid, provavelmente, entre outras razões, pelo tratamento de câmara dado a um assunto que é normalmente exterior. A terrível diagonal de um dos quadros de Rubens que retrata o mesmo episódio poderia, no entanto, levar-me a mudar de opinião. Muito interessante é o esclarecimento que a famosa virgem consagrada, autora de 15 livros e inúmeros programas para a BBC, nos oferece ao dizer que não existe na Bíblia a mínima referência à aparência física de Cristo, todas as imagens que conhecemos são puras conjecturas. A pietà, como todas as outras representações, não passa de uma invenção artística, a crucificação, por exemplo, estabelecida como hábito numa época relativamente tardia. Não há qualquer pista quanto à sua altura, traços fisionómicos ou cor da sua pele. A irmã Beckett esclarece ainda que até aos mestres italianos o seu aspecto permaneceu muito palestiniano, e só com o hábito daqueles Cristo passou a ter um rosto mais europeu. Tudo é invenção nossa. Nesta altura, em que a noite já se instalou, e a meio do segundo cosmopolitan, o rosto da empregada que tão industriosamente me serve, a Senhora Amy, excepcionalmente bronzeado, começa a ganhar um sinistro contorno crístico. Apetecia-me recuar e falar de uma Anunciação mas isso ficará para outra sexta-feira.


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T E R C E I R O O U V I D O

próximo oriente

Hugo Pinto

EM REDE Há duas semanas, falei aqui do projecto Metrowaves, dinamizado por Markus M. Schneider, alemão residente em Pequim, e Mumu Wang. Com origem na capital chinesa, Metrowaves centra a acção na promoção de novos formatos de encontro e diálogo entre produtores de música electrónica e a respectiva audiência. Com o inestimável apoio do Goethe-Institut, Metrowaves organizou, entre 23 e 26 de Maio, a primeira edição da conferência “ME:CON - Metrowaves Electronic Music Convention”. Pela primeira vez, vários agentes da China e do estrangeiro (responsáveis de editoras, promotores de eventos, gestores de clubes nocturnos e de outros recintos de espectáculos, músicos, DJ e membros dos media) debateram, em conjunto, o presente e o futuro do movimento da música electrónica na República Popular. Não tendo podido participar neste evento, restou-me acompanhar a iniciativa à distância graças à Internet e graças à disponibilidade e generosidade de Markus M. Schneider. Foi ele que me deu conta de “quatro dias intensos de música, reflexões, conversas e intercâmbios”. Já aqui destaquei que esta conferência surgiu num momento oportuno em que urge pensar os caminhos que a música electrónica vai tomando na China. Quem conhece Pequim (a capital a diversos níveis, incluindo as expressões artísticas urbanas e contemporâneas, nas quais se inscreve a música electrónica), sabe das transformações que vão acontecendo a todo o momento e em (quase) todos os lugares da imensa urbe.

Há uma vaga de expatriados (muitos já enraizados) dinâmicos e em perfeita sintonia com os residentes locais mais criativos. Há eventos e há espaços (discotecas, salas de concertos, bares, restaurantes), onde o bom gosto reina e a atmosfera faz esquecer que Pequim é a capital de um regime comunista e algo fechado. Na verdade, a cidade pulsa e tem sede. A conferência “ME:CON”, como não podia deixar de ser, enquadrou-se neste espírito. Diz Markus que “a reacção [dos participantes e da audiência] foi imediata e positiva”, tendo-se tornado “óbvio”, desde o primeiro momento, que uma segunda edição realizar-se-á no próximo ano. “Tanto a conferência como os contactos pessoais demonstraram que existe a necessidade para um formato destes, e mostraram também que há um grande potencial para o desenvolvimento futuro e para que se torne na plataforma da cena musical de Pequim”. Ainda em tempo de balanços, Markus prevê que uma segunda edição da conferência aproveite as ideias entretanto afloradas na primeira edição, e que uma maior audiência possa contribuir para “um novo capítulo da cultura de música urbana da cidade”. A escolha dos locais por onde “ME:CON” foi passando nesta sua primeira vida espelham a “movida” da Pequim actual. Sempre em “tom aberto e informal”, como se impõe, a conferência abriu num sítio chamado “The Other Place”, “um pátio recente, localizado no cruzamento entre Beiluoguxiang com Langjia Hutong”; ou seja, “o sítio ideal para uma noite relaxada de conversa, comida e bebida.”

Seguiram-se outros locais “trendy”, da moda, incluindo paragens no recentemente aberto XP (sucessor da lendária sala de concertos D-22), na “Tangsuan Radio”, a estação de rádio onde a música electrónica domina, entre outros. O programa da conferência estava dividido em quatro grandes secções: história recente e contexto actual da música electrónica em Pequim, com Josh Feola (Pangbianr/XP, Pequim), Michael Vonplon (SwissKiss/MiroChina, Zurique) e Zhang Youdai (Pequim), dois dos pioneiros da música electrónica chinesa; outra secção aberta às contribuições regionais (Xangai, Chengdu e Taipé); uma secção focada nos convidados estrangeiros; e, finalmente, uma secção dedicada à produção e actividade editorial, bem como aos processos e modelos de distribuição da música, com o músico/ produtor/curador de Colónia Till Rohmann (Glitterbug) e Detlef Diedrichsen, da editora C.Sides e director do festival Worldtronics, que se realiza em Berlim. Além da partilha de experiências, era vontade da organização criar, também, o ambiente propício para encetar colaborações que dêem sentido a uma rede internacional ligando a China ao resto do mundo. Nesse sentido, um fruto que já pode ser colhido desta primeira conferência é a participação da organização Metrowaves na edição deste ano do festival Worldtronics, com a responsabilidade de programar um dia dedicado à música electrónica “made in China”. Espero dar muitas mais notícias deste tipo nos tempos vindouros. Há um próximo Oriente.

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À S U P E R F Í C I E

EUGÉNIO DE ANDRADE EDITORA DE MACAU PUBLICA TRADUÇÃO CHINESA

“BRANCO NO BRANCO” A editora Livros do Meio vai lançar na próxima quarta-feira, dia 13 de Junho, pelas 18 e 30 horas, na Casa de Porgtugal, por ocasião do sétimo aniversário da morte do poeta, a tradução em Língua Chinesa, por Yao Feng (pseudónimo de Yao Jingming), do livro “Branco no Branco”, de Eugénio de Andrade (1923 - 2005). “BRANCO NO Branco” é o diário de um período passado num “lugar ao sul”, onde o sal e a areia pontuam o desejo. E, sobretudo, onde se vislumbra em filigrana a perfeição. Poemas iluminados pelo sol cru do sul, constituem uma obra que prima por uma sensibilidade sensual e delicada. Escrito na sua maioridade literária, este livro valeu a Eugénio de Andrade vários prémios, entre os quais o prestigioso Pen Club 1984.

O POETA

Eugénio de Andrade nasceu em 19 de Janeiro de 1923 em Póvoa de Atalaia, Fundão, no seio de uma família de camponeses. A sua infância foi passada com a mãe, na sua aldeia natal. Mais tarde, prosseguindo os estudos, foi para Castelo Branco, Lisboa e Coimbra, onde residiu entre 1939 e 1945. Em 1947 entrou para a Inspecção Administrativa dos Serviços Médico-Sociais, em Lisboa. Em 1950 foi transferido para o Porto, onde fixou residência. Abandonou a ideia de um curso de Filosofia para se dedicar à poesia e à escrita, actividades pelas quais demonstrou desde cedo profundo interesse, a partir da descoberta de trabalhos de Guerra Junqueiro e António Botto. Camilo Pessanha constituiu outra forte influência do jovem poeta Eugénio de Andrade. Embora não se integre em nenhum dos movimentos literários que lhe são contemporâneos, não os ignorou, mostrando-se solidário com as suas propostas teóricas e colaborando nas revistas a eles ligadas, como Cadernos de Poesia; Vértice; Seara Nova; Sísifo; Gazeta Musical e de Todas as Artes; Colóquio, Revista de Artes e Letras; O Tempo e o Modo e Cadernos de Literatura, entre outras. A sua poesia caracteriza-se pela importância dada à palavra, quer no seu valor imagético, quer rítmico, sendo a musicalidade um dos aspectos mais marcantes da poética de Eugénio de Andrade, aproximando-a do lirismo primitivo da poesia galego-portuguesa ou, mais recentemente, do simbolismo de Camilo Pessanha. O tema central da sua poesia é a figuração do Homem, não apenas do eu individual, integrado num colectivo, com o qual se harmoniza (terra, campo, natureza - lugar de encon-

tro) ou luta (cidade - lugar de opressão, de conflito, de morte, contra os quais se levanta a escrita combativa). A figuração do tempo é, assim, igualmente essencial na poesia de Eugénio de Andrade, em que os dois ciclos, o do tempo e o do Homem, são inseparáveis, como o comprova, por exemplo, o paralelismo entre as idades do homem e as estações do ano. A evocação da infância, em que é notória a presença da figura materna e a ligação com os elementos naturais, surge ligada a uma visão eufórica do tempo, sentido sempre, no entanto, retrospectivamente. A essa euforia contrapõe-se o sentimento doloroso provocado pelo envelhecimemto, pela consciência da aproximação da morte (assumido sobretudo a partir de Limiar dos Pássaros), contra o qual só o refúgio na reconstituição do passado feliz ou a assunção do envelhecimento, ou seja, a escrita, surge como superação possível. Ligada à adolescência e à idade madura, a sua poesia caracteriza-se pela presença dos temas do erotismo e da natureza, assumindo-se o autor como o «poeta do corpo». Os seus poemas, geralmente curtos, mas de grande densidade, e aparentemente simples, privilegiam a evocação da energia física, material, a plenitude da vida e dos sentidos. Foi galardoado com o Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores, atribuído a O Outro Nome da Terra (1988), e com o Prémio de Poesia Jean Malrieu, por Branco no Branco (1984). Recebeu ainda, em 1996, o Prémio Europeu de Poesia. Foi criada, no Porto, uma fundação com o seu nome. Autor de uma importante obra poética, podem referir-se os seguintes títulos: Adolescente (1942); As Mãos e os Frutos (1948); Os Amantes sem Dinheiro (1950); As Palavras Interditas (1951); Até Amanhã (1956); Conhecimento da Poesia (1958); O Coração do Dia (1958); Os Afluentes do Silêncio (1968); Obscuro Domínio (1971); Limiar dos Pássaros (1972); Véspera da Água (1973); Memória de Outro Rio (1978); Matéria Solar (1980); O Peso da Sombra (1982); Poesia e Prosa, 1940-1989 (1990), O Sal da Língua (1995), Alentejo (1998), Os Lugares do Lume (1998) e Antologia Pessoal de Poesia Portuguesa (1999). Organizou ainda, várias

antologias, como a que dedicou ao Porto (Daqui Houve Nome Portugal, 1968) e a Antologia Breve (1972). Em 2000, publica Poesia. Escreveu também livros para crianças. É um dos poetas portugueses mais traduzidos para outras línguas. Em 1982, o Governo português atribuiu-lhe o grau de Grande Oficial da Ordem de Sant’Iago da Espada e a Grã-Cruz da Ordem de Mérito em 1988. Em 1986, recebeu o Prémio da Associação Internacional dos Críticos Literários. Em 1996, recebeu o Prémio Europeu de Poesia da Comunidade de Varchatz (Jugoslávia). Em 1999 organizou a obra Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa. Em Maio de 2000, recebeu o Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores, entregue pelo Presidente da República. O prémio distingue todo o percurso e toda a obra do escritor. Também recebeu, no mesmo ano, o Prémio Extremadura de criação literária e o Prémio Celso Emilio Ferreiro, para autores ibéricos. Em Fevereiro de 2001, Eugénio de Andrade recebeu o Prémio Celso Emilio Ferreiro, na Galiza. Em Maio, Eugénio de Andrade foi homenageado no Carrefour des Littératures, em França.Em Julho, foi atribuído ao poeta

o Prémio Camões, que se mostrou satisfeito, quer pelo prestígio do galardão, quer por ver o seu nome associado ao de Luís de Camões. O poeta faleceu na cidade do Porto, em Portugal, no dia 13 de Junho de 2005.

O TRADUTOR

Pseudónimo de Yao Jingming, nascido em Pequim, 1958. Doutorou-se em Literatura Comparada pela Universidade Fudan, em Shangai. Actualmente, é Professor Auxiliar no Departamento de Português da Universidade de Macau. Além de ter traduzido para o chinês dezenas de poetas portugueses, já publicou cinco obras de poesia, em chinês e em português: Nas asas do vento cego (1990), Confluência (1997), Viagem por momentos (1999), A noite deita-se comigo (2001) e Canção para longe (2006). A ligação de Yao Jingming à poesia portuguesa e a Eugénio de Andrade começou há cerca de 20 anos, quando se preparava para viver em Lisboa. Recebeu vários prémios e coordena a revista Poesia SinoOcidental. Em 2006, recebeu a insígnia da Ordem Militar de Santiago de Espada, atribuída pelo Estado português.


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DOIS ENSAIOS SOBRE ARTE CONTEMPORÂNEA Luís Naves in Fragmentário

DOIS VENCEDORES do Prémio Nobel da Literatura (Orhan Pamuk e Mario Vargas Llosa) escreveram recentemente pequenos ensaios, com a característica comum do estilo elegante e da riqueza de ideias. O escritor turco publicou um livro já traduzido em português O Romancista Ingénuo e o Sentimental (Ed. Presença) que junta as suas conferências sobre literatura, na Universidade de Harvard. Estas conferências são uma velha série que já deu pelo menos um outro livro famoso sobre a arte da escrita, Aspects of the Novel, de E. M. Forster (este último escrito nos anos 20, é provável que esteja em português, mas só conheço a versão inglesa). Julgo que o livro de Pamuk não é apenas sobre a escrita, mas sobre o prazer da leitura. O texto está repleto de observações acessíveis, nada pretensiosas ou demasiado técnicas. A certo ponto, o escritor explica como um dos seus prazeres na leitura de romances é o de tentar adivinhar aquilo que num texto é imaginário ou vivido. O autor explora de forma muito inteligente conceitos como a autenticidade, os jogos entre o real e o imaginário, a fragmentação e a noção de que os grandes romances têm um “centro”, enfim, chamem-lhe eixo ou núcleo, mais ou menos escondido e cuja busca é, para Pamuk, o essencial do prazer da leitura. “A escrita do romance, para mim, é a arte de falar de coisas importantes como se fossem insignificantes e de coisas insignificantes como se fossem importantes”, escreve o romancista na pág. 120 deste breve ensaio que não se esgota numa única leitura.

O peruano Vargas Llosa publicou entretanto em Espanha um trabalho, La civilización del espectáculo, (Alfaguara) que certamente não tardará a ser traduzido em Portugal, pois é o seu primeiro livro escrito depois do prémio. A obra é bem mais pessimista do que a de Pamuk, tratando-se de uma reflexão sobre a degradação da cultura e o declínio dos intelectuais e das elites. “Na civilização do espectáculo, o intelectual só interessa se seguir o jogo da moda, tornandose num bobo” (pág. 46), afirma Vargas Llosa, descrente da qualidade da literatura contemporânea e muito crítico da falta de originalidade e do excesso de niilismo nas artes. “Nos nossos dias, o que se espera dos artistas não é o talento nem a destreza, mas a pose e o escândalo, os seus atrevimentos não são mais do que as máscaras de um novo conformismo” (pág. 49). O livro explora outros aspectos do quotidiano, da educação à política, a banalização do poder e das ideias, a superficialidade nas próprias relações humanas, o consumismo desenfreado. São amplamente citados e discutidos outros autores que exploraram esta ideia da civilização do espectáculo (a expressão não é de Vargas Llosa) e talvez o autor seja demasiado pessimista na sua visão de que a cultura está a ponto de desaparecer. Certas ideias foram exploradas pelo romancista peruano em crónicas antigas, algumas das quais são incluídas no volume. É inegável que, tal como diz Vargas Llosa, hoje triunfa o frívolo e o entretenimento, ao mesmo tempo que os intelectuais (como os concebemos no passado) se tornam invisíveis na nossa sociedade, desprovidos de qualquer influência. Enfim, este é um livro muito bem escrito e de grande clareza, cuja rápida tradução será bem útil.

“Na civilização do espectáculo, o intelectual só interessa se seguir o jogo da moda, tornando-se num bobo”, afirma Mario Vargas Llosa, descrente da qualidade da literatura contemporânea e muito crítico da falta de originalidade e do excesso de niilismo nas artes.

RAY BRADBURY (1920-2012) O mestre da ficção científica, o escritor norteamericano Ray Bradbury, autor de Fahrenheit 451 (1953), adaptado ao cinema pelo francês François Truffaut, e de Crónicas Marcianas (1950) morreu terça-feira, aos 91 anos, em Los Angeles. “Mr. Bradbury morreu serenamente, a noite passada, em Los Angeles, depois de uma longa doença”, disse à Reuters um porta-voz da editora norte-americana HarperCollins. O seu neto Danny Karapetian e o biógrafo, Sam Weller, confirmaram a notícia ao blogue dedicado à ficção científica io9. “O mundo perdeu um dos seus maiores escritores e uma das pessoas que me eram mais queridas”, twittou Karapetian. “[Foi] a maior criança que conheci”, disse ainda ao blogue especializado. Nascido em Agosto de 1920 no estado do Illinois, Ray Bradbury, um dos fundadores da literatura fantástica contemporânea, deixouse fascinar pelos livros aos sete anos, com Edgar Allan Poe, e aos 17 estreava-se nas páginas de uma revista de ficção científica, com a primeira novela das quase 500 que assinou, “Script”. Aos 14, quando os pais se mudaram para Los Angeles, transformara-se num rato de biblioteca e dizia muitas vezes que era um escritor autodidacta, que aprendera simplesmente a ler os grandes autores: “Ensinaram-me Shakespeare e Júlio Verne. Foi Edgar Allan Poe que me disse para escrever. […] Os grandes nomes foram a minha influência e com eles nunca precisei de mais conselhos”, contou numa entrevista agora citada pelo diário espanhol El País. Tendo começado pelas novelas de terror, foi com Crónicas Marcianas e Fahrenheit

451 que atingiu o sucesso. A primeira é uma obra sobre os riscos da desumanização perante o avanço científico, a segunda, feita numa máquina de escrever que precisava de uma moeda para funcionar, na biblioteca da Universidade da Califórnia, evoca os perigos do totalitarismo através da criação de uma era de guerra em ignorância, em que os bombeiros se ocupavam da queima de livros e não da extinção de incêndios, explicava ontem o diário britânico The Guardian. Autor prolífico – para além de centenas de novelas escreveu mais de 30 romances, contos e poemas, além de guiões para cinema e televisão –, Ray Bradbury fazia dos seus livros em que criava mundos fantásticos espaços de crítica aos excessos da sociedade contemporânea. Em 2010, por exemplo, chegou mesmo a defender numa entrevista ao jornal Los Angeles Times que os Estados Unidos precisavam de uma “revolução” para travar o poder desmesurado do Governo. “Na vida, como na escrita, devemos agir com paixão: [assim] as pessoas vêem que somos honestos e perdoam-nos muita coisa”, disse Bradbury noutra conversa citada esta quartafeira pela AFP. Um dos autores mais lidos da sua geração, Ray Bradbury manteve até ao fim o mesmo entusiasmo, dizem familiares e amigos. “A coisa mais divertida da minha vida é levantarme cada manhã e correr para a máquina de escrever porque tenho uma ideia nova”, confessou em 2000 este homem da ficção científica que sempre se recusou a publicar seus livros em formato electrónico e dizia com frequência que as pessoas tinham gadgets a mais.


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O L H O S A O A L T O

gente sagrada

保生 大帝

José Simões Morais

O médico que há mil anos curava o cancro da mama ainda agora é um deus

BAO SHENG DA DI, DEUS DA MEDICINA Wu Tao (吴本) nasceu no dia 15 da terceira Lua do ano de 979, durante a dinastia Song do Norte, na prefeitura de Quanzhou, actual província de Fujian. Divergentes são as histórias contadas sobre esta pessoa, que dedicou a sua vida a curar todos os que lhe pediam ajuda, sem cobrar dinheiro aos mais pobres. Como daoista, prezava a vida acima de toda a materialidade e não poupava esforços para conseguir encontrar uma solução, ou uma planta, o que o tornou num grande alquimista, adquirindo assim excepcionais conhecimentos médicos. Por tudo isso se tornou um imortal e um dos deuses da Medicina. Há fontes que afirmam ter Wu Tao como antepassado longínquo Tai Bo, um dos dois príncipes do reino Zhou, irmãos do rei Tai, que emigraram no século XI a.C. do Noroeste para junto do rio Yangtze, onde fundaram o reino Wu, tendo tomado o apelido Wu. Desde cedo Wu Tao revelou ser uma pessoa inteligente e com grande memória, sempre atento aos efeitos das plantas nas curas de doenças, mostrando aos 17 anos apetência para a medicina tradicional. Perante tamanhas capacidades, muita gente cria que ele estava tocado pela protecção e apoio divino. Mas já outras fontes dizem ser de uma família pobre de agricultores. Logo desde pequeno começou a trabalhar a terra, fazendo uso também da cana de pesca para trazer algum peixe para casa. Ainda adolescente, perdeu o pai vítima de doença e pouco tempo depois, da mesma forma, a mãe. Com grande interesse em aprender e muito curioso, foi adquirindo os saberes das pessoas da sua aldeia sobre os efeitos terapêuticos das plantas. Certa vez, andava ele pelos 17 anos de idade quando teve a sorte de encontrar o seu mestre de medicina tradicional. Este passava pela povoação e, percebendo o interesse de Wu Tao, que sem família lhe propôs ser seu ajudante, acolheu-o e tomou-o como discípulo. Assim começaram as suas viagens. Na montanha aprendeu a reconhecer novas plantas e as suas propriedades e pelas povoações ajudava o seu benfeitor a tratar das maleitas das pessoas. Como bom aluno ganhou o ofício de médico e pela grande experiência adquirida, o seu nome passou a ser conhecido pelo território Song.

Tinha fama de muitas vezes ter soluções que contradiziam as dos mais conceituados doutores e, no entanto, revelavam-se mais eficientes. Certo dia, a imperatriz sofrendo de um problema num seio e, sem que os médicos da corte conseguissem encontrar a solução, foi então necessário chamar Wu Tao, que a curou. Logo o imperador lhe propôs ficar como médico da corte, o que recusou tal como os outros favores materiais que lhe foram dados. No segundo dia do quinto mês lunar do ano de 1036, andava pela montanha à procura de uma planta para tentar salvar uma pessoa pobre, que tinha uma doença muito difícil de curar, quando caindo por uma ravina se passou desta vida. Os habitantes da localidade de Xiamen construíram-lhe um pequeno templo. Quando mais tarde, quiseram-no ampliar mas perceberam não ter dinheiro para tal. Um dia a água do poço do templo começou a transbordar e as pessoas acharam o fenómeno estranho. Então provaram a água, achando-a muito pura e com um cheiro perfumado, percebendo depois ter propriedades curativas. Já na dinastia Song do Sul, o imperador Gao Zong (1127-62) mandou construir um templo em sua honra, Ci Ji Gong e o seu filho, Xiao Zong Di (1162-89), em 1171 deu-lhe o título de “Imortal do Grande Tao”. Séculos depois na dinastia Ming, durante o reinado do imperador Cheng Zu (14031424), a rainha com um problema num seio e após muitos médicos não conseguirem encontrar uma cura, foi lembrada a história de Wu Tao. Assim a imperatriz foi orar ao templo e através do mestre daoista que segunda a lenda deu corpo ao espírito de Wu, ficou curada do cancro da mama. Logo o imperador lhe atribuiu o título de Grandioso Imperador que Preserva a Vida e mais tarde o imperador Ren Zong (1424-25) colocou o manto imperial a Bao Sheng Da Di. Conhecido em Macau pelo deus I Leng, é um dos muitos deuses da Medicina, e está intimamente ligado aos habitantes de Fujian. A sua estátua não se encontra na sala principal do templo I Leng, mas noutra que compartilha com vários outros deuses, mas nunca com A-Má. O templo de I Leng situa-se paredes meias com o templo a Bao Gong, na Rua da Figueira.


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L E T R A S S Í N I C A S

HUAI NAN ZI 淮南子

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O LIVRO DOS MESTRES DE HUAINAN

Quando a água está poluída, os peixes asfixiam.

DO ESTADO E DA SOCIEDADE – 8 Aqueles que conhecem a fonte da lei e da ordem mudam de forma a se adaptarem aos tempos. Aqueles que não conhecem a fonte da lei e da ordem mudam com os costumes. As maneiras e os deveres mudam com os costumes. Os eruditos ocupam-se em seguir precedentes, mantendo o novo com base no convencional e considerando que, de outro modo, a governação seria impossível. Ora, isto é como tentar introduzir uma cavilha quadrada num orifício redondo. *** A razão pela qual se estabelecem líderes é para eliminar a violência e estancar a desordem. Nos dias que correm, [os líderes] aproveitam-se do poder do povo para, eles próprios, delapidarem. São como tigres alados – porque não deveriam ser eliminados? Se queres criar peixes num lago, tens de te livrar das lontras; se queres criar animais

domésticos tens de te livrar dos lobos – quão mais verdade é isto no governo do povo! *** Os líderes de nível inferior perdem a sua liderança de nível inferior na ambição por autoridade de nível médio. Os líderes de nível médio perdem a sua liderança de médio nível na ambição por autoridade de alto nível. *** Acalentar as perversidades de um indivíduo, assim aumentando os problemas por toda a terra, é inaceitável à razão natural. *** Quando os líderes são dados à benevolência, os meritórios são recompensados e os criminosos andam à solta. Quando os líderes são demasiado dados ao castigo, os meritórios são rejeitados e

os ignorantes massacrados. Quanto àqueles que a nada são dados, oferecem sem recompensa e castigam sem ressentimento. *** Quando a água está poluída, os peixes asfixiam; quando o governo é duro, o povo revolta-se. *** Quando a sociedade é ordeira, protegemo-nos com a justiça; quando a sociedade é confusa, temos de nós próprios proteger a justiça. *** A duplicidade não conquista nem uma só pessoa; a franqueza pode conquistar cem pessoas. Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho

HUAI NAN ZI (淮南子), O Livro dos Mestres de Huainan foi composto por um conjunto de sábios taoistas na corte de Huainan (actual Província de Anhui), no século II a.C., no decorrer da Dinastia Han do Oeste (206 a.C. a 9 d.C.). Conhecidos como “Os Oito Imortais”, estes sábios destilaram e refinaram o corpo de ensinamentos taoistas já existente (ou seja, o Tao Te Qing e o Chuang Tzu) num só volume, sob o patrocínio e coordenação do lendário Príncipe Liu An de Huainan. A versão portuguesa que aqui se apresenta segue uma selecção de extractos fundamentais, efectuada a partir do texto canónico completo pelo Professor Thomas Cleary e por si traduzida em Taoist Classics, Volume I, Shambhala: Boston, 2003. Estes extractos encontram-se organizados em quatro grupos: “Da Sociedade e do Estado”; “Da Guerra”; “Da Paz” e “Da Sabedoria”. O texto original chinês pode ser consultado na íntegra em www.ctext.org, na secção intitulada “Miscellaneous Schools”.


FERNANDA DIAS Uma leitura do

YI JING O SOL, A LUA

E A VIA DO FIO DE SEDA A nova tradução do livro que há milénios ilumina a civilização chinesa


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