PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nツコ 2406. Nテグ PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE
ARTES, LETRAS E IDEIAS
h NOAM CHOMSKY
O AMERICANO INTRANQUILO
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Ícone da esquerda americana, o linguista Noam Chomsky disse que está “empolgado” com as reformas promovidas por governos de esquerda na América do Sul, mas que há problemas pendentes. Entre eles, a falta de independência da Justiça na Venezuela, apontada há tempos por organizações de direitos humanos. Chomsky, 82, publicou neste domingo num jornal de Caracas uma carta aberta em apoio à libertação da juíza María Lourdes Afiuni, que foi detida em 2009 depois de conceder liberdade condicional a um banqueiro acusado de fraude cambial. A juíza diz que o processo contra ela é político; para o professor americano, as acusações são “bastante frágeis”. Ele tem tentado sem sucesso fazer uma mediação silenciosa por Afiuni há sete meses, a pedido da Iniciativa LatinoAmericana do Centro Carr de Políticas de Direitos Humanos, da Universidade Harvard. Agora, pede publicamente que o presidente venezuelano Hugo Chávez conceda à juíza um “perdão oficial”.
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Noam Chomsky pede a Hugo Chávez clemência para juíza
“O PROCESSO JUDICIAL NOS EUA É GROTESCO” in Folha de São Paulo - Como se convenceu da inocência da juíza Afiuni? CHOMSKY - A carta não diz nada sobre a sua culpa ou inocência, não toca nessa questão. Pessoalmente, considero as acusações bastante frágeis, mas nem eu nem o Centro Carr estamos em posição de avaliar a prova, que de facto não foi apresentada. A carta é um pedido de clemência em bases humanitárias, considerando a desafortunada história dos últimos três anos. Deixa implícito que o processo
judicial não foi adequado. Diz que ela já passou por violência e humilhação suficiente e deve receber clemência. - Grupos de direitos humanos e a OEA (Organização dos Estados Americanos) acusam o governo venezuelano pela falta de independência do Judiciário. Qual a sua posição sobre isso? Acho que as acusações feitas pela Amnistia Internacional e a OEA merecem ser levadas muito a sério. Devo acrescentar que as críticas feitas pelos EUA partem de bases frágeis. O processo judicial nos EUA é grotesco.
Agora mesmo, por exemplo, Bradley Manning, contra quem nenhum acusação formal foi feita, está preso há quase ano, boa parte dele em confinamento solitário, que equivale a tortura. Não há nenhuma acusação, e esse não é o único caso. - O facto de o presidente Chávez estar agora doente, em Havana, pode ter algum impacto no seu pedido de clemência? Não vejo nenhuma relação com o pedido de clemência. Mas estou atento à saúde do presidente e espero a sua total e pronta recuperação.
- Quando esteve na Venezuela, em 2009, que impressões teve das conversas com Chávez? Eu estive por algumas horas, muito brevemente. Dei palestras, entrevistas, fui a um encontro numa das favelas e estive com o presidente Chávez. Foi uma conversa interessante e informativa, basicamente sobre a sua trajectória, as suas políticas, a relação com os Estados Unidos. - Sendo Chávez um seu admirador declarado, que peso julga que a publicação da carta terá? Devo dizer que estou envolvido com coisas como essas o tempo todo, em vários países. Nunca sabemos como vão funcionar, mas tentamos. - Chávez respondeu formalmente aos seus pedidos anteriores pela liberdade da juíza? Não houve resposta, mas quase nunca há respostas de Executivos, a não ser em formas vazias de sentido, se tanto. - O sr. sempre foi um defensor do governo de Chávez e de outros governos de esquerda na América Latina. Factos como esse o desapontam? Dizer que eu sou um defensor [dos governos] é um pouco enganoso. Sou um defensor da independência da América Latina e de que ela enfrente os seus tremendos problemas internos, que têm sido um escândalo internacional por muito tempo. Isto começou a acontecer na última década. Pela primeira em 500 anos houve movimentos na América Latina na direcção da integração de sociedades que estiveram separadas por muito tempo. E houve esforços, nalguns casos bastante significativos, de resolver os graves problemas de desigualdade, pobreza, alta concentração de renda. Acho isso muito bom, e nesse sentido sou um defensor. Acho que os eventos na América do Sul na última década são provavelmente os mais empolgantes no mundo. Agora mesmo a chamada Primavera Árabe pode ser o início de algo similar no Médio Oriente. Mas há problemas em todo lugar, incluindo no Brasil, e acho que esses naturalmente preocupam, assim como problemas nos EUA me preocupam seriamente. - Que problemas dizem respeito ao funcionamento da democracia? Ao Judiciário, uma vez que estamos a falar disso. Quando há julgamentos militares, e
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uma prisão prolongada sob condições que equivalem à tortura sem acusações, ou prisões de alta segurança como há nos EUA, que são basicamente câmaras de tortura, isso é um problema grave. - Na Venezuela, o caso fere as suas expectativas? Não tenho nenhuma expectativa particular. Eu acompanho o que acontece com interesse. Acho que há problemas e progresso. Espero que haja clemência no caso da juíza, que as questões que estão surgindo sobre o Judiciário sejam resolvidas e que os programas de redução da pobreza, as Missões de saúde, sejam bem-sucedidos e vibrantes. - Muitos analistas nos EUA fazem uma diferenciação entre Chávez e o ex-presidente Lula, como líderes de modelos opostos. Vê essa clivagem? Sabe melhor do que eu que Lula sempre apoiou Chávez. Há diferenças, claro. Mas o esforço nos EUA de traçar uma distinção é parte da campanha de propaganda contra a Venezuela, que é intensa. A atitude em relação a Lula é bem interessante. O governo e as políticas de Lula não são tão diferentes das de João Goulart no início dos anos 1960. Naquela época o governo de John Kennedy organizou um golpe militar, que ocorreu logo após o seu assassinato, para instalar o terrível Estado de segurança nacional que bloqueou passos moderados na direcção da democracia e da reforma social. Nos anos recentes, as coisas mudaram. O facto de que os EUA e a sua propaganda sejam compelidos a apresentar Lula como um padrão, em vez de criticá-lo por não ser suficientemente subserviente, por exemplo no caso do Irão, é uma indicação das mudanças na América Latina pelos últimos dez anos. No caso da Venezuela, como você sabe, houve uma tentativa dos EUA de realizar um golpe militar [contra Chávez, em 2002]. - Lula é muito elogiado por não ter tentado continuar no poder depois dos dois mandatos constitucionais, ao contrário de Chávez. É uma crítica interessante também. Os EUA eram uma ditadura fascista sob Franklin Delano Roosevelt? Ele teve quatro mandatos. Pode-se argumentar se é certo ou errado, mas dificilmente é um argumento forte. No sistema parlamentar, o primeiro-
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No que diz respeito ao crescimento, o exemplo mais espectacular foi o da Argentina, que rejeitou completamente as exigências do FMI, do Tesouro americano e dos investidores estrangeiros, reestruturou sua dívida, e, contra as previsões de quase todos os economistas, cresceu muito desde então. ministro pode ser reeleito indefinidamente. - O governo Obama mudou a política para a América Latina? Não de maneira significativa. A era de golpes militares apoiados pelos EUA declinou, mas não acabou. Na última década houve três. O primeiro na Venezuela, que foi rechaçado; o segundo no Haiti, quando os EUA e a França, os dois torturadores tradicionais do Haiti, sequestraram o presidente [JeanBertrand Aristide] e o mandaram para a África, e o terceiro em Honduras, já sob Obama. No caso das Honduras, houve uma divisão entre os EUA e o Brasil, na verdade entre os EUA e praticamente todo o mundo. Os EUA foram quase o único país que na prática reconheceu o golpe e fez vista grossa às atrocidades que aconteceram desde então. Isso é Obama. - Na sua avaliação, essa maior independência dos EUA é uma tendência duradoura na América do Sul ou muito depende da ascensão chinesa,
que procura os produtos da região? Olhando de fora, esperaria que a América Latina progredisse muito mais fácil do que o Leste da Ásia. Tem muitos recursos, não tem inimigos externos, muitas vantagens. Mas patinou. E é possível ver as razões se comparar os modelos socioeconómicos. No Leste da Ásia, houve controlo de capitais. Na Coreia do Sul, durante o período de desenvolvimento rápido, poderia ser condenado à morte por exportar capital; o investimento estrangeiro era aceite, mas era controlado para a transferência de tecnologia; havia importações, mas principalmente de bens de capital. Na América Latina foi totalmente diferente. Importavam-se bens de luxos, não se impuseram controlo a remessas de capital, até recentemente havia muito pouca preocupação com o bem-estar da população. E quando havia governos que tentaram ir nessa direcção, eram derrubados por golpes militares, de facto pelos EUA. Há uma
grande mudança nos últimos dez anos. Os programas contra a pobreza no Brasil foram, acho, bastante bem sucedidos. Na Venezuela houve uma aguda redução da pobreza, na Bolívia o progresso democrático foi notável, a população indígena, que é a maioria e a mais reprimida do hemisfério, conseguiu entrar na arena política para pressionar pelas suas reivindicações, elegeu alguém dos seus quadros. A Bolívia tem uma história de reforma e activismo, que sempre foi esmagada no passado. Todos esses são passos importantes. No que diz respeito ao crescimento, o exemplo mais espectacular foi o da Argentina, que rejeitou completamente as exigências do FMI, do Tesouro americano e dos investidores estrangeiros, reestruturou sua dívida, e, contra as previsões de quase todos os economistas, cresceu muito desde então. - E quais são as perspectivas para a economia americana, com a persistência da alta taxa de desemprego?
A situação nos EUA é bastante má. Desde 1980, o rendimento da maioria da população estagnou ou caiu, houve uma enorme concentração de riqueza, está a começar a parecer o pior da América Latina. Uma fracção de 1% da população, quer dizer, gerentes de fundos de hedge, executivos de corporação, fica com grande parte do rendimento. Houve um processo de financeirização da economia, a exportação da produção, crises financeiras repetidas. Não havia crises nos anos 50 e 60, quando vigoravam as regulamentações do New Deal. Tudo isso convergiu para um círculo vicioso de latino-americanização, alta concentração de rendimento, empobrecimento da população, desemprego. E está a ficar pior, a infraestrutura está a entrar em colapso, há uma preocupação maníaca com a redução da dívida, que é um problema menor, em detrimento do enorme problema do desemprego. É uma situação perigosa.
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CHOMSKY, OS ESTRUTURALISTAS E A FUNDAÇÃO DA LINGUÍSTICA MODERNA John Passmore
À
primeira vista, Noam Chomsky não é um estruturalista. Longe de afirmar que «o homem morreu», ataca a psicologia behaviourista, o capitalismo industrial e o socialismo estatista justamente pela sua falta de humanismo. Sendo um activista político, as suas simpatias vão para a ala anarquista do Humanismo Socialista, excomungado pelos estruturalistas. E o ponto de partida da sua teoria da linguagem não é a linguagem como fenómeno colectivo, mas a criatividade de cada um dos utentes da linguagem, a sua capacidade de produzir e compreender frases que nunca encontrou antes. Ao contrário dos estruturalistas, a linguagem é para Chomsky um meio para exprimir pensamentos e não um sistema social de comunicação através do uso de símbolos. E Chomsky enfatiza, ao passo que os estruturalistas desvalorizam, as diferenças entre as linguagens naturais e outros sistemas de símbolos. Por que razão, então, de entre os filósofos anglo-americanos contemporâneos, se referem os estruturalistas com algum grau de respeito apenas a Chomsky (com a excepção do semi-namoro de Derrida com Austin)? Em primeiro lugar, formou-se na tradição da linguística estrutural; com efeito, o seu mestre Zellig Harris escreveu um livro (1951) com esse mesmo título. É verdade que a linguística transformacional de Chomsky está, em muitos pontos, em clara oposição à linguística estrutural americana, uma vez que rejeita a tese de que as teorias linguísticas têm por objectivo caracterizar entidades linguísticas complexas em termos de entidades linguísticas de ordem inferior — frases em termos de palavras e palavras em termos de fonemas. Todavia, aquilo que ele deve a Harris e a linguistas pós-saussureanos como Jakobson é ainda bastante. Em segundo lugar, [...] as suas teorias linguísticas propria-
mente ditas, tal como foram apresentadas no seu primeiro livro, Estruturas Sintácticas (1957), e desenvolvidas nos seus Aspectos da Teoria da Sintaxe (1965), são suficientemente formais, apoiadas em regras, matematizadas e indiferentes a idiossincrasias e intenções individuais para satisfazer os estruturalistas franceses mais exigentes. Os estruturalistas franceses sentiram-se atraídos também pela distinção chomskiana entre «estruturas profundas» e «estruturas de superfície». Ela desempenhava em relação à linguagem, supunham eles, o papel que as teses de
Freud tinham desempenhado em relação à mente e as de Marx em relação à sociedade. A «estrutura profunda», como Chomsky a definiu em «The Current Scene in Linguistics» (1966), é «a forma abstracta subjacente que determina o significado da frase». Em contraste com isto, a estrutura de superfície é uma representação do símbolo físico que produzimos ou ouvimos, como quando eu ouço alguém dizer «Entra!». A «estrutura de superfície» é «gerada» a partir da estrutura profunda por transformações como a combinação e a elisão, determinando a informação fonológica relevante os sons por
meio dos quais a frase é pronunciada. («Gerada» não significa «causalmente gerada»: a gramática não nos diz por que razão uma pessoa diz «Abra!» em vez de «Entra!». O conceito chomskiamo de geração é de carácter matemático, como quando uma equação algébrica «gera» as suas várias soluções numéricas.) Assim, a estrutura profunda de «Entra!» conteria elementos como «Tu», que está ausente da estrutura de superfície. Apesar de estar intimamente ligada ao seu nome, quando escreveu Reflections on Language Chomsky tinha já abandonado a terminologia «estrutura
profunda» e «estrutura de superfície», em parte por razões técnicas mas também porque tinha sido mal compreendido por aqueles que supuseram que as estruturas profundas eram «profundas» em algum sentido metafísico, e que as propriedades das estruturas de superfície eram, em contraste, superficiais, pouco importantes e assim por diante. Não era este o seu ponto de vista; a fonologia, que restringia a sua atenção às estruturas de superfície, podia ser tão universal e tão «reveladora» [...] como a sintaxe. De facto, como ele admite sem dificuldade, a fonologia é o ramo da «gramática» mais cabalmente estudado. (Chomsky usa o termo «gramática» de modo muito abrangente, de modo a incluir a semântica e a fonologia, para além da sintaxe.) De modo que os estruturalistas franceses, claramente, não ficaram muito reconfortados com as «estruturas profundas» de Chomsky. Mas há outro aspecto da teoria de Chomsky que os poderá atrair. O estruturalismo americano, tal como foi formulado no muito influente Language (1933), de Leonard Bloomfield, tinha rejeitado algo que era fundamental para Saussure, a ideia de que o signo significa um conceito. (As primeiras obras de Bloomfield tinham defendido uma versão deste ponto de vista, reformulado em termos da psicologia de Wundt, e desde então tem tido um ressurgimento.) Sob a influência do positivismo behaviourista, Bloomfield definiu o uso da linguagem como a substituição de uma resposta não verbal a um estímulo por um signo. O signo «significa», deste ponto de vista, aquilo que substitui. Num exemplo conhecido, Jill pede a Jack que suba a uma árvore e lhe traga uma maçã; o seu pedido, como resposta ao estímulo da fome, é um substituto da sua própria subida à árvore. Ao passo que os estruturalistas reagem contra a ênfase caracteristicamente francesa na importância da consciência individual, para Chomsky o behaviourismo ao estilo de Bloomfield é o inimi-
go, como a sua recensão de Verbal Behaviour (1959), do arqui-behaviourista B. F. Skinner, tornou bastante evidente. Mas ambos usam como arma contra os seus inimigos o conceito de modos de apreensão subjacentes que afectam as decisões individuais sem que o indivíduo esteja consciente desse facto, bem como (de um modo que não deriva completamente da sua experiência) os «estímulos» aos quais ele é sujeito. Chomsky reage também contra a concepção empirista americana clássica da tarefa da linguística, que floresceu de modo natural nas circunstâncias especiais desse continente: a de que a linguística consistia em registar tão rigorosamente quanto possível as línguas faladas pelas tribos índias e, pelo uso de métodos de «descoberta», em generalizar a partir desses registos de modo a chegar à gramática dessas línguas — no sentido lato, chomskiano, de «gramática. Chomsky rejeita o ponto de vista de que haja um tal «método de descoberta». Uma gramática, tal como ele a vê, é umateoria acerca de uma língua, que tenta explicar por que razão, nessa língua, apenas algumas frases, algumas transformações, algumas sequências sonoras, algumas combinações verbais são gramaticalmente permissíveis. No lugar de um «procedimento de descoberta», ele propõe um procedimento de «avaliação». Os dados linguísticos que estão à disposição do linguista, tal como os dados que o cientista tem à disposição, permitem sempre mais do que uma explicação. Um «procedimento de avaliação» selecciona uma de entre as várias gramáticas possíveis por meio do uso de critérios como o da simplicidade. (Ele nega que o termo «simplicidade» tenha um significado único.) Limitarmo-nos a registar uma língua, argumenta também Chomsky, implica incluirmos no nosso registo frases que são «aceitáveis» mas não gramaticais e excluirmos frases que podem nunca ser proferidas mas que são, no entanto, perfeitamente gramaticais. Uma frase, diz ele, pode, num contexto específico, ser «aceitável» no sentido em que ninguém põe em dúvida o significado que o locutor pretende exprimir através dela, mesmo que ela contenha um lapso linguístico ou um erro gramatical. Por outro lado, uma frase pode ser
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gramatical mas tão complexa que um ouvinte pode ser incapaz de a «aceitar», por a considerar ininteligível. O linguista está apenas interessado nas frases gramaticais, e em todas elas. A gramática não é, portanto, uma teoria do empenho»(performance) ou, em termos saussureanos, da «parole». A sua atenção centra-se naquilo a que Chomsky chama a «competência». Ryle distinguiu entre «saber como» e «saber que» e identificou a competência com o «saber como». De facto, normalmente consideramos que a «competência» caracteriza a capacidade de uma pessoa para ter um certo desempenho. Chomsky sugere todavia que, no caso da competência linguística, o «saber como» (por exemplo «saber (como) falar inglês») tem de assentar num tipo especial de «saber que» — especial porque não é explícito. O gramático tenta revelar este «conhecimento tácito» do utente da linguagem, um conhecimento tácito que explica como pode ele distinguir o que é gramatical do que não é. Por que razão havemos de supor que um utente da linguagem tem tal conhecimento tácito? Uma pessoa pode ser capaz de «apanhar» uma melodia, de cantar e até de compor canções sem ser capaz de dizer o que é uma escala, ou um compasso, ou uma nota. Normalmente supomos que as crianças assimilam a sua primeira língua de modo semelhante. É certo que uma criança não nos consegue dizer em que consistem as regras da sua língua; e se, como diz Aristóteles, é apanágio do homem que sabe, ser capaz de ensinar isso que sabe, então a criança não sabe essas regras. Apesar de não rejeitar estes factos bastante óbvios, Chomsky rejeita totalmente a explicação popular e «empirista» da aquisição linguística. No seu Cartesian Linguistics (1966), ele associa-se, embora sem entrar em pormenores, a uma velha teoria racionalista acerca da mente humana, de acordo com a qual a experiência estimula a mente a fazer uso de um conhecimento que previamente já faz parte da sua estrutura, sendo «inato». Se não supusermos, argumenta ele em Reflections on Language, que os seres humanos são «especificamente programados» para adquirir a capacidade de dominar uma língua, não seremos capazes de compreender
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como, «com base em relativamente pouca experiência e nenhuma formação formal», pode uma criança aprender a usar um conjunto complexo de regras e princípios orientadores específicos de modo a comunicar os seus pensamentos e sentimentos aos outros». Os mecanismos a que o empirista recorre (generalização, analogia, condicionamento) para explicar isto são, na opinião de Chomsky, simplesmente demasiado fracos para explicar como alguém aprende a sua primeira língua. (Aprende, por oposição a ser ensinado, visto que o ensino é, a este respeito, de importância negligenciável.) É por isso que temos de supor que a criança já nasce com um conhecimento da língua (em algum sentido da expressão). A sua «competência» não consiste, portanto, simplesmente em ele ser capaz de ter um desempenho competente; incorpora também o facto de que ele tem o domínio de certos princípios. Uma «faculdade inata» da mente — «representada», já que Chomsky não é um dualista, «de maneira ainda desconhecida, no cérebro» — cria uma estrutura cognitiva abstracta que faz então parte do «sistema de capacidades de agir e interpretar». Estudar a «competência» é estudar todo este conjunto de estruturas e processos mentais. Como Lévi-Strauss, Chomsky não tem problemas em admitir aquilo a que o primeiro chama «elaborações mentais ao nível do pensamento inconsciente». A linguística teórica explicita em que consistem tais elaborações. A linguagem, como Leibniz sugeriu, é «um espelho da mente»; a linguística teórica é uma teoria da mente humana, um ramo da psicologia cognitiva — e não, como para Saussure, da psicologia social. Devemos supor que uma criança inglesa está especificamente «programada» para aprender inglês, e uma francesa para aprender francês? Claro que não; uma criança inglesa educada em França falará um francês perfeito em vez de inglês. A «competência» da criança é, para Chomsky, universal. Ela nasce com a capacidade de falar; e falará inglês ou francês ou chinês, se crescer no ambiente linguístico apropriado. Todavia, se supusermos que ela possui uma «gramática universal», temos de supor que essa gramática (uma vez que é uma gramática) tem de ser restritiva, excluindo certas línguas como humanamente impossíveis. Assim, es-
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creve Chomsky em Language and Mind: «Quando nasce, a criança não pode saber que linguagem vai aprender, mas tem de saber que a sua gramática tem de ser de uma forma determinada, de tal modo que exclua muitas línguas concebíveis.» Dotado deste «conhecimento tácito», ela selecciona uma hipótese «permissível» sobre a gramática da língua que está a usar. E, corrigindo esta hipótese à luz da experiência, chega finalmente a ter um «conhecimento da sua língua», de modo a ser capaz de rejeitar parte da sua experiência linguística como «defeituosa e desviante», i.e., como desempenhos agramaticais. O caso da fonologia, afirma Chomsky, é aquele que mais fortemente sustenta esta análise. Apesar de outros sons serem fisicamente possíveis, todas as línguas fazem aparentemente uso de um conjunto limitado de sons. Não poderia haver uma língua que contivesse sons diferentes? Se houvesse, de acordo com Chomsky, não a poderíamos aprender tão depressa e tão eficientemente como aprendemos as nossas línguas. E, do mesmo modo, ele crê que fomos programados para aprender um certo conjunto de regras sintácticas e semânticas e apenas os membros desse conjunto. As teorias linguísticas de Chomsky sofreram muitas alterações desde que foram apresentadas pela primeira vez, causando nessa altura uma «revolução na linguística». Diz-se por vezes que estão […] «em grande ebulição». Isto não o incomoda: «uma ciência imatura», argumenta ele, tem inevitavelmente ritmos de mudança acelerados, mesmo nos seus princípios mais gerais. Em todo o caso, ele continua a defender os seus princípios fundamentais: o de que uma gramática não é simplesmente uma descrição mas antes uma teoria explicativa; o de que investigá-la é estudar a «competência» e não o «desempenho»; o de que uma psicologia de pendor empirista é incapaz de explicar como uma criança aprende a sua primeira língua; o de que a linguística teórica é uma peça chave para a compreensão da mente. Este ataque ao empirismo e o ressuscitar de conceitos de tipo kantiano como o de estruturas mentais inatas que delimitam a forma que as nossas acções podem tomar foram os factores básicos da influência filosófica exercida por Chomsky.
A MINHA REAÇÃO À MORTE DE OSAMA
Noam Chomsky Guernica Magazine Fica cada vez fica mais evidente que a operação foi um assassinato planeado, violando de múltiplas maneiras normas elementares de direito internacional. Aparentemente não fizeram nenhuma tentativa para aprisionar a vítima desarmada, o que presumivelmente 80 soldados poderiam ter feito sem trabalho, já que virtualmente não enfrentaram nenhuma oposição, excepto, como afirmara, a da esposa de Osama bin Laden, que se atirou contra eles. Em sociedades que professam um certo respeito pela lei, os suspeitos são detidos e passam por um processo justo. Sublinho a palavra “suspeitos”. Em Abril de 2002, o chefe do FBI, Robert Mueller, informou à mídia que, depois da investigação mais intensiva da história, o FBI só podia dizer que “acreditava” que a conspiração foi tramada no Afeganistão, embora tenha sido implementada nos Emirados Árabes Unidos e na Alemanha. O que apenas acreditavam em Abril de 2002, obviamente sabiam 8 meses antes, quando Washington desdenhou ofertas tentadoras dos talibãs (não sabemos a que ponto eram sérias, pois foram descartadas instantâneamente) de extraditar a Bin Laden se lhes mostrassem alguma prova, que, como logo soubemos, Washington não tinha. Por tanto, Obama simplesmente mentiu quando disse sua declaração da Casa Branca, que “rapidamente soubemos que os ataques de 11 de Setembro de 2001 foram realizados pela al-Qaida”. Desde então não revelaram mais nada sério. Falaram muito da “confissão” de Bin Laden, mas isso soa mais como se eu confessasse que venci a Maratona de Boston. Bin Laden alardeou um feito que considerava uma grande vitória. Também há muita discussão sobre a cólera de Washington contra o Paquistão, por este não ter entregado Bin Laden, embora seguramente elementos das forças militares e de segurança estavam informados de sua presença em Abbottabad. Fala-se menos da cólera do Paquistão por ter tido seu território invadido pelos Estados Unidos para realizarem um assassinato político.
O fervor anti-americano já é muito forte no Paquistão, e esse evento certamente o exarcebaria. A decisão de lançar o corpo ao mar já provoca, previsivelmente, cólera e ceticismo em grande parte do mundo muçulmano. Poderíamos perguntar como reagiriamos se uns comandos iraquianos aterrassem na mansão de George W. Bush, o assassinassem e lançassem o seu corpo no Atlântico. Sem deixar dúvidas, os seus crimes excederam em muito os que Bin Laden cometeu, e não é um “suspeito”, mas sim, indiscutivelmente, a pessoa que “tomou as decisões”, quem deu as ordens de cometer o “supremo crime internacional, que difere só de outros crimes de guerra porque contém em si o mal acumulado do conjunto” (citando o Tribunal de Nuremberga), pelo qual foram enforcados os criminosos nazis: os centenas de milhares de mortos, milhões de refugiados, destruição de grande parte do país, o encarniçado conflito sectário que agora se propagou pelo resto da região. Há também mais coisas a dizer sobre Bosch (Orlando Bosch, o terrorista que explodiu um avião cubano), que acaba de morrer pacificamente na Flórida, e sobre a “doutrina Bush”, de que as sociedades que recebem e protegem terroristas são tão culpadas como os próprios terroristas, e que é preciso tratá-las da mesma maneira. Parece que ninguém se deu conta de que Bush estava, ao pronunciar aquilo, a convidar a invadirem, destruirem os Estados Unidos e assassinarem seu presidente criminoso. O mesmo passa com o nome: Operação Gerónimo. A mentalidade imperial está tão arraigada, em toda a sociedade ocidental, que parece que ninguém percebe que estão a glorificar Bin Laden, ao identificá-lo com a valorosa resistência frente aos invasores genocidas. É como baptizar nossas armas assassinas com os nomes das vítimas de nossos crimes: Apache, Tomahawk (nomes de tribos indígenas dos Estados Unidos). Seria algo parecido à Luftwaffe dar nomes a seus caças como “Judeu”, ou “Cigano”. Há muito mais a dizer, mas os factos mais óbvios e elementares, inclusive, deveriam nos dar mais o que pensar.
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A COMPREENSÃO DOS MISTÉRIOS
Em tempos antigos, quem não tinha virtude não era honrado, quem não tinha capacidade não era confiado a postos oficiais.
CAPÍTULO 155, PARTE II Um homem não pode ultrapassar um veloz cavalo. Porém, preso a uma carroça, o cavalo não conseguiria ultrapassá-lo. Como tal, aqueles que usam a Via habilidosamente, empregam os recursos de outros para realizar as suas tarefas, usando o que aqueles conseguem fazer para o que eles próprios não conseguem fazer. Quando os soberanos lhes dão tempo, as gentes retribuem com bens; quando os soberanos as tratam educadamente, as gentes marcharão para morte para lhes retribuir. Por este motivo, quando existem nações em perigo, nenhum soberano está seguro;
quando existem soberanos preocupados, não há ministros felizes. Aqueles cuja virtude excede o seu estatuto são honrados; aqueles cujo salário excede a sua virtude são amaldiçoados. A nobreza da virtude não comporta auto promoção; um salário justo nunca é muito. Aqueles que são nobilitados sem virtude usurpam o seu estatuto, aqueles que se apoderam injustamente roubam riqueza. Os sábios se sentem confortáveis na pobreza, desfrutando a Via. Não ferem a vida com ganância, nem se põem sob o fardo do materialismo. Desse modo, não se desviam da justiça tomando aquilo que não merecem. Em tempos antigos, quem não ti-
nha virtude não era honrado, quem não tinha capacidade não era confiado a postos oficiais, quem não tinha mérito não era recompensado, e quem não fazia o mal não era castigado. Quando se era promovido, tal era feito com cortesia; quando se era demitido, tal era feito com justiça. Na era de gente mesquinha, quando se é promovido é como se se fosse elevado ao céu; quando se é demitido, é como se se fosse mergulhado num abismo. Quando falamos de tempos antigos, tal não significa que critiquemos o presente. Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho
O texto conhecido por Wen Tzu, ou Wen Zi, tem por subtítulo a expressão “A Compreensão dos Mistérios”. Este subtítulo honorífico teve origem na renascença taoista da Dinastia Tang, embora o texto fosse conhecido e estudado desde pelo menos quatro a três séculos antes da era comum. O Wen Tzu terá sido compilado por um discípulo de Lao Tzu, sendo muito do seu conteúdo atribuído ao próprio Lao Tzu. O historiador Su Ma Qian (145-90 a.C.) dá nota destes factos nos seus “Registos do Grande Historiador” compostos durante a predominantemente confucionista Dinastia Han. A obra parece consistir de um destilar do corpus central da sabedoria Taoista constituído pelo Tao Te Qing, pelo Chuang Tzu e pelo Huainan-zi. Para esta versão portuguesa foi utilizada a primeira e, até à data, única tradução inglesa do texto, da autoria do Professor Thomas Cleary, publicada em Taoist Classics, Volume I, Shambala, Boston 2003. Foi ainda utilizada uma versão do texto chinês editada por Shiung Duen Sheng e publicada online.
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Na primeira versão do “Ensaio Sobre a Visão” vamos ensaiar Macau. Aqui, no complexo terreno percorrido pelos fotógrafos do território. Uma zona, uma rua, um edifício. A água que bebemos dentro de uma mão cheia de imagens. A Fotografia sem explicação, para que se compreenda o que é a Cidade. Esta cidade onde vivemos.
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B R E A V I S Ã O
Piscina no alto do Beco da Alegria EDON ANGST
Suíço, nascido em 1979. A fotografia é por norma um método de registo na sua profissão. Dessa actividade, num dia particular, surgiu pela primeira vez uma imagem que se situava fora da típica demonstração técnica. A revelação desse objecto metastizou-se numa insistente prática privada de apropriação de imagens. Só fotografa a preto e branco. Uma piscina no alto do Beco da Alegria serve-lhe de gruta privada.
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P R I M E I R O B A L C Ã O
luz de inverno
Boi Luxo
A PROPÓSITO DE THE FALLEN IDOL, 1948, CAROL REED
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ERMANEÇA-SE NESTA IMPRESSÃO DE QUE AO CINEMA INGLÊS VEM COLADA UMA CONFORTÁVEL DOMESTICIDADE. OU UM PROVINCIANISMO BOM, QUASE AMÁVEL. Ou um sentido do exótico ou de aventura solar, adolescente e honrado, com boas cores e rostos sadios como em Lawrence da Arábia, ou mesmo um sentido do exótico setentrional como o que dolorosamente atravessa Doctor Zhivago. Ou até o despudor do filme que aqui se viu admirado a semana passada, The Long Good Friday, de John Mackenzie, desfile admirável de tipos criminosos londrinos. Talvez até as paisagens irlandesas de Filha de Ryan tenham ficado gravadas na nossa memória de um modo mais profundo do que poderíamos querer admitir. Conhecemos este cinema melhor do que pensamos, manso político que foi e que continua a ser. Sendo um cinema profundamente nacional é, ao mesmo tempo, um que não carrega consigo, pelo menos no seu período mais clássico, marcas muito óbvias que o identifiquem. Mas não é do cinema inglês de grandes horizontes épicos, menos ocorrente, que se fala aqui hoje. Dele deixemos apenas chegar a recordação vaga do som que os percorre. De tubas se não fala aqui mas do som mais
íntimo da “frauta ruda”. É uma história contada através dos olhos de um rapazinho, um filho de um embaixador, um filho de um tempo que foi o tempo deste tipo de filmes em que tudo parecia ter um lugar próprio, desde a música à precisão inevitável dos bons fatos e das gravatas certas, desde os movimentos rápidos de câmara, doidos na introdução rápida da história (à americana) ao repousar que se segue a esta parte necessária. Desde a precisão dos diálogos à face certíssima de Michèle Morgan. Não é uma peça de teatro mas poderia ser. É, antes, uma adaptação de um conto de Graham Greene (a primeira de três frutuosas colaborações que manteve com Reed) e nele o pequeno rapaz, Phillipe, tem uma pequena cobra que esconde do olhar severo da mulher que acaba por ser a causa de tudo, a mulher que acaba por ser a causa da desconfiança que vai torturar o pequeno Phillipe. O rapaz tem uma cobra escondida como terá o rapaz de The River, de Jean Renoir, que também é bastante um filme inglês mas solarengo e indiano, assim como o rapaz de Kes, de Ken Loach, que não é um rapaz priveligiado como os outros dois, tem um falcão naquela terra fria e inóspita que é o norte de Inglaterra e neste filme que é uma tarde inesquecível e dolorosa. O herói de Phillipe, o herói mais tarde caído, é o mordomo do pai, o Senhor Baines.
Praticamente não vemos o pai, e a mãe aparece apenas durante uns segundos no fim do filme. Toda a urdidura da história se faz entre Baines, a sua mulher, o rapaz e Michèle Morgan. Baines é o herói de África, onde matou leões e nativos, entre outras histórias. Pelo menos em imaginação. Uma mentira pode ser uma forma de carinho, como o mordomo nos diz. E são as mentiras, com a sua sombra de medo, que aos poucos vão envolvendo Phillipe. De súbito há uma brincadeira, um jogo de apanhada entre Baines, a secretária da embaixada e Phillipe. Uma brincadeira que se torna assustadora e é tanto um filme de terror como um filme de terror a sério, do tipo de terror que sai das casas grandes como esta casa que é uma embaixada. É a parte em que o autor mais experimenta, em que há planos diagonais e distorcidos e que faz lembrar o seu filme mais famoso, The Third Man (de 1949, com argumento de Graham Greene). Também há nesta parte do filme sombras de outros filmes e de outros autores, alguns famosos, que fizeram filmes onde há um grande medo e, mais tarde, uma grande desconfiança. Mas isso pouco importará aqui. Quem se lembra de The Innocents, de Jack Clayton, e da imensa casa cheia de segredos e de das crianças seus depositários? Esse é um verdadeiro filme de terror, inglês como um chá de urtigas. Aqui,
no filme de Reed, que não é um verdadeiro filme de terror há um medo menor e mais curto mas muito mais inesperado e, certamente, despropositado. Se parece haver por vezes uma falta de seriedade, ou de consequência, neste cinema, seja ele terrível, amável, épico, amoroso, maldoso, apologético ou crítico, é porque ele vem, amável e polido, de uma distância insular e de uma crença profunda de que se não deve cometer a impropriedade de se deixar ver como sério ou insubstituível. Até na crueza pouco pop de The Great Ecstasy of Robert Carmichael, de Thomas Clay, apercebemos este pudor. Quando o enredo se adensa e o pequeno rapaz corre pelas ruas de Londres à noite, só e descalço pelo basalto frio e escuro de uma cidade que é a de Bill Brandt, as mentiras que um rapazinho não deve contar e os segredos que não deve revelar tornam o filme num filme policial, ou numa peça de enredo policial. Um verdadeiro filme de crime, com um suspeito (que melhor suspeito que um mordomo?), uma mulher morta (uma mulher enganada), uma amante, um miúdo confuso quando ao que deve ou não dizer, dois médicos e muitos polícias. Há, na sua construção simples, uma leveza que contém um peso manso e disfarçado que nos leva, como a tantos outros filmes ingleses, a recordá-lo quando menos se espera.
DJ PUTO GRISALHO DO RESTELO Antønio Falcão Os cartazes apontam sempre para selecções musicais de última apanha e para a originalidade e inovação no domínio dos pratos. Os breaks, o dubbing, os beats, são termos que assolam as revistas da especialidade e os folhetos promocionais, que se colam à pele desta espécie de trovadores da electrónica que ganham a vida a dar música aos outros. Mas invariavelmente a determinada hora da noite, tenham ou não DJ’s consagrados, a maioria das festas nocturnas que dão à costa nas discotecas e bares - e não nos vamos restringir ao território macaense acabam por alinhar pelo mesmo diapasão indistinto. Uma mescla de batidas sincopadas que atacam os neurónios como um berbequim e que não têm nada de original nem, muito menos, trazem qualquer novidade. É uma pastilha elástica que se apanha no chão e se enfia à boca: sabe mal e no final ainda somos capazes apanhar uma doença. Mas, enfim, não há muito mais para colher e acaba-se sempre por ir dar um cheiro a estas flores. A verdade, é que muito poucos jóqueis do disco se podem gabar de algum estatuto de excelência, mesmo que ele venha escrito em letras garrafais. Um termo que se aproxima mais das capacidades de um músico do que do mero executor que coloca uma música a seguir à outra. Como um canalizador que junta dois tubos e faz com que a água chegue ao seu destino. Em Macau é uma questão ainda mais premente, dado o deserto que se apresenta. Não quero deitar abaixo, nem particularizar, o espaço A ou B, os promotores destes eventos assim ou os artistas assim do pé para a mão. Mas espero sempre mais. No mínimo, um coice. No máximo que venha de lá todo dorido pelos momentos de sublime interacção. Espero sempre algo de apoteótico, que não precise do empurrão de alguma predisposição ou da repetição do movimento eternizado de levar a bebida à boca – a tal pastilha elástica - ou de alguma outra substância dopante que nos alinhe com as vibrações das paredes e da intermitência das luzes. Tum, tum, tum..., mais à esquerda ou à direita, e não passa disso. Talvez seja o meu conversor que não tenha os fusíveis certos e que me desintegre do espaço que partilho com toda a outra matilha que, como eu, de um modo ou de outro, tenta abanar o capacete e bambolear o corpinho, com mais ou menos esforço. Espero mais, sim. Mas quando saio, quase ao romper da aurora – e a correr para casa antes que se faça luz e desperte o lobisomem que há em mim – tirando os olhares sedutores, os apalpões, e os momentos de parvoeira à laia de trolha, o que levo comigo é o carimbo no braço e a roupa interior impregnada de fumo. E penso: será que perdi alguma coisa? Tanto por escolher aquela opção como por ter ficado a fazer qualquer outra coisa mais útil para a sociedade e a paz no mundo. Agora que chego ao fim destas linhas, e juro que não estava planeado, só apetecer dizer: “Vai mazé trabalhar!”
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T E R C E I R O O U V I D O
próximo oriente
Hugo Pinto
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ÍNDIA ELECTRÓNICA:
A PRIMEIRAHISTÓRIA (III)
Hoje, a electrónica que se faz na Índia atingiu o ponto em que já é, apenas e só, música electrónica – uma linguagem universal, sem nacionalidade. Na Índia, ao reconhecimento e sucesso internacional alcançados pelos indianos da diáspora seguiu-se o aparecimento em série de projectos que “imitavam” as iniciativas de fundir elementos tradicionais com as sonoridades contemporâneas. No final da última década do século XX, mesmo na conservadora Índia, iam longe, de perder de vista, os tempos em que Charanjit Singh era um pioneiro solitário ao leme dos misteriosos sintetizadores e caixas de ritmos Roland. O exclusivo dos estúdios profissionais de Bollywood onde se deram as primeiras aventuras electrónicas na música indiana cedeu o “lugar da magia” à intimidade dos estúdios caseiros equipados com os computadores, o “software” e a Internet que revolucionaram a forma de produzir e distribuir música. Com a progressiva democratização do acesso à tecnologia foi apenas natural que a nova música se espalhasse como um vírus. Hoje, a electrónica que se faz na Índia atingiu o ponto em que já é, apenas e só, música electrónica – uma linguagem universal, sem nacionalidade. É um grande passo para uma música que nasceu da necessidade de quebrar tradições, inovar e fazer ouvir diferentes vozes – tarefas particularmente difíceis num país com a história e dimensão da Índia, sempre amarrada aos espartilhos conservadores dos costumes. Num mundo digital, os produtores indianos estão, finalmente, em pé de igualdade com todos os outros e gozam da liberdade que advém da independência e auto-suficiência tecnológica que não era possível na antiga indústria musical, entretanto desfeita em
colapso. Mas não foi apenas a indústria que passou por transformações radicais. A crescente popularidade da música electrónica e o advento tecnológico influenciaram, por vias directas ou indirectas, mas de forma decisiva, a escala de valores sociais e o ambiente urbano indiano. De acordo com Ma Faiza, que assina um dos textos de “HUB – Indian Electronica Yearbook Project”, uma das mudanças mais significativas e visíveis é o aparecimento do DJ enquanto mito ou herói dos tempos modernos. Simultaneamente artistas e estrelas, os DJ surgem como símbolo de uma ascensão social que, na Índia, desde tempos imemoriais, é apenas uma miragem. Representam os valores que norteiam as juventudes contemporâneas de toda a parte e entre as quais a indiana não é excepção: dinheiro, fama, diversão, atracção, desprendimento e liberdade das amarras dos ofícios convencionais. Em apenas 5 anos, de 2005 até 2010, houve uma autêntica explosão e a figura do DJ tornou-se omnipresente no imaginário e tecido social, sendo assídua dos restaurantes “trendy” das grandes cidades aos anúncios da publicidade passando, obviamente, pelos luxuosos clubes nocturnos que, entretanto, surgiram em grande quantidade. Contudo, apesar de estar em constante crescimento, a música electrónica não domina o consumo comercial ou o “air play” das rádios indianas, e é altamente provável que nunca venha a fazê-lo. Ainda assim, convém ter presente o muito que aconteceu somente no espaço de dez anos. Do obscurantismo à ribalta, passando pelas
margens, o caminho das (ainda relativamente) novas expressões tem sido sinuoso, mas sempre marcado por uma persistência assinalando que a música electrónica, na Índia, veio para ficar. Na Europa, a música electrónica luta para continuar relevante e hoje, tal como fizeram há 40 anos os arautos da então nova música, são os DJ e demais produtores dos centros europeus que voltam a procurar a Índia como musa inspiradora. O último exemplo partiu de Ricardo Villalobos. O chileno naturalizado alemão, produtor de referência do Techno mais minimal e “avant garde”, anunciou recentemente estar a trabalhar numa banda sonora para um filme de Bollywood. Nesta aventura, Villalobos conta com a parceria do alemão Max Loderbauer (com quem o chileno revisitou, há pouco tempo, o catálogo da editora ECM num disco altamente recomendável, “Re:ECM”), e também com o actor e produtor Shahrukh Khan, conhecido como “o rei de Bollywood”. Apesar das pistas de que a dupla sedeada em Berlim quer tornar a música que enfeita os filmes da indústria de Bombaim mais próxima das pistas de dança ocidentais, o que será ao certo este disco ainda está no segredo dos deuses. Aconteça o que acontecer, é provável que este venha a ser mais um capítulo com potencial transformador e catalisador das (muitas) revoluções que ainda estão por vir. E, se assim for, tudo, uma vez mais, vai começar lá para os lados de Bollywood, onde os sonhos, afinal, se tornam realidade, especialmente desde que a celulóide deu lugar ao digital.
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C I D A D E S I N V I S Í V E I S
metrópolis
Tiago Quadros*
DO ÁTOMO À NEBULOSA
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O DESENHAR A TORRE NAKAGIN, EM 1971, O ARQUITECTO JAPONÊS KISHO KUROKAWA PROCUROU INOVAR. AO CONSTRUIR NA ÁREA DE GINZA, EM TÓQUIO, UM TOTAL DE 140 CÁPSULAS EMPILHADAS E RODADAS COM ÂNGULOS VARIADOS, KUROKAWA CRIOU UM NOVO SISTEMA HABITÁVEL PARA HOMENS E MULHERES EM TRÂNSITO. No final da II Grande Guerra, com apenas 11 anos, Kisho Kurokawa sentir-se-á fortemente atraído pela arquitectura. O seu pai, arquitecto formado na Escola Industrial de Nagoya, trabalha para o departamento da região de Aichi e, mais tarde, como arquitecto chefe no departamento de arquitectura de uma empresa privada. É através da biblioteca do seu pai que Kisho Kurokawa desenvolve a ideia das cidades como entidades incapazes de perderem o seu carácter de eternidade mesmo após enfrentarem a destruição. Vale a pena recordar que Kisho Kurokawa pertence à geração cujo ponto de partida foi a derrota e a destruição motivadas pela II Grande Guerra. Na mente de todos os membros desta geração ficaram gravadas imagens traumáticas de eventos ocorridos quando estes eram ainda crianças - a súbita e trágica destruição de Hiroshima e Nagasaki. Kisho Kurokawa inicia o seu percurso enquanto estudante de arquitectura na Universidade de Quioto mas é com Kenzo Tange, na Universidade de Tóquio, que concluirá o mestrado
e doutoramento. Na primeira metade de 60 o Japão entra num período de admirável prosperidade económica que se prolongará por mais de uma década. Surgem novas e proeminentes personagens nas mais diversas áreas, emergem novos movimentos artísticos. A agitação causada por estas mudanças tornar-se-á numa excelente oportunidade para reflectir e actuar nas cidades e nos edifícios destruídos durante a Guerra. A Torre Nakagin revela-se, ainda hoje, enquanto protótipo no plano da sustentabilidade e reciclabilidade, já que cada módulo pode ser ligado ao núcleo central e substituído ou trocado quando necessário. A tecnologia desenvolvida por kurokawa permitiu que cada unidade fosse instalada no núcleo central com apenas quatro parafusos de alta tensão, mantendo, desse modo, as unidades substituíveis. Cada cápsula oferece 10 m2 de espaço habitável. O interior de cada módulo pode ser manipulado por forma a ligar as cápsulas entre si. Para além de apresentar uma janela circular, Kisho Kurokawa dotou cada cápsula de cama, casa de banho, relógio, rádio, televisão e despertador. O Movimento Metabólico nasce como uma reacção ao contexto social e toma forma através dos preparativos para a Conferência Mundial de Design. Estes preparativos, com início em 1958, prolongar-se-ão por dois anos. Na conferência o grupo metabolista apresentará a sua primeira declaração: Metabolismo 1960 - uma proposta para um novo urbanismo. Colaboraram nesse livro, os arquitectos Kiyonori Kikutake, Fumihiko Maki, Masato Otaka, Kisho Kurokawa e o designer
gráfico Kiyoshi Awazu. Na declaração que apresenta publicamente o grupo pode ler-se: “Consideramos a sociedade humana como um processo vital, um processo contínuo, de eterno devir do átomo à nebulosa. A razão pela qual usamos o termo biológico metabolismo é por acreditarmos que design e tecnologia devem expressar a vitalidade humana. Não acreditamos que metabolismo indique tão só a aceitação de um processo natural e histórico, mas, com as nossas propostas, queremos fomentar activamente o desenvolvimento metabólico na nossa sociedade. Este é um ponto importante na nossa declaração por dois motivos. Primeiro, reflecte a nossa convicção de que a sociedade humana deve ser vista como parte de uma entidade natural contínua que inclui o reino animal e o reino vegetal. Em segundo lugar, expressa a nossa crença de que a tecnologia é uma extensão da humanidade. Esta convicção difere do pensamento ocidental no qual a modernização é a repetição de um antagonismo entre tecnologia e humanidade”. Com a excepção da torre Nakagin e da Sky House de Kiyonori Kikutake, de 1958, muito poucos conceitos metabólicos foram realizados na prática. Ainda que o metabolismo atribuísse maior relevãncia ao princípio da renovação e alteração dos elementos, as razões para o fazer derivavam de uma filosofia completamente diferente da aproximação do que é descartável, justificada, por vezes, pelo tipo de economia vigente nas sociedades de consumo. A este propósito Kisho Kurokawa fala de edifícios inteiros que foram destruídos de modo esbanjador porque algumas das
suas partes já não tinham uso. Ainda de acordo com o arquitecto japonês se houvesse uma disposição especial com base na teoria do ciclo metabólico, seria possível substituir apenas as partes que perdessem a sua utilidade e desta forma contribuir para a conservação de recursos atribuindo uma vida mais longa aos edifícios. Em 1977, no seu livro Metabolism in Architecture1, Kisho Kurokawa conclui: “Gostaria que a teoria Metabolista viesse dar um novo significado à arquitectura contemporânea, mas não é meu intento produzir um estilo internacional. Nem tão pouco quero estabelecer modelos passíveis de serem aplicados em todo o lado. Antes pelo contrário, creio que as características históricas de cada povo, nação ou região, pelas suas especificidades, se revestem de um significado internacional”. O declínio da concepção metabolista começou com o evidente vazio ideológico da Exposição de Osaka de 1970. Desde então, a liderança crítica da arquitectura japonesa transitou entre os antigos metabolistas e os membros da chamada Nova Onda Japonesa, cuja obra se tornou conhecida em grande parte graças ao desempenho de dois dos arquitectos da geração intermediária: Arata Isozaki e Kazuo Shinohara. 1 KUROKAWA, Kisho (1977). Metabolism in Architecture, London: Studio Vsita.
*Arquitecto, Mestre em Cor na Arquitectura pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa
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À S U P E R F Í C I E
escritos de passagem
TREKKING LITTLE TIBET:
Ana Paula Dias
OS TRILHOS
What is important: satisfying one thousand desires or conquering just one? Samsara (2001), Pan Nalin
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M LADAKH O HORIZONTE É IMENSO, O CÉU AZUL, OS LAGOS LISOS E HÁ NUVENS BRANCAS E NÍTIDAS NO CÉU. A luz aberta recorta dois viajantes imobilizados no dia. Não respiram, estão colados na paisagem. E precisavam que os seus contornos se desagregassem lentamente para poderem prosseguir a viagem. De se dissolverem até que os seus corpos não fossem mais do que átomos e moléculas iguais ao vale de terra acobreada, às arvores levemente inclinadas em direcção ao vento. Graciosamente inclinadas na direcção do vento, respirando-o. Os viajantes estão sobrepostos à paisagem, fazem e não fazem parte dela, não sabem. Estão ali. Chegaram lá. Podiam nadar nos lagos, rebolar nos declives do vale amplo coberto pelas nuvens espessas, que não anunciam chuva. Subir aos longínquos os picos cinzentos dos Himalaias cobertos de neve, atravessar a ponte de madeira assente em pedras no leito do rio. Entrar na pequena casa branca encimada por uma chaminé ou uma cúpula em forma de stupa, não se percebe bem à distância. Receiam não saber porque estão ali, como chegaram até lá. Não se mexem. Arde-lhes o corpo, o sol fá-los semicerrar os olhos. Lacrimejam e não vêem. A amplitude térmica é grande e à noite não conseguem ouvir a música das estrelas. O frio fá-los semicerrar os olhos. Lacrimejam e não ouvem. Precisavam que o vento da monção marítima chegasse depressa e derramasse as suas chuvas, que inundasse Ladakh e trouxesse os peixes. Três mulheres sem idade, de pele tisnada fiam, cobertas com espessos vestidos vermelho escuro de lã grossa e olham-nos com um sorriso lunar. Também estão coladas à paisagem, mas para elas não há peixes pretos a nadar nos sonhos, que as fixem com insistência. São tão verdadeiras como os cavalos selvagens que cheiram os pequenos tufos de ervas amarelas a irromper da paisagem vulcânica ou como os iaques lanosos que pontualmente assomam junto das torrentes. Toda a paisagem é dinâmica na sua imobilidade. Talvez, talvez não se possa sair de lá enquanto a neve cobrir as estradas durante nove meses. Talvez os veja a descer uma escada e as suas roupas largas cor de açafrão flutuem ao vento. Estarão de costas, agora entalhados contra a luz fluida e um deles terá dobrado um braço, do outro só se verá uma das pernas. Vão ao encontro das pedras mani enfeitadas com pequenas bandeiras de oração onde está escrito, com caracteres e imagens, um segredo.
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À S U P E R F Í C I E
A UM SANTO AMIGO S P ilva into
1. Prelúdio 20 de Julho de 1886.
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NCONTRÁMO-NOS PELA PRIMEIRA VEZ NO CURSO SUPERIOR DE LETRAS. FOI EM 1873. Cesário Verde matriculara-se no Curso em homenagem às Letras, como se as Letras lá estivessem, no Curso. Eu matriculara-me, com a esperança de me habilitar um dia à conquista de uma cadeira disponível. Encontrámo-nos e ficámos amigos - para a vida e para a morte. Para a vida e para a morte. Tenho de falar de mim, ao pretender falar de Cesário Verde. Ele não teve, desde aquele dia - há treze anos - maior amigo do que eu fui; e sobre esta mesa onde eu estou escrevendo, às 10 horas da noite deste formidável dia glacial - 20 de Julho de 1886, dia do seu enterro - sobre esta mesa onde eu estou escrevendo tenho estas palavras suas de há poucos dias: “E como se dê o caso de tu seres o mais dedicado dos meus amigos...” Tenho aqui essas palavras: elas constituem a justificação dos meus soluços de há poucas horas, ali, no cemitério vizinho onde ele dorme - o Cesário! - a sua primeira noite redimida... Eu fui, pois, a lutar nas grandes batalhas da Desgraça, naquele ano para mim terrível de 1874. Fui-me, a dezenas de léguas de Lisboa. Ele ficou. E no dia em que eu medi forças com as avançadas do meu destino, a inquietação invadiu o espírito e o coração de Cesário Verde, por modo que já eu assoberbara com o meu desprezo a desventura pertinaz e ainda ele não vingara libertar-se do peso de seus cuidados e aflições. Durante anos escreveu-me centenas de páginas - comentários sobre os meus infortúnios, conselhos do seu espírito lucidíssimo, sobressaltos do seu coração fraternal. Um dia, trocámos estas palavras: “Como tu tens tempo, meu amigo, para sofrer tanto!”, “Como tu tens tempo, meu amigo, para me acompanhar no sofrimento!”. É indispensável ter conhecido intimamente Cesário Verde para conhecê-lo um pouco. Os que apenas lhe ouviram a frase rápida, imperiosa, dogmática, mal podem imaginar o fundo de tolerância expectante daquele belo e poderoso espírito. Ele tinha o furor da discussão - a toda a hora. Eu careço de preparar-me durante horas para a simples compreensão. As exigências do meu caro polemista irritavam-me. Eu respondia ao acaso; mas acontecia por vezes que o sorriso ligeiramente irónico do perseguidor expandia-se num bom e largo sorriso de convencido; e então - meu querido amigo! meu santo poeta! - ele saudava com um entusiasmo de criança amorável o que ele chamava o meu triunfo! Não hesitava em confessar-se vencido; e congratulava-se comigo - porque eu o vencera inconscientemente. A generosa alma chamava àquilo a minha superioridade! Os campos, a verdura dos prados e dos montes; a liberdade do homem em meio da natureza livre: os seus sonhos amados; as suas realidades amadas! Quando aquele artista delicado, quando aquele poeta de primeira grandeza julgava em raros momentos sacrificar a Arte aos seus gostos de lavrador e de homem prático, sucedia que as coi-
sas do campo, da vida prática assimilavam a fecundante seiva artística do poeta: e então dos frutos alevantavam-se aromas que disputavam foros de poesia aos aromas das flores. O mesmo sopro bondoso e potente agitava e fecundava os milharais e as violetas e os trigais e as rosas! A bondade em suma está no poeta - mais visível, pelo menos, do que em Deus. Artista - e de alta plano! Eu pude vê-lo cioso de seus direitos e reivindicando-os com tanto de ingenuidade quanto de vigor. E pois que um ligeiro esboço, precedendo mais detido trabalho, estou elaborando sobre os traços mais salientes daquela individualidade, não me dispensarei desta indiscrição: Há dois meses escrevia-me Cesário Verde: “O Doutor Sousa Martins perguntou-me qual era a minha ocupação habitual. Eu respondi-lhe naturalmente: Empregado no comércio. Depois, ele referiu-se à minha vida trabalhosa que me distraía, etc. Ora, meu querido amigo, o que eu te peço é que, conversando com o dr. Sousa Martins, lhe dês a perceber que eu não sou o sr. Verde, empregado no comércio. Eu não posso bem explicar-te; mas a tua amizade compreende os meus escrúpulos: sim?...” E eu fui à beira de Sousa Martins e perguntei-lhe se o poeta Cesário Verde podia ser salvo. O grande e illustre médico tranquilizou-me - e apunhalou-me em pleno peito: Que o poeta Cesário Verde estava irremediavelmente perdido! Meu poeta! Meu amigo! Tu estavas condenado no tribunal superior, quando eu te mentia e ao público e a mim próprio: estavas condenado, meu santo! Mas podia viver tranquillo o teu orgulho de artista: o teu médico sabia que o poeta Cesário Verde eras tu próprio, meu pálido agonizante iludido! A estesia, o processo artístico e a individualidade deste admirável e originalíssimo poeta merecem à Critica independente uma atenção desvelada. Eu não hesito em vincular o meu nome à promessa de um tributo que a obra de Cesário Verde está reclamando. 2. Encerro A Jorge Verde Aqui deponho em suas mãos e debaixo dos seus lábios o livro do seu irmão. A minha «obra» terminou no dia em que ele saiu da nossa doce amizade para a nossa terrível amargura: morri, meu querido Jorge - deixe-me chamar assim ao irmão do meu querido Cesário - morri para as alegrias do trabalho, para as esperanças dos enganos doces! O desmoronamento fez-se, a um tempo, no espírito e no coração! Dos restos do passado deixe-me oferecer-lhe a dedicação extremada: peça-me o sacrifício; e, quando no decorrer da vida, se lembrar de nós, tenha este pensamento consolador: - A grande alma de meu irmão soube impôr-se a um coração endurecido; e tenha este outro pensamento: - Mas não estava de todo endurecido o coração que soube amá-la. Adeus, meu querido Jorge!
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VIRA-CASACAS
OU A FORMA DE UMA ADAPTAÇÃO, DESPERSONALIZADA, A CADA CONTINUA REALIDADE António MR Martins
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OS MEUS TEMPOS DE MENINO OU NOS “TEMPOS DA OUTRA SENHORA”, COMO SÓI DIZER-SE ENTRE A FALA DO POVO, O DENOMINADO VIRA-CASACAS ERA AQUELE QUE CONSTANTEMENTE MUDAVA AS SUAS CORES DE CLUBE, DO PEITO. Quando o seu clube actual estava na mó de baixo, optava por “vestir a camisola” daquele que, nesse momento, havia emergido ao topo do campeonato. Naqueles tempos as mudanças não eram muitas e quase todas vinham de um outro qualquer clube para o mítico Benfica. Hoje são outros a “tocar as cordas dessa guitarra”. Todavia, nos tempos que nos vão mediando, esta referência torna-se mais abrangente, aglutinando outras vertentes. Há a mudança constante de opinião, o diz que diz, mas não diz, ou vice-versa, mas sobretudo a alteração das cores partidárias, no tocante à militância, é o retrato vigente do, actual, vira-casacas, muitas vezes só para que se possa conseguir uma determinada posição ou um perspectivado, ou sonhado, estatuto. Tudo impera nestas mentalidades contemporâneas, para que se consiga obter algo ou adquirir uma relevante posição social. A significante “palavra de honra”, aos tempos que nortearam a
minha juventude, hoje não tem qualquer valor ou predominância, pois que raramente é tida em linha de conta. Este período de tempo, que mediou os actos da eleição do Presidente da República e o da eleição da nova Assembleia da República, trouxe consigo muitas notícias de conteúdos aplicáveis a este pensamento, onde se tornou mais saliente o percurso do Dr. Fernando Nobre, de eventual candidato (derrotado) à Presidência do país e, depois, a candidato à Presidência da Assembleia da República (o segundo lugar da hierarquia representativa do país), inserido num partido, o PSD, ele que sempre se considerou apartidário. Tudo redundou num autêntico fracasso, mesmo antes do seu término. Onde é que já se vira a ocupação de um cargo de presidência de uma instituição à qual nunca fora deputado. Este desenrolar foi algo de satírico, que nunca decorreu de forma adequada e prestigiante, que o povo nunca entendeu, de uma personalidade que sempre foi vista de uma forma diferente, que sempre gerou apoio incontestável e enorme reconhecimento, pelo seu contínuo contributo com outras instituições de enorme sentido médico-social, tanto a nível nacional como internacional. Aqui sim, assistiu-se a uma tomada constante de posições, que contraria-
vam as anteriores, sem preconceitos e sem honra na palavra, aquela que anteriormente foi dita, publicamente, e escrita em toda a imprensa. Foi um virar de casaca, sem sentido e com um único objectivo o de chegar à evidência, sem paralelo. Tendo em conta a pessoa que se interiorizou e se explanou, nesta caminhada, que o tempo se encarregou de defraudar, foi um autêntico e consecutivo virar de casacas a que fomos assistindo. É óbvio que esta questão, dos vira-casacas, não tem a valorização de outras épocas, decorrendo amiúde, hoje em dia. Tal, vem fazer reflectir sobre a mediocridade do trato humano e da desvalorização da personalidade, relativizando as consequências e relegando-as para uma mera normalidade, banalizando este tipo de atitudes e tornando-as, totalmente, irrelevantes. Diria eu, na observação de tudo o que nos envolve e das situações que nos vão surgindo pela frente: - Era muito mais negativo e badalado, em grande escala (para os tempos de então), uma mudança de clube durante a minha meninice, que de valor negativo nada tinha de comparável com estas súbitas mudanças, ora tidas, com tanta regularidade, nos dias de hoje. Haja o sentido das responsabilidades e o respeito por aquilo que somos e dizemos, ou fazemos.
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