h - Suplemento do Hoje Macau #28

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ARTES, LETRAS E IDEIAS

Louis Buテアuel

Simeテ」o, o Estilita

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PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nツコ 2510. Nテグ PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

Manuel Vicente

Arquitectura Rex


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h A CLARIDADE E A VIRTUDE 2

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Notas sobre a Espada e o seu Simbolismo no Contexto Chinês

CARLOS MORAIS JOSÉ

INTRODUÇÃO Yu, o Grande, conhecia a arte da forja. Sabia distinguir os metais machos dos metais fêmeas. As lebres de Wou, de cujo fel se fez um par de espadas, eram um casal, logo cada uma das espadas têm um sexo diferente. A têmpera nasce da união da água e do fogo. Por vezes, neste momento, as espadas transformam-se em dragões. As espadas Yin ficam nas ribeiras onde são temperadas. Daí que as espadas tenham a tendência de se atirar à água para reencontrar o seu par perdido. O curso de água mais famoso é precisamente a Ribeira das Espadas, onde existe a Garganta do Dragão, justamente porque aí, no momento de ser temperada, uma espada se transformou em dragão e levantou vôo. Che yi ki; Tso tchuan; citados por Marcel Granet, in Danses et Légendes de la Chine Ancienne Masamune e Masurama eram ambos armeiros, fabricantes de espadas de grande reputação. O primeiro possuía um carácter violento e irascível, sendo geralmente considerado um personagem taciturno e inquietante. Forjava lâminas terríveis que atraíam os combates sangrentos e, por vezes, feriam mesmo os que as empunhavam. Estas espadas gozavam de uma fama maligna e muito temida. Por seu lado, Masamune era uma pessoa serena, que cumpria os rituais de purificação sempre que se dedicava aos trabalhos da forja. As suas espadas eram extremamente apreciadas e incensadas as melhores do país. Um dia, um homem quis testar a diferença entre as armas dos dois criadores. Para tal colocou ambas num riacho. As folhas que vogavam à superfície, mal tocavam na lâmina de Masurama, eram cortadas ao meio, enquanto pareciam evitar a espada de Masamune, deslizando intactas pelo gume como se este as quisesse poupar. O homem expressou o seu veredicto: a Masurama é terrível, a Masamune é humana. in Contos das Artes Marciais (adaptado)

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oucos objectos inspiraram aos homens tanto fascínio como a espada. De tal modo que esta aparece como símbolo ligado às representações mais determinantes do poder. Símbolo de força, de guerra, mas também de lei e de paz, capaz de proteger a vida e de dar a morte, a espada percorre as civilizações – e através delas o imaginário da humanidade – quase desde os seus primórdios até aos nossos dias. O

facto de ainda hoje, quando perdeu já a sua função mais imediata (a do combate), continuar a despertar interesse e mesmo paixão um pouco por toda a parte é a prova irrefutável de que esse fascínio antigo perdura. Quando se esgotou o carácter mais imediato da sua funcionalidade surgiram então mais claros outros aspectos dessa afectividade, dessa complexa relação entre o homem e um objecto por si concebido, que estimulam agora uma série de reflexões sobre questões estéticas, simbólicas, históricas, etnológicas, psicológicas, tecnológicas, enfim toda a gama dos saberes humanos, exactamente à medida da sua importância civilizacional1. Esta é atestada por numerosos testemunhos do âmbito do mito, da literatura, dos discursos tecnológico e político. O discurso sobre a espada ultrapassa larga-

mente o dos seus mais óbvios e próximos utilizadores (ferreiros, armeiros, guerreiros), para ocupar o tempo e as mentes de habitantes de diferentes campos da actividade humana. Se podemos considerar que existem objectos cuja existência não nos aflige nem assombra, cujo espaço e desempenho se encontram relativamente à mercê do nosso domínio, já a espada, enquanto objecto técnico, foge a esse desejo de controlo, não apenas do ponto de vista quotidiano (porque pode dar a morte e assegurar a defesa da vida) mas também na medida em que se erige como símbolo carregado de características muito particulares. Na ausência da sua utilização bélica no mundo de hoje, a espada não desaparece exactamente porque sempre desempenhou um papel diferente de um mero

instrumento de combate2, talvez devido à característica singular que inspirou a sua sacralização: a espada pode ser aperfeiçoada mas, no seu género, não pode ser ultrapassada. De facto, poderemos admitir que as ligas metálicas sofreram um desenvolvimento ao longo dos séculos e que as forjas e os armeiros são hoje capazes de produzir lâminas de melhor qualidade (o que talvez nem seja verdade3). É também certo que a forma da espada foi sendo modificada, talvez mais devido ao tipo de exército que devia servir, do que realmente no sentido efectivo do seu melhoramento. Mas o curso da História não proporcionou, nem parece que vá proporcionar no futuro uma arma metálica de corte ou perfuração, tão ajustada à medida do homem enquanto seu prolongamento físico e psicológico.4 Sendo uma forma pressentida como inul-


trapassável, a espada surge como um objecto cuja sacralidade confunde e seduz o seu próprio criador, como se o armeiro fosse o parturiente, o que assiste à hierofania5 de um parto divino. Estas concepções simbólicas têm uma origem antiga em todas as civilizações e marcam rupturas com o passado, sobretudo devido ao advento da tecnologia dos metais, cujos mistérios eram explicados de modo vago ou emergiam disfarçados sobre o manto de linguagens iniciáticas e esotéricas. Seja na mitologia chinesa ou no conto breve japonês, que servem de epígrafe a esta introdução, a espada aparece como símbolo ambivalente, macho/fêmea, Yin/ Yang, terrível/propiciadora, exterminadora/fertilizante, afinal tão à imagem do seu próprio criador, mas dotada de um poder superior. Os discursos sobre a metalurgia e o fabrico das espadas, quer sejam literais ou alegóricos, são preciosas pistas para a compreensão de alguns dos percursos mais fascinantes da aventura da espécie humana.

1. O SIMBOLISMO DOS METAIS 1.1. Metais celestes, metais telúricos A descoberta da fundição dos metais marca uma nova era para a Humanidade. Normalmente, pensa-se, de modo algo preconceituoso que as descobertas técnicas antecedem a sua explicação ou justificação mitológica, quando na realidade por vezes acontece o contrário6. Na verdade, muito antes de se terem dedicado às técnicas da forja, já os homens conheciam e utilizavam os metais. Os nossos antepassados mais primitivos recolhiam pedaços de metal que encontravam na natureza e trabalhavam-nos como se de pedra se tratasse7. Mas essa matéria tinha uma origem bem específica e plena de significados simbólicos. Os metais vinham do Céu. Literalmente, os homens observavam com espanto e temor a queda dos meteoritos, chegando posteriormente à conclusão de que os minérios que extraíam destas pedras caídas do Céu eram, portanto, de origem divina. A sacralidade dos meteoritos encontra hoje a sua expressão mais conhecida na Kaaba islâmica. Mas mais do que o simbolismo da pedra em si, conta o contágio mágico dos metais nela contida. Confundidos com o raio, os meteoritos vinham das alturas rasgando a noite e incendiando na sua queda o próprio céu e depois as florestas. Era um mensageiro do fogo celeste, próprio para ser aproveitado pelos artesãos como fonte de matéria-prima e pelos magos como fonte de presságios. Algo que muito se confundia e que era necessário precaver pois que tratava de matérias perigosas. Com efeito, estes metais recolhidos à superfície vinham do céu e eram, portanto, participantes de uma sacralidade celeste e masculina. Repare-se que a queda do raio, como da chuva, representa a consumação da hierogamia8 entre o Céu e a Terra. Uma relação violenta e

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cruel, geradora de metais, e que os homens se veriam mais tarde na contingência de imitar. . Por vezes, os meteoritos caíam com tanta violência que feriam o ventre da Terra, penetrando-a e ficando bem longe do alcance dos homens. É precisamente a descoberta da fusão dos metais e do trabalho das minas que deu origem, segundo Eliade, a uma importante deslocação simbólica. Não nos interessa tanto aqui seguir uma cronologia das descobertas técnicas mas somente anotar algumas repercussões simbólicas estas trouxeram às culturas. A concepção de uma origem celeste dos metais é já suficiente para se compreender como este fenómeno impressionava a imaginação humana. Mas agora trata-se de ir ao seio sagrado da Terra9 e dele retirar os minérios que nele adquiriram já outras qualidades, nessa gestação geológica milenar, de idade incompreensível para o Homem. Ora esta acção implica a passagem para uma outra simbologia, agora também de contornos telúricos e femininos, portanto ambivalente, o que vai obrigar à introdução de outros elementos no universo do mito. 1.2. A imolação de Mo-ye A tradição chinesa conta que Kan-tsiang e a sua esposa Mo-ye eram ferreiros. Tendo recebido ordem para forjar duas espadas, Kan-tsiang dedicou-se dia e noite ao trabalho mas, após três meses de esforços, não conseguia realizar a fusão dos metais. Interrogado pela mulher sobre as razões do seu insucesso, o marido respondia-lhe evasivamente até que, face à sua insistência, acabou por lhe confessar que, em situação idêntica, o seu mestre se servira de uma rapariga para efectuar o casamento. Mal ouviu estas palavras, Mo-ye atirou-se para dentro da fornalha, possibilitando a união das ligas. Em seguida, o marido fabricou duas espadas: a espada fêmea, que se chamaria Mo-ye, e a espada macho que levaria o seu próprio nome. Noutra versão, Kan-tsiang conta que o seu mestre e sua mulher teriam ambos sido consumidos como único modo de ligar os metais. Mas é preciso ter em conta que em chinês casar/casamento (ping) tem igualmente o sentido geral de embaixada e outro mais específico de entrevista realizada, podendo portanto tratar-se de um sacrifício cuja vítima tem por missão operar como casamenteiro entre os metais em presença. Contudo, a imolação de Mo-ye pode também ter o sentido de casamento/oferenda ao deus da Forja para que este se dignasse proporcionar a ligação dos metais. Como vimos mais acima, o casamento do Céu e da Terra através do raio (origem dos metais) é um acto violento, a sua repetição no ambiente sagrado da forja implicará por isso mesmo a violência de um sacrifício humano. Segundo Marcel Granet10, o Mocho, animal perigoso, ligado ao Yang e ao quinto dia do quinto mês (quando o Yang adquire toda a sua potência – diz-se que as crianças de sexo masculino nascidas neste dia matarão os pais quando alcançarem a

altura da porta), era o emblema animal de um clã real de ferreiros, mestres do Raio e das Estações. Enquanto ministros seriam rivais do Céu e deviam ser controlados.

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O trabalho dos metais, da mina e das forjas, foi sempre entendido como especial

que não a sua, como uma espécie de recompensa ou reconhecimento pela introdução e domínio de uma técnica nova e maravilhosa11. Mas também a história das origens da civilização chinesa nos relata episódios semelhantes. Yu, o Grande, primeiro imperador da dinastia Xia, foi o grande Ordenador do Mundo. Para além de controlar o curso furioso da águas, era conhecido por perfurador de montanhas e por ser um rei-ferreiro, que dominava os segredos da forja e da união dos metais. A ele se atribuiu a fusão dos Nove Caldeirões dos Xia, feitos com metais que vinham das Nove Províncias, trazidos pelos Nove Pastores. Estes caldeirões eram leves e fáceis de transportar e tinham o condão de fazer ferver os líquidos sem necessi-

e perigoso. O minério não somente teria vindo do Céu como teria gestado no ventre da Terra, participando assim de uma dupla sacralidade. Daí que os ferreiros, os homens destinados a esta tarefa perigosa, tenham sido encarados por todas as civilizações como seres especiais e dotados de um saber também ele especial. Em termos concretos, o ferreiro era certamente alguém que, juntamente com o oleiro e o feiticeiro (com o qual às vezes se confunde), tinha o domínio do fogo. Ora o fogo é o que permite, entre outras coisas, a própria transmutação da matéria. Normalmente, a descoberta ou introdução das novas técnicas são atribuídas a um rei fundador, como é o caso quase total dos reinos africanos, em que os reis são igualmente ferreiros. O ferreiro, enquanto nómada que procura regiões onde existam minérios, não tem um lugar claro no seio da sua própria cultura, na medida em que toca em matérias perigosas que nem todos sabem dominar e que provocam um temor sagrado. Ele é, de certo modo, um marginal temido e respeitado, sendo o seu cargo hereditário, constituindo uma linhagem de poderes importantes e específicos. A mitologia africana é profícua em histórias de ferreiros que se tornam reis em tribos

dade de fogo. Eram justos pois neles se aplicavam os suplícios. Yu, o Grande, o primeiro dos monarcas a estabelecer uma dinastia, surge portanto não só como detentor dos conhecimentos iniciáticos que permitiam o trabalho dos metais mas, sobretudo, como seu virtuoso e justo utilizador. Porque, ainda na mitologia chinesa, para conhecermos a origem da fundição dos metais e do fabrico das armas, teremos de recuar mais, até aos tempos imemoriais do primeiro dos Cinco Augustos, Huangdi, conhecido pelo Imperador Amarelo. É que as armas e a forja são atribuídos a Chiyou, um ser maléfico que morreu em batalha contra o grande rei, num combate mítico cuja reprodução ritual tem atravessado a história da China. Chiyou, cuja natureza aparece por vezes repartida em 72 (9x8) ou 81 (9x9) irmãos, tem um aspecto temível: cabeça de cobre com a testa em ferro e semelhanças bovinas. A tremenda batalha em que defrontou Huangdi surge recheada de contornos mitológicos, em que cada um arregimentou para o seu lado diferentes seres mitológicos: a sua legião de demónios espalha uma misteriosa neblina, no seio da qual Huangdi para se orientar inventa a bússola; depois

1.3. Reis e ferreiros Os 81 irmãos tinha corpo de animal e vozes humanas, as cabeças de cobre e as frontes de ferro. Comiam areia. Foram os inventores das armas, dos sabres, das lanças e das grandes bestas. Aterrorizavam e faziam estremecer o mundo. Cometiam massacres. Faltava-lhes Virtude. Kouei tsang


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o monarca derrota o seu inimigo graças a uma trompa mágica que imitava o grito do Dragão. Chiyou terá mesmo sido morto pelo Dragão Yin, o dragão da Chuva que, juntamente com Niu-pa, a deusa da Seca, secundava Huangdi. Duzentos anos antes da nossa era, esta figura terrível foi recuperada pelo primeiro imperador dos Han que lhe dedicou um sacrifício12. A multiplicação de Chiyou transforma-o numa espécie de confraria, o que de algum modo se relaciona com o papel fundamental que as confrarias de ferreiros desempenhavam na China Antiga e cujos conhecimentos mágicos foram transmitidos pela tradição tauísta13. A história de Chiyou dá-nos a ver uma civilização que se apercebe dos perigos inerentes ao uso incontrolado da forja e das armas, nomeadamente para os detentores do poder, sinalizando ao mesmo tempo a sua origem maligna. Este ser mitológico múltiplo aparece como uma espécie de patrono dos rebeldes que ameaçavam, em hordas marginais, o poder centralizado dos imperadores. Na história da China, as confrarias têm inúmeras vezes desempenhado um papel de oposição ao poder estabelecido e roído por dentro o vigor e a virtude das dinastias. A mitologia chinesa mais primeva, de origem real, teme o poder das forjas e das armas, em detrimento da Virtude (De). A história de Huangdi e Chiyou demonstra que a Virtude (De) vence a força ainda semibestial das armas e dos metais, mas mais à frente mostraremos como, depois de submetida à medida humana, com a dinastia Zhou, mesmo na mitologia chinesa, a espada conquistará o seu espaço no panteão dos símbolos de poder. Assim, para já podemos concluir que o domínio da forja e dos metais é uma ocupação perigosa, demiúrgica, pela acção da qual a matéria se transforma e muitas vezes adquire a forma mortal de uma arma, capaz de dar vida ou morte, consoante a sua própria alma e alma do homem que a empunha. “O sabre é a alma do guerreiro”, diz o Bushido japonês. Mas, num sentido mais geral, a espada ultrapassa a dimensão do carácter solitário do guerreiro para se ereger em símbolo colectivo do exercício da violência, ou seja da própria essência da forma Estado.

2. A ASCENÇÃO DA ESPADA 2.1. Armas, animais e guerreiros Que importa viver muito tempo? Que guerreiro quererá ser poupado? Friedrich Nietzsche, Da Guerra e dos Guerreiros Seremos tigres ou rinocerontes Para assim percorrermos estes desertos? Pobres de nós, os guerreiros, Dia e noite sem repouso in Shi Ching, Livro das Odes Talvez o primeiro gesto tecnológico do homo faber tenha sido a construção de uma arma. Sendo uma espécie pouco dotada

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ciosidade, com o objectivo de acalmar, através do sexo, os homens excitados pela matança e pelo sangue. Rapidamente, reis e imperadores compreenderam que havia necessidade de captar as confrarias de guerreiros e mantê-las sob a sua bandeira, como condição de estabilidade e garante de obediência. Dependendo dos locais e das vicissitudes da História, assim também assistimos a diferentes graus de relação, de proximidade e afastamento entre a soberania e os guerreiros.

Ao contrário de outras mitologias, onde o carácter militar, guerreiro, mágico, precede o estabelecimento da ordem e é fundador17; na China o livro precede a espada e esta surge já domesticada pela acção virtuosa que precedeu a sua aparição. Indispensável ao exercício do poder, a espada encontra-se, contudo, de certo modo, submetida ao ditame do livro. fisicamente e sem presas consideráveis que lhe pudessem servir de ataque ou defesa, os nossos ancestrais precisaram desde muito cedo de utilizar as suas centelhas de inteligência e atenção no fabrico de instrumentos bélicos. E que modelo mais próximo escolher que o próprio mundo animal? A verdade é que as bestas apresentavam uma parafernália de armas naturais concedidas pela própria Natureza: cornos, dentes, bicos, barbatanas, espinhos, capazes de perfurar, rasgar e cortar com eficácia, assegurando a continuidade da espécie na luta pelos alimentos e pela sobrevivência. Se o homem utilizou, em primeiro lugar, os próprios despojos dos animais que matava ou encontrava mortos, não deverá ter passado muito tempo para que começasse a reproduzir em pedra e madeira as presas dos seus inimigos. Esta aproximação ao mundo animal não deixou de ter numerosas e profundas repercussões simbólicas, traduzidas, por exemplo, no totemismo de confrarias de guerreiros que se identificavam a um ani-

mal específico. São famosos os berserkir, homens-ursos que aterrorizavam as florestas do norte da Europa, bem como a sociedade secreta dos homens-leopardo que se dizia controlar grandes regiões de África. Uma vez mais nos surgem pois as sociedades de guerreiros, seres perigosos em tempo de paz, que é necessário controlar. De facto, a figura do guerreiro percorre com fatalismo a história e o imaginário das civilizações. Útil e reverenciado em tempo de guerra, este personagem e as suas armas constitui uma ameaça para o poder divino-legal em tempo de paz. Ele é um ser solitário (o melhor exemplo é o cavaleiro andante, figura que percorre sozinho grandes espaços tanto a Ocidente como no Oriente), incómodo, mas indispensável. A sua natureza, endurecida pelo tempero das batalhas e o confronto regular com a morte, é imprevisível e dificilmente controlável, tal como a sua sexualidade. O regresso dos guerreiros, por exemplo, era normalmente comemorado com festas que incluíam uma certa licen-

2.2. Armas contundentes, armas cortantes Outro modo que o simbolismo tem de estabelecer diferenças entre armas passa pelas características do seu funcionamento. Assim, teremos armas contundentes e armas cortantes. No primeiro caso teremos as clavas, as maças, etc., que esmagam, desfazem, maceram; no segundo as espadas, os machados, os punhais que cortam, dividem, perfuram. Distinção aparentemente significativa a nível simbólico, as primeiras teriam um conteúdo e acção fundamentalmente impuro e brutais, mais perto da animalidade; enquanto as segundas, mais perto da humanidade, conteriam na sua acção algo de salvívico e purificador. Este tema aparece sobremaneira ligado ao simbolismo da espada, na medida em que a sua acção terá um carácter regenerador, como no conhecido caso da Excalibur, da lenda celta do Rei Artur, a espada que cura e dá vida. Trata-se, afinal, de cortar o tempo para inaugurar um novo momento, um acto de regeneração. Para dar conta destas operações torna-se necessário cortar com o passado, negro e decadente, e inaugurar uma nova era. É o que Alexandre, o Grande, executa ao cortar com o seu gládio, o inextrincável nó de Gordium, tornando-se senhor da Ásia14. De espada na mão, o soberano corta para depois religar. O seu instrumento é portanto fundador de um novo tempo de uma nova memória. A espada distingue-se perfeitamente dos instrumentos contundentes que não figuram nas simbologias reais e são utilizados pelos puros guerreiros, seres apenas semi-divinos, como o Hércules da mitologia grega, que utiliza a maça. Só amarrados a um estrito código de comportamento, como no caso da cavalaria medieval europeia ou do Bushido japonês, os guerreiros têm, por assim dizer, licença de posse e porte de espada. O uso da espada nos exércitos era extremamente limitado. Os soldados usavam arcos, bestas, lanças, mas só aos oficiais superiores era concedido o uso da espada, normalmente instruídos na arte do combate individual. Na China, por exemplo, depois que a infantaria mongol conquistou o império, o uso da espada rareou de facto, até porque o sistema militar o tornava já obsoleto15. Isto torna-se bem claro quando percorremos o tratado de tecnologia do século XVII T’ien-kung K’ai-wu, de Sung Ying-Hsing. Neste livro, no


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capítulo do fabrico de armas, são referidos o arco e as flechas, a besta, armas de fogo... mas silêncio absoluto sobre a espada16. Porque haveria um manual de ensinar a fabricar um instrumento, afinal, ainda de características tão perigosas? 2.3. Da Espada e do Livro Tivemos em Wen e Wu dois grande e sábios reis. Trataram conscienciosamente dos assuntos de Estado e promoveram com zelo a conduta moral. A sua diligência e virtude tornaram-se famosas quer no Céu quer na Terra. O Céu, portanto, confiou ao rei Wen o seu mandato. Clássicos Confucianos, Livro de História Numa extraordinária floresta, à saída da cidade de Qufu, província de Shandong, está situado o túmulo de Confúcio. Todo o bosque é um enorme cemitério, cuja idade remonta pelo menos há 2500 anos. Os discípulos que aí se deslocavam em romariam eram supostos trazer uma árvore para plantar da sua terra natal. Este facto proporciona hoje ao visitante a contemplação de uma flora bem diversa, no meio da qual se espalham os túmulos. Antes de chegarmos ao local onde repousa o Venerando Mestre, depois de percorrer uma álea empedrada, deparamos com dois enormes guerreiros de pedra, espécie de guardas daquele espaço sagrado. Um segura de encontro ao peito um livro, o outro uma espada. Estes dois símbolos parecem constituir os dois fundamentos do poder na China. Curiosamente, ao contrário de outras mitologias, onde o carácter militar, guerreiro, mágico, precede o estabelecimento da ordem e é fundador17; na China o livro precede a espada e esta surge já domesticada pela acção virtuosa que precedeu a sua aparição. Indispensável ao exercício do poder, a espada encontra-se, contudo, de certo modo, submetida ao ditame do livro. É o que se torna evidente quando olhamos para a história fundacional da dinastia Zhou (1122-256 A.C.). O seu primeiro soberano ficou conhecido por rei Wen, que era um génio civilizador, pleno de virtude e compaixão, que não se vingava dos seus inimigos e que chegou mesmo a prescindir de parte dos seus domínios em troca do fim da tortura da trave. Nas suas terras reinava a harmonia, “os camponeses cediam uns aos outros nas discussões sobre os limites dos campos e todos cediam aos mais velhos”. Perante este reino de virtudes os Chefes entenderam que Wen tinha o mandato do Céu18 e rapidamente foi deposta a dinastia Yin, encabeçada por um déspota, para que se iniciar a dinastia dos Zhou. Reconhecido, Wen não entabulou nenhuma guerra contra o Cheou-sin, o último dos Yin. Foi ao seu filho, o rei Wu, a quem coube a materialização da vitória. Lançou-se na guerra contra Yin porque o tirano “oprimia as Cem Famílias”. Vencedor incontestado, Wu consolida o poder da dinastia. Temos então os dois aspectos da monarquia, mas a virtude ordenadora precede o aspecto marcial e de certo modo con-

Faz parte das suas qualidades cortar com o Tempo passado e preservar o novo Tempo, empurrando assim a História para a sua finalização trola-o. O mandato celeste pertence a Wen e só depois a Wu. Aliás, os próprios nomes Wen e Wu transformaram-se em conceitos que descrevem os soberanos posteriores como possuindo em maior quantidade uma ou outra qualidade. Wen significa, numa tradução alargada, literado, cultura, ordenamento, virtude, enquanto que Wu se refere ao carácter marcial do exercício do poder. Se, por um lado, compreendemos que o Livro precede a Espada; por outro torna-se claro também que sem a acção cortante se torna impossível estabelecer um reino virtuoso. A espada ascende a símbolo real, de guardião da justiça e garante mesmo da aplicação do Livro, presente no túmulo do criador do pensamento que viria a ser considerado doutrina de Estado ao longo da extensa história da China.

3. A ESPADA QUE CORTA JADE E NEBLINA A dualidade sexual da espada nas concepções chinesas, simplesmente, significa também que esta possui uma natureza totalizante. Daí que exista o perigo de se transformar em dragão, um animal que também reúne em si várias naturezas e por isso representa também a totalidade. Essa sua característica encontra-se também relacionada com o facto de a espada ser instrumento de vida e de morte, capaz de cortar mas também de religar e de manter intactas essas mesmas ligações. Neste sentido existe também uma relação próxima entre a espada e a alquimia, não apenas pela relação íntima entre os alquimistas e os ferreiros – até porque a forja é o primeiro espaço alquímico, mas sobretudo porque, como já vislumbrámos, a espada é mestra do Tempo. Faz parte das suas qualidades cortar com o Tempo passado e preservar o novo Tempo, empurrando assim a História para a sua finalização, tal como o alquimista procura o controlo da historicidade, nomeadamente através da demanda da imortalidade. Falam os chineses de uma famosa espada que “corta o jade e a neblina”. Eis os dois pólos de um instrumento capaz de destruir o material mais duro mas também de afastar o resíduo mais mole, conhecido por confundir os guerreiros. Só uma mente clara e um espírito virtuoso compreenderão o manejo da espada e dos seus símbolos. Os outros, que não queiram seguir a Virtude (De), deverão quedar-se pela sua contemplação.

NOTAS 1 No mundo de hoje a espada surge como objecto estético, ligado fundamentalmente à colecção. No entanto, não perdeu nem um pouco o carácter de objecto de prestígio e de depositário de saber huamno quer do ponto de vista tecnológico, quer histórico, quer cultural. 2 De notar que mesmo em exércitos relativamente modernos, como por exemplo o napoleónico, o uso da espada era reservado aos oficiais, apesar das armas de fogo desempenharem o principal papel nos combates. A espada é assim um signo de distinção e hierarquização social. É sabido que na Europa e noutras longitudes a aprendizagem da esgrima era reservada aos filhos das famílias nobres. 3 Existem fabulosas histórias que referem a existência no passado de espadas extraordinárias, cujas virtudes em muito ultrapassam as contemporâneas. Lendas à parte, a verdade é que a partir do século IX, nomeadamente no Japão, pouco se acrescentou à arte de forjar e temperar espadas. Na China, a espada que cortava o jade é lendária, tal como a Excalibur celta cujo gume cortava indiferentemente metal e a pedra. 4 A espada é um prolongamento do braço, o seu manejo um exercício da mente, a pistola é um prolongamento do desejo, mata à distância 5 Conceito de Mircea Eliade que significa “algo de sagrado se mostra”. Mircea Eliade, O Sagrado e o Profano, Edições Livros do Brasil, Lisboa. 6 É o caso da invenção do carro de transporte cuja primeira utilização era meramente ritual, servindo para transportar uma representação do disco solar, o que não deixa de ser um argumento para a teoria segundo a qual a invenção da roda terá nascido, antes demais, da representação do Sol. Cf. Eliade, Mircea;

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Ferreiros e Alquimistas; Relógio d’Água, pag.21. 7 Mircea Eliade, op.cit.; pág. 19. Esquimós, Aztecas, Maias e Incas, que desconheciam a fundição, utilizavam o ferro celeste, a que davam mais valor do que ao ouro. Quando interrogados por Cortez de onde vinham as suas facas, os Aztecas apontaram para cima e responderam que vinham do Céu. Igualmente referências ao uso dos metais de origem celeste são verificadas na Suméria e na China. 8 Casamento entre seres divinos. Cf. Mircea Eliade, O Sagrado e o Profano, op.cit.. 9 Num filme americano dos anos 50, “Treasures of Sierra Madre”, de John Houston, um velho mineiro insite em apagar os traços de uma mina já explorada, argumentado que tem de “sarar a montanha, reparar a ferida que lhe infligira”. Este caso demonstra que este tipo de concepção da mina enquanto ferida na Terra e da necessidade de a curar persistiu até muito recentemente. 10 Granet, Marcel; Danses et Légendes de la Chine Ancienne; PUF, 1926. 11 São, por exemplo, os casos descritos por Marcel Griaule entre os Dogon do Mali ou por Siegfried Nadel entre os Nupe da Nigéria. 12 O primeiro imperador dos Han, Kao-tsu, era de origens humildes. Ao que parece, seria dotado de um enorme carisma e sinalizado por várias marcas divinas, entre as quais 72 pontos negros na sua coxa esquerda. Este número refere-se à confraria e ao seu poder bélico. Kao-tsu viria a recuperar o culto e as dansas de Chiyou. 13 Granet, Marcel; Danses et Légendes de la Chine Ancienne; PUF, 1926. 14 Existia na cidade de Gordium, na Ásia Menor, um nó de tal modo complicado que ninguém o conseguia desatar. Rezava a lenda que quem conseguisse tal façanha se tornaria senhor de toda a Ásia. Alexandre perante a situação não hesitou e de um golpe cortou o nó. 15 Quando os primeiros mongóis desembarcaram no Japão, a sua infantaria venceu facilmente os samurais japoneses cujo desígnio guerreiro era o prestígio de encontrar um inimigo digno para entabular um combate individual. Só que quando os mongóis enviaram uma armada de duzentos mil homens para a invasão total, um tufão inesperado afundou e dispersou os navios, fazendo abortar os planos de conquista. 16 “No Japão algumas facas e espadas são feitas de um aço fino que é processado cerca de cem vezes de tal modo que se a espada for erguida ao sol os seus reflexos são suficientes para iluminar um quarto interior. (...) Os Bárbaros (Japoneses) clamam que este aço é capaz de cortar jade. Eu próprio, no entanto, nunca assisti a esta proeza”. Este parágrafo está incluído na secção referente aos metais e não às armas. 17 Cf. Georges Dumézil, Le heritage indo-européen à Rome; Gallimard, 1946. O autor descreve as características brutais, terríveis, dos fundadores de reinos como Rómulo, alimentado por uma loba (animal de Marte, deus da Guerra) e culpado de um crime abominável como o fraticídio, mas imbuído de suficiente sanha mágico-guerreira para fundar a cidade de Roma. O segundo rei de Roma, Numa, estabiliza a cidade através da criação das instituições político-jurídicas. 18 Cf. Szuma Chien, Records of the Historian. The Commercial Press, HK.


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Mongólia Interior A BELDADE WANG ZHAO António Graça de Abreu O NOME de uma bonita mulher da velha China chamada Wang Zhaojun (53 a.C - ?) não dirá grande coisa ao lusitano comum dos mortais. No entanto, o apelido e a pessoa têm sido objecto de quase culto e de singulares afectos por parte do chinês minimamente conhecedor da longa história do seu país. Wang Zhaojun é uma das “quatro beldades” da China clássica e, tal como acontece com as outras três companheiras (Xi Shi, Diao Chan e Yang Guifei), a sua imagem paira pelo mundo chinês, há muitos séculos, envolta no manto colorido do real e no inebriante fascínio da fantasia. Nasceu na aldeia de Baoping, na margem esquerda do Xiangxi, afluente do rio Yangtsé, na província de Sichuan. Visitei o lugar em 1995 subindo as Pequenas Três Gargantas de Shennongjia, pelo tributário do Yangtsé. Na altura, embora já conhecesse a história de Wang Zhaojun, não dei grande importância à aldeia. Agora, Agosto de 2011, regressei a Huhot, capital da Mon-

gólia Interior chinesa, a quase dois mil quilómetros de distância das gargantas do Yangtsé, e eis-me junto do túmulo de Wang Zhaojun onde estivera pela primeira e única vez no já distante ano de 1981. Era altura de encadear dados sobre a beldade e assentar ideias, com alguma excelente poesia de permeio. Wang Zhaojun cresceu formosa, recatada e inteligente na sua aldeia de Sichuan. Os recrutadores de concubinas costumavam viajar pelo império em busca das mais belas mulheres que levavam para o serralho do imperador e acabaram por descobrir a bonita Zhaojun. Sem demora, foi conduzida ao palácio do imperador e colocada numa longa lista de espera até ao dia, ou noite, em que lhe seria concedido o “favor imperial”. O imperador Han Yuandi (75 a.C. – 33 a.C.), atarefado com os assuntos da governação, não tinha muito tempo para dedicar à escolha da nova concubina a quem ofereceria o sublime “favor”. Contratou então um pintor que lhe retratava as meninas recém chegadas. Han Yuandi escolhia-as pela formosura que irradiavam no retrato. O pintor, de seu nome Mao Yensho, habituara-se a receber umas tantas moedas de prata de cada concubina,

melhorando assim os dotes das donzelas e alindando-as até ao inefável. Wang Zhaojun, confiante na sua beleza, não subornou o pintor que, por isso, a retratou gorda,feia e até lhe colocou uma verruga no rosto. Estava de visita a Chang’an, a capital (actual cidade de Xi’an), um príncipe xiongnu, os hunos, antepassados dos mongóis. Como demonstração de amizade, para o estabelecimento de uma paz duradoura entre xiongnu e chineses, o imperador Han Yuandi resolveu oferecer ao chefe “bárbaro” uma das damas da sua corte. Uma rápida vista de olhos pelos retratos levou-o a escolher a “desagradável” Wang Zhaojun. No banquete de despedida oferecido ao príncipe estrangeiro, o imperador chinês viu pela primeira vez a formosa concubina. Surpreso, estarrecido diante de tanta perfeição e beleza, Han Yuandi pediu a menina de volta ao seu serralho. Mas já não era possível, o chefe xiongnu, enfeitiçado, encantado com aquela beldade que já apertara nos seus braços, não concordou em devolvê-la ao imperador. Conformado, mas fervendo em ira, o soberano chinês mandou de imediato prender e decapitar o pintor Mao Yensho.


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R Ó N I C A

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OJUN Logo depois, Wang Zhaojun, desolada, triste, levando um alaúde e infindáveis saudades da sua China, partiu para as terras inóspitas da actual Mongólia, exactamente para a capital dos xiongnu, a cidade de Hohot. Teve um filho do príncipe “bárbaro”, que lhe sucedeu como chefe dos hunos e o sacrifício da beldade, longe dos seus e da pátria, correspondeu a um longo período de paz entre chineses e xiongnu. Muitos são os poetas do velho Império que têm composto poemas em louvor de Wang Zhaojun. O grande Du Fu (712-770) escreveu: Dez mil vales, mil montanhas conduzem a Baoping, a aldeia onde nasceu, cresceu a formosa Zhaojun. Partiu outrora dos terraços púrpura para os desertos do norte, na poeira do entardecer, o seu túmulo eternamente verde. Na brisa da Primavera, um retrato fixou seu rosto, nas noites de luar, o tilintar dos enfeites de jade, sua alma de regresso. Durante mil anos, a voz do alaúde bárbaro, a música, ressentimento e mágoa.

Bai Juyi (772-846), outro dos maiores poetas dos trinta séculos poesia chinesa, fala assim de Zhaojun: I Algumas palavras apenas aos enviados chineses de regresso à corte: voltem com ouro para resgatar a beldade. Se o imperador perguntar por Zhaojun digam-lhe que ela continua bonita, doce e formosa como outrora.

grinação e culto. Foi recentemente objecto de obras e melhoramentos para satisfação dos incontáveis turistas chineses que o visitam. Construíu-se um museu, levantaram-se estátuas e baixos relevos de Zhaojun e do príncipe xiongnu, mas é sobretudo o monte arredondado, destacando-se na planície circundante onde se abriga o corpo da concubina chinesa, que marca a paisagem e o lugar. “Eternamente verde” disse por volta de 750 o poeta Du Fu. Em 1981 e em 2011 encontrei-o polvilhado de flores selvagens.

II Areia do deserto em sua face, vento da estepe em seus cabelos. Das sobrancelhas pintadas desvaneceu-se o traço negro, as maçãs do rosto perderam o pó carmim, Em seu semblante, tristeza e amargura. agora sim, semelhante à dama pintada no retrato. O túmulo de Wang Zhaojun, vinte quilómetros a leste de Hohot, é, há muitos séculos, lugar de pere-

Fotos António Graça de Abreu


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P R I M E I R O B A L C Ã O

luz de inverno

Boi Luxo

SIMÓN DEL DESIERTO, 1965

Longe das suas comédias de burgueses e dos respectivos martinis secos, Buñuel coloca o asceta Simão no cimo de um pilar. Este contempla o deserto e expia os pecados do mundo. Buñuel longe de carros franceses de luxo e de mulheres a cores. Este asceta Simão recebe, a preto e branco, junto da sua coluna, perto do céu, pecadores e admiradores segundo a tradição estabelecida por Simeão Estilita, o Velho, que permanecera no cimo de uma coluna durante mais de trinta anos como forma de mortificação pessoal e geral, o Simeão criador da moda estilita. No início do filme, ao asceta, depois de este ter passado 6 anos, 6 semanas e 6 dias no cimo de uma coluna não muito elevada, é oferecida uma nova coluna mais alta e mais bonita por um patrocinador local – um rico comerciante. Um deserto mexicano estende-se a perder de vista aos pés de Simão, terra de virgens secas como as que há na Espanha das beatas, de muita ventania e pecadilhos mais ou menos desculpáveis. Este é o último filme a preto e branco de Buñuel. Mantém, assim, um aspecto antigo mas, na verdade, no conjunto da sua filmografia, é já um dos últimos. Este aspecto dá-lhe um rosto arcaico e sábio a que Buñuel não deixa, no entanto, de colar a sua habitual irreverência e petulância, uma irreverência de tipo celebratório e teatral. Nem sempre é fácil de identificar o registo em que se move o asceta, por vezes um pouco pateta, por vezes profundamente devoto. Como Buñuel consegue sempre fazer-nos

BUÑUEL

aperceber, logo no início dos seus filmes, o registo sarcástico que lhes serve de sublinha, mesmo através das mais inocentes das acções e palavras, é a prova máxima da singularidade da sua linguagem. Não deixa de haver um subtexto puro e bom neste filme. O comportamento do asceta está sempre acima de qualquer suspeita. Se alguma se insinua é a utilidade do seu esforço. É entre os que o rodeiam, clérigos e leigos, que observamos a luxúria, a inveja, a soberba e até a bestialidade (na figura do anão de pernas tortas guardador de cabras). Mas, ao mesmo tempo, por trás de cada coluna, de cada cacto e de cada arbusto do deserto, apercebemos o risinho diabólico do realizador, um grande cabrão. Em muitos dos seus filmes (há muitos outros em que essa intensidade não existe, muitos outros que o próprio Buñuel repudiava) há uma marca que se não consegue copiar, uma marca pessoalíssima que nos atinge desde o início. Uma marca que se antecipa se estivermos familiarizados com o seu cinema. É um efeito semelhante ao efeito conseguido por alguns humoristas que provocam o riso assim que entram em palco, sem nada dizerem. O efeito cria-se, entre outras formas, a partir da distância que ele entrepõe entre nós e as figuras que filma, um efeito de atracção e repúdia que nos leva a um interesse imediato a que vem juntarse uma instante reprovação. Tal acontece (principalmente) nos seus filmes com burgueses a cores. O que imediatamente

recordo é Le Charme Discret de la Bourgeoisie, salpicado de jeitos e trejeitos, almoços e jantares, dry martinis e um bispo jardineiro que mata o pai a tiro (mas continuo a preferir aquele em que o pai mata o filho com um tiro de caçadeira – em L’Âge d’Or). A igreja e o seu cortejo de hipocrisias, nesta expressão a sua vertente ascética, é um dos alvos mais queridos do autor. Como poderia não o ser sendo-se espanhol? Desde L’Âge d’Or que tal acontecia e esta sua inclinação para o desenho grotesco da hipocrisia da igreja e da burguesia pode ter também raízes na tradição dramática espanhola do “espertento”, que aqui se junta a um surrealismo que é neste filme, sobretudo, uma atitude. Este filme é também atraente por ser um pouco excêntrico a alguns dos seus “ciclos” mais identificáveis: o surrealismo/choque dos primeiros filmes, o núcleo duro dos seus filmes mexicanos ou o ciclo final de filmes a cores (os seus mais conhecidos), a que se poderá juntar o perversinho Le Journal d’une Femme de Chambre. Mesmo que Simón del Desierto tenha algo em comum com um filme de finais dos anos 50, Nazarín, que conta também a história de um clérigo bom, distingue-se deste pela insólita, pasoliniana e poética colocação de Simão no topo de um pilar. Há uma outra razão, esta meramente financeira. Faltou dinheiro para acabar o filme, que ficou reduzido a 45 minutos. Já aqui se falara, a propósito de outros, da deformidade que uma ocorrência destas inevitavelmente causa num filme. Mas também se apontara

que a deformidade pode também funcionar como uma atracção ou como uma singularização feliz. Narrativamente menos completo, algumas das suas partes parecem pairar em busca de uma viagem que se não realiza, os desejos apenas aflorados e o diabo com diabruras por acabar. O seu aspecto deformado, que se nota principalmente na parte final, e que o incapacita para uma exibição comercial corrente, ajuda a informar o seu rosto irreverente e tolo. “Hoje não há moscas”, diz Simão do cimo da coluna (hoy no hay moscas). Tendo a pensar que Buñuel é mais um realizador do desejo que um realizador das mulheres que nos seus filmes são objecto desse desejo. Neste filme encontra-se essa disposição através das aparições do diabo, que são, com uma excepção, femininas – a actriz mexicana Silvia Pinal em várias formas: vestida de aguadeira; mascarada com uma roupa de escola de estilo marinheirinha, aparição em que mostra as pernas e as maminhas; trajada de Cristo pastor, de barba, cabelo aos carcóis e cordeirinho ao peito; meia desnuda dentro de um caixão que aparece subitamente a rastejar pelo deserto – a cena visualmente mais surrealista, a lembrar os tempos de glória dos seus primeiros filmes – e, finalmente, como frequentadora de um infernal clube onde se dança a “carne radioactiva”. Tivesse o filme tido uma duração habitual e seriam de esperar mais peripécias picantes desta terra do diabo.


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T E R C E I R O O U V I D O

próximo oriente

Hugo Pinto

DO FUNDO DO BAÚ

Em 2006, Arnaud Bernard (Onra) fez uma viagem ao Vietname, país onde o produtor de hip-hop francês tem laços ancestrais – foi na antiga colónia francesa que nasceram os seus avós –, mas que nunca havia pisado. No regresso a casa, a bagagem de Onra ia mais pesada com as cerca de três dezenas de discos de vinil antigos, chineses e vietnamitas, desencantados em mercados de rua. Passado um ano desde a viagem ao sudeste asiático, Onra publicou o álbum “Chinoiseries”. Em francês, “chinoiserie” evoca o período a partir de finais do século XVII, com o auge no século seguinte, em que a arte europeia era pontilhada não só pelo rococó, mas também pelas imitações dos estilos e imaginários chineses. No fundo, uma tosca mistura de Ocidente e Oriente. É essa fusão, entretanto melhor ensaiada, que Onra usa como ponto de partida nos 32 temas que compõem “Chinoiseries”. Aos “samples” dos discos antigos em que vozes exóticas e instrumentos tradicionais orientais se sobrepõem, às vezes com esforço, às estrias dos vinis gastos pelo tempo, Onra administra com precisão cirúrgica batidas e “breaks”, cortes e costuras que transportam as glórias da música chinesa e vietnamita do passado para os tempos pós-modernos do hip-hop instrumental e abstracto. As músicas de “Chinoiseries” raramente

ultrapassam a marca dos dois minutos, o que provoca o efeito de sucessão em catadupa. A sequência acelerada, juntamente com o som rugoso dos pedaços originais “sacados” dos discos antigos, são características que ajudam a colocar este trabalho de Onra num patamar à parte daquele onde repousam as compilações de pacotilha que prometem “chill out” acenando com o fascínio das sonoridades orientais embutidas sem rasgo de criatividade em assépticos ritmos pré-fabricados. “Chinoiseries” transporta o ouvinte para um outro tempo e um outro lugar. Há ambientes de romance, mistério, festa e melancolia. Cada tema parece um interlúdio do próximo. Nesta incompletude reside parte grande do fascínio do disco – mais importante do que o destino é a viagem. Talvez por sentir que a jornada estava longe de cumprida, este ano, Onra publicou um segundo volume das memórias vietnamitas, simplesmente intitulado “Chinoiseries Pt.2”. A fórmula repete-se, até no número de temas: uma vez mais, 32. Em entrevista ao sítio “Synconation”, Onra referiu-se a este segundo tomo alertando para que não se esperasse “nada de novo”, já que seria “exactamente o mesmo conceito e o mesmo tipo de ‘samples’.” Dito e feito. É verdade que, muito facilmente, aquilo que no primeiro volume era virtude, no segun-

do arrisca-se a tornar-se vício. Se Onra vendesse discos aos milhões, era prudente desconfiar que apresentar um segundo “Chinoiseries” soava a truque barato para facturar; sendo o produtor que é, releva da ponderação acreditar em Onra quando diz, ainda ao “Synconation”, que o faz por “divertimento e pelos fãs que valorizam este aspecto do meu trabalho”. Na verdade, “Chinoiseries”, apesar dos dois volumes, não constitui o traço mais distintivo da obra de Onra enquanto produtor de hip-hop: é apenas um “aspecto” da sua obra. Nos seis discos que o francês editou entre 2006 e 2011, aquilo que de mais significativo existe no seu trabalho tem a marca do funk “vintage” e do R&B dos primórdios, heranças que Onra recria com as linguagens contemporâneas, desde o primeiro disco, editado, em 2006, a meias com Quetzal, “A Hip-Hop Tribute to Soul Music”, até ao excelente “Long Distance”, de 2010. “Chinoiseries” pode ser, por isso, um desvio, mas um desvio que remeteu Arnaud Bernard ao seu próprio passado não pode ser um mero “acidente de percurso”. A viagem continua. “Chinoiseries” Label Rouge Prod, 2007 “Chinoiseries Pt. 2” All City Records, 2011 Onra

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C I D A D E S I N V I S Í V E I S

metrópolis

Tiago Quadros*

ENTRE DOIS TERRITÓRIOS P

ARA MANUEL VICENTE, A ARQUITECTURA É O “ESPAÇO DO SER” E O “HABITAR SEU OBJECTIVO MÁXIMO”; É ESSA A SUA PROCURA, DESDE HÁ 50 ANOS, CORAJOSAMENTE, SEM DESISTÊNCIAS. A exposição inaugurada no passado dia 21 de Novembro na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto é uma retrospectiva da busca por esse ideal de prazer e emoção ou, simplesmente, do sublime que pode existir no nosso quotidiano. Segundo João Carlos Afonso, Comissário da exposição “Manuel Vicente, Trama e Emoção”, a mostra é uma leitura no tempo, entre dois territórios. “Lisboa é o local de partida e regresso, onde a sua obra como que pontua os grandes momentos dos últimos 50 anos: no final do Estado Novo, a expansão capitalista e o seu contraponto social com o Plano UNOR26 e o Fundo de Fomento de Habitação; na Revolução de Abril, com o Programa SAAL ao serviço do “Portugal Novo”; na saída da letargia a caminho da Europa, com a Casa dos Bicos; do Portugal Europeu e desenvolvido que a Exposição Universal de Lisboa de 1998 quis simbolizar. Macau é o território da prática continuada e persistente, da construção partindo das oportunidades reais, dos programas possíveis e materiais comuns. Espaço delimitado e de liberdade, ao mesmo tempo Portugal e a sua ausência. Dos muitos prédios de habitação pensados como contributo para a cidade, dos grandes blocos desenhados para a escala do homem, da criação do futuro para o património, dos grandes traçados urbanos para um quotidiano vindouro. Da procura da trama que dá corpo à arquitectura. Onde a sua obra constrói o presente.” Em Outubro de 1989, na exposição “… Prender todo o tempo ocupando o espaço”1, Manuel Vicente sintetizava o seu trabalho na década que terminava apresentando três obras – o Arquivo Histórico de Macau, o World Trade Center de Macau e o edifício-sede da Teledifusão de Macau. Optava por mostrar apenas esses em detrimento de muitos outros entretanto desenhados e concretizados, mas mostrando-os em detalhe, recriando o ambiente ou as sensações que a sua obra nesse momento queria transmitir. Dez anos antes, em “O exercício da cidade”2, apresentara o trabalho feito ao longo de três anos de ausência nesse Portugal distante que era Macau, com 16 obras – a sua maioria então em fase de desenho. Esta exposição que agora se inaugura no Porto, e que se prevê ser também exibida em Macau, faz parte do programa “Manuel Vicente, Trama e Emoção”, conjunto de iniciativas que inclui, para além de um livro, os videos “Fai Chi Kei (1981-2011)” e “Learning from Macau#1”3, um projecto de Jorge Figueira e José Maçãs de Carvalho, a iniciativa “Manuel Vicente, 15 edifícios na Rota do Oriente”4 coordenado por Ana Vaz Milheiro no âmbito do Mestrado Integrado em Arquitectura do ISCTE-IUL e a sistematização do Fundo Manuel Vicente do Centro de Documentação de Urbanismo e Arquitectura da FAUP, cujo responsável é Manuel Mendes.

Manuel Vicente (Lisboa, 1934) diplomado pela Escola Superior de Belas Artes de Lisboa (1962) e Mestre em Arquitectura pela Universidade da Pensilvânia, na classe de Louis Kahn (1969). Ensina arquitectura desde 1970 e proferiu conferências por todo o mundo. Foi membro da comissão instaladora da Associação de Arquitectos Portugueses (1975/77) e Vice-Presidente da Ordem dos Arquitectos (2002/07). Tem obra construída em Lisboa, Funchal, Goa e Macau; e foi neste último que desenvolveu a maior parte do seu trabalho. Trabalhou na administração pública, tendo em Macau coordenado o “Gabinete de Urbanização” (1962/66) e em Lisboa chefiado o sector de Planos Habitacionais do Fundo de Fomento de Habitação (1973/77); a actividade por conta própria inicia-a antes de terminar o curso e até hoje exerce a profissão. Foi distinguido em 1987 com o Prémio de Arquitectura AICA/Secretaria de Estado da Cultura, em 1993 com o Prémio da Associação de Arquitectos de Macau e em 1994 é distinguido com a Medalha de Ouro da ARCASIA (Secção Ásia da União Internacional dos Arquitectos) pelo conjunto Fai Chi Kei. Sobre Manuel Vicente, Graça Dias refere: “E é isso que é lindo em Manuel Vicente: a paixão quase infantil com que defende a mudança, com que adere à transformação, o à-vontade com que participa na construção do futuro, a não-nostalgia de que é capaz, no seu visionário pressentir do novo. Na enorme vontade e intenção de desejo urbano, culto, referenciado, inteligente, poético e útil que espalha sobre o projecto, projectando o acordo com que está, mas devolvendo-lho outro e mais rico; mais rico de hipóteses e possibilidades e de lugares para a vida.”5 Estamos entre o Bairro do Fai Chi Kei, a Baía da Praia Grande, o Bairro Portugal Novo e a Casa dos Bicos. Estamos com Manuel Vicente entre Macau e Lisboa. O tempo é de divulgação da Obra, a propósito da qual se reflecte sobre a importância da arquitectura na sociedade contemporânea e se questiona a relação de Portugal com Macau. *Arquitecto, Mestre em Cor na Arquitectura pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa 1 Exposição “...Prender todo o tempo ocupando o espaço”, Galeria EMI – Valentim de Carvalho, Lisboa, Outubro 1989. 2 Exposição “O exercício da cidade. Arquitectura em Macau 1976/79”, AR.CO, Lisboa, Outubro 1979. 3 Ambos realizados por José Maçãs de Carvalho com direcção científica de Jorge Figueira e assistência de realização de Rui Xavier. 4 A iniciativa “15 edifícios na Rota do Oriente”, Abril/ Maio 2010, foi a conclusão do trabalho desenvolvido no âmbito da disciplina de “História da Arquitectura Portuguesa”, no ano lectivo de 2009/2010; inclui uma exposição, um catálogo e um seminário. 5 AFONSO, João, et al. (2011). Trama e Emoção, Lisboa: Caleidoscópio, p. 43.


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L E T R A S S Í N I C A S

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WEN ZI 文子

A COMPREENSÃO DOS MISTÉRIOS

“Podem nomear-se termos, mas não enquanto definições permanentemente fixas”.

CAPÍTULO 173 Lao Tzu disse: Os antigos governaram sem coroa; sua virtude era dar vida e não matar, dar e não tirar. O mundo não foi por eles conquistado; todos sem excepção mantinham em mente a sua virtude. Nesse tempo, o yin e yang eram harmoniosos e iguais e uma miríade de seres florescia. Era possível erguer os braços e pôr as mãos nos ninhos dos pássaros selvagens; era possível juntar-se aos animais selvagens. Quando os homens degeneraram, os pássaros, bestas, insectos e répteis se tornaram todos maléficos para eles. É por isso que os homens forjam e temperam lâminas de ferro contra eles. E assim se passa que, quando em apertos, o povo busca forma de lidar com os seus problemas; é por isso que tomam

precauções. Em todo o caso usam o que sabem para se livrarem do que consideram maléfico e privilegiarem o que lhes é vantajoso. Os precedentes fixos não devem ser seguidos sem questão; as ferramentas e mecanismos não devem permanecer antiquados. É por isso que as leis dos monarcas de há muito eram sujeitas a mudança. É por isso que se diz: “Podem nomear-se termos, mas não enquanto definições permanentemente fixas”. Os Cinco Senhores tomaram caminhos diferentes, porém sua virtude abarcava a terra; os Três Reis fizeram coisas diferentes, porém sua fama perdurou no mundo. Tal sucedeu pois mudaram segundo seus tempos. Foi como um mestre de música a afinar instrumentos de corda, movendo o afinador para cima e para baixo, calculando sem medida fixa,

de modo a que todas as notas soassem em harmonia. Assim, aqueles que compreendem os sentimentos da música sabem compor melodias; aqueles cuja base assenta no centro e sabem o uso de directivas conseguem governar o povo. E assim abandonam as leis de antigos reis quando estas já não são adequadas. E assim se dão aos empreendimentos de eras posteriores se estes forem bons. Como tal, os sábios que dominaram os ritos e a música não foram dominados pelos ritos e pela música; dominavam as coisas, mas pelas coisas não eram dominados; dominavam a lei, mas pelas leis não eram dominados. E por isso se diz: “Podem definir-se vias, mas nunca uma via permanentemente fixa”. Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho

O texto conhecido por Wen Tzu, ou Wen Zi, tem por subtítulo a expressão “A Compreensão dos Mistérios”. Este subtítulo honorífico teve origem na renascença taoista da Dinastia Tang, embora o texto fosse conhecido e estudado desde pelo menos quatro a três séculos antes da era comum. O Wen Tzu terá sido compilado por um discípulo de Lao Tzu, sendo muito do seu conteúdo atribuído ao próprio Lao Tzu. O historiador Su Ma Qian (145-90 a.C.) dá nota destes factos nos seus “Registos do Grande Historiador” compostos durante a predominantemente confucionista Dinastia Han. A obra parece consistir de um destilar do corpus central da sabedoria Taoista constituído pelo Tao Te Qing, pelo Chuang Tzu e pelo Huainan-zi. Para esta versão portuguesa foi utilizada a primeira e, até à data, única tradução inglesa do texto, da autoria do Professor Thomas Cleary, publicada em Taoist Classics, Volume I, Shambala, Boston 2003. Foi ainda utilizada uma versão do texto chinês editada por Shiung Duen Sheng e publicada online.



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