PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nツコ 2567. Nテグ PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE
ARTES, LETRAS E IDEIAS
h POESIA CHINESA DE MACAU
FOTOGRAFIA DE PENG YU (DETALHE)
AS MARCAS DA TERRA
I D E I A S F O R T E S MIO PANG FEI
9 3 2012
h 2
POESIA CONTEMPORÂNEA Os poetas chineses de Macau
Yao Feng 1. EM NOME DE MACAU
Organizada pelo professor reformado da Universidade de Macau Li Guanding, a Antologia de Poesia Contemporânea de Macau foi editada pela Fundação de Macau em 2007. Dividida em dois volumes e editada em chinês, a antologia reúne, no total, 130 poemas da autoria de 32 poetas, entre os quais não figura,
porém, nenhum poeta macaense ou português que resida em Macau. Na introdução assinada pelo organizador, não foi esclarecido o critério de selecção dos poetas nem a razão de omissão dos poetas macaenses e portugueses. Lembre-se que, em 1996, a Fundação de Macau havia editado a Antologia de Novos Poemas de Macau, organizada pelo poeta Zheng Weiming. Esta antologia, embora organizada em nome de Macau,
ignorou igualmente os poetas portugueses. No entanto, na introdução o organizador, para além de fazer uma retrospectiva sobre o desenvolvimento da poesia de expressão chinesa desde a década de vinte até à de noventa, explicou o conceito de Nova Poesia com que titulou a antologia: 1) Poemas de estilo moderno escritos em chinês por pessoas de Macau; 2) Tem Macau como temática[1]. Foi uma selecta virada exclusivamente para os po-
etas que escrevem em chinês. Contudo, Zheng Weiming fez uma definição sobre “ a pessoa de Macau” desde a perspectiva dos estudos literários, adiantando que qualquer pessoa, caso tenha vivido em Macau durante algum tempo, já se considera “pessoa de Macau”[2]. É um critério bastante tolerante que serve da base para a sua definição da literatura de Macau: “1. Quaisquer obras dos naturais de Macau; as chamadas obras dos naturais de
terem produzido poesia de boa qualidade, apenas haviam passados por aqui de forma fugaz.”[5]. À luz do espírito de abertura e tolerância, este trabalho não ignorou os poetas que eles achavam qualificados, tanto chineses como portugueses, contribuindo para o aprofundamento do conhecimento mútuo dos poetas chineses e portugueses. Até ao presente, é a única antologia verdadeiramente feita em nome de Macau. Nas actividades de promoção cultural ou turística, diz-se sempre que se Macau caracteriza pela fusão de diferentes culturas, o que se tornou uma etiqueta mais atraente desta cidade. No entanto, as culturas, embora convivam basicamente em harmonia e sem violentos conflitos, nunca conheceram uma convergência essencial e profunda . Esta situação de desentendimento parece bem descrita por um provérbio cantonense: o pato não se entende com a galinha. Mesmo hoje em dia, não é exagerado dizer que Macau continua a ser uma cidade dentro das “duas cidades distintas mas que não são fáceis de separar e que correspondem a duas almas, a duas vidas, a duas civilizações - a de Portugal e a da China”,[6] como descreve o escritor Jorge de Inso sobre Macau do século XIX.
Provavelmente era esta vontade morna de conhecer o outro que levou o organizador da Antologia de Poesia Contemporânea de Macau a ignorar os poetas que escrevem em português. No entanto, é igualmente justo indicar que depois da transferência da soberania de Macau para a China, muitos portugueses regressaram a Portugal, deixando uma grande lacuna na criação literária em português.
2. ESQUECER OU MEMORIZAR, NUM GESTO DE DESPEDIDA
No processo de descolonização no mundo, o caso de Hong Kong e de Macau constitui um exemplo excepcional uma vez que o princípio de “Um país dois sistemas ” garante manter intactos o sistema social e o modo da vida destes territórios. A passagem do poder ocorreu em conformidade com os acordos assinados pelas duas partes sem provocar lutas ou conflitos sangrento, que não pouparam outras colónias. Estes são, pois casos únicos no âmbito mundial. Entretanto, mesmo com as garantias previstas na Lei Básica, tanto em Hong Kong como em Macau reinava um ambiente de incerteza em relação ao futuro durante o período de transição. Diferentemente de Hong Kong, em Macau era a comunidade macaense que
RUI CALÇADA BASTOS
Macau. Implicam os trabalhos de autores que nasçam, cresçam, e residam permanente em Macau, isto é, as obras dos escritores titulares dos documentos de identidade tidos em Macau, ou melhor dizendo, as obras produzidas em Macau pelos autores acima referidos. 2. Todas as obras que falem de Macau ou tenham por temas a realidade de Macau, seja quem for o seu autor.”[3] Esta definição, embora seja abrangente, especialmente no segundo ponto, corre o risco de não definir nada ou “optando-se assim pelo critério cumulativo”[4], nas palavras de Ana Paula Laborinho. Existe uma literatura de Macau e uma literatura sobre Macau mas o critério de Zheng Weiming tornou a literatura de Macau demasiado aberta que poderia integrar muitos nomes, tais com como W. H. Auden, Miguel Torga, Agustina Bessa Luís ou João Aguiar, pelas suas obras que têm Macau como tema. A hibridez de diferentes culturas tornou difícil a definição da literatura de Macau. Ao meu ver, não interessa como definir esta literatura visto que culturalmente Macau não é uma terra autónoma nem independente, sendo a sua cultura sempre de matriz chinesa ou portuguesa. Pode considerar-se que autores que nasçam, cresçam, e residam permanente em Macau como escritores de Macau conforme a definição geográfica, mas no fundo eles são escritores chineses, portugueses, ingleses ou franceses dependente da sua pertença cultural. Em função desta definição, Henrique de Senna Fernandes pode ser classificado em vários níveis: escritor de Macau a nível geográfico, escritor macaense a nível antropológico e escritor português a nível cultural. Do exposto, podemos ver que para identificar um escritor é necessário considerar a sua pertença cultural. Assim sendo, muitos escritores possuem duplos estatutos: são considerados escritores de Macau mas, simultaneamente portugueses ou chineses, tendo em conta a sua pertença cultural. Não é justificável e torna-se absurdo integrar, de modo linear, nos escritores de Macau os nomes tais como Miguel Torga ou João Aguiar apesar das suas obras se basearem na temática de Macau. Três anos depois da publicação da antologia organizada por Zheng Weiming, saiu a público a Antologia de Poetas de Macau, cuja selecção e organização esteve a cargo de Jorge Arrimar e Yao Jingming, dois poetas não nativos. Sendo uma edição em bilingue da responsabilidade de três instituições (Instituto Camões, Instituto Cultural de Macau e Instituto Português do Oriente), esta antologia, também redigida em nome de Macau, reúne vinte poetas de cada língua - a chinesa e a portuguesa. No que diz respeito ao critério de selecção, os organizadores defendem que “um dos critérios seguidos na selecção dos poetas foi a da residência em Macau. Entendeu-se que um dos factores que identifica um poeta com sendo de Macau, tinha a ver com a sua permanência nesta terra, por, pelos menos, alguns anos. Não foram tidos em conta, poetas que, pese embora
h
9 3 2012
I D E I A S F O R T E S
3
traduzia esta incerteza face a um futuro incógnito, com receio de perder os privilégios étnicos de que gozavam durante a administração portuguesa, enquanto que os chineses, que na sua absoluta maioria se encontravam em condição marginal, aguardavam por esse momento histórico com esperança. Mas nem todos os chineses o aguardam com um patriotismo superficial. É curioso verificar que os dois poetas na antologia optaram pelo mesmo tempo e pelo mesmo espaço para se despedirem da página histórica a ser virada. O Hotel Bela Vista, lugar carregado do forte valor metafórico e simbólico, não foi escolhido por acaso como uma referência poética. No seu poema intitulado Uma tarde no Hotel Bela Vista, Huang Wenhui, poeta distinguido da geração dos poetas que surgiram nos anos noventa, expressou, num discurso irónico, um complexo sentimento. Fazendo um resumo da história em que Macau é personalizada como uma mulher de idade com “os seios murchos” , não se esquece de avivar a memória da humilhação: E as marcas dos dentes, rentes aos seus seios murchos tais como um complexo mapa mundial do século XIX onde as cicatrizes sangrentas delimitam as fronteiras [7] De facto, a história de Macau como colónia serve do tema constante para a expressão poética em chinês na qual é lugar-comum comparar Macau a um filho humilhado e afastado do berço da Pátria-mãe. Huang Wenhui não escapou a este lugar-comum, embora a imagem da mulher com os seios murchos seja original. Então, não há outra forma de lidar com essa história desagradável senão esquecê-la. O acto de esquecer significa um gesto de despedida, com receio do destino de “outro copo vazio”: Tempo para a despedida Tempo para o esquecimento Pergunte se as facas deitadas na toalha branca ainda guardam impressões digitais de alguém se a cinza na grandiosa lareira ainda se lembra de uma paixão acesa os suspiro, soltados à altura da despedida não passam de arrotes a nutrir o esquecimento Temos que tomar conta do palpitar bêbado que se destina a outro copo vazio Então acenamos a toalha surpreendida no pescoço como uma despedida do fim do século vinte da pós-colonização da pós-transição desta vista que deixa de ser Bela Vista e depois esquecemos tudo e depois limpamos espuma restante no canto da boca erguendo o copo para um brinde para receber o novo banquete do povo no novo século[8] Ao lado de Wang Wenhui, Lin Yufeng escolheu igualmente o Hotel Bela Vista para despedir-se do passado mas prefere “guardar esta noite”. No poema intitulado Última Noite no Hotel Bela Vista, encenou uma cena em que um par clandestino fez um jantar para se despedirem e decidiu fazer amor para memorizarem a noite de despedida:
I D E I A S F O R T E S MIO PANG FEI
9 3 2012
h 4
Não há hoje nem amanhã Não há lágrimas nem é preciso dizer adeus e a vida tem que começar pelo fado a tremer no banquete de despedida Quando a canção ainda não chegou ao fim o par clandestino já tinha esgotado o vinho no copo trocando um olhar vermelho Para guardar esta noite temos de fazer amor debaixo do oleandro como se fosse uma cena do velho filme sobre amor e guerra A história pode realizar-se assim tal como um ciclo infindável de invasão e evacuação Assim, foram retiradas a seriedade e a solenidade a um momento histórico reduzindo os meandros da história ao namorisco inconsequente dum par clandestino. E a consciência de “não há hoje nem amanhã”tornou o tempo numa dimensão intemporal ou condenou tanto o passado e como o futuro a um nada. No fundo nada é alterável porque tudo é fatídico. Mesmo a história, cheia de cenas medíocres do amor, não deixa de pertencer a um ciclo infindável. Mas a história foi sempre impulsionada pela vontade insaciável do ser humano, cujos truques não escapam aos olhos do Velho da História: Vim duma cidade como esta Quando vim o século XX está a findar na cidade profunda Com flash e objectiva, a insaciável vontade encena uma cena trás outra em que lágrimas se despedem de lágrimas Só o farol não diz nada com o único olho arregalado porque já sabe tudo tudo não passa de truques para eles ganharem a vida[9]
O jogo é a maior indústria de Macau O governo é a maior accionista dela (nem é preciso fazer registo comercial) A sociedade é a maior banqueiro (em nome do patriotismo) As seitas são donos dos salões do casino (têm numerosos negócios filiados) Nós é que somos a maior ficha emprestada para ser apostada[14]
3. NADA DE SÉRIO PODERÁ AQUI ACONTECER?
Na criação literária em expressão chinesa, a poesia e a crónica são as duas modalidades mais dinâmicas em comparação com outras. Depois da transferência, alguns dos poetas foram desaparecendo do horizonte, sendo que uns emigraram para o estrangeiro e outros deixaram de escrever devido a diversos factores, especialmente esgotados na inspiração. Entre esses poetas da velha geração, apenas Yi Ling continua activa e dinâmica apesar da atitude reservadora face à vida social. Trata-se de uma das vozes mais corajosas moldando o seu discurso poético com uma profunda consciência de intervenção social. Como cidadã residente em Macau e portadora do bilhete de identidade de Hong Kong, Yin Lin já expressou no livro de poesia Ilha Móvel, editado em 1990, a dificuldade de identificar-se com uma terra dentro da terra própria. Neste perplexidade, a relação entre eu e o país é mediada mais por aqueles valores universais do que pela cegueira do patriotismo. Como chinesa, não lhe custa identificar-se com a cultura chinesa mas ela não consegue identificar-se com um regime ainda menos democrático, o que lhe atribuiu uma postura dissidente que subsiste sob muita pressão numa sociedade conservadora como Macau. Então o que é aquele lugar a que poderá pertencer de corpo e de alma? Escreve ela:
gida pelo familiarismo, e em virtude disso há louvor fácil, silêncio cúmplice, mas ao mesmo tempo o medo de dizer e o medo de existir. Lembre-se que o poeta inglês W. H. Auden viajou em 1938 para a China e fez uma visita a Macau tendo ficado mesmo instalado no Hotel Bela Vista. No seu poema sob o título de Macao, o poeta chama à cidade “uma excentricidade de Portugal e da China”, descrevendo que “Igrejas ao longo de bordéis testemunham que a fé pode perdoar o comportamento natural.” Ao longo dos anos, uma das características mais referidas de Macau é a sua indústria do jogo, sinónimo de vício, perdição e crime para uns, e ainda sinónimo de gozo e simples diversão para outros. De um lado igrejas, do outro casinos e bordéis, contratam-se mutuamente, sendo esta singularidade cultural e moral que fez de Macau uma cidade onde os vícios infantis se contrapõem às virtudes inferiores, onde “nada de sério poderá aqui acontecer”[12] Provavelmente, o que Auden pretendia dizer é que “a violência ideológica e a fúria política que caracterizam a sua época não parecem perturbar Macau, cujos cidadãos estão mais preocupados com o negócio”. [13] Desde a publicação do poema do poeta inglês até ao presente, esta característica de Macau mantém-se inalterável, mas uma série de acontecimentos graves, entre os quais se destaca o caso de corrupção de Ao Man Long, fizeram negativamente de Macau mais conhecida a nível mundial. Yi Lin, sempre atenta à realidade, tinha coragem de denunciá-la:
Percebes o que é o destino de repouso? É onde a vida começa e acaba É onde se nutrem o pensamento e o sentimento É onde se guardam o desejo e a gratidão É um lugar inexistente no mapa frio mas sim é guardado quente no fundo da tua coração[10] A transferência da soberania de Macau para a China deu aos chineses a sensação de serem senhores desta terra. Eles aguardavam com confiança e esperança um futuro novo à luz do princípio de “Um país dois sistemas” e de “Macau é governada pela gente de Macau”. Entretanto, uma série de escândalos levou a população a ficar profundamente desiludida com o governo da RAEM, tendo provocado incessantes protestos e manifestações. Não se duvida que em Macau há mais espaço para a liberdade de expressão em comparação com outras partes da China continental, mas ainda não foi constituída uma sociedade cívica amadurecida, habituada e tolerável à oposição e à voz crítica. Daí que às questões de interesse
público, muita gente prefere cair no silêncio em vez de tomar uma atitude activa e interveniente, como refere Lu Aolei neste poema: O que pensa da situação actual, por favor? Não tenho nada a dizer Qual é sua opinião sobre a prevenção da epidemia, por favor? Óptimo! Não aponte a câmara para mim Onde é que vamos, por favor? Silêncio! Distribua cartas! Como é Macau de agora? Chegue ao balcão 2 para apostar Por favor, não se importa de…… Ora bolas, não active o pensamento! Não ilumine o escuro com flash Deixemo-nos andar calados Para evitar chatices nada perguntemos [11] Este estrofe do poema intitulado “Uma entrevista na rua” descreve uma faceta do contexto social de Macau. Nesta cidade tão pequena que quase todos os rostos são familiares, a relação social é mais re-
São poemas imediatos que nascem na vontade de censurar a realidade, que se declina cada vez mais a beneficiar a gente de poder. As transformações radicais que Macau tem conhecido não lhe satisfizeram à esperança demandando-a para participar na vida social tendo a poesia como farpa. Sinceramente, esta maneira de intervenção social parece insignificante, dado que teve raramente eco na praça pública, mas pelo menos é posta à prova a relação da poetisa com a realidade, que não é passiva nem subordinada, embora desde a perspectiva poética, muitos dos poemas deste género ainda sejam precários
4. NO EXÍLIO, EM BUSCA DO HABITÁVEL
Tradicionalmente Macau foi sempre um destino do exílio que acolheu muitos escritores, desde Camões, Camilo Pessanha passando pelo poeta chinês Qu Dayou ou dramaturgo Tang Xianzu. O exílio, separação da pessoa e da terra onde vive, sempre caracteriza a vida do ser humano. O exílio implica a deslocação dum sítio para outro em busca
do vida mais habitável. Mas também há outros exílios: o de fora para dentro, isto é, a abstenção ou fuga às circunstâncias exteriores à procura de uma terra utópica ou espiritual. Enfim, pode dizer-se que o poeta está sempre a caminho do exílio, do retorno a uma terra onde repousar o seu corpo e alma. Em Macau, cidade de imigração e emigração, se os poetas imigrantes da década de oitenta vieram para cá em busca duma vida melhor, os poetas jovens, dos anos setenta e oitenta já não se preocupam com a questão do pão do dia-a-dia, mas sim com a busca duma terra onde possam lançar a raiz. Eles nasceram e cresceram nesta terra mas perderam a capacidade de fazer comunhão com ela: Onde é a terra natal Quem sabe? Nostalgia da terra, terra da nostalgia …… Aquém das avenidas prósperas quem prefere ser caminhante solitário? Actuo à vontade e olho para longe ali não sou quem retornar mas sim passageiro Que chata a vida É preciso ter razão para se enraizar[15] Ser passageiro numa cidade onde se nasceu e cresceu significa exilar-se dentro da sua terra própria, de maneira a traduzir uma renúncia à vivência estruturada nesta terra. De facto, para os poetas jovens integrados na antologia, a monotonia re-
petida, o vazio, o tédio e a solidão que lhes alimentam a vida quotidiana constituem os temas constantes no seu discurso poético. Si Luosha, uma jovem nascida em 1985, fica cansada prematuramente da época próspera e pacífica, sentindo necessidade de procurar uma vida pura e limpa: Esta época considera-se próspera Na cidade não há mais revolta, epidemia e exército revolucionária mas precisamos de nos exilar como a ovelha á procura dumas ervas sem agritóxico[16] A par desta busca da vida purificada em duplo sentido, o amor passou a ser um lugar de abrigo. Em vez do amor romântico, fogoso, intenso e beijado pelas palavras doces, aspira-se um amor simples e caracterizado pela vida ordinária, que talvez seja mais consistente e menos vulnerável: Apenas quero ter-te como parceiro a ter de passar uma vida comum bocejando juntos[17] Na realidade, cabe o amor dar o sentido a uma vida solitária a ser desenrolada no sertão da multidão. Namorando como se fosse o seu ofício quotidiano, o jovem poeta He Lingsheng tem produzido uma grande quantidade de poemas amorosos em que registou um trajecto afectivo, inscrito por momentos sucessivos de alegria, exaltação, desilusão, angústia, enfim, todos os
ingredientes do amor e do desamor, enquanto que Huang Wenhui, por sua vez, tem uma percepção pessimista sobre o amor, mergulhando-se numa impotência de amar: Meu amor o amor é uma múmia é um corpo vazio sobreposto de várias camadas de conservante bem embrulhado e atado para ser enterrado no fundo da cela Depois é exorcismo Depois é mistério E depois é o esquecimento[18] Assim, o amor tornou-se um corpo seco, condenado à morte no túmulo do esquecimento e sendo privado da possibilidade de chegar à fusão das almas, porque há medo do longo caminho das saudades, do abismo do vazio, do incurável da ferida. Um fim previsto faz com que o amor fique sem força para acção. Hoje em dia a poesia está um bocado marginalizada tanto em Macau como em qualquer parte do mundo, mas a voz do poeta, enquanto expressão da alma, não deve nem pode ser apagada. Numa cidade como Macau, há uma realidade fecunda com fonte de inspiração e promissória para o surgimento de poetas comparáveis a Baudelaire, autor de Flores do Mal, uma vez que no jardim da cidade, as flores estão a desabrochar: tanto as do bem e como as do mal. [1] Zheng Werming, Antologia de Novos Poemas de Macau(澳門新詩選), Fundação de
5
RUI CALÇADA BASTOS
9 3 2012
h
I D E I A S F O R T E S
Macau, 1995, p. 1 [2] Zheng Werming, ibidem. [3] Zheng Weiming, Literatura Chinesa de Macau entre os Anos Oitenta e os Princípios da Década de Noventa, in Administração, nº29, vol,VII, 3º, p.503 [4] Ana Paula Laborinho, Por uma Literatura de Macau, in Antologia de Poetas de Macau, IC,ICM e IPOR, 1999, p.19. [5] Jorge Arrimar e Yao Jingming, Antologia de Poetas de Macau, IC,ICM e IPOR, 1999, p.28. [6] Jaime do Inso, O caminho do Oriente, Macau, Instituto Cultural de Macau, p.75 [7] Huang Wenhui, Uma Tarde no Hotel Bela Vista, in Antologia de Poesia Contemporânea de Macau(澳門現代詩選), Fundação de Macau, 2007, p.333. [8] Huang Wenhui,Ibidem, p.334. [9] Agens Lam, Vim duma Cidade como Esta, Ibidem, p.175. [10]Yi Ling, Macau, Macau, , Ibidem, p.524. [11] Lu Aolei, Uma Entrevista na Rua, Ibidem, p.245. [12] Elizabeth D. Baker e Donald C.Baker,W.H. Audem,Um Grande Poeta Inglês que escreveu sobre a China, Hong Kong e Macau, in Revista de Macau, Nº25 (II Série) , Outubro/Dezembro de 1996, p. 289-298. [13] Elizabeth D. Baker e Donald C.Baker, Ibidem, p.289, [14] Yi Ling, Oito Sectores da Indústria de Macau, in Antologia de Poesia Contemporânea de Macau, p. 527. [15] Luo Jiayi, Pensamento no Silêncio da Noite, Ibidem, p. 481. [16] Si Luosha, Exílio Metafísica na Época Pacífica, Ibidem, p.268. [17] Si Luosha, Escutar os Lótus, Ibidem, p.272. [18] Huang Wenhui, Meu Amor, Ibidem, p.362.
LIVROS DO MEIO
Fernanda Dias U m a
l e i t u r a
d o
YI JING
O SOL, A LUA E A VIA DO FIO DE SEDA
O mais clássico dos clássicos chineses. O livro que estabelece o correr dos dias e a distribuição das energias. PARA LER, USAR E ABUSAR
h
9 3 2012
I D E I A S F O R T E S
CHINA INDAGA O QUE É POESIA Régis Bonvicino* in Sibila
Registo “Words & the world”, editado pelo principal poeta chinês vivo, Bei Dao, e lançado pela editora da Chinese University, de Hong Kong. O título “As palavras e o mundo” explica-o: é produto do segundo encontro de poetas realizado na cidade de Hong Kong, na China. O livro traz textos de vinte autores nas suas línguas originais, em inglês e em mandarim. Há vários dialectos falados na China (o cantonês, o sichuanês e o hakka, por exemplo), entretanto, o mandarim foi adoptado como idioma oficial pelo governo. O chinês, no seu conjunto, é falado por um sexto dos habitantes do mundo, embora não tenha o poder do inglês e a difusão do espanhol. Nestes termos, assemelha-se ao hindi (Índia), que, com 565 milhões de falantes nativos, é o segundo idioma do globo. Participei desse encontro, ao lado de alguns estrangeiros. O japonês Shuntaro Tanikawa e o russo Arkadii Dragomoshenko são dois dos destaques do volume, que se torna atraente pela presença de poetas de Taiwan, Hong Kong, Macau e, sobretudo, da China continental. Há diferenças de compreensão do conceito de poesia e de poema entre os chineses e os ocidentais. Ao contrário do que se imagina, há vários poemas duros, registando uma experiência imediata. Os chineses são, ao mesmo tempo, literais e indiretos, no sentido metafórico. Um dos poetas constantes do volume é Xi Chuan, de Beijing. No poema “Agosto”, por exemplo, trabalha com os traços acima descritos. Para falar das enchentes do verão, diz: “O mês de Agosto são os olhos dos peixes / mortos na terra depois de uma inundação”; para falar dos insectos: “O mês de Agosto é um mosquito / que voa abastecido de nosso sangue”. Um dos poetas mais interessantes é Yu Jian. A contrariar as expectativas ocidentais sobre a poesia chinesa, escreve, na peça intitulada “A respeito da rosa”: “e também quero ofertar germes à rosa, imundície à ave”. Listo alguns dos nomes que compõem o livro, além dos já citados: Lo Chih Cheng, Chen Ko Hua e Ling
Bei Dao
Yu, de Taiwan, Yu Chiang e Yo Xiang, do continente, além de Yao Feng, de Macau, e Yip Fai e Wong Leung Wo, de Hong Kong. Esta, embora conhecida como a cidade do luxo no Oriente, tem um museu de arte com 15 mil trabalhos e tem políticas de educação formal superiores hoje às de vários países europeus. Os tópicos da democracia e da liberdade de expressão estão presentes em vários autores. Entretanto, quero registar um fenómeno novo da cultura chinesa. A partir de Deng Xiao Ping (1989), com a abertura da China ao mundo, os poetas chineses começaram a trocar, em parte, os seus modelos tradicionais por modelos do Ocidente, sobretudo anglo-americanos e europeus, como T. S. Eliot. Essa invasão ocidental faz Charles Baudelaire ser lido ao mesmo tempo que o sueco Tomas Tranströmer, que recebeu o Prémio Nobel no ano passado. Cronologicamente, ambos são contemporâneos. É também já um dos efeitos da internet, que cria – para todas as literaturas – uma “destradição”, uma não tradição, baralhando a dureza da história real. O crítico literário Paulo Franchetti definiu, com acerto, a influência da internet na actual poesia brasileira, o que vale, sob certos ângulos, para a chinesa: “Agora, a tradição é um simulacro. O conhecimento dos topoi está morto ou não é compartilhado pelo leitor disponível. Ao mesmo tempo, a internet altera a forma da produção e da leitura, multiplicando as referências intertextuais colhidas no Google, ao sabor da bolsa de valores da cultura”. No entanto, na China, ao contrário do Brasil, as leituras simultâneas de poetas ocidentais de períodos distintos se dão menos como complacência e mais como desafio. Bei Dao, que esteve exilado por dez anos do seu país, resume a situação, no prefácio: “É preciso indagar de novo o que é poesia e o que ela pode oferecer, num mundo tomado pela linguagem da internet e do entretenimento, tomado por lixo linguístico, numa era de perda de valores culturais”. Algumas possibilidades de resposta à questão podem ser lidas nesse livro surpreendente. * Poeta, autor, entre outros de “Até agora”, e director da revista Sibila http://sibila.com.br
7
9 3 2012
h 8
C H I N A C
OUTONO EM PEQUIM EM PEQUIM, em quase toda a China, o Outono é a mais perfeita das estações do ano. Depois dos calores do Estio que também bate forte nestas regiões do norte do império, o Outono chega, no início de Setembro, transparente, claro, suave. As árvores transmutam as cores, misturam-se verdes, castanhos, amarelos e dourados, o vermelhão seco. As folhas demoram a cair, talvez receando serem feitas em nada pelo Inverno frio que aí vem. No Outono é um prazer fugir da convulsão e confusão da grande metrópole e, longe dos quinze milhões de pessoas que a povoam, afastado do bulício e labor de Pequim, procurar a serenidade estável e bonita que, surpreendentemente, se encontra mesmo ao lado da cidade. É só saber caminhar ao seu encontro. Gosto de passear pelos campos nos arredores de Pequim, de ir até à ponte de Lugouqiao ou Marco Polo, do século XII, com os seus 365 leõezinhos de pedra, todos diferentes, empoleirados na sequência das guardas da ponte, de costas voltadas para o rio Yongding. Gosto de subir pelas colinas, passar o Palácio de Verão, acolher-me no templo do Buda Deitado, com crisântemos multicolorindo os canteiros dos jardins e
a alegria do vermelhão viçoso dos velhos pavilhões recentemente pintados. Vou conversar com um ou dois dos quinhentos luohan, as estátuas dos discípulos de Buda em tamanho natural que descansam no pavilhão do templo das Nuvens Azuis, em plena Colina Perfumada. Dois desses luohan, dizem-me, são excelentes cópias do que terão sido em vida os grandes imperadores Kangxi e Qianglong, no século XVIII. Que galardão e prazer visitar a casa humilde rodeada de flores e vegetação onde faleceu Cao Xueqin (1715-1763), deixando inacabado sobre a sua mesa de trabalho o manuscrito com os oitenta capítulos do 红 楼梦 Hong Lou Meng, O Sonho do Pavilhão Vermelho, o mais famoso romance de toda a literatura chinesa... Depois, acompanhar o pequeno regato e diluir-me pelo vale das Cerejeiras. As colinas ainda verdes, a terra, atapetada a urze e erva brava, as árvores, sequóias pequenas perfurando o vazio, bambus oscilando, o ribeiro cantando no musgo e nas pedras, por cima mais rasgões aveludados de céu azul, tudo limpo, num ar macio e translúcido. Pedaços de sol caindo gota a gota encharcando os montes de um calor tardio, e de paz. Pequim lá longe, com os arranha-céus esbatidos na bruma e na poluição da cidade e as multidões abençoadamente distantes… Há sempre mais Pequim para me embeber e
desaparecer. Regresso à quase harmonia da vetustez do burgo imperial, agora quando o Outono desce, outra vez, sobre casas e gentes. Pego na motorizada, venho de Haidian, faço quilómetros por avenidas, o trânsito confuso, depois os atalhos e entro por ruelas e becos nos velhos houtong. O Gulou da dinastia Ming (1368-1644), a torre do Sino, a torre do Tambor, os lagos pequenos de Shichahai, as casas cinzentas e térreas, a vida ignorada e exposta das gentes de Pequim, abrindo-se, fechando-se ao mundo. Ao amanhecer, dar com as pequenas surpresas. Os anciãos nos parques fazendo taichiquan, o boxe das sombras, a tentar agarrar o mundo e fazer, desfazer energias no ritmo do espairecer do corpo. Mãos, braços, pernas, tudo voando em gestos lentos e pausados. Ao anoitecer, os namorados passeando de mão dada na penumbra do parque Beihai, palácio de Inverno dos imperadores de antanho, escondendo-se depois por detrás de uma sebe, diante do pequeno lago, ainda com lótus em flor. Outono em Pequim. Na distância do ar rarefeito e puro, os montes do Oeste debruados por montanhas de nuvens. E lágrimas rolando devagar, em olhos amendoados e corações magoados, sob os salgueiros numa despedida, nas margens doces do lago dos Bambus Violeta.
ANTÓNIO GRAÇA DE ABREU
António Graça de Abreu
9 3 2012
h
R Ă“ N I C A
Os anciĂŁos nos parques fazendo taichiquan, o boxe das sombras, a tentar agarrar o mundo e fazer, desfazer energias no ritmo do espairecer do corpo
9
9 3 2012
h
10
P R I M E I R O B A L C Ã O
luz de inverno
Boi Luxo
MAHANAGAR (THE BIG CITY)
Que me interessa que este não seja um dos grandes filmes de Ray quando contém algumas cenas que são tão inesquecíveis que o colocam num lugar à parte? Cenas que são como uma imensa surpresa ao virar de uma esquina. Cenas que são como se um rio se revelasse, turbulento e inesperado, por trás de um pequeno monte? Já aqui se falou, a propósito de outro filme asiático (japonês) do poder individual de algumas cenas. Neste filme passa-se o mesmo, há uma cena (ou duas) em que parece preparar-se uma revolução, uma cena que promete que o mundo irá mudar e essa cena passa-se numa casa de banho. Mas voltemos à hesitação que impediu que estas considerações se tivessem concluído apenas numa instalação e se tenham estendido por este texto, como uma torrente de lava. Falar de um filme de Ray leva-nos inevitavelmente a muitos outros. Talvez fosse mais sensato preferir a este filme um outro, Charulata, de 1964, porventura mais perverso, quase perfeito como filme, um dos preferidos do próprio autor. Ou, cedendo ainda à tentação doce de falar de um filme que é o retrato de uma emancipação de uma mulher, escolher o exemplo mais óbvio e lembrar a resolução estridente de Bimala, a mulher de Ghare-Baire (A Casa e o Mundo, 1984) em conhecer o mundo. É que os filmes de Ray, como outros filmes indianos, bengali ou não, têm este poder fluvial de nos fazer divagar e de não nos deixar ater a certezas.
SATYAJIT RAY, 1963
Este é um dos filmes mais profundamente urbanos de Ray. Ou talvez não. Poderá, ao invés, ser profundamente provinciano no olhar que estende sobre a cidade. Há outros que sobre ela até mais programaticamente se debruçam. É o caso dos 3 filmes que compõem a chamada Trilogia de Calcutá: Pratidwandi, Seemabadda e Jana Aranya (todos dos anos 70), todos eles, no entanto, centrados em figuras masculinas. Mas a cidade é aqui, neste filme, o lugar onde a determinação pode acontecer. A cidade é o lugar da emancipação e da inovação, o lugar que permite e promove a coragem de reordenar uma situação social. São muitos os filmes que falam da coragem de uma mulher. Nada disto é novo nem o era em 1963. Mas são poucos os realizadores que conseguem rodear as suas personagens de uma aura que é de início banal e natural mas que se transforma, aos poucos, numa aura de um brilho universal, uma aura exemplar e admirável. Quase apetece dizer bem dos actores. Acontece uma coisa nos filmes de Satyajit Ray que é quase impossível de reproduzir. É algo que se dá imperceptivelmente, algo que só nos atinge quando já não há retorno possível. Aos poucos, à medida que se começa a adensar a trama, cada gesto começa a aparecer investido de um sentido cada vez mais importante e solene. Cada virar de cabeça, cada olhar, cada passo, ganha uma solenidade e uma precisão temíveis. Isto acontece em fil-
mes em que tudo parece, ao início, ser de uma banalidade inultrapassável. Neste também assim é. O transporte que este movimento nos obriga a fazer (repito, de modo imperceptível) cria em nós um inevitável impulso. As cenas em que a mulher, Arati, regressa a casa depois de receber o seu primeiro salário, são de uma justeza insuportável. São como as cenas do começo do amor entre Apu e Aparna na terceira instalação da Trilogia de Apu. E como tantas outras no cinema de Ray. Que perfume é este com que ele envolve algumas das suas figuras, um perfume que transforma personagens banais em personagens que ascendem a um lugar paradigmático, quase estatuário, impossíveis de ignorar? É isto que ele lhes faz, transforma-as em estátuas e torna-as imortais, peças de um imenso templo. Em Mahanagar, a mulher da casa, contra o preconceito e a hostilidade de grande parte da família, decide empregar-se para ajudar a equilibrar o orçamento familiar. Não é um empreendimento fácil no interior de um conjunto conservador. Esta mulher de sari, lançada no mundo do trabalho, faz lembrar outras, japonesas, de quimono, cujo tradicionalismo vestuário esconde uma vontade indomável. Nos dois cinemas vemos estas figuras contrastantes: as mulheres de sari ou de quimono, à partida mais tradicionais, e as mulheres de traje ocidental, de quem se espera um comportamento mais tolerante à novidade. Uma das figuras deste filme, uma mulher anglo-indiana que se
prende de amizades com Arati, trajada sempre de um modo ocidental que completa uma atitude arrogante oposta à atitude contida da mulher Bengali tradicional, serve para sublinhar o abismo que existe entre a coragem de Arati e o que tradicionalmente se espera dela. Quando menos se espera, o marido de Arati perde o emprego e esta assume subitamente o papel daquele como garante da sobrevivência do conjunto familiar. Mas que me interessa tudo isto? Há uma cena do filme em que se opera uma subtil transformação. Trata-se da cena em que Arati entra na casa de banho da empresa onde trabalha com um envelope com o seu primeiro salário. Será talvez preciso lembrar que Ray tem um profundo sentido musical. A banda sonora deste filme é da sua autoria. Apenas assim se explica este engenho, apenas assim se explica que um realizador de cinema possa, em poucos planos, sem diálogo, apenas com um ou dois travellings, transportar o filme a estas alturas e mostrar tanto com tão pouco. Curiosamente, no mesmo lugar, na mesma casa de banho, acontece, um pouco mais tarde, algo de semelhante. Edith Simmons, a rapariga anglo-indiana, aplica com um cuidado de amiga extremosa um pouco de baton nos lábios de Arati. Como se exibe um programa social apenas com quatro ou cinco planos? Sabendo aplicar um sentido musical a um programa de imagens. É este o perfume inconfundível que se desprende deste e de outros filmes de Ray.
h
9 3 2012
T E R C E I R O O U V I D O
próximo oriente
Hugo Pinto
NUMA FEIRA SEMPRE POP “We western pop-makers are like the Brothers Grimm. We scribbled a few fairy stories a long time ago. And now they’re there, transmuted, misunderstood and built in stone at Tokyo Disneyland, and we’re wandering around the theme park in our frock coats murmuring aloud in wonder ‘Did we really start this?’” Momus, “Shibuya-kei Is Dead” Na década de 1990, enquanto no Ocidente meio mundo andava entretido a ressacar do “grunge” ou a delirar com a “brit-pop”, no Japão, a história da música Pop era transformada num interminável conto de fadas. Shibuya, o “shopping district” por excelência de Tóquio, é o epicentro da fábula que passou a ser conhecida como “Shibuya-kei”, o “estilo Shibuya”. Além das inúmeras lojas que penduravam as últimas tendências da roupa nas suas montras, Shibuya albergava algumas das lojas de discos com os melhores catálogos do mundo. O paraíso consumista era habitado por jovens ávidos das importações que chegavam do Ocidente. Não se tratava de coleccionismo selectivo; o objectivo era mesmo comprar tudo o que o dinheiro pudesse, o que no caso de uma boa parte dos japoneses em questão era
bastante, devido à generosidade de papás que acumularam pequenas fortunas nos bancos ao longo de uma vida pacata só agitada, aqui e ali, por bonançosos ciclos de prosperidade económica (as crises estavam, ainda, por vir). Foi, pois, sem preconceitos e de mente aberta que muitos destes coleccionadores se tornaram músicos e vice-versa. Em Shibuya, como recorda Nick Currie, músico, escritor e artista britânico conhecido por Momus, recente residente de Osaka, a moda deixava de o ser a cada 5 minutos e no preciso momento em que um novo estilo nascia era logo revivido e parodiado. “Lojas e museus são a mesma coisa, e comprar ou ser curador de uma exposição são actividades ao mesmo nível de produzir arte”, escreve Momus, num pequeno ensaio sobre o fenómeno “Shibuya-kei”, por volta de 1997. De facto, bandas e nomes como Pizzicato Five, Flipper’s Guitar, Towa Tei, Cornelius, Cibo Matto, Takeshi Nakatsuka, Fantastic Plastic Machine, Takako Minekawa, Yoshinori Sunahara e tantos outros têm todos em comum o método que passa por coleccionar, ‘samplar’, copiar, colar, editar e sintetizar o imenso arquivo Pop ocidental, do presente e do passado, dos franceses anos “yé-yé” ao House de Chicago, passando pela Bossa Nova,
pelo “lounge” luxuoso de Burt Bacharach, pelo Jazz e por tudo o mais que fosse “cool” e vendido nas discotecas de Shibuya. Há que concordar com Momus: “Cultural objects are often so much more interesting when taken out of context, misunderstood, or fetishised.” No fundo, é este o grande legado do “Shibuya-kei” e do seu enorme espelho distorcido apontado, em contra luz, ao Ocidente. A imagem reflectida foi convenientemente captada na outra extremidade do mundo e artistas como Dimitri From Paris, Le Hammond Inferno ou o inevitável Momus, e editoras como a Bungalow, em Berlim, ou a Matador, nos Estados Unidos, souberam converter em energia a nova vaga japonesa. Mas, como esperado, foi no Japão que se sentiu com mais impacto o efeito “Sibuya-kei”, catalisador de uma verdadeira reestruturação da indústria musical, até então dominada pela chamada “J Pop”, música exclusivamente cantada em japonês para consumo interno, de valor artístico altamente discutível ou simplesmente inaudível, consoante o humor. Tudo isso mudou a partir da zona oeste de Tóquio, na década de 1990. O tempo pode já ter passado, o “Shibuya-kei” pode ter acabado, mas não morreu. Anda por aí. Afinal, sempre andou e, parece, sempre andará.
11
9 3 2012
h
12
C I D A D E S I N V I S Í V E I S
metrópolis
Tiago Quadros*
O CABANON DE SOU FUJIMOTO “
EU QUERIA CRIAR UMA ARQUITECTURA DE MADEIRA DEFINITIVA. PENSEI QUE, COM ESTA CABANA, QUE PODERIA SER CONSIDERADA UMA CASA, PEQUENA E PRIMITIVA, SERIA POSSÍVEL CRIAR UMA PROPOSTA ARQUITECTÓNICA SIMULTANEAMENTE NOVA E ORIGINAL. Uma secção quadrada de madeira de cedro, de 35 cm de lado é empilhada sem fim. No final do processo aparece um lugar prototípico, um lugar anterior à arquitectura se tornar arquitectura.”1 É deste modo que Sou Fujimoto apresenta a casa de madeira definitiva. Construído em 2008, em Kumamoto no Japão, o projecto recorre à incrível versatilidade da madeira. A madeira é utilizada na arquitectura convencional para, de modo intencional, se diferenciar. Não só em estruturas como pilares e vigas, mas também em elementos como as fundações, paredes exteriores, divisórias interiores, tectos, pavimentos, isolamentos, móveis, escadas e janelas. O que Fujimoto propõe é que sendo a madeira tão multifacetada, de modo inverso deveria ser possível criar uma arquitetura que satisfizesse todas as funções mediante um único processo e um único método para usar diferentes tipos de madeira. Trata-se de uma inversão da versatilidade. A partir dela surge uma nova arquitectura que mantém a condição indiferenciada de um todo harmonioso, anterior à divisão de funções e papéis. A secção quadrada de madeira de cedro, de 35 cm de lado, produz um impacto surpreendente. Com efeito, ela transcende o que costumamos designar de “madeira” e torna-se numa “existência”, num material completamente diferente. As suas dimensões testemunham de modo adequado a sua materialidade enquanto madeira, mas a dimensão de 35 cm está também relacionada com o corpo humano. Assim, o espaço tridimensional criado é formado por incrementos de 35 cm. Este tipo de espaço em camadas tem a capacidade de gerar uma espécie de relativida-
de espacial e um novo sentido de distâncias. Neste projecto não há categorização de pisos, paredes ou tectos. O que parece solo torna-se cadeira, tecto ou parede, dependendo, literalmente, da perspectiva. Os pisos tornam-se relativos e as pessoas reinterpretam a espacialidade de acordo com o sítio onde estão. As pessoas são distribuídas tridimensionalmente no espaço e experimentam novas sensações de profundidade. Os espaços não são divididos, mas antes gerados, por acaso, em elementos que se fundem. Os habitantes descobrem diferentes funções por entre essas variações. É um lugar que se aproxima de uma paisagem nebulosa. Seja como metodologia construtiva ou experiência espacial, esta é uma arquitectura síntese da fusão de vários elementos indiferenciados. Nesta cabana, as regras convencionais da arquitectura são anuladas. Não existe planta, nem sequer pontos de referência. E no entanto, o cabanon de Sou Fujimoto nasce simplesmente da versatilidade da madeira. Sou Fujimoto (Hokkaido, Japão, 1971) licenciou-se na Universidade de Tóquio, Faculdade de Engenharia, Departamento de Arquitectura em 1994. Estabeleceu o seu próprio atelier em Tóquio, Sou Fujimoto Architects, em 2000. A sua experiência no ensino foi desenvolvida enquanto professor da Tokyo University of Science (desde 2001), da University of Tokyo (2004), da Showa Women’s University (desde 2004) e da Kyoto University (desde 2007). Sou Fujimoto também tem dado aulas em várias universidades no estrangeiro, como o Departamento de Arquitectura do Massachusetts Institute of Technology, Cambridge (Massachusetts, 2006), o Royal Institute of British Architects, em Londres (2007) e a London Metropolitan University (2007). Sou Fujimoto pertence à jovem geração de arquitectos japoneses, mas a sua obra alcançou já o mundo todo. Isto porque, mesmo com os seus pequenos projectos, que vão cabendo na palma da sua mão,
o seu trabalho indaga repetidamente o significado essencial da arquitectura: o que é a arquitectura? Como deve a arquitectura relacionar-se com a natureza? Para o arquitecto japonês, falar sobre a arquitectura é falar sobre o mundo. As obras da nova geração de arquitectos japoneses apresentam-se geralmente brancas, abstractas, contendo o mínimo de informação possível. Parecem perseguir o mundo de espaços abstractos implícito no “menos é mais” de Mies, esperando ser valorizados na sua esbelteza minimalista. No entanto, a maioria destes trabalhos deve ser compreendida como o resultado de uma pesquisa relacionada mais com capacidades tecnológicas do que como resultado de uma procura contemplativa. Aparentemente, a arquitectura de Sou Fujimoto procura, também, a tradição do cubo branco puro, e parece aproximar-se da abstracção minimalista. No entanto, a experiência vivida nas suas obras demonstra que estas prosseguem uma direcção completamente diferente. Fujimoto procura investigar como a arquitetura deve recuperar a sensibilidade da vida humana. Poder-se-ia dizer que as suas experiências são dirigidas para a recuperação das interacções humanas e das relações primitivas entre as pessoas e a natureza. O cabanon de Sou Fujimoto não pertence ao universo da arquitectura de madeira. Se a arquitectura feita de madeira deve ser considerada arquitectura de madeira, então o cabanon de Sou Fujimoto é a madeira em si, que neste caso transcende as convenções arquitectónicas para se converter num lugar para o Homem. Ecos de uma existência primordial anteriores à arquitectura, em busca de um novo conceito, de uma nova existência. *Arquitecto, Mestre em Cor na Arquitectura pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa
1 - FUJIMOTO, Sou (Outubro de 2009). “Final Wooden House, Kumamoto” in 2G-Sou Fujimoto - nº 50, p. 60.
9 3 2012
h
C I D A D E S I N V I S Í V E I S
13
A CONSTRUÇÃO DO TEMPLO PAU KONG JOSÉ SIMÕES MORAIS
José Simões Morais
E
M 1888, UMA EPIDEMIA DE PESTE ASSOLOU MACAU E SÓ TERÁ SIDO DEBELADA APÓS OS HABITANTES TEREM IDO A FOSHAN E TRAZIDO UMA ESTÁTUA DO DEUS PAU KONG (BAO GONG EM MANDARIM). Crendo no poder que este deus tinha contra os maus espíritos, que provocaram a epidemia, os residentes de Macau decidiram construir na Rua da Figueira um templo a Pau Kong. Assim este foi edificado logo no ano seguinte, 1889, na zona denominada por essa altura de bairro das Portas do Campo de S. António. Com um custo de um pouco mais de 1600 patacas, era preciso angariar dinheiro e para isso, além dos peditórios realizados entre os habitantes de Macau, organizaram-se diferentes comissões que abriram subscrições para esse fim. “Assim Lao-chec e 10 associados angariaram cento e tantas patacas por subscrição”, como nos conta o padre Manuel Teixeira e os membros da comissão organizadora para a construção do Pau-Kong Miu encabeçada entre outros por Chiang-chan-hin conseguiram mais de 1200 patacas, tendo ainda contraído um empréstimo para pagar o que faltava. O resto da história é contada pelos Boletins Oficiais. No Boletim Oficial n.º 31 de 1 de Agosto do ano de 1896 é publicado um aviso de Lao-chec, Lao-chon-ky e outros chineses dizendo “que o pagode Pao-cong-mio foi construído com o fundo que eles entre si formaram e que só os indivíduos do bairro das Portas do Campo de Santo António têm direito a administrar o mesmo pagode, não podendo ninguém doutro bairro ingerir-se na sua administração”. Já no Boletim Oficial n.º 45 do ano de 1896, com a tradução de José Vicente Jorge, dá-se conta de um contencioso aberto por Chiang-chan-hin, Vong-iong, Ly-cheng, Chan-pat e outros moradores no bairro das portas do Campo de Santo António e membros da comissão organizada para a construir o pagode Pao-công-mio que diz ser o aviso publicado no B.O. em 1 de Agosto altamente injusto pelas seguintes razões: “1.ª O terreno em que se acha construído o pagode era um terreno baldio e foi concedido livre de foro pelo governo português expressamente para tal fim. A concessão feita pelo governo foi um benefício que devia aproveitar a todos os habitantes de Macau em geral; mas Lao-chec e outros querem agora que o pagode fique só para eles. São muito injustos. “2.ª Quando um pagode é construído com o dinheiro de subscrição feita entre
muitas pessoas, deve esse pagode ser administrado por todas essas pessoas que concorreram para a sua construção. O pagode Pao-công-mio foi construído com donativos feitos por todos os habitantes de Macau e, mesmo depois de construído, são também os habitantes e lojistas de Macau os que têm dado anualmente dinheiro para pagar as despesas das festas e ofícios religiosos. Isto por sete anos sucessivos. Lao-chec e outros querem agora transgredir os antigos preceitos, entregando a administração do pagode única e exclusivamente aos habitantes do bairro das Portas do Campo de Santo António. “3.ª O pagode Pao-công mio não foi construído unicamente com o dinheiro de Lao-chec e seus companheiros, mas com o de todos os habitantes de Macau. Examinando a lápida que existe no pagode vê-se que a construção deste custou mais de mil e seiscentas patacas. Lao-chec e mais dez associados fizeram subscrições com as quais obtiveram cento e tantas patacas, ao passo que as subscrições que Chiang-chan-hin, Lam-mui-sao e outros fizeram circular de porta em porta pela cidade de Macau, produziram mais de mil e duzentas patacas – mais do decuplo da importância reunida por Lao-chec e seus companheiros. Por este motivo todo o habitante de Macau deve ter direito a administrar o pagode. Como podem, pois, Lao-chec e outros considerar seu o pagode? Entregar a administração do pagode,
como eles disseram no seu aviso, unicamente aos habitantes do bairro das Portas do Campo de Santo António é injusto. “4.ª Quando o pagode estava ainda em construção, era o abaixo-assinado Chiang-chan-hin quem estava encarregado de receber o dinheiro das subscrições e de pagar as despesas. Como a importância das subscrições não chegasse para as despesas, havendo cinquenta e tantas patacas por pagar, os abaixo assinados Chiang-chan-hin e Lam-mui-sao, conseguiram contrair um empréstimo e pagaram a diferença. Lao-chec e outros, nada fizeram. São pois injustos, vindo agora dizer que só eles trabalharam para a construção do pagode. “5.ª A maior parte dos habitantes do bairro das Portas do Campo de Santo António são carregadores ou vendilhões ambulantes. Não há naquele bairro outras lojas senão as de Lao-chec e seus companheiros, as quais são umas lojas pequenas. Se se estabelecer que só os habitantes do bairro das Portas do Campo de Santo António podem eleger directores para o pagode, com certeza todos os anos ficarão eleitos Lao chec ou seus companheiros, os quais, no bairro, fazem o que querem sem consultarem pessoa alguma, e ninguém se atreve a contrariá-los. Dizerem eles no seu aviso que nenhuma pessoa doutro bairro poderá ingerir-se na administração do pagode não é quererem usurpar o pagode que é dos habitantes de Macau?
“6.ª É regra estabelecida em todos os pontos do império chinês que para administradores de fundos públicos devem ser eleitos lojistas, donos de casas de penhor ou proprietários abastados para que, no caso de haver algum desfalque nos fundos a eles confiados, possa este desfalque ser por eles pago; que os donos de lojas de pouco valor e as pessoas que não possuem propriedades, ainda que sejam íntegros e dotados de inteligência, quando eleitos para administrar fundos públicos, devem apresentar pessoas idóneas para os afiançar; por se recear que, se houver algum desfalque, eles não tenham dinheiro para pagar e o prejuízo não possa ser remediado, ainda que a questão seja levada a tribunal. Ora, Lao-chec e outros possuem apenas umas pequenas lojas em que fazem o negócio de ferros velhos e não têm fiadores. Eles, que não foram eleitos directores do pagode pelos habitantes de Macau, querem ficar para sempre com a sua administração e não permitem que ninguém que não seja do seu bairro tome conta da administração de pagode. Isto mostra qual a sua intenção. “Os abaixo assinados, Chiang-chan-hin e outros, não contendem com Lao-chec e seus companheiros com o fim de ficarem com a administração do pagode, mas unicamente para salvaguardarem os seus fundos para que estes possam durar para sempre. Os abaixo assinados requereram à autoridade competente, pedindo se dignasse ordenar que o pagode fosse considerado pertencente aos habitantes de Macau em geral e que, segundo a praxe estabelecida, fossem os administradores dos fundos do mesmo pagode eleitos entre os donos de casas de penhor, sendo, além disso, nomeados um certo número de indivíduos de diferentes bairros para examinarem anualmente as contas de administração, ficando estes indivíduos também encarregados da celebração de festas e ofícios religiosos. Para constar se publica o presente. 28 da 9.ª lua do ano 22 de Kuong-su.” Convêm dizer que na Rua da Figueira, para além do templo de Pau Kong existem mais três pagodes, sendo este o que está situado junto à rua da Entena. Dentro está dividido em quatro salas, estando o altar de Pau Kong na sala da entrada do templo. Os 100 anos de existência do templo a Pau Kong aconteceram em 1989 e o aniversário dos mil anos de Pau Kong foi assinalado em 1999. A partir daí nunca mais foi celebrada nenhuma festa neste templo, ao contrário do que o boletim do turismo refere sobre as celebrações para este ano. No entanto, na quarta-feira passada foi o aniversário de Pau Kong e muitas foram as pessoas que aí bateram cabeça ao justo deus imparcial e incorrupto.
9 3 2012
h
14
门神
C I D A D E S I N V I S Í V E I S
gente sagrada
José Simões Morais
OS DEUSES DAS PORTAS Um costume antigo, que se perpetua até aos nossos dias, sobretudo nas aldeias chinesas, é colar na porta de entrada das casas dois cartazes, cada um com uma imagem de um guerreiro. Tal acontece também nas grandes portadas dos templos por toda a China onde estão pintados os Deuses das Portas (Menshen, 门神). Estas duas imagens nem sempre correspondem às mesmas personagens e pelo número de diferentes representações levantam-nos uma série de questões. Nomeadamente, a razão de aí estarem e quem são. Conta uma lenda muito antiga que, na montanha Dushuo, havia um pomar de pessegueiros. O rei desses domínios, como os pêssegos eram deliciosos e tinham o poder de tornar imortal quem os comesse, aí colocou dois irmãos, Shen Tu (神 荼) e Yu Lei (郁垒), que para além de serem homens de uma grande honestidade, eram muito fortes e corajosos. Para além de fazerem frente aos animais selvagens, que ao redor viviam e até então depravavam os frutos, guardavam-nos ainda da cobiça de um rei vizinho, que vivia louco por conseguir deitar mão ao precioso elixir da imortalidade. Este rei, um déspota que matava as pessoas só para lhes beber o sangue, um dia enviou um dos seus homens para que lhe trouxessem alguns pêssegos, mas os dois irmãos recusaram. Então o rei, reunindo um grande exército, avançou até aos terrenos do pomar. Os dois irmãos, que se tinham tornado amigos dos tigres e contavam já com a ajuda deles, conseguiram desfeitear as forças do demoníaco rei. Retornando ao seu domínio sem conseguir o intento desejado, o rei criou um novo plano. Assim, convocando alguns dos mais poderosos espíritos malévolos e aproveitando a escuridão da noite aí voltou. Apanhados a dormir, os dois irmãos foram despertados por um ruído e rapidamente foram ao pomar onde um, com um ramo de pessegueiro e o outro, com uma chibata, confrontaram os demónios que um a um foram desfeiteados e dados a comer aos tigres.
Rapidamente a notícia se espalhou pelas redondezas e as pessoas vieram em multidão agradecer aos dois irmãos, que se tornaram heróis. A sua fama foi-se alastrando e quando eles morreram tornaram-se imortais, vivendo como guardiões das Portas no Palácio do Céu. As pessoas, acreditando que os ramos de pessegueiros tinham poderes mágicos para afugentar os maus espíritos e trazer paz à família, passaram a colocar nas portas dois destes ramos, gravando em cada um o nome de um dos dois irmãos, Shen Tu e Yu Lei. Com a invenção do papel, passou a ser usado esse suporte para escrever os seus nomes ou pintadas as suas imagens. Com o passar dos tempos e após milénios, já a memória tinha perdido em quase todos os lugares estas duas personagens quando, na China, chega ao poder a dinastia Tang (618-907). O segundo imperador, Tai Zong (626-649), fruto da sua consciência pesada pelas mortes durante a guerra para colocar a dinastia no poder, frequentemente tinha pesadelos durante o sono. Sentia-se doente e os fantasmas não o largavam. Então, dois dos seus mais bravos generais, Qin Shubao (秦 叔宝) e Weichi Gong (尉迟恭) colocaram-se de guarda à porta do seu quarto, para lhe garantir um bom repouso. Então, o imperador começou a dormir tranquilo não sendo mais incomodado por nenhuma alma penada. Os dias e meses foram passando e o imperador resolveu, para livrar os seus generais protectores de tão árduo e penoso trabalho, mandar que lhes fossem feitos os seus retratos e assim os substituiu. O povo ao saber dos bons resultados alcançados pelas imagens dos generais contra os espíritos malignos e doenças, resolveu também colocá-los nas portas dos seus lares. Com o passar dos séculos e dinastias, outros generais foram tomando o lugar dos anteriores e assim, por vezes, aparecem nas portas de entrada duas imagens do exorcista Zhong Kui (钟馗), ou Guan Yu (关羽) com Zhang Fei (张飞). É na celebração do Ano Novo que todos os anos essas imagens são mudadas.
9 3 2012
h
L E T R A S S Í N I C A S
WEN ZI 文子
15
A COMPREENSÃO DOS MISTÉRIOS
Se usares o caos para atacar a desordem de outrem, tal equivale a responder ao fogo com fogo.
CAPÍTULO 180 Lao Tzu disse: Governa países com políticas sensatas, usa as armas com tácticas de surpresa. Trata de criar políticas governamentais insuperáveis antes de tentares prevalecer sobre os teus oponentes. Se usares o caos para atacar a desordem de outrem , tal equivale a responder ao fogo com fogo, ou a uma inundação com água, e, do mesmo modo, será impossível estabelecer a ordem. Algo diferente é usado enquanto táctica de surpresa. A calma é uma surpresa para os agitados; a ordem é uma surpresa para os confusos; a abastança é uma surpre-
sa para os famintos; o descanso é uma surpresa para os exaustos. Se souberes responder a estas coisas correctamente, como num suplantar sucessivo de uma série de elementos, poderás chegar a toda a parte com sucesso. Quando as suas virtudes são iguais, o partido maior triunfa sobre o mais pequeno. Quando o seu poder é comparável, o partido mais sábio vence o mais tolo. Quando a sua inteligência é a mesma, o partido que dispõe de uma estratégia captura o partido sem estratégia. Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho
O texto conhecido por Wen Tzu, ou Wen Zi, tem por subtítulo a expressão “A Compreensão dos Mistérios”. Este subtítulo honorífico teve origem na renascença taoista da Dinastia Tang, embora o texto fosse conhecido e estudado desde pelo menos quatro a três séculos antes da era comum. O Wen Tzu terá sido compilado por um discípulo de Lao Tzu, sendo muito do seu conteúdo atribuído ao próprio Lao Tzu. O historiador Su Ma Qian (145-90 a.C.) dá nota destes factos nos seus “Registos do Grande Historiador” compostos durante a predominantemente confucionista Dinastia Han. A obra parece consistir de um destilar do corpus central da sabedoria Taoista constituído pelo Tao Te Qing, pelo Chuang Tzu e pelo Huainan-zi. Para esta versão portuguesa foi utilizada a primeira e, até à data, única tradução inglesa do texto, da autoria do Professor Thomas Cleary, publicada em Taoist Classics, Volume I, Shambala, Boston 2003. Foi ainda utilizada uma versão do texto chinês editada por Shiung Duen Sheng e publicada online.
Poeta da dinastia Tang. Entre o taoísmo e o zen, Han Shan fala da vacuidade e do silêncio, do interior dos homens e do encontro com a Natureza. Feito monge, ria-se do mundo, da pressa, das ambições humanas e, sobretudo, ria-se de si próprio. Contemporâneo e imperdível.