h - Suplemento do Hoje Macau #47

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PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nツコ 2637. Nテグ PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

ARTES, LETRAS E IDEIAS

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Anabela Mota Ribeiro In Público

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JOANA VASCONCELOS

A RAINHA

DURANTE DOIS MESES, ACOMPANHOU A ARTISTA PLÁSTICA JOANA VASCONCELOS. FOI A RAMPA FINAL DE UM TRABALHO DE UM ANO E MEIO QUE ESTÁ EXPOSTO EM VERSALHES A PARTIR DESTA TERÇA-FEIRA, DIA 19. ATÉ AO FINAL DO VERÃO, ESTIMA-SE QUE A EXPOSIÇÃO SEJA VISTA POR DOIS MILHÕES E MEIO DE PESSOAS. MAS PODEM SER QUATRO MILHÕES.

ÃO serão servidos brioches em Versalhes. Mas pastéis de nata, sim. Ministro Álvaro e estratégias de internacionalização do que é nacional e bom à parte. O menu está decidido? “O Avillez é que sabe.” O Avillez é José Avillez, uma estrela Michelin no currículo e dois restaurantes referenciados como tesouros de Lisboa num artigo recente do The New York Times. E será servido pão. “Os franceses são tarados com o pratinho do pão? É um pratinho bué estúpido. Vocês têm?” Vocês é a Vista Alegre. É preciso cuidar do pratinho do pão. Do tamanho. E dos pratos, travessas, saladeiras, terrinas. “Uma bela terrina para fazer vista na mesa de apoio.” Um serviço inteiro, que de momento “está com um ar chato como o raio”. Demasiado clássico. Versalhes é Versalhes, dourado, vetusto, imponente. E Joana Vasconcelos é Joana Vasconcelos, exuberante, irreverente, iconoclasta. Capaz de meter o isomorfismo de Escher e o kitsch na mesma peça. Nas calmas. O serviço Vista Alegre em que será servido o jantar de inauguração incorpora os elementos de Perruque, a peça mais icónica da exposição em Versalhes. Aquela que evoca as perucas escultóricas de Marie Antoinette e que ficará no quarto desta. Aquela que se inspira vagamente num ovo Fabergé e que é chamada por todos, no atelier e na Fundação Ricardo Espírito Santo Silva, onde foi feita, “o ovo”. Os pratos têm folhas pretas (em ébano, naPerruque) e desenhos a ouro. A responsável da Vista Alegre trouxe um exemplar de cada peça. Joana usa uma caneta de feltro para desenhar directamente num prato. Daqui a pouco mais de uma semana será servido o banquete na Orangerie. “Um dos luxos que ela curtia era laranjas.” Marie Antoinette mandou vir de Portugal centenas de laranjeiras e no jardim, ainda hoje, há áleas de laranjeiras. La reine por estes dias será a artista plástica portuguesa. Foram enviados 300 convites. O ministro Álvaro vai? Apoiar Joana Vasconcelos é bom para a economia portuguesa? Joana Vasconcelos montou uma exposição de dois milhões e meio de euros. O ministro Portas vai? Joana Vasconcelos é uma embaixadora da cultura portuguesa. Joana Vasconcelos leva a Versalhes as rendas do Pico (a revestir lagostas e leões), as tapeçarias de Portalegre (na peça Vitral), os têxteis de Nisa (nas Valquírias), a iconografia de Bordalo Pinheiro, a filigrana de Viana recriada em talheres de plástico, a louça da Vista Alegre, o trabalho de mestre Pena que trabalha na Fundação Ricardo Espírito Santo Silva desde os 12 anos, o trabalho de dezenas de pessoas, “uma equipa de luxo”, apoios institucionais, um imaginário colectivo. O secretário de Estado da Cultura vai? Mariza vai cantar. Valter Hugo Mãe escreve o texto do catálogo. Os criadores portugueses Dino Alves, Filipe Faísca e Storytailors vão vestir toda a equipa. “O Dino disse que está


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a fazer um vestido com cauda!” Quem é que não vai estar? Joana Vasconcelos é a primeira mulher e a mais jovem artista a expor no Palácio de Versalhes. Versailles, como ela sempre diz. Talvez por ter estudado na école française. Talvez por ter nascido em Paris. Talvez porque tem mais sainete dizer Versailles. O mais certo: porque os interlocutores dela dizem Versailles. Versailles é universal. Versalhes, não. Como é que ela chegou lá? “Só consigo chegar a Versailles porque Portugal me apoiou e porque levo o melhor de Portugal.” O país está no centro do seu discurso artístico. Le pays c’est moi? O Presidente Cavaco Silva falou em Joana no discurso do 25 de Abril. Um ano e meio de trabalho é traduzido numa exposiçãoembaixada que pode ser vista a partir de 19 de Junho. Primeiro dia de Junho, 18 dias antes da

Joana Vasconcelos é a primeira mulher e a mais jovem artista a expor no Palácio de Versalhes. “Só consigo chegar a Versailles porque Portugal me apoiou e porque levo o melhor de Portugal.” O país está no centro do seu discurso artístico. inauguração. O atelier parece subitamente desolador. De manhã havia ainda marcas de pó desenhadas no chão, resquícios da agitação dos últimos meses. A um canto estão os castiçais que são também porta-garrafas, “estruturas verticais gémeas, que resultam da acumulação de milhares de garrafas de champanhe iluminadas do interior”, lê-se na descrição feita pela artista. “Alguém sabe quantas

garrafas são?” À volta de cinco mil. A obra, uma hommage-piscadela de olho ao célebre porte-bouteilles de Duchamp, será instalada nos lagos rectangulares do Parterre d’Eau. As garrafas são de champanhe porque se destinam a França. Seriam de sake no Japão. De cerveja na Alemanha. De vinho, em Portugal (a primeira declinação da obra, Néctar, feita em 2007, pertence à colecção Berardo).

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Os castiçais são a última peça que resta no atelier, entre o Tejo e o Museu do Oriente. Um espaço onde há espaço para tudo. Deitados no chão, desmembrados, parecem um corpo que jaz. Ou então era a melancolia que se detectava no ar e que resultava do espaço deserto. O grosso da equipa estava fora. Trabalham ali em permanência 25 pessoas. “Vieram mais cinco dar uma forcinha” nos últimos tempos. Daí a dois dias partiriam para Versalhes. Joana está na secretária cor de laranja, posicionada no coração do atelier. Visível da porta de entrada. Graceja, diz que está a ver o expediente. Atrás de si, uma pega de cozinha, em tamanho gigante, tricotada — peça de 2002. Está a dar uma entrevista em modo relax. As interrupções são consentidas. Um assistente mostrou uma imagem do garrafão e do bule, em ferro forjado, oxidado, “como se estivesse lá desde sem-


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pre”. As obras, à entrada do Parterre du Midi, “surgem como representações do homem e da mulher”. Madame de um lado, monsieur do outro. São as primeiras a ser montadas em Versalhes e a imagem acabou de chegar. E, por isso, ela tem de saber. A máquina está oleada, muito bem oleada. E, por isso, ao mesmo tempo que desenha num caderno de capa dura, ao mesmo tempo que responde de modo articulado, pergunta a que horas o camião vem buscar os castiçais. Joana Vasconcelos controla tudo. Faz, sabe fazer, manda fazer. Como quem respira. Ou seja, aparentemente sem esforço. Sem esbracejar e ameaçar que vai ter uma síncope. Como é que ela consegue? “É uma ginástica. É a chamada ‘versatilidade’.” A entrevista prossegue. Joana veste uma longa túnica de linho, uma flor tricotada, as unhas cor de tijolo. Ouvem-se desde a sala do lado Clarice e Ui, os pássaros, um amarelo, um azul. Não se ouvem as agulhas de crochet. Não se ouve o barulho da metalurgia. Quem está? Nuno Barão, “Baronette”. (No atelier ninguém é chamado pelo nome. Joana é facilmente “Juanita”. Ana Pedro, responsável pela engenharia financeira, é “a ministra” das finanças.)

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Barão é o assistente pessoal que estende um rebuçado, um extraordinário rebuçado: “Quem é que tem duas malas Louis Vuitton à espera na loja da avenida [da Liberdade]?” A artista é patrocinada pela marca. Nos dias de Versalhes, entre uma visita guiada e uma entrevista, andará com elas. O sucesso de Joana Vasconcelos confirma que as portuguesas em França deixaram de ser a concièrge que usa uma valise en carton. Portanto, será uma valise Vuitton. Os detractores olham-na como uma artistaempresa. Demasiado inclinada para o marketing. Ou uma pop star. E não, pop star não é um elogio. Estes atributos são usados em tom pejorativo. Apesar de Gilles Lipovetsky, o filósofo que disse que o trabalho dela materializava as análises dele. Apesar do sucesso repetido em Veneza — “onde nunca estive a convite do Governo português”, faz questão de sublinhar. Apesar de ser reconhecida na rua, o que não costuma acontecer com artistas plásticos. Apesar das exposições no mundo todo. Apesar de Versalhes. Porque é que o meio artístico não gosta dela nem com molho de tomate? Porque a obra é demasiado imediata, pop, super-

ficial? É da obra que se trata ou da persona Joana Vasconcelos? A dissecação do fenómeno é complexa, e não vem ao caso. Entre as respostas possíveis, há quem aponte para o final d’Os Lusíadas — isto é, para a palavra “inveja”. Joana Vasconcelos é uma one woman show que tem uma rigorosa noção de quem é, do que quer, do que é preciso para lá chegar. Se lhe deu o nervoso quando a convidaram para Versalhes? “O nervoso é insegurança. E a insegurança não é bem vinda nestas coisas. Não posso gastar dois milhões e meio de euros com insegurança. Seria um atentado, não é?” Demasiado dinheiro, demasiado prestígio. “Isto é once in a lifetime.” Como é que adquiriu esta resistência psicológica, “por muito que gelem as mãos e que os nervos subam à cabeça”? Nos dois meses em que a equipa da 2 acompanhou a artista, nunca foi visível um momento de pânico, o descontrolo. “Tive três experiências importantes. Uma família em que o culto da personalidade é forte. O karaté, que aprendi dos 8 aos 28 anos, e que me ensinou a ser resistente, a trabalhar em equipa, a

liderar. E ter trabalhado no Lux durante dois anos. No Lux tive de lidar com pessoas nos estados mais improváveis. Convencê-las a descer aquelas escadas sem se matarem tornou-se num desafi o [riso]. Era chefe de segurança. Tive de sair do pedestal intelectual e burguês a que estava habituada. Grande escola.” A caravana chegou a Versalhes no dia 3 de Junho. Sete ou oito camiões, toneladas de material, dezenas de pessoas. Como é que tudo começou? “O convite vem da parte do Jean Jacques Aillagon, que contactou a minha galeria francesa, a Nathalie Obadia, e que chegou à conclusão de que o meu trabalho se integraria bem em Versailles.” O diálogo com artistas contemporâneos fez-se em anos anteriores com Jeff Koons ou Takashi Murakami. Aillagon era então o presidente do château. “Desde o princípio que estabeleci com as minhas galerias [a francesa e a inglesa, Haunch of Venison London] que, ou me apoiavam na realização deste projecto, ou não tinha capacidade económica para o montar. A partir desse acordo, que se fez com as galerias e com Versailles, estabeleceu-se com o Jean-François [Chougnet] duas


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linhas: quais são as obras e quanto é que vão custar. Depois foram feitos contratos com as galerias, complicadíssimos. Há todo um jogo económico... Como é que se vai pagar. Quem é que fica a ganhar o quê, e como.” A somar a isto, que representa a parte substancial do orçamento, há o patrocínio de instituições ou empresas: a Fundação Gulbenkian, a Fundação EDP, a Fundação Ricardo Espírito Santo Silva, o Turismo de Portugal e a marca francesa de perfumaria Annick Goutal. Jean-François Chougnet é o comissário da exposição. Foi na qualidade de primeiro director do Museu Berardo que conheceu o trabalho de Vasconcelos. Um trabalho onde se inscreve uma “reapropriação de objectos do quotidiano” transformado com “técnicas inventivas e inesperadas”. No texto-porta de entrada para a exposição, o comissário fala de “uma reivindicação feminina, sem dogmatismos” que está presente na sua obra, “de um modo mais irónico que militante”. Tradução: vamos lá pegar no coração de Viana e reproduzir a filigrana com talheres de plástico. Sim, talheres de plástico — por falar em quotidiano e em inespe-

rado. Garfos e facas como os que se usam num piquenique. Ou nas festas das crianças. Em vermelho, em preto, em amarelo. Para Versalhes, vieram os corações vermelho e preto, símbolos de paixão e de morte. Um para o Salon de la Paix, o outro para o Salon de la Guerre. Suspensos do tecto abobadado. Imponentes, a despeito do material. Com Amália a cantar Coração Independente (título da peça) no áudio-guia do visitante. E de permeio, entre a sala da paz e a sala da guerra, a sumptuosa Galerie des Glaces, a sala dos espelhos, com lustres que quase podemos tocar com as mãos, tão baixo estão. Das janelas vê-se o infinito. A imensidão dos jardins de Versalhes, de geometria invariável, os lagos que parecem chatos mas são profundos ( Joana chegou a pensar em trazer uma caravela, mas a exorbitância do preço fê-la desistir do projecto), as árvores retocadas em forma de rectângulo, outras árvores, mais ao fundo, cujas copas parecem soltas, a perder de vista. É nessa galeria — outra tradução — que encontramos Marilyn. Vamos lá pegar em panelas Silampos, sobrepô-las e fazer com elas uns sapatos. Vamos pegar num

objecto-símbolo atávico do papel das mulheres em casa/na sociedade, e vamos transformá-lo num objecto- símbolo de emancipação. É uma obra poderosa que promove uma oposição entre a cor do aço e o dourado de Versalhes. “É uma ode às conquistas da mulher nos domínios público e privado.” Em 2010 foi vendida pela leiloeira Christie’s por 573.964 euros. O feminino é o músculo principal da exposição. “Interpretar a densa mitologia de Versailles e transportá-la para a contemporaneidade, evocar a presença de importantes figuras que habitaram o palácio, apoiando-me na minha identidade e na minha experiência como mulher, portuguesa, nascida em França, será certamente o desafio mais fascinante da minha carreira”, escreve Vasconcelos no texto de apresentação da exposição. A opção da artista foi ocupar a ala da rainha. “Ouço ainda o eco dos passos de Marie Antoinette, a música e o ambiente festivo dos salons.” As 17 obras que leva a Versalhes podem ser lidas, sumariamente, como um elogio à presença da mulher no palácio. Perruque é a jóia da coroa.

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Peça bizarra. É um ovo que é uma peruca que é um móvel que é uma obra de arte. Quando a 2 visitou a montagem da exposição, Perruque estava já instalada, mas coberta com uma caixa de tecido cru. Um biombo que a esconde até à inauguração. Ao contrário deCoração Independente, o bule e o garrafão de ferro forjado, os castiçais ou a valquíria Mary Poppins, que ficam visíveis para o público assim que são montadas, Perruque é resguardada (como se fosse um tesouro) até dia 19. O quarto da rainha é o espaço mais fotografado de Versalhes, a par da sala dos espelhos. É provável que as duas salas sejam o espaço museológico mais visitado do mundo à terçafeira. A explicação é simples: todos os museus parisienses fecham à terça e o tipo de público que corre ao Louvre para ver a Mona Lisa ou ao Museu d’Orsay para ver os impressionistas desloca-se para Versalhes. Enxames de pessoas. Milhares de orientais, milhares de brasileiros, milhares de americanos, milhares de crianças em visita escolar, milhares de famílias inteiras. Não raro, é difícil mover uma perna, um


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braço, chegar sequer à barreira de vidro que permite ver a dois metros a cama de Marie Antoinette. É exactamente ao lado que fica Perruque. A forma oval da escultura remete para os nascimentos que aconteceram naquele quarto. Dezanove crianças. Entre elas, Luís XV e Luís XVII. O ovo, feito em madeira vinhático vinda do Brasil, mais mole e fácil de trabalhar, tem incrustações e aplicações, em preto e metal dourado. Demorou meses a ser feita. A ideia da artista, desde o princípio, é que tivesse a escala do mobiliário do quarto. Para que harmoniosamente se integrasse nele. Como uma cómoda ou um toucador. Perruque, como o nome indica, faz também alusão às perucas inventivas de Marie Antoinette. Uma espécie de colmeia onde todos os adornos são permitidos. É aí que entram as protuberâncias cónicas das quais saem mechas de cabelo. Um cabelo solto, indómito, de uma mulher que o afi rma como uma conquista. Recordar que foram comprados numa loja duvidosa da Avenida Almirante Reis dá vontade de rir. Nessa tarde, como quem está subitamente no recreio, Joana cantava os hits dos anos 80 que passavam no canal de música VH1. Na televisão do canto sucediam-se Madonna, Kate Bush, Sade. E escolhia um cabelo, e outro. E experimentava perucas. “Olhem para mim loura!” Já agora: a cama parece um canteiro. A parede de fundo, a colcha, o dossel são de um tecido floral. Com um ar tão aprumado como se as flores tivessem sido regadas e estivessem viçosas. Quando montaram Perruque, foi preciso mexer na franja do cortinado e quiseram chamar conservadores para o efeito. “Olham para aquilo como se a Marie Antoinette estivesse ali na cama!, pá!”, exaspera-se Joana. (Ela diz pá. E bué. E cena. Tem um modo particular de se exprimir.) Talvez seja o momento de falar da relação da artista com Versalhes. “Não fomos recebidos como normalmente somos. Nos museus e nas galerias, as pessoas querem-nos lá. Em Versailles, a equipa não nos quer lá. Versailles tem um simbolismo, como eles dizem, universal. Trabalham ali mil pessoas; e a sua opinião é que a arte contemporânea não pertence ali. Acham que o local não deve ser profanado.” Não muito depois do convite a Joana Vasconcelos, Jean Jacques Aillagon foi substituído na presidência da instituição por Catherine Pégard. “Passei de uma pessoa de direita, mas liberal, para uma pessoa de direita, conservadora, que olhou para aquilo de outra maneira. Ela é amiga do Sarkozy, trabalhou no Eliseu. Tomou algumas decisões para se defender. Mas foram decisões que iam dando cabo da minha exposição.” O primeiro embate aconteceu com a peça mais famosa de Joana Vasconcelos, o lustre de tampões. “A Noiva foi censurada. Em termos conceptuais, não conseguem decidir onde estão. Não há regra nenhuma. [Decide-se em função de] um

estado de espírito. Primeiro a peça foi aceite, depois não foi aceite. Quando ela [Pégard] me disse que não podia levar ANoiva estive dois dias de ‘cama-psicológico’. Foi uma morte. Até reconstruir a minha confiança, levou uma semana. Depois mudou o helicóptero [Lilicoptère], que estava numa sala muito melhor do que aquela em que está — um cochicho. Mudou porque não conseguiu acordo com os sindicatos dos trabalhadores de Versailles. Depois foi a peça do quarto da Marie Antoinette... Pensei: acabou. Não faço.” Foi para casa pensar no que perdia. “Perco a exposição, mas não perco as peças. Criei peças fantásticas, com ou sem Versailles fico sempre com a obra.” Pégard cedeu, Perruque está no quarto da rainha. Se pesou no recuo de Pégard a vitória de [François] Hollande nas eleições francesas? “Teve influência. Permitiu mais maleabilidade, mais tolerância. [Se Nicolas Sarkozy tivesse ganho] ela teria endurecido o discurso e eu não teria feito a exposição.” Catherine Pégard foi jornalista do Le Point. É muito fácil identificá-la, de sapato Ferragamo, saia rodada e coquete, casaco vermelho pela cintura. Estilo bem comportado. Segue-a uma corte de homens de fato e gravata, que caminham muito direitos, pasta debaixo do braço. Ao longo do dia de montagem aparece no momento de içar Mary Poppins num cenário neoclássico ou para ver Lilicoptère, um helicóptero emplumado, todo cor de ouro e cristais Swarovski. Uma carrosse d’or para Marie Antoinette adaptada aos tempos modernos. Um coche que parece um pássaro, revestido a penas salmão e rosa. E um tapete no interior feito segundo uma técnica antiga de Arraiolos. “Ça est impressionnante!” De facto. Mas é uma peça cujas imagens só podem ser divulgadas depois da inauguração. Pégard não se cruzou com Alice. Entretanto chegou Alice. Entretanto nasceu Alice. Alice e Versalhes aconteceram na mesma semana. “Soube no dia anterior à ida para a reunião em Paris que estava grávida.” Coisas do destino. Joana tem 40 anos. Como é que se tem um primeiro filho e se concebe e organiza uma exposição com a dimensão da de Versalhes? “Tenho o apoio do meu marido. Sem ele, não tinha conseguido isto. Isto não é um emprego. É vida e obra, é tudo junto e a mesma coisa. Quando chegamos a casa, a coisa continua. Continuamos a falar.” Mas não havia dúvidas quanto a prioridades. “Pensei: não há coisa mais importante do que ter esta criança. Trabalhei a gravidez inteira e fui fazendo a exposição ao longo da gravidez. Percebi que não podia continuar a trabalhar das oito às oito, e seja o que Deus quiser. Tive de controlar esse meu lado de fazer tudo e mais alguma coisa. Tive montes de exposições no ano passado — no Mónaco, na Dinamarca, em Nova Iorque, em Fran-

ça, em Moscovo — a que não fui. Estou muito habituada a acompanhar a minha obra, e adoro. Países, culturas, pessoas. E, de repente, tive de ficar quieta. Foi bom. A equipa tornou-se mais autónoma e mais forte. Estavam muito dependentes de eu estar sempre a decidir tudo.” Alice nasceu em Setembro de 2011. E Joana é uma mãe apaixonada pela filha igual a todas as mães apaixonadas pelos filhos. No atelier, em Lisboa, junto à sua secretária está uma ovelhinha de balouço, no refeitório uma cadeirinha. No meio de uma viagem de carro pela cidade, interrompe a conversa para se perguntar, perguntando alto: “Será que este externato é bom?” Alice passa os dias com a avó materna. Instalaram- se em Versalhes com toda a equipa. Chegaram pelo meio da tarde à Galerie des Batailles. É um corredor imenso onde se percorre a glória de uma nação. As batalhas que definiram a história, os heróis que as travaram, o resfolegar dos cavalos, os feridos tombados — tudo isso forra as paredes de um lado e de outro. Toda a história militar francesa está lá. Delacroix foi um dos que pintaram este longo poema épico que vai ser acompanhado de trêsValquírias. A Royal, a Dourada e a Valquíria Enxoval. São corpos exuberantes, volumosos, “indisciplinados de texturas, impondo no espaço o poder do hedonismo e da sensualidade”. Os tecidos podem ser uma chita barata, um brocado da melhor loja parisiense, os têxteis e o ponto tradicional de Nisa. Fitas, pendentes, franjas. Uma explosão de cor. Estão por ora desmembrados, no chão, embrulhados em sacos vermelhos. Alguns homens trabalham no cimo de estruturas metálicas e preparam os cabos de aço que vão suster as peças. (“Estes espaços não-museológicos” — como Versalhes, na sua essência, é, mesmo que exponha a obra de artistas contemporâneos desde 2008 — “levantam problemas técnicos. Será que o tecto aguenta? Será que a peça passa?”) As mulheres retocam um tecido que esgarçou, um pedaço que descoseu. Por momentos, fazem uma transplantação do atelier para Versalhes. Há recipientes com missangas, berloques, tecidos, linhas. Uma retrosaria em miniatura. A retrosaria gigante fi cou em Lisboa, onde há uma caixa de plástico para cada coisa — até para “crochés sujos”! Alto e pára tudo quando chega Alice. Dá-se uma espécie de suspensão colectiva. Joana pega-a no colo. Alguém desempacota o andarilho. Duarte Ramirez, o pai, junta-se à mulher e à filha. Não importa nada que Duarte seja arquitecto, que Joana seja artista plástica, que estejam em Versalhes e que o mundo vá saber daquela exposição em breve. O que importa são os passos que Alice quer dar, pondo uma perna à frente da outra, a olhar muito atenta e curiosa para tudo à volta. Ficaria bem na história dizer que aprendeu a andar na Galerie des Batailles, mas não. Foram passos

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titubeantes num andarilho cor-de-rosa. Peça anacrónica naquele mundo dourado e antigo. O que ali se passa é aquilo a que os psicólogos chamam quality time. Dez minutos de quality time. Bem, talvez meia hora de quality time. Porque depois chegaram-se a um canto, banhados pela luz das quatro da tarde, e deram a papa a Alice. Joana, Duarte, a mãe e o pai de Joana. Esparramados no chão como quem está em casa. Casa pode ser onde uma pessoa quiser. Ou onde conseguir. Uma criança torna tudo mais imperioso e instantâneo. Teresa e Luís Vasconcelos exilaram-se em França em 1968 por razões políticas. “Havia a guerra colonial...”, refere o fotojornalista que esteve na fundação do PÚBLICO e que trabalha com outro fundador, o designer gráfi co Henrique Cayatte, no catálogo da exposição, num ritmo de jornal diário. Fotografam as peças depois das seis da tarde, quando saem os turistas, e fazem a paginação horas depois, num hotel em Versalhes. Joana nasceu em 1971 em Paris. Regressaram a Portugal logo depois da revolução, a 29 de Abril de 74. A primeira coisa que Luís Vasconcelos fotografou em Portugal foi a manifestação do 1.º de Maio. — “Se tivéssemos ficado, seria uma artista francesa em Versailles.” — “Se tivéssemos ficado, se calhar não estarias aqui, o curso da nossa vida teria sido diferente”. — “Teria ido para uma école des beaux-arts e teria sido uma artista francesa. É muito mais giro ser uma artista portuguesa!” Ao contrário da mãe, Joana não põe sequer a hipótese de não ser artista, e de não estar ali. A confiança e a ambição são indisfarçáveis. Algum problema com isso? Foi esta confiança e esta ambição que a trouxeram a Versalhes, um dos maiores palácios do mundo, mandado erigir pelo Rei Sol-Luís XIV, que recebe em média dez milhões de turistas por ano, é quase Portugal inteiro. Multidões compactas vão estar de olhos postos nela até 30 de Setembro. Espera-se que a exposição receba mais de dois milhões e meio de visitantes, que acedem aos espaços interiores e exteriores; mas se a contabilidade integrar os que apenas visitam o exterior, cujo acesso é gratuito, a estimativa é de quatro milhões. Como é que tudo funciona? “Funciona como toda a criação: dentro de nós. Aprendi a pensar com o desenho. Na joalharia, que também estudei, aprendi o projecto. Decido tudo à partida, a peça quase não sofre alterações. As únicas mudanças a que sou aberta são as mudanças técnicas.” Come uma bolacha de Alice. Ao almoço serviram carnes. A sala era bonita e havia peónias numa jarra. Foi em Versalhes que Marie Antoinette disse para a posteridade: “Se não têm pão, dêem-lhes brioches.” Mas o tempo é de pastéis de nata. “Trataram dos vinhos? É preciso falar ao comendador [Berardo]...”


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南宁NANNING, NATAÇÃ

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António Graça de Abreu NOS SÉCULOS XVI e XVII, os portugueses de Macau habituaram-se a manter reserva, uma certa distância ou mesmo a entabular negociações com o “vice-rei dos dois Guangs”, ou seja, o governador das províncias de Guangdong e Guangxi, adjacentes à cidadezinha do Nome de Deus na China. Era preciso saber viver com os chineses e o diálogo com os dois Guangs funcionou quase sempre. Guangdong corresponde às terras de Cantão, logo acima de Macau, e Guangxi aos vastos espaços mais a ocidente. Todas estas terras não são, portanto, estranhas à gesta lusitana pela China. 广西Guangxi significa exactamente “extenso ocidente” e tem por capital a cidade de Nanning, nas margens do Yongjiang, um dos principais afluentes do rio das Pérolas, a uns seiscentos quilómetros de Macau, a trezentos e cinquenta de Hanói, capital do Vietname. É habitada sobretudo pelos zhuang, a maior de todas as minorias nacionais chinesas, com 17 milhões de pessoas ainda algo aparentadas com os tailandeses. Mas a influência han na região, ou seja dos chineses propriamente ditos, é muito antiga e hoje os zhuang da província correspondem apenas a pouco mais de um terço da população de Guangxi, absorvida, aculturada pelo mundo chinês. Na minha primeira visita a Nanning, na Primavera de 1978, já lá vão trinta e quatro gloriosos anos, na companhia do pequeno grupo de estrangeiros meus companheiros de trabalho nas Edições de Pequim, visitei a Universidade de Nanning e não esqueço o entusiasmo com que fomos recebidos pelos estudantes da Facul-

dade de Línguas Estrangeiras que estudavam inglês há vários anos e que, nesses tempos de China isolada e ainda fechada sobre si própria, jamais tinham tido a possibilidade de falar com um cidadão inglês ou norte-americano. Na nossa comitiva havia três ou quatro cidadãos originários das puras paragens anglófonas e até eu dei o meu melhor para conversar com os estudantes na língua de Shakespeare, hoje de Kate Middleton. Alguns dos rapazes e muitas das moças simpaticamente bonitas eram de nacionalidade zhuang, confessavam porém que quase não sabiam falar zhuang, tão-pouco escrever a língua da sua nacionalidade de origem -- que de resto utiliza um alfabeto igual ao nosso –, porque desde o infantário, e até nas suas casas, haviam sido educados, ensinados a falar, a escrever com caracteres e a ter hábitos chineses. Nanning, apesar da presença dos zhuang e de outras pequeníssimas minorias, é uma cidade predominantemente chinesa. Em volta do centro, basta olhar para a centena de prédios altos e arranha-céus construídos nos últimos vinte anos (o edifício da Câmara de Comércio tem 276 metros de altura e é um dos maiores de todo o sul da China), transversais e feios, com a estética inestética dos grandes caixotes de betão, quadrados e redondos cobertos com estendais de chapa e vidro. As autoridades da terra juram, no entanto, a pés juntos que a cidade é verde e que 40% da sua superfície é ocupada por parques e jardins. Nanning tem um clima subtropical húmido e um regime de chuvas abundantes, o que favorece o crescimento de

todo o tipo de vegetação. E é verdade que, sobretudo em volta do rio Yongjiang, abundam jardins, bambuais, palmeiras, flores e extensos relvados e, nos subúrbios da capital de Guangxi, existem pequenos bosques e lagos. Em Janeiro de 1958, quando da realização em Nanning de uma conferência de trabalho do Comité Central do Partido Comunista da China, o presidente Mao Zedong nadou por duas vezes nas águas do rio Yongjiang. Tinha sessenta e cinco anos, havia lançado o movimento Anti-Direitista de 1956, criado as comunas populares em 1957 e preparava-se para avançar com o desastre do Grande Salto em Frente, campanhas que hoje, vistas à distância dos anos, correspondem a erros políticos colossais que muito afectaram o crescimento da China e provocarram inenarráveis sofrimentos a todo o povo chinês. Mao Zedong, voluntarista como por norma são os chineses, quis mostrar o vigor físico de um sexagenário na força da vida, a sua capacidade indomável para encabeçar todas as lutas. Apesar do clima subtropical quase todo o ano, em Janeiro a temperatura em Nanning não ultrapassa os 15 graus. O velho timoneiro não receou o frio e lançou-se à natação no rio, acompanhado por uns tantos seguranças militares, quando a temperatura da água era de 17 graus. Tudo foi devidamente fotografado e filmado, mostrado por toda a China e, na orla do rio, no local onde Mao iniciou a jornada, foi construído, para exemplo das gerações futuras, um Pavilhão da Natação de Inverno e levantado um monumento comemorativo. Ainda lá se encontram e todos os anos, em Janeiro, aí se recorda o


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ÃO COM O VELHO MAO ZEDONG

feito “glorioso” de Mao Zedong com o banho destinado a umas centenas largas de entusiastas que nadam orgulhosos nas águas ainda frias do Yongjiang. Depois, com o tempo a aquecer, as margens do rio, hoje algo poluído, são a grande praia para as gentes da terra. Nanning é uma cidade que vive principalmente da troca de produtos, do comércio, a fronteira com o Vietname está apenas a 160 quilómetros, os intercâmbios comerciais entre os dois países são uma constante e tudo se compra e vende neste burgo, hoje com cerca de 3 milhões de habitantes. A província produz arroz (duas colheitas por ano), milho, batata doce, cana do açúcar, centenas de milhares de toneladas de chá e frutas tropicais. Sinal evidente da melho-

O velho timoneiro não receou o frio e lançou-se à natação no rio, acompanhado por uns tantos seguranças militares, quando a temperatura da água era de 17 graus. Tudo foi devidamente fotografado e filmado e mostrado por toda a China

ria das condições de vida desta vasta mole humana são as ruas de Nanning, pejadas de shoppings e lojas, cruzadas permanentemente, tal como as grandes cidades vietnamitas, por milhares de motorizadas. E começam a aparecer os inevitáveis carros de luxo, os novos ricos prosperam e adoram mostrar os seus carros, entusiasmam-se com os floreados da ostentação da riqueza quase sempre bacoca, vazia mas substancial em termos do vil metal, o yuan. Toda a região foi um ponto importante no apoio ao Vietname do Norte quando do sangrento conflito entre os Vietname do Sul, do Norte e os norte-americanos, nos anos sessenta e setenta do século XX. Na altura, a cidade estava completamente fechada à

presença de estrangeiros. Por aqui eram canalizados poderosos meios militares e todo o tipo de auxílio, em combustíveis, comida, vestuário, com que os chineses apoiavam os exércitos e a população vietnamita. Por aqui, as incontáveis mercadorias transportadas nos imensos comboios que ligavam Nanning a Hanói, – do lado vietnamita sujeitos a bombardeamentos pelos B 52 norte-americanos –, garantiam a subsistência e sobrevivência do povo vietnamita, dos vietcong e do regime de Ho Chih Min. Mudaram-se rapidamente tempos e vontades. Em 1979, por múltiplos desentendimentos regionais e nacionais, a China teve uma pequena guerra com o Vietname travada exactamente nestas zonas de fronteira entre os dois países.

A inimizade e desconfiança entre chineses e vietnamitas entronca na História. Annam, em chinês, o “sul pacificado” – como eram no passado conhecidas as costas do golfo de Tonkim e, para o interior, as terras norte do Vietname –, foi uma extensão do território chinês até ao ano 939, quando o general vietnamita Ngo Quye expulsou definitivamente os chineses das terras do actual Vietname. Hoje vive-se em paz e Nanning é também lugar de passagem para muitos jovens ocidentais que viajam um pouco à aventura pela China. Se querem continuar a descobrir mais Ásia, fazem a viagem de comboio, apenas cinco horas até Hanói. E há mais mundo, mais arrebatadores encantamentos e obtusos fascínios para além das fronteiras da China.


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P R I M E I R O B A L C Ã O

a revolta do emir

Pedro Lystermann

MARTINIS

SÓ, NO MEIO DE UM BAR praticamente vazio, atrevo-me a pedir um martini. Esta é uma bebida essencial. Como diz Victoria Moore, se existisse apenas um cocktail seria inevitavelmente este. Trata-se de uma bebida difícil e, ao mesmo tempo, muito fácil. A atroz simplicidade de uma construção decente não esconde o imenso universo que se dispõe à nossa frente. A literatura sobre os seus rituais próprios e o seu modo de preparação é, não só merecidamente vasta, como é testemunho de que a leviandade é algo que deve ser observado com sentido de experimentação e de responsabilidade. Mas, no fundo, os problemas que um martini põe são quase tão ridículos como os seus adeptos mais sérios, as suas interdições e as suas iniciações. Ao contrário do que muitas pessoas dizem, não é necessário ir a Londres ou a Nova Iorque para beber um martini de jeito. O mundo está cheio de snobs mas, neste caso particular, é fácil contornar as suas interdições. Em Macau há muitos bares com martinis capazes, um bar de hotel que não o faça bem não merecendo sequer o nome. É por isso que esta é uma bebida definidora. O Macallan, o bar do Star World, o Lan ou o Bar Azul estão perfeitamente à altura desta tarefa de inigualável prestígio. Em casa faz-se com facilidade mas estas sugestões não devem fazer esquecer que esta é a quinta-essencial (mais pura) bebida social, um exercício de promoção do encontro, da criatividade e, especialmente, do viver urbano e interior. Este seu

rosto difere muito do de um gin tónico ou de um Pimm’s, perfeitamente aceitáveis ao ar livre. O martini pede madeira, balcões e discordâncias em voz alta. Mas voltemos à problemática da sua confecção. Com um pouco de bom senso se consegue uma mistura limpa. Só um total néscio é que não consegue, à segunda ou terceira tentativa, misturar de modo agradável ao seu paladar, um bocado de gin e de vermute se se tiver em consideração uma ou duas condições. Basicamente, a questão reside no que fazer com o vermute, um problema que, contudo, cria uma vontade de experimentar. Ao longo do tempo poder-se-á alterar um pouco o gosto, juntando-se um pouco mais ou reduzindo a sua utilização até praticamente à sua exclusão. Um conhecido estadista britânico, gordo, receitava que bastava olhar para a garrafa de vermute para se completar a mistura, uma forma pouco subtil de fazer algo que continua a ser mal visto, que é beber gin puro. Outros bebedores famosos, como Noël Coward ou Buñuel apresentam soluções aparentadas. Pessoalmente não sou contra encher o copo de gelo, juntar uma boa quantidade deste vinho licoroso, não descurando a zona junto à borda, e deitar tudo fora uns segundos depois. Verta-se então o gin (em português, gim) menos culpado por esta exclusividade que não será total porque a ela se deve juntar uma casquinha de limão. Quebrar a casquinha para libertar os seus óleos é opcional. Outra opção, desculpável, mais

americana e porventura (ou desventura) mais famosa, são as azeitonas. O reduzido número de ingredientes, a sua acessibilidade e a dispensa de instrumentalia (se for apenas mexido) promove a confecção deste prazer. Começar por uma proporção de 1 parte de vermute para 3 de gin é uma base clássica a partir da qual se pode partir. Humildemente, recomendo apenas 2 coisas: deve fazer-se tudo isto com tempo e tranquilidade, e com copos adequados e muito frios, de preferência mantidos no congelador durante uns 20 minutos. O gin também aí deve ser mantido, na companhia de uma bebida que o pode substituir – o vodka (e tudo o que aqui se aplica àquele se aplica a este). Que vermute escolher? A literatura não insiste muito neste ponto. Um Martini ou um Cinzano são perfeitamente adequados e muito fáceis de encontrar. Um Noilly Prat poderá dar um pouco mais de distinção por ser menos conhecido mas não eleva substancialmente a qualidade do cocktail. Não vale a pena tentar encontrar graças escondidas numa bebida que é simples e que não passa de um vinho licoroso ou fortificado. Em relação ao gin passa-se o mesmo. É fácil encontrar marcas honradas como Gordon’s ou Beefeater, os supostamente melhores Bombay ou Tanqueray (nas suas variações) ou um ou outro menos conhecido como o Coldstream, ou caro como o Hendrick’s. O gin em si não é uma bebida chique e noutro texto, mais dedicado a esta bebida

setentional e bruta de origem holandesa, se recordarão os excessos que o povo com ele praticava e que inspiraram os conhecidos quadros de Hogarth. Sendo assim usam-se bem sem remorsos aqueles primeiros honrados e baratos exemplares. Em Macau, atrasadíssimo nesta matéria, não se encontram gins artesanais de geração moderna, mais variados nos seus sabores e na sua ousadia, mas outra coisa não seria de esperar. Um aviso aos mais incautos sobre a quantidade de martinis que se deve beber: 1 parece-me desnecessário, 2 a quantidade mais sensata e presumo que a mais praticada. Pedir um terceiro pode ser um reflexo dos efeitos do segundo ou uma tentativa, mais ou menos consciente, de tentar mudar algo na nossa vida. Um possível quarto poderá ter muitas consequências, uma das quais aquela para que a poetisa e conhecida wit, Dorothy Parker, alegremente nos avisa: Gosto de beber um Martini Dois, dois, e mais não Depois do terceiro estou debaixo da mesa Depois do quarto debaixo do anfitrião (a tradução é livre, deste vosso dedicadíssimo investigador). E uma coisa que vem completamente a despropósito. Porque não, da próxima vez, trocar um pouco as voltas a isto tudo, juntar Campari e beber um negroni? Ousai pecadores imundos, que o fim está próximo.


próximo oriente

PASSO A PASSO QUANDO SURGIU, no início da década de 1990, a expressão “IDM” (Intelligent dance music) procurava distinguir o tipo de música electrónica que não se limitava à justificação funcional das pistas de dança e que se desviava por caminhos mais dados à experimentação, o que resultava (muitas vezes) em arritmias que não se harmonizavam com pés que queriam bater a noite toda sem parar. Amaldiçoada tanto pelos artistas que descrevia como pelos que excluía (deixados a pensar que faziam “stupid dance music”), a denominação “IDM” sobreviveu para apresentar música que continua a perder-se no labirinto da electrónica e que depois se encontra aninhada nos circuitos cerebrais dos ouvintes. Desde que, em 1992, a Warp Records lançou a compilação “Artificial Intelligence”, anunciando ao mundo os artistas que viriam a ser considerados os mestres da IDM (Autechre, Aphex Twin, B12, The Black Dog e The Orb), foram imensas as ramificações que a música electrónica gerou, e o caminho que então começou a ser desbravado continua sem fim à vista. Com o tempo, naturalmente, esbateu-se a distinção entre a IDM e o resto da electrónica, o que resultou, entre outras coisas, numa música de dança menos convencional, ainda que igualmente funcional. Actualmente, entre os géneros que não se conformam ao padrão rítmico mais comum da música electrónica, “four-to-the-floor”, o mais popular é talvez o Dubstep. Com origem em Londres, descendente bastardo do Dub, Grime, 2-Step, UK Garage e do Drum and Bass, o Dubstep consiste, em traços gerais, no diálogo de linhas de baixo ultra saturadas que estremecem o espaço entre percussões narcóticas, quebradas e irregulares, com tímidos esquissos de melodias e poucas ou nenhumas vocalizações. É este o som que se ouve, como fundo, em “The Other Side”, o disco de estreia de Achun, produtor de Macau. Editado este ano pela Pause Mu-

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T E R C E I R O O U V I D O

sic, editora da Xangai, “On the Other Side” convoca o Dubstep como influência notória, mas usa-o como tapete sobre o qual se estendem outras sonoridades, do 8-Bit (“Chiptune”, remanescente dos primórdios da cultura de videojogos) ao Breakbeat, passando pelo Electro. Aliado à música, surge um imaginário que Achun reclama dos filmes de ficção científica e de teorias da conspiração, que terão dado o mote para o tema de abertura do disco, “Hidden Fear”, que entrecruza Electro e Dubstep num clima de tensão que só a espaços, ao longo do disco, desaparece. De produção consistente e bem artilhada, “On the Other Side” tem como momentos altos “Stargate” (devidamente espacial, trazendo ao disco uma profundidade de som que falta a outros temas, ajudando a projectar a música para outra dimensão) e “Scenario”, o tema de maior fidelidade à raiz mais profunda do Dubstep, o Dub. Apesar de só este ano se ter aventurado na edição, Achun tem actividade como produtor desde 2003. O tempo que esperou até lançar “On the Other Side”, entre outras coisas, revela que, como o próprio Achun confessa, “não é fácil ser produtor de música em Macau”, nem tão pouco ser um mero apreciador de música electrónica. Depois de concertos na China e em Hong Kong, no próximo dia 28 de Julho, Achun apresenta “On the Other Side” em Macau, no Armazém do Boi. Além de ser uma oportunidade para ouvir, em avanço, alguns dos temas do próximo EP, com edição agendada para o final de 2012, o concerto servirá, também, para tomar o pulso ao movimento local em torno do Dubstep e da música electrónica, que chegou a ter expressão quando o bar Blue Frog abria as portas a noites temáticas. E agora?

“On the Other Side” Achun Pause Music, 2012

Hugo Pinto

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C I D A D E S I N V I S Í V E I S

O DIREITO DE JANELA, O DEVER DE ÁRVORE Autor de vasta obra pictórica e arquitetónica, Hundertwasser tinha um pensamento crítico e defendia um desenvolvimento assente no bem-estar, na felicidade e no respeito pelo ecossistema em que nos integramos.

Nuno Casimiro A 15 de Dezembro de 1928 nasceu, em Viena, Friedrich Stowasser, que mais tarde viria a adoptar o nome de Hundertwasser, com o qual assinou a vasta obra pictórica e arquitetónica que produziu até à sua morte, em 19 de Fevereiro de 2000, quando viajava a bordo do transatlântico Queen Elizabeth 2. Percorreu meio mundo e sonhou a outra metade. Incitou à criatividade, afrontou a inércia da sociedade relativamente à tirania do racionalismo mais oco e à urgência de compromissos ecológicos. Defendeu o direito à “terceira pele”, a casa apropriada por quem a veste, na justa medida do respeito pela natureza. Colocou a felicidade como condição da existência e conseguiu a proeza maior de criar uma obra que é, toda ela, um manifesto sem a virulência dos imperativos mas antes com a assertividade do que é belo. Há nas suas espirais de cor algo de essencial. As janelas que invadem todo o seu trabalho são mais do que rasgões na superfície impermeável de um edifício ou de um corpo: abrem para outros mundos, realidades de outra beleza. Da filigrana das gravuras e serigrafias, complexa tessitura de cores e linhas curvas, emergem as mesmas razões que se adivinham nos edifícios que projetou: a integração tranquila da natureza nos elementos construídos, num esforço de devolver ao pó o que da terra emanou. De todos os campos que tocou, foi provavelmente como arquiteto que Hundertwasser ganhou maior notoriedade. Sem os maneirismos barrocos que frequentemente definem o sistema de vedetas do mundo da arquitetura, os projetos que desenhou conseguem integrar a mesma organicidade do seu trabalho pictórico: são estruturas vivas que se desenvolvem com a evidência das plantas que cobrem os telhados ou brotam das paredes. Incorporou na arte a mesma límpida clareza com que defendeu manifestos pela criatividade ou contra a “imoralidade da linha reta”. Travou várias lutas contra o espírito reinante. Foi, por exemplo, uma das vozes a defender a não adesão da Áustria à União Europeia, em nome do respeito pelas tradições que o diretório eurocrata ameaçava, então como agora, em nome da competitividade dos mercados. À luz do conformismo que nos aconselham hoje dirigentes políticos e até um ou outro universitário, parecerá estéril e mesmo perigoso o aguerrido comprometimento de Hundertwasser com o pensamento crítico e a necessidade de um desenvolvimento assente no bem-estar, na felicidade e no respeito pelo ecossistema em que nos integramos. Contra a tacanhez silenciosa, o testemunho vibrante das suas composições aí está como radical afirmação de liberdade.


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À S U P E R F Í C I E

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JULIAN ASSANGE PEDE ASILO AO EQUADOR O FUNDADOR da WikiLeaks entrou na embaixada equatoriana em Londres e pediu asilo, ao abrigo da declaração de Direitos Humanos das Nações Unidas. Governo equatoriano garante proteção a Assange enquanto avalia o pedido. “Este pedido foi feito ao Ministério dos Negócios Estrangeiros na capital Quito. Estou grato ao embaixador equatoriano e ao governo do Equador por avaliarem o meu pedido”, disse Assange ao diário britânico The Guardian. A embaixada do Equador declarou que repassou imediatamente o pedido ao departamento responsável em Quito, e que, enquanto o departamento avalia o pedido, “o sr. Assange permanecerá na embaixada sob a proteção do governo equatoriano”. De acordo com o ministro dos Negócios Estrangeiros do Equador, Ricardo Patino, Julian Assange argumentou que “as autoridades do seu país não defendem as suas mínimas garantias diante de qualquer governo e ignoram a obrigação de proteger um cidadão perseguido politicamente”. E acrescentou que Assange afirmou que não podia regressar à Austrália “já que este país não bloquearia a sua extradição para um país que aplica a pena de morte para o crime de espionagem e sedição”.

COMPARADO A CHEN GUANGCHENG

O advogado e colunista da revista Salon Glenn Greenwald escreveu que Assange não

NEWARK ESCRITORES LUSOAMERICANOS LANÇAM FÓRUM LITERÁRIO UM GRUPO de escritores luso-americanos, de várias gerações, deu em Newark, Estados Unidos, novo passo para estabelecer um fórum regular sobre a literatura luso-americana, que querem divulgar na comunidade e em Portugal. “Ler na Ferry Street”, o encontro de Newark com o escritor português José Luís Peixoto, segue-se a um recente, em Chicago, e visa “dar voz” aos autores e ao seu conhecimento

fugiu, não é fugitivo, nem está a inventar algum tipo de ‘jogada’ para escapar da lei. “O mundo todo sabe exatamente onde ele está nesse momento: no prédio da Embaixada do Equador, em Londres.” Para Greenwald, “pedir asilo, motivado pela ameaça de ter os próprios direitos violados (Assange teme ser injustamente extraditado) é procedimento legal, plenamente reconhecido, nos termos da lei internacional, da lei dos EUA e da lei da Grã-Bretanha, como se viu no recente drama do dissidente chinês Chen Guangcheng. É um direito que Assange, que qualquer pessoa pode legitimamente invocar no caso de sentir-se ameaçada.” Se o Equador se recusar a dar-lhe asilo, disse, “ele voltará à situação em que estava antes de pedir o asilo: sob custódia das autoridades britânicas, que, muito provavelmente, o extraditarão imediatamente para a Suécia, cumprindo mandato de extradição que cobre todo o território da União Europeia (mas não tem qualquer validade fora da Europa, como, por exemplo, em território do Equador). O advogado alertou que “a situação de Assange é extremamente grave, de alto risco. E – como qualquer acusado de prática de crime grave (embora, no caso de Assange não exista acusação formal) – Assange tem perfeito direito legal de invocar todos os procedimentos legais que encontre ao seu alcance, para defender a própria vida e a própria segurança.” entre si, “consolidando a tradição literária lusoamericana”, disse o organizador, o professor universitário Luís Gonçalves. “Há um fervilhar grande, eles têm publicado bastante em antologias, revistas especializadas de poesia e prosa e algumas publicações comunitárias, mas é preciso que continuem a escrever e só vão continuar a fazê-lo se houver um espaço em que tenham voz”, afirma o académico da universidade de Princeton, Nova Jérsia. O risco, afirma, é que o “’mainstream’ norteamericano absorva” estes escritores, perdendose o “vínculo” à comunidade luso-americana, cujas histórias têm vindo a passar ao papel, em romances, poemas ou crónicas. Além do convidado José Luís Peixoto, cinco autores luso-americanos irão ler excertos de obras suas: Glória de Melo, Oona Patrick, Luís Pires, Ana Sofia Paiva e Carlos Queirós, que está na fase final da escrita de um romance passado exatamente na Ferry Street. A seguir a Newark, Gonçalves pensa já num evento semelhante em Boston, noutro na Califórnia e mesmo numa forma de juntar as três comunidades literárias em tempo real. “Ideal seria, usando as novas tecnologias, conseguir fazer um evento que fosse nas três comunidades, ao mesmo tempo, fazer o evento em comum”, disse à Lusa o académico português. Outro momento de afirmação para esta “geração de escritores desconhecida em Portugal” será a nova edição, em julho, do programa internacional literário promovido em Lisboa pela editora norte-americana Dzanc.

BERNARDO SASSETTI

A emissão de domingo do programa Geografia dos Sons, da Antena 2, vai ser dedicada ao pianista e compositor Bernardo Sassetti, falecido em maio, incluindo gravações inéditas do músico e um texto lido pela atriz Beatriz Batarda. Durante a emissão, vão ser ouvidos depoimentos dos pianistas Mário Laginha e João Paulo Esteves da Silva, dos compositores Vasco Pearce de Azevedo e Eurico Carrapatoso, dos músicos Pedro Moreira, Perico Sambeat, Guy Barker, Laurent Filipe, Carlos Azevedo, Carlos Barreto, Alexandre Frazão e do brasileiro Ivan Lins, com quem Bernardo Sassetti trabalhou ao longo da sua carreira. O programa vai incluir gravações inéditas do músico e compositor e um texto original da sua autoria, lido pela atriz Beatriz Batarda, com quem foi casado. O programa será transmitido na Antena 2, domingo, 24 de junho, às 21:00, com a duração aproximada de uma hora. No dia seguinte, segunda-feira, 25 de junho, o programa será transmitido na versão integral, a partir das 17:30. A Georgrafia dos Sons é um programa do compositor Luís Tinoco, dedicado à divulgação da nova música dos autores contemporâneos.

MÁRIO CASTRIM - INÉDITO

A editorial Caminho homenageou o escritor e jornalista Mário Castrim com o lançamento de “Viagens Em Casa”, volume inédito de poesia, e com a reedição da obra para a infância “Estas São As Letras”, ilustrado

por José Miguel Ribeiro. A homenagem ao escritor e jornalista, dez anos passados sobre a sua morte, foi, ao fim da tarde, na Livraria Leya na Buchholz, em Lisboa. A apresentação das duas obras foi feita por António Carlos Cortez. Mário Castrim, pseudónimo de Manuel Nunes da Fonseca (1920-2002), foi jornalista, escritor, professor e crítico da televisão portuguesa, tendo assinado o Canal da Crítica, durante décadas, no Diário de Lisboa, primeiro, e no semanário Tal & Qual, mais tarde.

SÉRGIO GODINHO EM LIVRO

As crónicas semanais que o músico Sérgio Godinho publicou no jornal Expresso foram reunidas no livro “Caríssimas 40 canções Sérgio Godinho e as canções dos outros”, com o selo da editora abysmo. No ano em que celebra 40 anos de canções, o músico publicou semanalmente pequenos textos sobre 40 músicas de eleição, “uma visão íntima de quem conhece a música, os instrumentos, os intérpretes e a sua circunstância”, refere a editora. Com ilustrações de Nuno Saraiva, o livro começa com “Os vampiros”, de José Afonso, e prossegue com Bob Dylan, Chico Buarque, Amália Rodrigues, Violeta Parra, Peggy Lee, Paul Simon, Robert Wyatt ou Fausto Bordalo Dias. “Só faz pleno sentido ler estes textos proximando cada um da ‘sua’ canção, ouvida e desfrutada - seja através da memória, seja através da descoberta”, escreveu Sérgio Godinho no texto introdutório.


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O L H O S A O A L T O

gente sagrada

屈原

José Simões Morais

QU YUAN, O POETA DO POVO

CONHECIDAS POR Duplo 5, as festividades dos Barcos-Dragão ficaram ligadas desde o século III a.C. a Qu Yuan (340-278 a.C.). Sábio e poeta, conhecido em cantonense por Chu Yuan, foi um alto ministro da corte Chu que, devido a invejas e a interesses obscuros dentro da corte, foi sendo colocado à parte das decisões que acabaram por levar ao fim do reino Chu. Quando soube da triste notícia atirou-se à água, deixando-se afogar. Em sua honra, no quinto dia do quinto mês lunar, realizam-se as festividades dos barcos dragão. Tudo começou nos finais do período dos Reinos Combatentes (475-221 a.C.), quando o reino Qin preparava uma grande investida para conquistar novos reinos situados sobretudo na planície central do rio Chang (Rio Grande) e na zona de Jiangnan. Apercebendo-se dessas intenções, Qu Yuan, então alto ministro da corte do reino Chu, estrategicamente propõe uma aliança com o reino Qi. Mas dentro da corte Chu, Jin Sheng, o chefe dos ministros, que era a favor de uma aliança com o reino Qin, opõe-se ao fervoroso patriota Qu Yuan, pois ambicionava expandir o território Chu. Qu Yuan, como alto ministro do reino, escreve ao rei um relatório e quando Jin Sheng lhe ordena para este lhe mostrar o documento, recusa. Jin Sheng começa a espalhar rumores que Qu Yuan estava a divulgar segredos de Estado. Através de espiões, tal chega aos ouvidos dos governantes Qin que logo lhe enviam presentes para o subornar; o que não funcionou. Estava-se num período de estratégia e as alianças eram um meio de equilibrar os poderes. Por isso convinha desfazer o feixe das alianças e pela contra-informação, com a ajuda dos traidores, desacreditava-se quem pelo povo trabalhava. Fácil foi subornar com ouro, prata

e jóias, Jin Sheng e a concubina preferida do rei Chu. Assim Qu Yuan em 313 a.C. é expulso da capital e começa a escrever em poesia sobre temas como a corrupção da corte e da aristocracia Chu. Ainda um ano não tinha passado, quando o rei apercebendo-se da inevitabilidade de uma guerra contra o reino Qin, manda chamar Qu Yuan à corte, voltando a entregar-lhe o cargo. Como a guerra não estava de feição para os Qin, estes convidaram o rei Chu para ir ao território Qin fazer um tratado de paz e de aliança. Qu Yuan bem avisou o rei que era uma emboscada, mas este para além de o humilhar, repreendendo-o em público, enviou-o de novo para o degredo. Tarde de mais! O rei Chu foi capturado e morreu na prisão três anos depois. Os Qin arrasaram o grande exército Chu e tornaram-se o mais poderoso reino. O filho mais velho do rei Chu subiu ao poder e Qu Yuan assinou ainda algumas reformas, assim como escreveu poemas satirizando a corrupção de muitos dos altos funcionários da corte Chu. No entanto, quando o novo rei se casou com a filha do rei Qin, Qu Yuan devido a críticas na corte viu-se desacreditado e demitido de ministro, sendo de novo banido. O reino Qin volta a invadir os Chu em 280 a.C. e em 278 a.C. ocupa a capital. Qu Yuan soube da notícia quando andava pelo Norte da actual província de Hunan, junto às margens do rio Miluo. Desesperado lançou-se à água, mas a população que admirava as suas qualidades enviou barcos à sua procura. Percebendo que o poeta do povo se tinha afogado, lançaram arroz à água alimentando os peixes para que estes não comessem o corpo de Qu Yuan. Em Macau, a este Espírito não lhe é votado algum sacrifício e por isso não tem Templo. A sua imagem, pelo mundo, é difícil de encontrar nos dias que correm.


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L E T R A S S Í N I C A S

HUAI NAN ZI 淮南子

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O LIVRO DOS MESTRES DE HUAINAN

Que se deixem soberanos altivos comandar um povo enfraquecido e rara será a nação que daí não pereça.

DO ESTADO E DA SOCIEDADE – 10 Os soberanos querem duas coisas dos seus súbditos: que trabalhem para o país e que morram pelo país. Dos seus soberanos esperam os súbditos três coisas: que se dê de comer aos famintos; que se dê descanso aos cansados e que recebam recompensas os meritórios. Se o povo cumpriu com as duas exigências que lhe são pedidas pelo governo, negligenciando o governo as três coisas que dele espera o povo, nesse caso, ainda que um país seja grande e muita sua gente, a milícia será em todo o caso fraca. *** O Senhor Marcial do Estado de Wei perguntou a um dos seus ministros o que faz perecer uma nação. O ministro lhe respondeu: “Vitórias numerosas em numerosas guerras”. O senhor disse: “Uma nação é afortunada por ganhar numerosas vitórias em guerras numerosas, porque

pereceria então?” Disse o ministro: “Quando existem repetidas guerras, o povo se enfraquece; quando ganham repetidas vitórias, os soberanos se tornam altivos. Que se deixem soberanos altivos comandar um povo enfraquecido e rara será a nação que daí não pereça.” *** Um letrado ancião que acartava uma resma de livros encontrou na estrada um eremita. Disse o eremita: “Os funcionários públicos agem por reacção à mudança e as mudanças no tempo se desenrolam, assim, aqueles que conhecem o tempo não agem de maneira fixa. Os livros se produzem por palavras e as palavras vêm daqueles que sabem; como tal, aqueles que sabem não guardam livros”.

para atacar, mas o rei disse: “Jin não nos atacou durante o reinado do nosso anterior rei; agora que Jin nos ataca durante o meu reinado, tal só pode ser minha culpa. O que pode ser feito face a tal desgraça?” Disseram os maiorais: “Jin não nos atacou no tempo de anteriores ministros; agora que Jin ataca durante a nossa administração, tal só pode ser nossa culpa.” O rei de Chu inclinou sua cabeça e chorou. De seguida, levantou-se e fez vénia aos seus ministros. Quando o povo de Jin soube disto, disse: “O rei e os seus ministros competem pela culpa. Quão facilmente se rebaixa o rei ante seus subordinados! Não os podemos atacar.” Assim, nessa noite, o exército de Jin deu volta de regresso a casa. É por isto que Lao Tzu disse: “Aquele que sabe aceitar a desgraça da nação é chamado seu líder.”

*** Quando o Estado de Jin se lançou sobre o Estado de Chu, os maiorais de Chu pediram ao rei

Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho

Huai Nan Zi (淮南子), O Livro dos Mestres de Huainan foi composto por um conjunto de sábios taoistas na corte de Huainan (actual Província de Anhui), no século II a.C., no decorrer da Dinastia Han do Oeste (206 a.C. a 9 d.C.). Conhecidos como “Os Oito Imortais”, estes sábios destilaram e refinaram o corpo de ensinamentos taoistas já existente (ou seja, o Tao Te Qing e o Chuang Tzu) num só volume, sob o patrocínio e coordenação do lendário Príncipe Liu An de Huainan. A versão portuguesa que aqui se apresenta segue uma selecção de extractos fundamentais, efectuada a partir do texto canónico completo pelo Professor Thomas Cleary e por si traduzida em Taoist Classics, Volume I, Shambhala: Boston, 2003. Estes extractos encontram-se organizados em quatro grupos: “Da Sociedade e do Estado”; “Da Guerra”; “Da Paz” e “Da Sabedoria”. O texto original chinês pode ser consultado na íntegra em www.ctext.org, na secção intitulada “Miscellaneous Schools”.


FERNANDA DIAS Uma leitura do

YI JING O SOL, A LUA

E A VIA DO FIO DE SEDA A nova tradução do livro que há milénios ilumina a civilização chinesa


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