ARTES, LETRAS E IDEIAS
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PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2396. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE
FERNANDA DIAS AS VISÕES E OS LIVROS
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rio de erhu
porque me deste vida, uma outra vida, que não a vida que eu pensava que era a única, e quebraste a dura noz da rotina para dela saírem pássaros de fogo voando céleres para o céu, para a pura luz, e todas as pétalas do uma primavera nunca pressentida caindo sobre a hora-agora como sobre a rotundidade de um fruto, O perfil de uma pequena ilha, o brilho de uma gota de puro pranto, de puro gozo, [...] (DIAS, Fernanda, 1999)
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rago estes versos da poetisa e artista plástica Fernanda Dias, para apresentar e esclarecer a intenção mínima com que pretendo tratar do ato da escrita como aventura em alteridade, linguagem infinitamente outra, e de inautênticas demarcações nacionalistas. A circulação de signos, metáforas, símbolos e olhares, efetuada há séculos entre os povos, no entanto, não parece ofender os cânones das literaturas europeias, nem mesmo, a falaciosa demarcação ocidente-oriente. Não seria o caso, aqui, de procurar anular as diferenças culturais, ou mesmo pensar numa literatura homogeneizada tal qual Goethe teria antevisto, potencialmente circunscrita no termo Weltliteratur – uma literatura comum e mundial. Mas se olharmos, ainda que numa piscadela, para a chamada literatura moderna ocidental, deparamo-nos com o teatro Nô, japonês, na escrita de Yeats ou na ópera de Benjamin Britten; com os ideogramas ou poemas chineses na poesia de Ezra Pound, em Antonio Machado, ou nos escritos de Borges e,ainda, nos roteiros cinematográficos de Eiseinstein; até mesmo com temas chineses na dramaturgia de Brecht (Cf. RECKERT, Stephen, 1999), sem contar nos autores da literatura em língua portuguesa, foco deste trabalho. Consciente da pequeníssima amostra que lhes oferto, posso sonhar com esse caudaloso inventário de influências chinesas, japonesas, indianas, russas, hebraicas, árabes, enfim, orientais, que esta por se fazer na verificação da constituição do cânone ocidental, ou ainda, retornar a já debatida tese de Homi Bhabha (1994) de se pensar a história da literatura como a história das práticas discursivas acerca do outro. Porque “rio de erhu”, título de poema e do segundo livro de Femanda Dias, publicado em 1999, nasce de um encontro com a China e percorre a fluidez de imagens de um cotidiano em plena fecundação criativa, sem antagonizar, no entanto, com a tradicao lírica: “e quebraste a dura noz da rotina / para dela saírem pássaros de fogo/ voando céleres para o céu, para a pura luz”. A “outra vida” ensolarada que
A CHINA NA POESIA PORTUGUESA DO SÉCULO XX Passagens e momentos a partir de uma obra de Fernanda Dias Monica Simas este “eu” lírico incorpora está relacionado a um “tu” polissémico, o erhu - o violino chinês - , que cumpre o espaço do amante, do amado lugar em que se vive, da poesia também. Surge na alquimia dos sentidos, das vibrações do movimento fecundador, uma nova sementeira, “a rotundidade de um fruto”, “o perfil de uma pequena ilha”, a potencialidade circular da criação. A ciência da fecundação parece trazer aquele “pasmo essencial/ que uma criança se, ao nascer,/ reparasse que nascera deveras....” (PESSOA, Femando, 1983) de que nos fala Caeiro, no Êxtase do “brilho de uma gota de puro pranto/ de puro gozo”. Falo da poesia de uma poetisa que teve/tem uma vivência diaspórica em Macau,durante 20 anos. Macau é o topónimo da “retina diária” do livro, visualizado “no pátio do Colégio Yuet Wa” ou na “piscina do Tap-Siac”, do poema “dia lento” (p.47); na Rua da Palha, do poema “o olho”, ou nos poemas intitulados “porto interior” (p.33), “coloane” (p.75), ou ainda naquela “geografia estrita dos meus dias”, que inclui uma torre entre um farol e um braço de rio, do poema “biografia” (p.48). O sujeito poético encontra em Macau, além da exterioridade concreta do espaço, a porta maravilhosa para uma exultante convivência intercultural, ainda que, como todas as impossíveis definições, seja esta experiência paradoxal, feita de “alegres ácidos momentos” (“meteorologia”, p.49). Tais quais as águas imprevisíveis e mutantes do rio, Macau é o espaço complexo semântico-genelógico dessa aventura em direção ao outro, a China, a uma compenetração de tradições culturais que se apresenta no fluir do erhu. Erhu, nome do violino chinês, em seus subterrâneos etimológicos, evoca em Stela Lee Shuk Yee, prefaciadora da obra, os sentidos da harmonia cosmológica. Er quer dizer dois, duas cordas que
evocam dois seres paralelos, simétricos, eco e reflexo um do outro. Hu é a palavra que designa “as gentes” do Oeste e do Norte da China, povo que criou o Erhu original. A madeira de que é construído o erhu representa o elemento masculino, o yang. A caixa de ressonância, coberta de pele de serpente, é como o animal mitológico de natureza yin. Também as linhas alongadas da haste repetem a estética yang e a forma redondada da caixa reflecte o conceito yin. A corda do arco, de crina de cavalo branco, pela sua nobreza, rapidez e liberdade, emblema da forca viri1, é o elemento yang. O acordo das cerdas do arco e das duas cordas do corpo do erhu, originalmente de seda, tensão e flexibilidade (outra vez a harmonia cosmológica do yin e do yang), produzem o som. (DIAS, 1999, s/p.) Ainda é Lee Shuk Yee que verá, na primeira parte do livro, as águas fluindo num “escoamento da multiplicidade de formas, imagem da vitalidade da terra, da fertilidade, mas também da morte e depois renovação” (DIAS, Femanda, 1999, s/p). Dividido em quatro partes – “Rio de erhu”, “Invenção do amante”, “Interior com poetas” e “Contos da bruma e do Vento” - os versos trazem as ressonâncias da natureza, especialmente das plantas, a luz em cada uma de suas cores, a disposição das coisas, exterior e interior, o outro sempre, nomeado muitas vezes, numa sensorialidade erótica. Sigo mais um pouco o poema – “recebi o dom de ouvir/ por todos os poros da minha pele/ em silêncio cantando/ como uma mãe recém-fecundada”. O “tu” fecundador, o som que “desliza/, cai, flutua, voa” transforma-se em novo canto, através de um “eu” que é receptáculo
abrangente à força criativa, formando um corpo poético e novo. A poesia, como linguagem transformadora e autónoma, encontra suas raízes no Simbolismo. Para Fernando Guimarães (1971), o fato de alguns poetas ligados ao Simbolismo, realizarem a “aventura de uma temática ou construções verbais que já não nos era dado ler na linha de um desenvolvimento que correspondia a tradição” (p_35), ou seja, aquela em que o texto literário não era nada além de instrumento de transferência ao leitor das emoções, sentimentos e preocupações do autor, mostra a importância do movimento para as rupturas que se farão no modernismo português. Também para Michel Foucault (2000), é a partir do século XIX, que o ato literário toma consciência de si como transgressão da literatura. Seguindo o seu raciocínio, todas as operações com a linguagem são produzidas para romper a linguagem literária no sentido de uma institucionalização da literatura. Por outro lado, a obra toma forma, ou através daquilo que Foucault chama de “repetição contínua da bib1ioteca”, ou na dissolução do sujeito num murmúrio infinito. Para ele “só há dois sujeitos reais, dois sujeitos falantes: Édipo para a transgressão, Orfeu para a morte” (p.146). Ele comenta ainda sobre a insuficiência desse termo “transgressão” e que, obviamente houve literaturas transgressivas antes do século XIX, no entanto, a diferença parece residir naquele momento em que a Retórica deixa de existir, pelo menos, em diferença com a praxis poética. No decorrer do século XIX, a prevalência da representação, substituída pela do objeto linguístico, como constructo do próprio ser, constituiria um objeto em que “a escrita se apresenta tão distante de cada um de nós como se ela fosse a de outrem; o estilo já não será o próprio homem que define, mas o outro” (G S, p.35). Camilo Pessanha, em Clepsydra (1995), fala o sujeito que se dilui no murmúrio infinito da água que corre. Se, por um lado, situa o gesto da escrita na fronteiriça zona entre claridade e obscuridade – “fica sequer, sombra das minhas mãos” -, na dissolução que encontra nos “movimentos vãos” uma estranha certeza da opacidade do mundo, feita de imagens que passam, por outro, parece fundir aspectos sonoros e temporais dessa dissolução numa precisa construção imagética. Horácio Costa (2006), na sua primorosa leitura de “Violoncelo”, aponta para a possibilidade de o poema ser um exemplo de uma tendência axiomática da poética moderna de estabelecer relações analógico-estruturais a partir de uma “sensibilidade aguçada pela experiência do Oriente” (p.177). Isso porque, segundo Horácio Costa, existiria uma correspondência física entre a forma do violoncelo e de certas pontes chinesas, o que traria um raciocínio geometrizante na própria fusão das imagens do instrumento com a paisagem lacustre (Cf, pp. 174-175). Noto que o sujeito lírico, em ambos os poemas, discorre sobre uma al-
teridade que evoca a despersonalização e que a consequência, a “escrita de ninguém”, para usar a expressão de Fernando Guimarães, carregada de uma melancolia outonal do desfazimento marca a visão estática delirante. Além disso, no processo de estranhamento de si, que a linguagem implica, parece não existir aquela possibilidade de a potência criativa se manifestar subjetivamente em exultante comunhão, como acontece no poema “rio de erhu”. São poesias feitas de águas, música e imagens, mas enquanto no poema de Pessanha, o leitor acompanha o movimento cinético de elas passarem pelos olhos do “eu” lírico para o “lago escuro”, no poema de Fernanda Dias, os sentidos acompanham o fluir numa funda receptividade e correspondência. A evocação do aspecto plástico sobre o verbal e da sinestesia dos sentidos não é propriamente uma inovação do século XIX, mas os modos como a interpenetração acontece sim. Lembro que a controvérsia ut pictura poesis, da Renascença ao Século XVIII, iria se dar em torno da inversão do sentido da homologia poesia/ pintura. Se a frase de Horácio, a poesia é como a pintura, significava que a poesia possuía um poder de representação imagética, para os pintores da Renascença, na inversão, a pintura é como a poesia, refletia a busca de supremacia da pintura numa hierarquização das artes. Numa época em que os pintores querem romper com o status de artesão passa a ser importante aferir à pintura uma característica nobre e como a poesia estava a frente nas artes liberais, a nova comparação favorece a tendência de favorecer a pintura (Cf. JIMENES, 1999, pp. 96-104). Se nos séculos XVII e XVIII a controvérsia seguiria numa espécie de insistência na separação identitária de cada arte, cada uma sendo privilegiada por diferentes estetas, nos séculos XIX e XX, depois da referida ruptura com a função representativa, as fronteiras das identidades das artes começam a ser rasuradas dentro de novos projetos de convergências. Não teria aqui tempo para desenvolver estas relações complexas, mas observo que são essas novas confluências entre as várias artes, que estão na base de grande parte do experimentalismo vivido durante o século XX. A própria noção de imagem é profundamente alterada com os vários experimentalismos, principalmente com o amplo desenvolvimento dos meios de comunicação. No modernismo português, apesar de Álvaro de Campos vibrar com a múltipla possibilidade da escrita a ponto de afirmar que “toda a arte é uma forma de literatura”, os novos princípios estéticos desenvolvidos pelas artes plásticas foram absorvidos na expressão e construção do paülismo, interseccionismo e sensacionismo. Fernando Pessoa, com uma profunda percepção da crise de valores do final do século XIX, ao mesmo tempo atento aos debates estéticos das vanguardas, do impressionismo, do cubismo, do futurismo, apesar de menos influenciado por este último, privilegiou
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Se Álvaro de Campos atravessasse o canal de Suez, depois de conhecer a poesia de Caeiro, na fase de suas odes, ele pudesse ver a China e percebesse nas acácias rubras, na primavera, ou no ar quente vindo da Indochina, ou ainda nas casuarinas o desatino da realidade, expresso na poesia de Fernanda Dias. o fingimento como móbile da atividade artística, criando uma hierarquia poética bastante particular, que vai de uma poesia lírica com a concentração e expressão dos sentimentos, passa pela dispersão dos sentimentos personalizados e aquela que é apenas produto imaginário de dispersão até aquela em que a unidade de estilo desaparece na existência de várias personagens, é a poesia dramática, que a heteronímia encarnou. Benedito Nunes (1978) considera que o fingimento é o ponto de conexão entre as preocupações artísticas e filosóficas do poeta, já que o fingir não indicaria apenas “um modo de contornar as falsificações da vida interior, os disfarces da consciência reflexiva, as máscaras de que ela se reveste” (p. 31), mas da assunção de que “todo o sentido que se origina da consciência é um sentido fictício; existe como possibilidade e jamais como realidade” (p.29). O fingimento passa a ser uma atitude consequente do artista, um mecanismo de “evasão” e “construção” “do sentido das coisas e do próprio sujeito lírico” (NUNES, 1978). A evasão é uma característica importante do poema “Opiário”, em que o “eu” busca uma referência, mesmo que imaginariamente levada ao limite infinito, na fuga ao ópio – “um Oriente ao oriente do Oriente” (In: BERARDINELLI, 1990,
p.54), capaz de produzir visionárias sensações, que nos relembram a poesia de Pessanha. Com o sentido decadente da vida e cansado da viagem, o sujeito poético avalia: Eu acho que não vale a pena ter Ido ao Oriente e visto a Índia e a China. A terra é semelhante e pequenina E há uma maneira de viver (BERARDINELLI, 1990, p. 57) Temos uma oposição bastante nítida entre o Oriente, relacionado a viagem imaginária, e o Oriente, espago geográfico concreto. A primeira vista, o personagem poeta Álvaro de Campos, engenheiro naval, civilizado e viajor, parece sobrepor a viagem física à viagem dos sentidos, mesmo que apenas imaginária, até porque, neste momento, ainda não teria sofrido aquele impacto causado pelo encontro com Alberto Caeiro, que lhe traria a tal “virgindade das sensações”, nem tampouco a influência futurista que aparece nas Odes. Sabemos que a tentativa de romper com a tradição da mentalidade portuguesa implicou, por parte dos expoentes de Orpheu, uma reconversão do sentido da descoberta, que exilada dos Descobrimentos, passaria a designar a arte contemporânea, expressa em um manifesto de Almada Negreiros, da seguinte forma: “A maior descoberta do século XX é a exposição de Amadeo de Sousa Cardoso”. Sabemos também que o sujeito lírico entediado só encontra remédio numa imaginária dispersão dos sentidos, que corresponde ao terceiro grau da hierarquia lírica que Fernando Pessoa descreveu, mas no reverso da ironia rancorosa, abre-se um desdobramento que me sugere interpretar a estrofe como uma crítica cultural ao próprio decadentismo, ou seja, leio os versos mais como uma crítica à civilização ocidental, que incorporou o Oriente no seu aspecto exterior e exótico, através de uma apropriação que faz do outro ser sempre um mesmo, do que ao referido Oriente. Em outra estrofe o sujeito lírico se interroga: “Pra que fui visitar a Índia que há/ Se não há Índia senão a alma em mim?” Numa análise do “Poema em Linha Reta”, Cleonice Berardinelli (2004) sustenta que o sujeito lírico que se auto-ridiculariza, expondo os seus defeitos, põe em evidência a hipocrisia daqueles que, “consumados atores, passam a vida a represen-
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tar os papéis que lhes convém” (p. 420). Ora, não seria a ação desses atores, que transformaram o Oriente em cenário de seus infinitos dramas, que estaria posto o rancoroso julgamento? Se, nos caminhos das intratextualidades, lembrarmo-nos daquela mensagem de que “tudo vale a pena/ se a alma não é pequena/ para passar o Bojador/ é preciso ir além da dor”, não poderíamos situar o sujeito poético de “Opiário” na dor da doença, na cegueira da excessiva civilização sem conhecer outro remédio que não o ópio? Talvez, e esta é apenas uma suposição visionária, se Álvaro de Campos atravessasse o canal de Suez, depois de conhecer a poesia de Caeiro, na fase de suas odes, ele pudesse ver a China e percebesse nas acácias rubras, na primavera, ou no ar quente vindo da Indochina, ou ainda nas casuarinas o desatino da realidade, expresso na poesia de Fernanda Dias. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: B1-IABHA, Homi. O Local da Cultura. Belo Horizonte: UFMG. 1994. COSTA, Horácio. Poemas Prismáticos: Pessoa e Pessanha. In: Dialogia na Literatura Portuguesa. org. LOPONDO, Lilian. Sao Paulo: Grupo Editorial Scorlecci, 2006. DIAS, Fernanda. Rio de Erhu. Macau: Fábrica de Livros, 1999. FOUCAULT, Michel. Linguagem e Literatura. In: MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. GUIMARAES, Fernando. Revisão da moderna poesia portuguesa. In: Colóquio/Letras, Lisboa. 1971. Jimenes, Marc. O que é estética? São Leopoldo: Editora Unisinos. 1999. NUNES, Benedito. Poesia e filosofia na obra de Fernando Pessoa. 1978. PESSANHA, Camilo. Clepsydra. FRANCHETTI, Paulo. Edição Crítica. Lisboa: Relógio D’Agua Editores, 1995. RECKERT, Stephen. Para além das neblinas de novembro. Perspectivas sobre a poesia Ocidental e Oriental. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999. MONICA SIMAS é professora de Literatura Portuguesa na Universidade de São Paulo (USP) e colaboradora do Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa (Portugal). Fez a sua Graduação, Mestrado e Doutorado na PUC-Rio, universidade em que lecionou até 2003. Atualmente, no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas (DLCV) da FFLCH - USP, coordena dois projetos de Pós-Graduação; um em grupo de pesquisa internacional - “Macau na escrita. Escritas de Macau”, um segundo individualmente “Literatura Portuguesa e o Contemporâneo: paisagens, vazios e afetos.” Da sua produção bibliográfica, destacam-se a tese de doutorado, que foi re-escrita e publicada, em 2007, com o título Margens do Destino: Macau e a literatura em língua portuguesa, pela editora YENDIS; inúmeros capítulos de livro sobre a literatura diaspórica, entre eles “Identidade e memória no espaço literário de língua portuguesa em Macau”, no livro Oriente, engenho e arte, org. por Hélder Garmes, além de publicações sobre a poesia portuguesa contemporânea. Em 2008, recebeu o prêmio “Talentos 2007”, do Ministério de Negócios Estrangeiros de Portugal, pelo ensino, divulgação e crítica das literaturas lusófonas.
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FERNANDA DIAS
ESCRITORA E ARTISTA PLÁSTICA
Tenho visões mas não sou vidente Filipa Queiroz Lança sexta-feira [hoje] “O Sol, a Lua e a Via do Fio de Seda”. O livro tem uma introdução bastante elucidativa mas explique-me, por palavras suas, o que trata a obra? Antes de mais palavras minhas não tenho muitas, todas as que tenho foi a minha mãe e a minha tia-avó que mas ensinaram, portanto se eu disser alguma coisa descabida a responsabilidade é delas. Quanto ao livro, quando cheguei a Macau, em 1986, fui visitar o Padre Joaquim Guerra, embora sem esperanças que ele se lembrasse de mim. Quando tinha 20 anos, numa passagem por Lisboa, lembrei-me de me inscrever num curso de cantonense no Instituto de Ciências Ultramarinas onde ele dava aulas. Aprendi pouco mais do que os números e as cores mas aprendi uma outra coisa que era que queria saber mais. Quando cheguei a Macau, passados alguns anos, procurei-o e consegui encontrá-lo e falar com ele. Ele deu-me a tradução dele do I Ching, à qual confesso que não liguei muito porque encarei aquilo como um livro de adivinhação ainda em uso. Calculei que, como acontece com todos os livros antiquíssimos, ao longo das traduções vão-se tornando numa outra coisas que não meros livros. Vão-se tornando um depósito das mentes de quem neles tocou e, sobretudo, de quem os usou. Naquela altura eu estava mais virada para escrever poemas, memórias e relatos de viagens. Das coisas que sentia, de como transformar emoções em palavras. Por isso não liguei muito. Quando é que despertou o seu interesse? De vez em quando pegava-lhe a saltava-me aos olhos a descrição de objectos e de coisas que se passavam ali e que, segundo os tradutores ocidentais, são usados como meros símbolos. Mas para mim não eram, eram artefactos que tinham pertencido a alguém, e que alguém tinha feito com um determinado
TINHA OITO ANOS QUANDO ESCREVEU O PRIMEIRO POEMA SOBRE UMA TEMPESTADE. DESDE ENTÃO A ESCRITA É PARA ELA COMO O DIA PARA A NOITE, COM A NATUREZA COMO MAIOR INSPIRAÇÃO. SOBRETUDO A DE MACAU, ONDE CHEGOU EM 1986 E QUE GARANTE NUNCA MAIS TER DEIXADO. FERNANDA DIAS LANÇA HOJE “O SOL, A LUA E A VIA DO FIO DE SEDA”, 64 POEMAS INSPIRADOS NO CLÁSSICO CHINÊS YI JING
intuito – era isso que despertava em mim uma certa curiosidade. Entretanto algumas pessoas com quem convivia tinham uma verdadeira paixão pelo lado divinatório do livro. Comecei a ver que aquilo se tornava quase obsessivo para algumas das minhas amigas, porque depois massacravam-me para eu interpretar aquelas coisas herméticas. Se dizia: “O príncipe levou os cavalos até à fronteira” elas queriam que eu lhes dissesse o que é que, na sua vida do quotidiano, podia aquilo significar em termos de irem sair à noite com o namorado A, B ou C! E aquilo atormentava-me, então meti o livro no lixo. Só que a minha empregada viu um livro grande no lixo, tirou-o,
limpou-o e meteu-o na estante. Noutro dia foi o meu filho que viu o livro no lixo e pensou: ”Ai se a minha mãe vê isto”, e voltou a metê-lo na estante. Bom, no final, deitei o livro três vezes fora e três vezes ele voltou para a estante. Estava destinado a ficar na estante? Não, apenas é uma casa onde os livro não podem ir para lixo. E era tão incongruente a situação que as pessoas tiravam o livro do lixo, e foi assim que não me consegui ver livre dele e pronto, aqui está o resultado [aponta para “O Sol, a Lua e a Via do Fio de Seda”]. Mas houve uma altura em que sentiu algum fascínio para que-
rer escrever os poemas. Quando foi? Sim, entretanto foram passando anos e nessas passagens meteóricas pelo tal livro que o padre Guerra me deu continuei a ficar seduzida pelas imagens, por tudo o que era visível no livro. Por exemplo, o texto: “O príncipe vai fazer um banquete, mete os melões em varas de salgueiro”. Eu pensei: “Mas isto faz algum sentido? Como é que se metem melões dentro de varas?” Metem-se sim, porque no Alentejo ainda se metem, só que em finos ramos de junco, ou algo parecido mas flexível, que fazem uma espécie de cestos para que o melão não toque no chão. Os melões de Verão podem durar muito se ficarem sus-
pensos e não tocarem na terra, podem durar até ao Inverno. Era tão claro que ele preparava um grande banquete em que havia de aliciar alguns futuros seguidores e, na sua perspicácia de senhor feudal, já planeava meter melões em ramos de salgueiro para fazer um grande banquete com coisas raras e fora de época. Tudo isso começou a ser visível para mim e foi então que deixou de ser um livro chato de adivinhação, hermético, para passar a ser algo que eu via, em que de certa maneira eu podia participar através da arte. Porque depois comecei a procurar as imagens que correspondiam. A intenção não era fazer um livro, era dizer a essa amiga a quem dediquei o livro [Manuela M. Matos]: “Estás a ver? Isto não é um livro de adivinhação, é um livro sucinto mas extremamente depurado das crónicas, das coisas que aquela gente viveu naquela época. E como escreviam não em coisas perecíveis mas em cerâmica e depois nos bronzes, embora antes tivessem nos ossos e nas tartarugas, e nós agora estamos a ler isso! Isso da adivinhação é uma coisa secundária. Embora lá esteja, porque eles não fazem nada sem consultar os xamanes e os mestres da adivinhação, portanto foi um bocado para as espicaçar e dizer: “Mas que mania de consultar isto como se fosse um livro de adivinhação para os nossos dias quando isto é uma coisa diferente”. Faz a sua interpretação de cada hexagrama pegando nessas histórias. Sim. Quando eu quis largar e deixar de fazer aquilo, isto é, transformar cada hexagrama em imagens sucessivas dos momentos que o hexagrama falava, já era tarde. Porque as coisas que aconteciam à minha volta, os objectos que eu encontrava, a arte, os poemas antigos ou as plantas que ainda hoje vivem mas que estão relacionadas com aquela época, tudo perpassa e deixou vestígios ou que sobreviveu aos tempos, tudo me entrava pelos olhos adentro. E pronto, uma vez mostrei ao Carlos [Morais José, proprietário da
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editora Livros do Meio], e aqui está o livro. Exigiu alguma pesquisa ou investigação? Não sei o que lhe diga sobre isso. Ao longo dos tempos transformei as palavras, às vezes desagregadas e aparentemente sem contexto, em imagens. E explico como. Através da arte chinesa, dos jades que não se corrompem...A seda corrompe-se e as varetas de bambu também. Mas no museu de Taiwan, se tiver paciência de passar lá, vê tudo o que esse livro fala. Os jades, os bronzes. O que eu fiz foi uma tradução não dos textos antigos mas das imagens que a arte trouxe até nós, e perceber que significado tinha aquilo na vida quotidiana das pessoas naquela época. Tem algum poema favorito? Se quiser abra o livro seis vezes e eu digo-lhe o que é que lhe vai acontecer nos próximos seis dias. Então a adivinhação funciona? Abra seis vezes e veja que hexagrama calhou. (“Calhou o “Resplender da Concha”). Significa que a aparência pode não parecer importante mas é extremamente importante. E que no dia em que sentir que as coisas não estão a correr como deve ser, isto é, que ainda precisa daquele impulso para o sucesso, nesse dia não faz mais nada, estuda a sua imagem, melhora-a o mais que puder e só veste coisas que lhe fiquem bem. Tornar-se-à completamente irresistível. E a sua carreira vai-se tornar semelhante ao esplendor da concha, que é o símbolo feminino que ainda hoje funciona, porque a concha é aquela espiral que nunca mais acaba mas sabemos que o interior é de madrepérola. Embora o exterior, às vezes, por causa das agressões do mar e dos calhaus da praia, possa ser escura e rugosa, o interior é sempre um esplendor. Essa é a lição. Nunca descurar o aspecto e usá-lo como uma arma ou uma escada de degraus e ter sempre presente que nós somos feitos de aberturas para os outros e o simples facto de nos vestirmos não tema ver só com o cobrir a nudez, tem a ver com o contar uma historia aos outros. Isso leva-nos à estética, ou ao sentido estético. Está, tal como a Natureza, muito presente na sua obra? A Natureza somos nós, não é? A estética eu não sei o que é em termos globais, mas sei que todos nós somos mais ou menos atraídos por determinados aspectos. Não seria capaz de falar
da estética enquanto uma disciplina da Filosofia, porque não funciono assim, mas em termos globais não sei o que é. Também não vou dizer que o que é belo para umas pessoas para outras pode ser horrível, porque também não é tanto assim. Acho que há um padrão, qualquer coisa que faz com que os seres humanos se sintam atraídos por determinadas coisas. Por exemplo os animais, de certo modo beneficiam disso porque quando ele não têm defesas, garras e unhas, ou são muito jovens, defendem-se parecendo atraente, fofinhos, portanto a estética pode ser uma tremenda arma de defesa. Os tradutores ocidentais chamam ao hexagrama que referi “O Pequeno Enfeite”, mas como tentei estar sempre muito perto do significado do carácter que lá está, que são extremamente breves, quase sempre fui á procura do objecto e não do símbolo. Portanto, em vez de traduzir “o pequeno enfeite” traduzi o que lá está, que é “O Esplender da Concha”. E não é por acaso que os xamanes da época se enchiam todos de penduricalhos, entre os quais as tais conchas, porque cada um daqueles objectos que lhe eram cozidos no fato tinham um significado e diziam algo, geralmente “poder”. Eu depois fiz uma recolha enorme de imagens, quase para todos os poemas. Imagens que têm a ver não só com os símbolos mas o uso mais simplório e material das coisas que são citadas, das palavras. Interessava-me o que estava a ser dito e não o seu significado. No dia em que tomei mesmo a decisão de continuar e “traduzir” os poemas todos foi no dia em que me chegou ás mãos a obra de um mestre taoista que traduziu todos os livros relacionados com este directamente para português, sem passar pelo inglês, ou outras línguas. Porquê? Quando ele, nos poemas em que fala da tartaruga, ou do cágado, dizia “jabuti”, de repente eu tive a intuição de que era aquilo. Não interessava o mito da tartaruga que representa o mundo, ou que pela sua longevidade ela representa os imortais, nada disso era interessante. O que era importante era um significante verdadeiro do jabuti a sair do rio. E foi aí que eu decidi que o que me interessava eram as ervas, as profissões, os ferreiros, os fundidores, as mulheres que tinha tecido o cânhamo para os fatos dos xamanes, e os
penduricalhos que eles usavam, essa gente e essas coisas é que me interessavam. Às vezes foi muito difícil porque os conselhos confucianos ao longo dos tempo foram aparecendo misturados com o texto primordial. Mas depois também pensei que isso não tinha grande importância, porque se determinados hexagramas deram origem a determinados pensamentos, que por sua vez se transformaram num pensamento confuciano, fosse ele de Confúcio ou não, o antes ou o depois não interessam, o que interessa é que foi possível entrelaçá-los. Houve algum em que tenha tido maior dificuldade em decifrar? O hexagrama tântrico, que foi uma revelação, que eu não conseguia pegar naquilo. Só dizia o calcanhar da perna, os joelhos, a anca, os ombros, e não dizia o que iam fazer com aquilo. E eu pensei: “O que é isto?” Depois um dia vi um programa sobre ioga tântrico e vi-os a fazer o que o hexagrama dizia que era para se fazer. Eram dois bailarinos, não conseguiram concretizar, pelo menos para as câmaras, até porque a técnica é secreta, mas então percebi o que era. Era um hexagrama taoista, que tem um ramo que é tântrico, portanto é uma coisa posterior mas se calhar é uma raiz daquilo, não sei, não me preocupei muito porque não sou historiadora sou poeta, mas está lá. Está lá. Quanto tempo levou a fazer o livro? Se começou em 1986, quando eu voltei a ver o padre Guerra, é fácil calcular. Se começou quando eu tinha 20 anos e me inscrevi nas aulas dele, não sei. Passou por vários processos. Primeiro o de indiferença pelo livro, depois o de fascínio pelas imagens, por toda aquela gente, os artífices, famílias inteiras que trabalhavam para os nobres, que faziam as couraças, as espadas, raparigas que teciam as faixas deles, toda essa gente, comecei a vê-los e era isso que me interessava. E o nome, “O Sol, a Lua e a Via do Fio de Seda”, de onde vem? Os caracteres antigos são escritos assim. “Mudança” está escrito com um sol e uma lua, porque o mudar da noite para o dia simboliza a mudança. Depois aquilo que os tradutores ocidentais chamam o “Clássico das Mutações”, ou o “Livro das Mutações”, ou mesmo “Sutra das Mutações”, toda essa palavra é composta por determinados sinais e uma das possíveis tradu-
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ções desses sinais separados é a “Via do Fio de Seda”. A “via” no sentido de um caminho a percorrer, um sentido taoista. O caminho. Que é uma coisa extremamente subtil. O seu caminho passou duas décadas por Macau, mas desde há uns tempos voltou às raízes.
São coisas que temos de constatar e aprender a viver com elas. Continuo a dizer que Macau tem recantos ainda intocados e se calhar voltará a ter mais, portanto nem no passado havia só coisas boas, nem agora há só coisas más. O ser humano tem uma capaci-
Nunca estive complemente fora de Macau porque tenho dois filhos cá e um em Portugal. O que perdi em Macau foi a habitação, porque continuo a ser uma residente permanente. Não posso dizer que saí de Macau porque foi a cidade onde vivi mais tempo até hoje. Ainda hoje passei a manhã naquele jardim do NAPE perto da minha antiga casa, eu morava na rua Cidade de Sintra. Aquelas árvores cresceram imenso, os lagos estão cheios de nenúfares egípcios e tudo aquilo me é tão familiar que só o crescimento das árvores é que me dá a ideia de que eu saí dali há alguns anos, mas se há sítio onde me sinto em casa é em Macau Apesar das mutações que o território tem sofrido?
dade tal de adaptação e de procurar aquilo que corresponde às suas necessidades estéticas que, era aquilo que estávamos a falar há pouco, quem sabe encontrar esses lugares de serenidade... como a aldeia de Ka Ho, por exemplo, esses sítios que aos olhos de algumas pessoas representam um “atraso de vida”, que arrancam comentários como “Então agora vai tomar o pequeno-almoço nessa barraca?” mas que para mim são sítios maravilhosos. Depende das pessoas e daquilo que procuram, a maneira como se relacionam com as coisas. O taoismo não é de maneira nenhuma a procura da perfeição terrestre, até porque isso não existe. É diferente de pessoa
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para pessoa. Isto [aponta para os edifícios em volta] não me preocupa nada. A Fernanda é taoista? Não sou nem deixo de ser, mas o taoismo é fascinante. Se andar ali ao longo daqueles prédios todos se calhar vê nalguma fenda de cimento uma planta rara a crescer e a dar flor. Encontra natureza, porque ela não pode ser aniquilada assim, só porque lhe fazem três ou quatro torres em cima. Não é assim que funciona. Até porque isto tudo é muito frágil, vem um abanão e vai tudo abaixo. Mas se calhar a sementinha fica e depois cresce. As coisas que nos parecem fortes, violentas e inabaláveis às vezes não são. Então Macau pode continuar a inspirá-la, mesmo quando está em Portugal? Eu vivo em Portugal seis meses e os outros seis meses passo aqui. Quando estou lá penso na família que tenho cá, quando estou cá penso na família que tenho lá. Geograficamente é longe, mas eu não saí daqui. A Fernanda também pinta, vai inaugurar uma exposição brevemente na Casa Garden. Recentemente a escritora e pintora chinesa Shan Sa disse-me em entrevista que para ela as duas artes se complementavam. É assim que funciona consigo também? Não. Para mim não é assim. Para mim a pintura é um trabalho físico. Continuo a dizer que não sou artista plástica, sou uma artífice, aprendi a fazer umas coisas. Aliás, o que aprendi a fazer foi gravura sobre cobre, que fiz durante muitos anos com o professor Bartolomeu dos Santos. Quando deixei de ter acesso a uma oficina de gravura comecei a fazer umas pinturas. Para mim é o mesmo que dizer que gosto muito de cuidar do meu cabelo mas também gosto de apertar o cordão dos sapatos. Não tem nada a ver. A minha natureza não é ser pintora. Mas uma coisa que levei muito tempo a aceitar, que achava um bocado bizarro e não queria que as pessoas soubessem, era que eu escrevia poesia. Porquê? Porque achava altamente confrangedor, diria quase vergonhoso, escrever poemas. E durante muito tempo escrevi às escondidas. Mais tarde pensei que já tinha assumido tanta coisa que também podia assumir isso e deixar as pessoas saberem que eu escrevia poesia. Porque essa é a minha verdadeira natureza, é encarar a vida e o que me rodeia
I D E I A S F O R T E S
de uma maneira a que chamo poética. Ocasionalmente faço umas pinturas mas não é a mesma coisa. Não sinto nenhum dom especial, é um artifício. Não é para aí. Mas faço como um trabalho e com prazer, que é como se deve fazer um trabalho. Voltando então aos livros, há uma ligação entre “Gao Ge”, “Horas de Papel”, “Chá Verde” e “O Sol, a Lua e a Via do Fio de Prata”? Eu. A ligação sou eu. É a minha maneira de escrever e de estar naquilo que escrevo, porque os momentos são diferentes. O meu primeiro livro tinha a ver com a descoberta dos lugares. Disto, de um lugar onde ainda não conhecia ninguém, que ainda não tinha percebido muito bem como se vivia. À medida que comecei a conviver com as pessoas e a ter relacionamentos, amizades, começaram a aparecer os contos. Que aliás continuo a escrever mas não tenho publicado. Também já não é assim tão fácil. Lembra-se de quando escreveu o primeiro poema? Tinha oito anos. E era sobre o quê?
Uma tempestade. Era sobre uma tempestade de Outono. O céu estava todo vermelho e começou a chover aquela chuva de fim de Verão e eu lembrei-me de pôr aquilo no papel e pensei: “Olha, saiu um poema”. E escondi-o. A natureza sempre presente. É a sua grande inspiração? A natureza é um suporte. Porque não podemos pensar: “Agora vou escrever um poema sobre os grande temas como o amor, a morte ou a continuidade”. Isso não é escrever um poema, isso é ter um propósito de escrever sobre os grandes temas. Mas há de tudo, há pessoas que escrevem assim e muitíssimo bem. Ainda bem. Quem, por exemplo? Muita gente. Tenho sempre dificuldade em responder a isso porque de certeza absoluta que ia deixar de fora uns 50 nomes de pessoas que gosto de ler. Eu leio o que apanho. Não há um que volte a pegar? Claro que há sempre um que volto a pegar... Lê autores chineses? Não leio em chinês mas tenho muita coisa traduzida e o que
faço é que, sempre que posso, compro várias traduções. Em inglês, em francês, em castelhano se encontrar. Quando gosto de um livro tento ler quantas traduções quantas me for possível encontrar porque as traduções, quantas mais melhor. Não sou contra as traduções, sou a favor, até porque acredito que qualquer pessoa que escreve é um tradutor. Ela pensa e o que escreve nunca é rigorosamente aquilo que pensou, teve de fazer um esforço de tradução do que lhe vai na mente para a palavra, portanto somos todos tradutores. Mas quantos mais melhor porque às vezes uns completam os outros, ou dizem de uma maneira mais sucinta e que me parece mais exacto. Quando cheguei cá tentei aprender chinês, nem que fosse para o quotidiano, mas os meus amigos fartavam-se de rir quando eu tentava dizer alguma coisa. Desencorajavam-me completamente. Porquê? Porque diziam que nem que estudasse 100 anos eu iria conseguir ler e escrever em chinês como o faço em português. Di-
ziam para escrever na minha língua e deixar a outra em paz. E acabei por desistir. Ou escrevia ou ia aprender chinês. Também gostava muito de ler Marina Tsvetaeva em alemão e não posso, mas enfim, é mesmo assim. Tem algum método, alguma rotina para a sua escrita? Escrever é uma respiração. Geralmente de dia estou ocupada a fazer outras coisas, à noite, quando estou sozinha, escrevo. Quando estou a pintar posso estar rodeada de pessoas, mas para escrever tenho de estar sozinha. Está a lançar agora este livro, tem mais projectos na gaveta? Tenho um livro inédito pronto, tenho um que vou sempre acrescentando, que lhe hei-de chamar “O Pequeno Livro Verde de Macau”, porque é sobre as plantas de Macau e os meus monólogos sobre o verde, a Macau verde. Depois tenho outros projectos que prefiro não dizer porque são coisas que ainda estão muito atrasadas, muito no início, e não sei bem que direcção vão tomar. Também são “verdes”? Tenho um outro livro de contos, que se dissesse que era verde tinha de dizer que era verde e amargo. As pulsões amargas. O que é que gostava que “O Sol, a Lua e a Via do Fio de Seda” despertasse nos leitores? Acha que o vão usar como um oráculo? Conheço algumas pessoas que vão fazer isso, nem que seja por curiosidade. Mas são poemas, não é uma tradução do Yi Jing, são poemas. Para tirar a sorte há vários métodos mas todos muito recentes, não são os antigos. Há um com moedas, antigamente era com as varinhas da artemísia, uma planta, mas eu não faço isso. Não faço isso porque não sou vidente. Tenho visões mais não sou vidente. Mas cada um usa como entender. Há pessoas que usam o livro, abrem, lêem, meditam sobre o que leram, é um livro em uso. Até mesmo as traduções mais incongruentes têm uso. É o que há de mais espantoso neste livro, nunca deixou de ser usado. Mesmo quando não era livro, quando eram coisas escritas sobre ossos e depois sobre as carapaças de tartaruga e outros suportes até chegar ao papel, nunca deixou de ser usado. É um livro antigo em uso. Eu escrevo poemas sobre, não pretendo que seja uma tradução integral do Yi Jing primordial. Agora a pessoa pode lá encontrar o que quiser. As visões ou figuras que quiser. Como um tarô.
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L E T R A S S Í N I C A S
WEN ZI 文子
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A COMPREENSÃO DOS MISTÉRIOS
A Via está para o mundo como rios e oceanos.
CAPÍTULO 154, PARTE II Estas seis coisas constituem o tecido de uma nação. Quando profundamente praticadas se recebem bênçãos abundantes. Quando são praticadas superficialmente se recebem bênções ligeiras. Quando são praticadas plenamente tudo no mundo as acompanha. Em tempos antigos, cultivar a Via e a sua virtude trazia ordem a toda a terra; cultivar humanidade e justiça trazia ordem a um estado; cultivar a cortesia e o conhecimento trazia ordem a um país. Aqueles cuja virtude era rica, eram grandes; aqueles cuja virtude era parca, eram pequenos. Assim, a Via não consiste em se afirmar pela agressividade, ou conquistar pela força, ou ganhar pela competitividade. Afirmar-se é ser promovido pelo mundo, conquistar reside no espontâneo acordo
do mundo, ganhar é receber do mundo em vez de se apropriar. Se não fores agressivo te afirmarás, se fores flexível e dúctil serás vitorioso, se fores humano e justo ganharás. Sem contenda ninguém procurará contenda contigo. É por isto que a Via está para o mundo como rios e oceanos. A Via da Natureza é arruinada por aqueles que são ardilosos, perdida por aqueles que dela se tentam apropriar. Olhemos aqueles que procuram uma grande reputação tentado dela apropriarse: veremos que não se conseguem deter e, mesmo ganhando-a por apropriação, logo vemos que esta não dura. A reputação não pode ser obtida por busca, tem de ser dada pelo mundo. Aqueles que a dão a ela recorrem. Aquilo a que o mundo recorre é a virtude. Por isso se diz que o mundo recorre aos de
alta virtude; a terra aos de alta humanidade; o estado aos de alta justiça; um país aos de alta cortesia. O povo não seguirá ninguém que não possua estas quatro qualidades. Armar e destacar gente que não confia no seu governo é um perigoso curso de acção. Por isso se diz que as armas são instrumentos de mau presságio, a utilizar apenas quando inevitável. Quando se ganha matando e ferindo, tal não deve ser glorificado. Por isso se diz que crescem silvas no solo onde morreram pessoas; por elas chorando em tristeza, sepulta-as com os ritos do luto. Por isto, o homem superior esforça-se pela virtude da Via e não põe grande importância no uso da força militar. Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho
O texto conhecido por Wen Tzu, ou Wen Zi, tem por subtítulo a expressão “A Compreensão dos Mistérios”. Este subtítulo honorífico teve origem na renascença taoista da Dinastia Tang, embora o texto fosse conhecido e estudado desde pelo menos quatro a três séculos antes da era comum. O Wen Tzu terá sido compilado por um discípulo de Lao Tzu, sendo muito do seu conteúdo atribuído ao próprio Lao Tzu. O historiador Su Ma Qian (145-90 a.C.) dá nota destes factos nos seus “Registos do Grande Historiador” compostos durante a predominantemente confucionista Dinastia Han. A obra parece consistir de um destilar do corpus central da sabedoria Taoista constituído pelo Tao Te Qing, pelo Chuang Tzu e pelo Huainan-zi. Para esta versão portuguesa foi utilizada a primeira e, até à data, única tradução inglesa do texto, da autoria do Professor Thomas Cleary, publicada em Taoist Classics, Volume I, Shambala, Boston 2003. Foi ainda utilizada uma versão do texto chinês editada por Shiung Duen Sheng e publicada online.
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Na primeira versão do “Ensaio Sobre a Visão” vamos ensaiar Macau. Aqui, no complexo terreno percorrido pelos fotógrafos do território. Uma zona, uma rua, um edifício. A água que bebemos dentro de uma mão cheia de imagens. A Fotografia sem explicação, para que se compreenda o que é a Cidade. Esta cidade onde vivemos.
Antonio Caetano de Faria
nasceu em Lisboa no raiar dos anos 80. Interessado desde cedo pelas imagens que se movem formou-se em Publicidade e Marketing e em Cinema de Animação. A partir daí não deixou de trabalhar nessas áreas. Realizador, operador de câmara, edição, produção para televisão, documentarista... o seu repertório é vasto e variado. Em 2008 ruma a Macau e aqui ganha um novo ensejo para desvendar horizontes. Com uma presença assídua em festivais, os prémios foram consequentes. Agora, em dias de tufão, o seu rumo não é outro do que o mundo inteiro.
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Templo de Á-Ma em dias de Ano Novo Chinês
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luz de inverno
Boi Luxo
HERB AND DOROTHY, 2008
Dorothy Vogel : “Casámos e, na nossa lua de mel, fomos a Washington D.C. O primeiro sítio a que fomos foi à National Gallery of Art.” Estas linhas são bastante improváveis. Que elas se debrucem sobre um filme cujo interesse enquanto cinema é escasso, quase nulo, abre um precedente cuja repetição dificilmente se verificará. Se tal acontece é como testemunha de uma história que carrega consigo, também, uma grande improbabilidade. Este filme é um documentário numa das suas muitas formas possíveis, um documentário numa das suas formas menos excitantes em termos estéticos. É um daqueles filmes em que a câmara e a opinião estética do seu autor praticamente se apagam para que nos seja mostrada, apenas, uma história. Por outro lado, é um exemplo extremo de um filme em que o material nele contido, sendo muito interessante, basta, através de uma apresentação correcta, para que o filme contenha a eficácia e o efeito de surpresa necessárias. É a história singela da vida excepcional de um casal nova-iorquino, Herbert e Dorothy Vogel, os Vogel. É a história de um empregado dos serviços postais americanos que nunca chegou a concluir a sua educação liceal, o senhor Herbert, e de uma empregada da Brooklin Public Library, a senhora Dorothy, que apenas com os seus salários, humildes, juntaram uma vasta colecção de arte contemporânea americana. O documentário de Megumi Sasaki mostra-nos, com uma humildade próxima à que se desprende da aparência e do comportamento do casal Vogel, como tudo isso foi possível. O salário de Dorothy destinava-se às despe-
MEGUMI SASAKI
sas gerais do casal, que vivia (e provavelmente ainda vive, pelo menos à altura da filmagem do documentário ainda assim era) num pequeno apartamento de renda controlada em Manhattan onde não se vê, sequer, um sofá ou uma área de mais desafogo. O salário do pequeno empregado dos correios, Herbert, destinava-se totalmente a obras de arte que teriam de preencher, pelo menos, dois requisitos: serem baratas e caberem no pequeno apartamento. A colecção dos Vogel reune mais de 4700 peças, onde figuram artistas como Picasso, Chagall, Motherwell, Warhol, Will Barnet, Joseph Beuys, Sol LeWitt, Roy Lichtenstein, Murakami, Nam June Park ou Cindy Sherman, para referir apenas alguns nomes mais famosos de entre os mais de 170 artistas a quem compraram obras de arte, por vezes com uma compulsão quase doentia. “(…) we did it night and day. (…) we came home from work (…) and we went to a gallery opening or we went to a studio (…). So, we went out everynight…” Numa altura em que o Expressionismo Abstracto e a Arte Pop eram já demasiado caros para o casal Vogel estes optaram, na sua imensa paixão pela arte, por comprar obras de autores minimalistas e conceptuais que, à altura, não tinham um valor elevado no mercado. Frequentadores diários de galerias e estúdios de artistas nos bairros em que estes se concentravam, conseguiram conhecer artistas novos, desconhecidos na altura, para quem uma pequena quantia era muitas vezes muito bem vinda, como Lucio Pozzi ou Sylvia Plimack e Robert Mangold nos contam. A relação que
com muitos deles mantiveram durante largos anos transformou-se, não poucas vezes, em sólidas amizades. Muitas das peças foram compradas a prestações, um pouco todos os meses, ou foram vendidas pelos artistas, a este casal tão apaixonado pela sua obra, por 50 ou 100 dolares. Foi apenas nos anos 80 que o mercado da arte contemporânea começou, através, por exemplo, dos leilões, a ver os preços a subir consideravelmente. Mas nesta altura os Vogel já tinham, atrás de si, duas décadas de compra de arte, uma colecção que não cedeu nunca ao decorativismo mas onde muitas das peças têm um aspecto bruto e duro. O filme mostra, além disso, uma atenção e uma afeição extremas pelas obras que o casal adquirira. A dedicação e o amor que por elas revelam fazem compreender um pouco mais o mecanismo e a vontade que estão por trás da reunião desta extraordinária colecção. Mais de um artista não deixa de referir, igualmente, que a esta paixão se junta uma compreensão das peças que revela, nas palavras de alguns deles, um arguto “olho estético”. O acompanhamento, por vezes bastante íntimo, que Herbert e Dorothy fizeram da gestação de algumas obras quase os integra, de modo engolidor, em algumas delas. “The art world was their … habitat.” E foi este, durante 50 décadas, o verdadeiro “habitat” dos Vogel, fossem as galerias do Upper East Side ou de 57th Street ou, mais tarde, as galerias que começaram a aparecer na zona, agora famosa, do Soho. Tudo isto é comovente ? Talvez, mas não só. É também um documento (com bastantes
imagens dos anos 60 ou 70) sobre o mundo da arte em Nova Iorque, sobre as galerias, os curadores, os ateliers dos artistas em fases diferentes das suas carreiras, sobre algumas das suas dificuldades e sobre os bairros artísticos onde se fixaram em momentos pioneiros de certos movimentos. Mas também é, talvez por mero acaso, um quadro belo sobre a vida de uma cidade, a cidade de Nova Iorque. Um quadro belo sobre a sua vitalidade e o modo como acolheu a si, como continua a fazê-lo, um tão grande número de artistas e como o seu ambiente cosmopolita favoreceu, como continua a fazê-lo, de modo festivo, a imaginação e a criatividade. Numa altura em que se fala e escreve tanto sobre os critérios que definem o conceito de qualidade de vida urbana, esta é uma peça simples e correcta para que se compreenda o apelo desta imensa metrópole. Dorothy e Herbert doaram (depois de perceber que a National Gallery of Art só poderia receber 1000 peças) obras a 50 instituições de arte em 50 estados diferentes no cumprimento de um programa chamado The Dorothy and Herbert Vogel Collection: Fifty Works for Fifty States. Que se perceba, no documentário, nunca venderam uma única peça, mesmo que por várias instituições tenham sido contactados para o fazer. As peças que foram transportadas do seu diminuto apartamento, em Manhattan, para a National Gallery of Art, em Washington D.C., ocuparam, para espanto de todos os envolvidos no projecto, mais de 5 gigantescos camiões de mudanças. Isto é uma história verdadeiramente extraordinária, uma história de uma compulsão de ver, de viver com a arte e de a tornar, finalmente, acessível a todo o país.
MAS PARA ISSO É PRECISO QUE SE PORTEM BEM Antønio Falcão Às vezes penso que o mundo não está bem aqui. Que nada existe de verdade perto de nós. Tudo é subterfúgio e paciência. Nada mais. Ainda há pouco tempo andavam todos a instruir-se e a fazer a transição do objecto físico para o objecto digital, com este último, de certo modo, a tornar-se também palpável e sempre à vista. Não existia na mão, como uma bola ou como um disco, mas estava ali numa pastinha do computador sempre por perto, era só puxá-lo com o “mouse”. E eis que surge agora um novo dispositivo que muda tudo de novo e há já quem não tenha pachorra para mais mudanças , em que esses pequenos objectos feitos de material binário que ninguém percebe como funcionam – que ora se unem para fazerem música, imagens ou outro bolo qualquer – deixam também eles de existir perto de nós, e passam a ser colocados num espaço a que se denominou como Nuvem . A Nuvem é o primeiro testemunho físico, apesar de ser digital e não existir ao estender de uma mão, desse outro grémio que se conhece por Céu . Até aqui o Homem, apesar de todas as tentativas, ainda não tinha tido o Céu assim à mão. Há semanas, Steve Jobs, o grande mago da inexcedível Apple – mirrado ainda a debater-se com uma doença que o poderá levar desta para melhor em poucos meses subiu a um palco em São Francisco onde apresentou toda essa nova esfera de possibilidades. Não era novidade nenhuma porque entretanto já toda a gente falava nela e, na verdade, a Google já vem a usar esse sideramento há bastante tempo. Só que desta vez same same but different . Vejamos. Imagine-se que já passou toda a sua discografia para o computador. Ou nem isso. Que gamou toda as músicas de que gosta da Internet e tem uns milhares de canções que vão passando ao correr dos seus desejos. Só que estão num sítio localizado e às vezes não dá muito jeito, porque está noutro local, ou noutro computador, e apetece-lhe ouvir aquele tema fabulástico do Lionel Richie. E é aí que entra o portento divinal do Céu , que mais não faz do que satisfazer os seus anseios, sem precisar de ajoelhar. O Céu pega em toda a sua discografia e leva-a para nenhures. Isto é uma figura de estilo porque a Nuvem existe concretamente e está colocada em Silicon Valley, num quartel general adquirido à Hewlett Packard pela Apple e onde foram investidos muitos milhões de dólares em discos rígidos e em servidores do último grito. Mas essa parte, a Steve Jobs, não interessa contar. Por isso não fica mal dizer, que todo o seu painel sonoro passa a estar lá em cima, perto do Senhor. E é aqui que entra o génio da equipa do senhor Jobs e que a tem diferenciado dos restantes. As músicas não são verdadeiramente copiadas, porque elas já existem lá nesse lugar “a que se denominou como ‘Nuvem’”. O que este novo sistema faz não é mais do que auferir uma entrada para determinada canção, equiparando a sua lista à existente lá em cima. Mesmo que a sua versão tenha uma qualidade duvidosa, o Senhor faz o favor de a substituir por uma de natureza cristalina. No fundo é uma espécie de Jukebox, sem precisar de colocar moedas, de rezar e, sim, de ajoelhar de novo. Como se os milagres estivessem todas nas gavetinhas e ao alcance do mais comum dos mortais. Aqui se aplica a verdadeira lógica dos zeros e dos uns, tem não tem . Se existe no seu computador também toca lá em cima, em qualquer lugar, a qualquer altura. No telefone, em casa ou no carro. Todas as suas Carmens Miranda, os seus Robertos Leal, os seus Freixos de Espada à Cinta, ali, ao esticar de um dedo. Sim, é digital, mas não se vê, não está na pastinha. E com isto temos, depois dos CDs terem desaparecido, que também a figura dos ficheiros sonoros guardados no seu computador deram também à sola. Mas desta vez para um lugar melhor, para o lugar para onde um dia todos desejam ir. O que o senhor Jobs não nos explicou foi o é que temos de fazer se quisermos sair de lá. Se temos, afinal, de dormir para sempre nas nuvens.
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próximo oriente
Hugo Pinto
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ÍNDIA ELECTRÓNICA: A PRIMEIRA HISTÓRIA Índia. A mera enunciação da palavra serve para transportar até ao país de Siddhartha o mais eremita dos eremitas que nunca ali tenha posto pé. Um nome. É o que basta para evocar o imaginário de que é feito o país dos brâmanes e das cores, dos rios sagrados, dos templos e divindades, dos muitos lugares comuns que, apesar da sua profusão, não desenvencilham a Índia da aura de mistério, um enigma que se desprende dessa vasta terra como a névoa do Ganges, eternamente pairando rente à superfície, qual extenso véu. Qual comprido sari. O segundo país mais populoso do Mundo, nação de mais de um bilião de pessoas, é, sem surpresa, um mosaico labiríntico cujo enredo desafia a lógica linear das narrativas e da organização. A música, naturalmente, faz parte dessa tessitura. Mas, na Índia, até há relativamente pouco tempo, “a música continuava a ser uma forma tradicional de entretenimento que, raramente, era encarada como um campo de progressivo esforço artístico”. A observação é de Samrat B, músico e produtor (Audio Pervert, Teddy Boy Kill), e vem escrita em “HUB – Indian Electronica Yearbook Project”, de 2010, a primeira antologia da subcultura da música electrónica indiana. Trata-se de uma iniciativa que teve o alto patrocínio do Goethe‐Institut/Max Mueller Bhavan (é assim que o instituto alemão é conhecido na Índia), uma vez mais pioneiro na diplomacia cultural, servindo de lição obrigatória para instituições com vocações e missões semelhantes. “HUB” regista o passado e o presente da música electrónica feita na Índia, mas também a actividade (com grande peso) da diáspora indiana espalhada pelo Mundo. Música, artistas, discos, eventos, editoras, tudo está incluído neste projecto que tem por objectivo despertar a atenção para a música electrónica “made in India”, através de um inédito registo sistemático de informação que, até aqui, subsistiu dispersa e oculta sob
o tal comprido sari. Além de listas com perfis detalhados de cerca de 60 artistas (incluindo desde dados sobre discografias a contactos), “HUB” compila ainda textos que dissecam o impacto da música electrónica na Índia, em termos de definição dos “gostos” e preferências, mas também na influência dos “estilos de vida” ou nas formas de entretenimento nocturno, entre outras facetas. Num artigo que serve de preâmbulo à antologia, Samrat B, aqui no papel de director do projecto “HUB”, narra a breve história da música electrónica indiana desde 1982 – ano em que o nosso conhecido Charanjit Singh editou o seminal “Ten Ragas to a Disco Beat” (ver “Próximo Oriente” do passado dia 20 de Maio) –, até aos dias de hoje. “Ten Ragas to a Disco Beat” é tido como o primeiro disco de música electrónica produzido na Índia, etiqueta a que se junta outra, porventura mais significativa: ter sido o disco inaugural do Acid House, género que se tornou global apenas na segunda metade da década de 1980. Todavia, apesar de bem-aventuradas, as experiências de Charanjit Singh com os sintetizadores TR808 e 909 (máquinas míticas da Roland) passaram largamente despercebidas na Índia, que continuou indiferente à popularidade que a música electrónica granjeava, nos anos 1980, um pouco por todo o Mundo. Nessa altura, de acordo com Samrat B, no país, as modernas “especiarias” electrónicas eram apenas privilégio de uma elite de compositores de Bollywood, onde os estúdios eram equipados com fausto e ofereciam as infinitas possibilidades de composição que só o admirável novo mundo electrónico podia. E um privilégio de poucos permaneceram as muitas virtudes desse novo mundo, até que, um dia, no oeste indiano, começou a dar à costa uma vaga de neo-hippies. (Continua)
“Ten Ragas to a Disco Beat” é tido como o primeiro disco de música electrónica produzido na Índia, etiqueta a que se junta outra, porventura mais significativa: ter sido o disco inaugural do Acid House, género que se tornou global apenas na segunda metade da década de 1980.
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C I D A D E S I N V I S Í V E I S
metrópolis
Tiago Quadros*
IGREJA NA ÁGUA D
ESENHADA POR TADAO ANDO, ENTRE 1985 E 1988, A IGREJA NA ÁGUA ESTÁ LOCALIZADA EM TOMAMU, A ESTE DA CIDADE DE SAPPORO, NA ILHA JAPONESA DE HOKKAIDO. É por entre uma floresta de bétulas que se inicia a viagem. A percepção de um murmúrio distante de água corrente força-nos a continuar. Um muro protege o segredo. Subitamente – um grande lago. E a cruz de aço e a capela. Sublimes. O século XX expressou parte da sua essência em algumas frases que possuem um enorme poder de síntese. Less is more, a frase que Mies van der Rohe nos ensinou, resume uma parte das experiências artísticas mais relevantes das últimas décadas. “Menos é mais” não se refere a uma moda ou a uma nova tendência. Trata-se, isso sim, de um dispositivo operativo que gera fenomenologias próprias – conseguir a máxima emoção estética e o máximo impacto usando os meios mínimos. Assim, é devido ao seu carácter pluridimensional que o minimalismo não é considerado um estilo nem uma corrente delimitada, mas sim, um princípio operacional, que determinados períodos históricos e culturas já tinham conhecido. A obra de Tadao Ando recorda-nos Mies van der Rohe, mas ao mesmo tempo cada edifício estabelece uma relação muito particular e intensa com o lugar. Segundo Josep Maria Montaner: “Os seus edifícios de betão à vista seguem os de Le Corbusier neo-brutalista dos anos cinquenta, mas o tratamento do betão é totalmente refinado. Porque Tadao Ando é, antes de tudo, um profissional especialista na delicada realização de edifícios em betão à vista que acaba alcançando a fragilidade, suavidade e luminosidade do papel ou da seda.” A edificação da Igreja na Água resume-se à sobreposição de dois cubos de dimensões diferentes. A face maior relaciona-se directamente com o lago e corresponde à capela, ligada à entrada do cubo menor por uma escada circular. Um longo muro em L surge no lado Sul, protegendo o conjunto, do hotel que está implantado na parte anterior. A entrada na Igreja acontece por baixo de um cubo em aço e vidro. Nesse instante quatro enormes cruzes em betão definem o primeiro contacto com a Igreja na Água. Chegados à capela somos confrontados com o imenso lago. Uma cruz de aço repousa sobre a água. E todo aquele lugar
– imagem de criação divina – é apreendido através do espaço do altar. Assim, a capela tem apenas três paredes em betão. A quarta face que corresponde ao altar, podendo ser amovível, permite, desse modo, uma comunhão mais completa e ampla com a natureza. Neste projecto Tadao Ando consegue definir um espaço sagrado a partir de dois gestos. Se por um lado desenha um acesso à Igreja intencionalmente irregular criando, dessa forma, uma analogia ao sofrimento e revelações que definem a experiência religiosa, por outro, e com a ajuda do muro em forma de L, protege e isola a Igreja. Segundo Tadao Ando a arquitectura não pode simplesmente resumir-se à implantação de um ojecto novo num determinado lugar. O arquitecto japonês defende ser fundamental respeitar o espírito do lugar. Conhecê-lo e então conjungar essa informação com o pensamento contemporâneo. A Igreja na Água reflecte este processo de trabalho – a importância do contexto para o desenvolvimento do projecto –, e as relações entre espaço interior e exterior. Tadao Ando nasceu em 1941 em Osaka. O arquitecto japonês, que nunca estudou numa escola de arquitectura, iniciou o seu percurso ao viajar pela Europa e Estados Unidos. Le Corbusier será desde cedo uma referência para Ando que em 1969 funda a firma Tadao Ando Architects & Associates. Em 1995 o arquitecto japonês é distinguido com o Prémio Pritzker. O percurso de Tadao Ando vai, desde cedo, incorporar uma via pessoal de reacção contra o estabelecido. Dir-se-ia que o amor pela geometria, o desejo de fazer intervir a natureza e a sua preferência por materiais autênticos estão na génese da sua obra. Se para alguns arquitectos o caminho alcança-se mediante a transparência e desmaterialização máxima do objecto, para Tadao Ando a arquitectura é essencialmente uma expressão de materialidade. Assim, o minimalismo manifesta-se tanto na redução dos elementos de linguagem como na simplificação das formas, tanto na procura da transparência e da imaterialidade como na criação de corpos sólidos, opacos e estáveis. Contudo, todas estas características relacionam-se com outro atributo básico: a auto-referência de toda a obra genuinamente minimalista. No trabalho de Tadao Ando existe uma relação entre o objecto e o ambiente. As suas obras pertencem ao lugar. E a Igreja na Água constitui o maior exemplo deste carácter autónomo, de relação única com o lugar. *Arquitecto, Mestre em Cor na Arquitectura pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa
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Rodrigues da Silva / JL “JL” - “Casa de Lava” é um filme a cores... Ou a tons. P.H. - Eu diria que é quase um filme a preto e branco. São histórias de brancos e pretos e, de repente, há uma fusão das duas coisas, que podem ser as sombras. É um trabalho interessante do Pedro [Costa]. É um filme profundamente português, porque é a história do colonialismo, das diferenças culturais. Da mesma cultura saíram diferentes culturas, diversas maneiras de sentir as coisas. E Cabo Verde é outro mundo. Não estamos na Europa, estamos em África. Uma África um bocadinho europeia. São ilhas. Estive lá quase três meses e só filmei catorze dias. Deu para aprender crioulo com as pessoas. E deixei-me ir a tal ponto que absorvi um certo espírito. As pessoas é que estão por detrás do meu trabalho. Não propriamente eu. “JL” - Tu e o Pedro Costa são frutos da mesma árvore genealógica do cinema português. Paulo Rocha. Aliás, imagino-te sempre a fazer “Verdes Anos”. Num anacronismo: o Pedro Hestnes de hoje ao lado da Isabel Ruth de então. P.H. - É um filme de que eu gosto mesmo muito. E é engraçado. Vi-o depois de fazer “O Sangue”. Se calhar é o tal espírito que paira no ar. “JL” - Como os textos do Zé Gomes Ferreira que lês agora... P.H. - Exacto. Essa angústia de viver, os desejos irrealizáveis são comuns às pessoas que “JL” - A propósito de “Verdes Anos”. Nasceste em Lisboa e... P.H. - Nasci em Lisboa e com um mês fui para os Estados Unidos, de avião. Estive lá até aos 2 anos e depois andei sempre a saltar de um lado para o outro, de escola... “JL” - Mas viveste em Paris algum tempo. P.H. - Entre 1971 e 1973, era muito puto ainda. Nasci em 1962. Uma boa época para nascer. “JL” - Mas voltaste a Paris para tentar belas-artes? P.H. - Sim, aí pelos 17 anos estive lá, em belas-artes. “JL” - Desenhas, não é? P.H. - Tento fazer banda desenhada. Publiquei umas coisas nuns jornais. E na revista “Kapa” cheguei a publicar uma banda desenhada sobre a Guerra do Golfo. Sobre o espectáculo mediático. Foi um bocado censurada, acho eu. Disseram-me, na altura, que se tivessem tido consciência do que era aquilo não tinham publicado. Eu fico muito contente com essas coisas. É um bocado terrorista. “JL” - Tu gostas desse teu lado malcomportado. P.H. - Não é malcomportado. É fornecer outro tipo de referências às pessoas. Tem sempre que haver contrapontos para as pessoas poderem pensar e porem em causa situações. Mesmo situações políticas da vida actual. “JL” - Que te atrai na banda desenhada?
PEDRO HESTNES
“TODOS OS ACTORES DEVIAM SER POETAS” REPUBLICAMOS AQUI UM EXCERTO DA ENTREVISTA DE RODRIGUES DA SILVA, COM PEDRO HESTNES, NO JL 636, DE 1995, ALTURA EM QUE TINHA ESTREADO “A CASA DA LAVA”, DE PEDRO COSTA. É UMA FORMA DE RECORDAR O TESOURO ESCONDIDO DO CINEMA PORTUGUÊS, QUE FALECEU NO PASSADO DIA 19, AOS 49 ANOS P.H. - Poder criar tudo, sem limitações narrativas. O que eu posso transmitir a partir de uma imagem pode ser muito forte. A BD não é uma imagem real. “JL” - Era giro publicar um desenho teu aqui no jornal. P.H. - Se calhar era melhor do que publicar a minha fotografia. Ou publicar os meus pés em vez da minha cara. “JL” - Ou as mãos em vez dos pés. Como no “Pickpocket”, do Bresson. Imagino-te, aliás, um bocado no papel do carteirista... P.H. - Tarde de mais. No Bresson, as pessoas estão lá. Pelo olhar. É muito forte. Ele chega a tal ponto no trabalho com o actor, que é violentíssimo. O actor dá para além dele próprio, em estado de contenção. O que é óptimo. Mas sobre o cinema de Bresson não digo nada. É para se sentir, não para comentar. De resto, ele não aparece por acaso. E um poeta francês. E se hoje não filma, se calhar é porque já não há mais nada para filmar. Ou se calhar é porque não lhe dão oportunidades.
“JL” - É mais isso, mas adiante. Olha, tu chegaste a tocar num bar. P.H. - Era disk-jockey. Já tive um grupo, sim. Tocava violino. Muito mal... Era engraçado como eu utilizava o violino - mais para criar ambientes de terror do que para ser um melódico. Foi uma experiência passageira com uns amigos. Fizemos umas gravações piratas. Não chegámos a vender. As pessoas não iam gostar. Nós gostávamos. “JL” - Como te sentes como actor, neste país? Um actor nada mediático... P.H. - Não é esse o meu objectivo. Aliás, fico muito triste quando vejo actores que podiam ter uma carreira diferente e vemo-los aparecer na televisão a fazer concursos. É lamentável. O problema não será dos actores. Ganham tão mal no teatro (no cinema ganham um bocadinho melhor), que, se calhar, não têm outras opções senão venderem-se assim. Mas ser actor não é isso. É-se actor
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porque se tem alguma coisa a dizer, alguma coisa a comunicar. Um actor deve criar coisas inteligentes, para as pessoas pensarem. Qualquer coisa que tenha a ver com a inteligência, e não com a não inteligência. Nem com a venda de produtos, como acontece cá. Lá fora não tanto, o actor tem outro estatuto, mais compensações. “JL” - Aqui um actor não é muito considerado? P.H. - Nem um actor nem ninguém. Não sei porquê. Aliás, estou a pensar sair deste país e ir estudar lá para fora, para a Europa. Ainda não sei para onde. Estou a informar-me sobre algumas escolas de cinema. “JL” - Como actor ou como realizador? P.H. - Talvez como realizador. Mas não é certo, pode acontecer. Neste momento estou quase há um ano desempregado. O último filme que fiz foi “Três Palmeiras”. “JL” - Outro excelente papel o teu. Estou a lembrar-me de uma cena fabulosa entre ti e a Isabel de Castro. P.H. - Admiro imenso a Isabel. Como actriz e como pessoa. Nunca se vendeu, nunca entrou em esquemas. Não é vedeta. E sobretudo verdadeira. “JL” - Ao longo de “Três Palmeiras” tens um confronto constante com outra grande actriz, a Teresa Roby... P.H. - Eu improvisei muito esse trabalho. Estou completamente a nu. Não tenho bengala nenhuma. Nos outros também não. Mas, por exemplo, em “Casa de Lava” trabalhei imenso para ter um tom, o tom daqueles gajos, falar crioulo. Em “Três Palmeiras” é um trabalho espontâneo. “JL” - Desempregado há um ano, como te aguentas? P.H. - Com dinheiro que ganhei. E tenho dívidas. É difícil um actor viver. Mas não sou obrigado a fazer coisas que não gosto. Nunca fui. Quando as pessoas entram nesse processo, é irreversível - “perdido por cem, perdido por mil”, como se diz. Prefiro estar mal, não ter tanto dinheiro para viver, mas estar bem comigo próprio, a participar em coisas com que não estou de acordo e depois ficar mal comigo. “JL” - Já reparaste que todo o teu cinema foi feito sob o cavaquismo? E não são filmes de que te envergonhes. P.H. - Não, não me envergonho, caso contrário não os te ria feito. Mas não sei se o Cavaco os viu. “JL” - Que leitura tens disto? Entraste só numa dúzia de filmes, ou, mesmo assim, entraste numa dúzia? P.H. - Por sorte, entrei numa dúzia. Catorze, mais concretamente. “JL” - A sorte merece-se. P.H. - Sim. Não é por acaso que me convidam para um certo tipo de cinema. Existem actores técnicos que são sempre bons, mas não sei se isso será positivo ou não. Estão sempre dentro das normas, dos códigos. Não rompem com isso. São um bocado cyborg. Comandados. Ora todos os actores deviam ser poetas. Quando não são, são técnicos.
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Tariqah Confiar no inefável Ser amigo de Deus Aprender o indizível com palavras repetidas ao ritmo do coração. E manter as cinco orações diárias, às horas prescritas, a fim de conversar com Deus de coisas práticas.
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escritos de passagem
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Ana Paula Dias
NA TCHA, THE CHILD GOD
NÃO HÁ FESTA COMO ESTA
António Barahona, O sentido da Vida É Só Cantar
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omeçou tudo com as bandeiras triangulares amarelas, verdes, vermelhas e ponteadas por um friso dentado de cor contrastante. Seguia-as com o olhar ao subir a rua e sentia uma expetativa ansiosa de saber o que aquilo era ao vê-las flutuar ao vento, de saber que festa ia ser aquela. Era de certeza uma festa, porque cada dia havia mais bandeiras e mais cor na rua e depois começaram a aparecer os palanques. Engenhosas estruturas de bambu colavam-se aos terraços e varandas das casas e aumentavam os espaço disponível, criavam plataformas de observação. Ou talvez fossem palcos onde se iria cantar ópera cantonense, pensava. Neste bairro em tempos conhecido por Baixo Monte, numa das colinas da Fortaleza do Monte, há um pequeno templo tradicional budista e taoista de Na Tcha que sempre me cativou com a sua simplicidade harmoniosamente exótica aos meus olhos. E um pequeno pavilhão de cor vermelho escuro vivo, construído no inicio da dinastia Qing. Tem apenas uma parede e um telhado sustentado por colunas de pedra, pelo que da rua se vêem as grandes espirais de incenso suspensas no teto a arder lentamente com o seu cheiro encantatório, o queimador de granito, os candeeiros de papel encerado que derramam uma luz antiga, alguns idosos e uma ou outra pessoa de meia idade com os paus de incenso na mão, fazendo as devoções no altar das oferendas. E sabia que todos os preparativos tinham a ver com ele. Acabei por querer saber quem era este deus com quem me cruzava diariamente e que ia ter uma festa em sua homenagem, de quem apenas conhecia o nome e a casa. Numa pesquisa rápida, encontrei duas versões: na primeira e mais frequente, a do deus menino irreverente, padroeiro das crianças, que as protege do mal, da doença e dos espíritos maléficos. Reza a lenda que quando era humano era muito turbulento, pelo que os pais o mantinham acorrentado a uma argola, da qual fugiu tão depressa que parecia ter rodas em lugar de pés. E que por isso é representado com uma grande anel dourado na mão e rodas nos pés. A outra, a versão de Na Tcha como um deus criança que esteve em gestação duran-
A música aguda dos pratos, a energia brutal dos tambores e um dragão a dançar dentro de mim. te três anos, o que originara alguma animosidade do pai contra ele. A semelhança de Siddharta Gautama, teria um dia saído da sua casa confortável e descoberto que a vida não era tão fácil para os outros como para si, que a injustiça e o mal estavam nas mãos dos poderosos, de quem as pessoas comuns tinham de se proteger. Esta descoberta gerou grandes conflitos com o pai, um tirano que abusava dos desfavorecidos. Também lhe arranjou problemas com o filho do deus dos oceanos, o qual acabou por matar. Assim, para apaziguar o seu pai, o deus dos oceanos e para salvar os camponeses que este ultimo ameaçou afogar, Na Tcha suicidou-se. Mas outros demónios, dragões e um deus bondoso ressuscitaram-no e deram-lhe a oportunidade de corrigir as injustiças. E assim Na Tcha acaba a voar pelos ares assente em rodas de fogo, com a sua lança mágica de ponta ígnea e uma argola dourada, comba-
tendo a tirania do deus dos oceanos e fazendo prevalecer a justiça. E por isso, no décimo oitavo dia do quinto mês lunar há uma grandiosa festa em honra de Na Tcha, com uma procissão em que a estátua do deus num palanque é escoltada por leões e dragões dançarinos, tambores, gongos, ao longo das ruas até ao largo do Senado, onde é feita uma bênção. Também há opera cantonense, fogo de artificio, panchões. E vi a festa. Sob o forte calor húmido do verão, no dia da festa, logo de manhã, junto ao templo, os preparativos e as pessoas das associações, os músicos, os dançarinos, os curiosos, os crentes, as crianças, eu e mais um estrangeiro apenas. A marcação altamente ritualizada das fases do desfile, a algazarra das indicações gritadas e indecifráveis para mim, o contínuo vaivém das centenas de pessoas, os gestos largos, imperativos para que nada
falhe. O mar de cor da seda, dos trajes, das danças e das posições do corpo, o prazer da imagem, a disponibilidade para a fotografia. A música aguda dos pratos, a energia brutal dos tambores e um dragão a dançar dentro de mim. Vi finalmente o Na Tcha, um menino pálido de oito ou nove anos com a cara e os lábios pintados de vermelho semelhante a um pequeno eunuco, com a cabeça rapada, onde se mantinham uns tufos arredondados de cabelo, tal qual o deus. Com a sua roupa de seda verde água e cor de rosa, a lança e a argola dourada, ali estava a perpetuar a tradição de décadas, a prefigurar a eterna e contraditória vontade humana de que a justiça prevaleça e que o mal não nos atinja. Vi a festa que a vida pode ser. (por opção da autora este texto foi redigido ao abrigo do novo Acordo Ortográfico)
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LIMITESA SOCIAIS MR M ntónio
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Os governantes dos estados e nações vivem em ambiente corruptivo e as suas esferas circulam nesses meandros com a distinta intenção de aumentar sua riqueza e, simultaneamente, fomentar mais pobreza
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cada adição às leis da escassez a atributos monetários compensatórios se eleva o transtorno de todas as vidas com vivências nesses pressupostos, a vaga de lamúrias e inconformismos incendeia lamentações. O pior se regista quando essa voz deixa de existir e se estabelece a um silêncio conformado, não ventilando saída para novos moldes existenciais, que permitam o acesso aos bens e necessidades comuns para fazer face ao dia-a-dia de cada um. O cerco é exasperante e não se vislumbram dias melhores. Cada vez mais o uivo do lobo emerge sonoramente como um grito turbulento, mas não escutado a preceito. Se esta representação metafórica estivesse enquadrada no plano reflector de uma sociedade, talvez tivesse de ser apresentada de outra forma, ou seja nos papéis de lobo e cordeiro, mas não há retorno a dar a estes condimentos galopantes. Essa artimanha política que vem enraizando seus tentáculos em conceitos devastadores não olha a meios, no tocante a sua dimensão e a quem se dirige, incluindo toda a população no mesmo saco. Solidificam-se enormes “polvos” que usurpam muitos dos mais oprimidos, sem as posses financeiras dos seus mentores, lançando medidas incoerentes sem as quantificar na forma devida. Depois há o recurso às potências de um mundo sem valores morais, onde o ser humano é desacreditado em prol dos altos rendimentos que suas organizações usufruem. Os governantes dos estados e nações vivem em ambiente corruptivo e as suas esferas circulam nesses meandros com a distinta intenção de aumentar sua riqueza e, simultaneamente, fomentar mais pobreza e estabelecendo mais fome entre aqueles que vão ficando com, cada vez mais, menos recursos. Lamenta-se, sobremaneira, esta situação que tende a piorar levando muita gente ao seu limite social, sem poder ver uma luz ao fim do túnel
de cada percurso de vida. E quando pensamos, de forma singela, que todos poderíamos viver esta passagem, tão curta pela Terra, sem necessitarmos de tanto sacrifício, mais nos empertigamos. Bastaria, somente, que a divisão de meios fosse mais equitativa e abrangente. É óbvio que permaneceriam as diferenças sociais, não se fala aqui de uma ditadura do proletariado ou qualquer outra semelhante doutrina, mas elas deveriam ser mais humanas e regradas. Aqui muitos referenciarão que as palavras anteriores caminham para o sentido utópico e sonhador, sem hipótese de ser concretizado na realidade, mas há um amargo constante na recepção a cada decisão governamental, seja em que tipo de padrão for. A calúnia não é só a difamação. Há formas inexplicáveis de caluniar um povo, como se fosse esventrado até à exaustão, sem rodeios. O desemprego é outra chaga social, que mais empobrece o destino do comum dos mortais e traz um amargo de boca constante, aos que sentem isso na pele, onde a digestão de cada qual vem balançando entre resquícios de um fel derrotado e impossível de ser digerido. A “Troika” por aí anda, cosendo com as linhas do FMI um tecido que abre buracos em muitos pontos da sua extensão e, que esticado, continua a romper esperanças, sonhos e projectos, tapando desilusões, insatisfações e o ódio amordaçado. Onde irão parar estes caminhos da desgraça? A Grécia está nos limites, e outros para lá caminham, neste mundo, autêntico tabuleiro de xadrez, onde os peões, povos sofridos, são comidos, sem preconceitos, pelas restantes peças do jogo. Portugal, cada vez mais, se abeira desse desiderato, num afundanço constante e generalizado, até quando? E porquê, se o mar, das viagens e da busca de nos novos horizontes, acarinha duas das nossas margens?!... Em cima de nós, só o céu!...
Querida Guarda-costas
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Maria J. Tavares
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epois da tempestade a bonança”. Dediquei o sábado a arrumar as gavetas violadas por mãos alheias, tanta coisa espalhada pelo chão, objectos que jaziam naquelas gavetas há tanto tempo que se auto promoveram a recordações. No meio da roupa fora de moda, estavam papéis que, prontamente, apanhei do chão para deitar fora. Porquê papéis no meio da roupa, ainda me perguntei, e pegando no primeiro percebi que não estavam ali por acaso, tinham sido guardados. Papéis que se não guardam noutro lado senão na gaveta da roupa interior. Sentei-me na cama para ler. Agora, ao escrever isto para ti, ouço os Nocturnos de Chopin e a carta que transcrevo torna-se ainda mais bonita. Num impulso resolvi escrever-te uma outra, para iniciar o novo ciclo, pensando bem já temos a idade delas, mas não resisti a escrevê-la em formato electrónico para evidenciar o sinal dos tempos. Duas gerações de amizade indestrutível é a coisa mais bela do mundo. Isto só vem confirmar o que falávamos no outro dia, “contra o nosso amor ninguém pode...”. Que milagre! E qual de nós irá primeiro?! Pois cá fica. Chora pequenina chora! Eu já chorei. «QUERIDA LUÍSA Tirei ao fim da tarde a carta do correio. Pensei: “Leio-a já, ou logo? Antes logo. À noite, já deitada, sem barulhos, muito quentinha, calma e sossegadinha.” E assim pensando fui até à praia. Esqueci-me que era o dia do Senhor do Povo, das multidões, dos grandes e dos pequenos e... principalmente dos veículos. Pensei: “Em qual destes irá o ‘Senhor’?” Respondi: “Em todos vai um senhor ou... ou uma senhora.” “Estúpida! Eu perguntei o Senhor! E Senhor só há um...!” “Ah!” Respondi: “Então isso já não sei”. Quando cheguei à estrada marginal aguardei imenso tempo até poder atravessar. Ao lado havia dois casais, cada um com uma criança ao colo, à espera que algum “senhor” parasse para deixar passar. Mas os senhores iam muito apressados e eram muitos. E eu pensei: “Mas se há um só Senhor, como ‘ela’ diz – o tal Senhor – onde está ele? Quanto a mim devia estar aqui, para que não passassem só os “senhores” mas os outros também. “Não vês”, respondeu, “que Ele está além, lá no alto, e vê tudo?” “Ah!” Respondi: “Então, deve ser por estar tão alto que, embora vendo tudo, vê tão mal!” Tola! Não se diz mal do Senhor. Ele conhece os nossos pensamentos! “Ah!” Respondi: “Que indiscrição!!” Cortando através dos senhores,
do povo, dos veículos e sob o olhar do outro “Senhor” lá cheguei à praia. Olhei bem para longe, caminhei pela tal estrada que levava ao outro lado, de Além, onde estava “a Luísa, a rapariga mais bonita que vivia para lá do mar...” Mas o mar estava muito zangado, as ondas eram muitas e muito altas e a certa altura a estrada deixou de se ver. Fiquei parada. Olhei, olhei muito longe, estendi o braço mas a distância era muito grande. Voltei para trás. Dei de caras com o povo, com os senhores, os veículos, todo um monte de coisas que já “vinham”. Eu ainda ia. Mesmo assim quando entrei no motel, a bicha ia até à porta. É claro que mais uma vez voltei. Agora fazia parte dos que “vinham”. Antes de entrar em casa fui ao “lugar”. À entrada estava um grupo de velhos sentados ao sol. Eu disse “Boa tarde!” Eles responderam: “Boa tarde, menina”. Entrei no lugar e perguntei: “Tem manteiga?” “Não senhor!” “E leite?” “Não senhor!” “Pronto. Até à próxima.” Não achas, Luísa, que cada um daqueles velhos, mais o homem do lugar podiam ser um Senhor? Não achas que devia haver mais que um Senhor? Que andassem aqui mais ao pé de nós e não só um que olha lá do alto e observa e lê os nossos pensamentos? Que vissem quando precisamos de atravessar a rua e dissessem que todos os dias são de todos e não há um dia para todos, porque o “Senhor” disse? Enfim, melhor seria ainda que cada um visse quando o outro precisa... Voltando do lugar cheguei a casa. Fiz um desenho para a Joana. Falta pintar. Depois de ter feito coisas sem grande importância e estar pronta para me deitar telefonei-te: só disse coisas feias e queria dizer-te coisas bonitas, mas é como se estivesse intoxicada. Vou precisar de muito tempo para que o que diga seja sempre bonito e agradável. Entre as coisas que queria dizer-te é que gostava muito de tentar pintar-te (isto para não fugir completamente à conversa dos quadros...)! Mas já tenho dois quadros, muito pequenos, claro, que imaginei. Quando acabei de falar convosco fiquei contente por ainda ter a tua carta para ler. Era linda e fez-me bem lê-la. Não há nada mais bonito do que o Amor das pessoas. Fiquei comovida, apeteceu-me dar-te muitos beijos. A flor era linda, linda e apetece imenso fazer uma história com ela. Esta carta não a mando para Lagares. Fica junta com os presentes. Desculpa ser feia e mal escrita.»