PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nツコ 2641. Nテグ PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE
ARTES, LETRAS E IDEIAS
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AI MEU RICO S. J0テグ...
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SÃO JOÃO BAPTISTA PADROEIRO DA CIDADE DE MACAU Fernando Sales Lopes Podemos esperar grandes bens desta victoria; porq`vendo os chinas com seus olhos q`os Portuguezes são homens de guerra, quando senão queirão valer delles na que trazem com o Tartaro, pello menos os tratem com respeito, querendo mais por amigos, q`por inimigos (Rellação da Vitoria q`a Cidade de Macao na China teve dos Hollandezes aos 24 de Junho no anno de 1622)
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rago a estas páginas uns apontamentos sobre o significado e importância da comemoração do dia de S. João Baptista em Macau, já que o seu desconhecimento pode permitir, por vezes, o surgimento de mal-entendidos desnecessários. A data transcende em muito o seu significado religioso, pois a resposta dada pelas gentes de Macau à invasão holandesa, proporcionou um reconhecimento, pela China, que assinalou o princípio de uma autonomia, sem a qual Macau não seria o que hoje é. O dia do Padroeiro de Macau, São João Baptista (24 de Junho), foi comemorado como Dia da Cidade, e oficialmente como tal assinalado, desde 1622 – quando foi instituído pelo Senado para lembrar a vitória sobre os holandeses, tida como um milagre – até 1999. Uma tradição macaense que perdurou por mais de três séculos. Milagre porque à época Macau estava desprovida de gente, de organização de defesa, não apenas humana, mas também pela ausência de muralhas e baluartes defensivos seguros e armados. Os ataques que se vinham sucedendo desde o princípio do século, obrigaram a que começasse a ser construído um sistema defensivo, contra a vontade das autoridades chinesas que viam nessa empresa uma ameaça pela imposição de poder português em Macau. Assim, a invasão de 1622, que se iniciou no dia 22 de Junho com o desembarque de 800 soldados na praia de Cacilhas, veio encontrar Macau com cerca de 200 homens com alguma competência para pegar em armas, e três baterias – uma no sitio onde depois foi construído o Forte de Santiago da Barra, outra em S. Francisco, e outra no Bomparto. A cidadela do Monte tinha começado a ser construída em 1616 não estando
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concluída, ainda, e a ermida da Guia não estava fortificada nem preparada para qualquer acto de defesa. Era este o panorama defensivo de uma Macau que apenas poderia contar com actos de valentia, vantagens no conhecimento da terra, ou milagres… A esquadra holandesa, comandada pelo almirante Reijerson, era composta por 15 navios, dois dos quais ingleses, e as forças de desembarque por 800 homens sendo 600 europeus e 200 japoneses, indianos e malaios, segundo descrições da época. Reijerson escolheu o dia 24 para o desembarque mas, como manobra de diversão, no dia anterior destacou três navios para bombardearem ao longo da costa na intenção de confundir a defesa quanto aos seus objectivos e intentos. Um dos navios bombardeou, no dia 23, S. Francisco que respondeu à altura, e outros dois navios continuaram a bombardear o forte logo pela manhã de 24. A guarnição defendeu-se bem, atacando quanto pode e conseguindo inutilizar um dos navios atacantes – o Gallias – que viria, mais tarde a afundar-se, na sequência da bombarda o ter atingido por 25 ou 26 vezes. O desembarque começou pelo lado da praia de Cacilhas a seguir ao nascer do Sol. Para os receber estava António Rodrigues Cavalinho, emboscado
O desembarque começou pelo lado da praia de Cacilhas a seguir ao nascer do Sol. Para os receber estava António Rodrigues Cavalinho, emboscado num banco de areia, com 60 portugueses e 90 filhos da terra. Há combates, o Almirante holandês é ferido. António Rodrigues recua. Os holandeses sobem a Guia perseguindo os nossos. num banco de areia, com 60 portugueses e 90 filhos da terra. Há combates, o Almirante holandês é ferido. António Rodrigues recua. Os holandeses sobem a Guia perseguindo os nossos. No meio da confusão da praia, vem resposta dos jesuítas do Monte que, lá do alto, disparam três bombardas para a frota inimiga. Sorte, talvez! O princípio do milagre? Uma das bombas cai no navio paiol que se incendiou ferindo e matando membros da guarnição. O feito ficou sendo atribuído ao padre italiano Rho, matemático que, sem ter tido tempo para fa-
zer as contas, começou aí a resolver o grande problema que então se vivia. A confusão que se seguiu entre as hostes holandesas – os da praia, os dos navios e os que por terra tentavam subir a Guia ou avançar sobre a cidade – e a força que a façanha de Rho deu aos de Macau, em cargas de fogo aqui e ali, resultou na retirada holandesa que deixava caídos por terra, segundo cronistas da época, metade dos homens que haviam desembarcado. Muitas histórias se contam em redor deste feito, onde não faltam escravos da frota holandesa a perseguirem, despoja-
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rem e deceparem holandeses, ou gente do povo de Macau a ter papel relevante na luta, como uma “padeira de Aljubarrota” macaense que com um espeto, dizem uns, ou uma alabarda, dizem outros, terá mandado para o outro mundo uma mão cheia de invasores. MACAU DEPOIS DA VITÓRIA SOBRE OS HOLANDESES Milagre ou não, pois para além da coincidência do Dia do padroeiro com a vitória, também se diz que o manto do Santo terá desviado os tiros inimigos salvando a cidade da invasão, a verdade é que, o Senado ao declarar que daí para a frente aquele seria o Dia da Cidade, estava, sem o saber, certamente, a marcar o nascimento de uma nova Macau. Depois da vitória sobre os holandeses Macau passou a ser visto com outros olhos por parte das autoridades chinesas, ganhando o direito a preparar condignamente a sua própria defesa. Assim, a cidade foi rodeada de muralhas, balizadas por seis baluartes guarnecidos com artilharia. Um ano depois, em Junho de 1623, era nomeado o primeiro Governador de Macau, D. Francisco de Mascarenhas, demonstrando uma maior preocupação de Portugal em relação a Macau. No entanto o poder local continuou a residir
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SALOMÉ QUERE-LHE A CABEÇA MAS O SANTO É DO POVO
nos homens-bons do Leal Senado que governavam a cidade com grande autonomia. Em 1871 foi inaugurado o monumento da Vitória que deixa marcado na pedra, para a posteridade, o feito heróico das gentes de Macau. COMEMORAÇÕES DA DATA – OFICIAIS E POPULARES Dizem os escritos da época que, vitoriosos, foram os vencedores dar graças à Sé Catedral, onde o Senado e o povo prometeram que fosse feita uma comemoração idêntica na véspera da festa de S. João Baptista. Ficou pois o Leal Senado de Macau obrigado a celebrar anualmente, nos dias 23 e 24 de Junho, a festa de São João Baptista em homenagem aos heróis de Macau, que defenderam a Cidade do ataque estrangeiro. Durante muitos anos realizou-se a procissão em honra do Padroeiro da Cidade, onde sobressaía a imagem de S. João Baptista em andor transportado por membros do Senado. Saía da Sé e percorria as ruas do centro, acompanhada pelos fiéis, tendo por fundo a música da banda. Outro ponto alto da celebração religiosa era a chamada Missa da Vitória. Parece ter-se mantido sem interrupções a tradição do culto a São João Baptista em Macau, mesmo quando, com vigor, se separavam as águas entre o que era secular e religioso, nos primeiros passos das jovens repúblicas portuguesa e chinesa. O Boletim do Governo Ecclesiastico da Diocese de Macau, números 119 e 120 (Maio e Junho de 1913), a páginas 168 e 169, referia-se, à festa de S. João do seguinte modo: “A festa do Padroeiro da cidade, o glorioso Precursor, tambem não decahiu do seu tradicional esplendor, apezar das vicissitudes do tempo. A procissão, que se faz na melhor ordem, em nada desmereceu, sob o ponto de vista religioso, das de outros annos, em que o elemento official lhe dava grande luzimento. A devoção dos macaenses para com o seu Santo Protector não diminuiu (…) Antes da procissão pregou o muito Revdo. Chantre Moraes Sarmento um bello sermão em que recordou as honrosas tradições d`esta terra, a que anda ligada a celebração d`estes cultos em honra do Santo Precursor.” Claro que se realizavam festejos populares, para além dos religiosos, já que, para além da comemoração da vitória sobre os holandeses, o S. João é um Santo Popular ligado à diversão e aos folguedos. Leonel Barros (Jornal Tribuna de Macau, 21/6/2008) escrevia: “Depois do acto religioso, a música e o folhedo dominavam o ambiente festivo, semelhante ao típico arraial português, que invadia vários pontos da cidade. Durante mais de três séculos, os festejos do Dia da
Cidade, foram celebrados com todo o esplendor. A cidade enchia-se de alegria e animação, com as comemorações a prolongarem-se até às primeiras horas da madrugada seguinte”. Até princípios dos anos 90 do século passado, o S. João festejava-se com arraial popular em Coloane, na praia de Hác-sá. Era festa portuguesa, à moda dos bairros populares embora com as adaptações que sempre têm as coisas de matriz portuguesa que viajam pelo mundo. Arraial. Marchas populares e desfiles a cavalo. Tasquinhas de comes e bebes, onde não faltava a sardinha e o frango assados. Barracas de tirinhos e rifas, de lançamento de argolas, não para os gargalos das garrafas, mas para os pescoços de patos! E, fogueiras, claro. A organização era dos Reformados da PSP que mantinham no local um pequeno estabelecimento de comes e bebes durante todo o ano. Houve depois uma versão mais citadina das comemoração dos Santos Populares, organizada pelos Serviços de Turismo, duran-
te alguns anos, integrada no programa das Comemorações em Macau do 10 de Junho. Realizava-se - aproveitando normalmente os artistas que vinham de Portugal para as comemorações do Dia de Camões - uma festa nas arcadas do Fórum Macau que juntava todos os santos populares. Mas a tradição do arraial em honra de S. João Baptista, voltaria a Macau em 2007 por vontade de algumas associações de matriz portuguesa. Ainda não foi na rua mas sim na Escola Portuguesa. No ano seguinte o arraial assenta arraiais no tradicional e patrimonial Bairro de S. Lázaro. E, até hoje, com a benção do Bispo D. José Lai. Tem sido a unidade da Casa de Portugal m Macau, Associação dos Macaenses, Associação dos Aposentados, Reformados e Pensionistas de Macau, Associação Promotora da Instrução dos Macaenses e Instituto Internacional de Macau, que tem permitido, desde então a realização anual do Arraial de S. João Baptista, o Padroeiro da Cidade de Macau.
Aos 17 dias do mes de Junho do anno de 1758 nesta Cidade do nome de Deos de Macao na China na Caza da Camara della juntos os Ministros, e officiaes que no dito anno servem neste Senado estando em meza de Vereação Houve reprezentar o Procurador deste Senado João Antunes, em como o Rd.º Sñor Bispo, quer que a Missa que se costuma dizer, no dia do Snor Sam João, em o Campo ao mesmo Santo, no lugar onde os Portuguezes, e mais moradores desta Cid.e alcançarão o bom sucesso da batalha que tiverão com os olandezes; que se não diga a dita Missa sem o seu beneplacito e licença, se asentou a vista da dita reprezentação que se mandasse dizer a d.ª Missa na Hermida da Fortaleza de Nossa Sñr.ª da Guia, por razão de haver Cento e tantos annos passados, que nelles sempre se disse a dita Missa no dia do d.º Santo sem que este Senado, mandasse pedir licença a nenhum dos Prelados, que tem havido nesta Cid.e-1
1 Transcrição de um assento da Vereação do Leal Senado de 17de Junho de 1758, in Arquivos de Macau, 3.ª Série – Vol. XXIII, n.º 3, Março, 1975, Imprensa Nacional, Macau
A BANCA ALEMÃ É A GRANDE BENEFICIÁRIA DO RESGATE ESPANHOL Vicenç Navarro
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ma das causas da atual crise de Espanha é a explosão da bolha imobiliária. O casamento entre o capital financeiro (banca, caixas de aforro, companhias de seguros e outras instituições financeiras) e o setor imobiliário criou essa bolha. Nos últimos dez anos construíram-se mais habitações no nosso país que em França, Grã-Bretanha e Alemanha em conjunto. E apesar desta enorme construção que significou quase 9% do PIB espanhol, os preços dispararam 150%, subindo muito mais rapidamente que os salários, e isso em resultado de uma abusiva especulação. Não há dúvida que a banca, as caixas, o Banco de Espanha e as autoridades públicas, tanto espanholas como europeias, estavam conscientes disto. Bastava ver um gráfico no qual se comparasse a
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permitiu não incluir o governo e a banca alemães nesta crítica do que se passou em Espanha. Grande parte do dinheiro que alimentava a bolha imobiliária provinha da banca alemã. Na realidade, a explosão da bolha imobiliária ocorreu quando a banca alemã interrompeu o crédito à banca e às caixas de aforro espanholas, em consequência da banca alemã ter paralisado todo o fluxo de crédito, atemorizada pela sua contaminação com produtos financeiros tóxicos procedentes da banca norte-americana. E foi aí que o crédito foi interrompido e a bolha imobiliária espanhola explodiu criando uma enorme queda da atividade económica e das receitas do Estado (tanto central, como autonómico) que criou o défice público do Estado. Este défice não foi criado pelo crescimento das despesas públicas, mas sim pela descida das receitas do Estado. Na realidade, quando se iniciou a crise, no ano de
particular para a Alemanha. E os dados falam por si. Segundo Josef Ackermann, presidente do Deutsche Bank, os lucros deste banco alcançaram a impressionante quantidade de 8.000 milhões de euros no ano 2011 (com 8 milhões de euros em bonificações a este senhor). Na realidade, enquanto o desemprego alcançava números mais que alarmantes em Espanha (e noutros países periféricos), cerca de 50% da juventude está desempregada e a saúde e a educação sofrem cortes brutais (e não há outra forma de o dizer), os lucros do Deutsche Bank subiram cerca de 67% em três anos (2009-2011), tal como assinala Conn Hallinan na revista CounterPunch (15 de junho de 2012) (“Greed and the Pain in Spain”). Todos os dados mostram claramente que a banca alemã beneficiou fortemente da bolha imobiliária espanhola (e também da irlandesa), assim como
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mistas da Comissão Europeia, ao serviço do sistema financeiro europeu liderado pela banca alemã, estão a impor a Espanha. Como bem disse o Ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble (contrariando Rajoy), o resgate financeiro implicará uma supervisão direta por parte do Banco Central Europeu, da Comissão Europeia e do Fundo Monetário Internacional, das reformas financeiras, assim como das políticas fiscais e macroeconómicas espanholas, convertendo assim Espanha numa colónia alemã. E tudo isso com a colaboração do governo conservador “super patriota” espanhol. E porque é que este governo colabora com estas políticas que significam uma clara perda de soberania? A resposta é clara. Porque utiliza este mandato externo (argumentando que não há alternativas) para conseguir o que a direita sempre desejou em Espanha, isto é, debilitar
Todos os dados mostram claramente que a banca alemã beneficiou fortemente da bolha imobiliária espanhola (e também da irlandesa), assim como da crise financeira dos países periféricos. evolução dos preços das casas e dos salários (a grande maioria dos compradores de casas dependem dos rendimentos do trabalho), para ver que os primeiros cresciam muito mais rapidamente que os segundos. A distância entre os dois preços era preenchida pelo crédito. Daí o enorme endividamento das famílias. Tudo isto era previsível. Podia ver-se e poderia ter sido evitado. Mas, nem o Banco de Espanha (apesar do aviso dos técnicos dessa instituição), nem o Estado espanhol tomaram qualquer medida. A chanceler Angela Merkel tem razão, quando indicou recentemente que as autoridades espanholas atuaram de maneira irresponsável nos últimos dez anos ao não terem prevenido a bolha imobiliária, baseada na mera especulação, e a sua explosão. No entanto, Merkel esqueceu-se de um detalhe chave, esquecimento que lhe
2007, o Estado espanhol tinha superavit. O défice público em Espanha não é a causa da crise, como Rajoy tem dito, mas pelo contrário o défice público é a consequência do escasso crescimento económico e das escassas receitas do Estado. Todas as medidas de austeridade, cortes incluídos (que representam o ataque mais frontal ao escassamente financiado Estado Social em Espanha), destinam-se a pagar a dívida dos bancos alemães e de outros países (França, Grã-Bretanha e Bélgica), que tinham alcançado grandes lucros durante a bolha imobiliária, enormes lucros que continuam a ter. Na realidade, a crise bancária dos países periféricos (Espanha, Grécia, Portugal e Irlanda) está a correr muito bem para a banca alemã, pois há um fluxo de capitais (isto é, dinheiro) destes países, que fogem da crise para o centro e muito em
da crise financeira dos países periféricos. Os enormes sacrifícios das classes populares são impostos a Espanha e aos outros países periféricos para que se possa pagar à banca alemã (e de outros países). E o famoso resgate financeiro de 100.000 milhões de euros tem como objetivo salvar a banca espanhola, não para garantir crédito, que não está garantido nem se espera que esteja, mas sim para que possa pagar as suas dívidas, também à banca alemã. E o instrumento que a banca alemã utiliza para impor as suas políticas é o Banco Central Europeu, que como indiquei em várias ocasiões (ver secção Política Económica no meu blogue vnavarro.org), não é um Banco Central, mas sim um lóbi da banca alemã e do Banco Central alemão, o Bundesbank. O resgate financeiro é a última de muitas outras intervenções que os econo-
o mundo do trabalho e privatizar o Estado de Bem Estar. Este governo coincide com o objetivo do resgate que foi muito bem definido pelas declarações do presidente do Banco Central alemão, Jens Weidmann, que em declarações ao “El Pais” não pôde ser mais claro quando indicou que as reformas deveriam acentuar mais as reformas laborais (o que quer dizer baixar os salários) e a privatização de serviços (o que quer dizer o desmantelamento do Estado de Bem Estar). Pois claro. Catedrático de Ciências Políticas e Sociais, Universidade Pompeu Fabra (Barcelona, Espanha). Foi Catedrático de Economia Aplicada na Universidade de Barcelona. É também professor de Políticas Públicas na Universidade Johns Hopkins (Baltimore, EUA), onde exerceu docência durante 35 anos. Dirige o Programa em Políticas Públicas e Sociais patrocinado conjuntamente pela Universidade Pompeu Fabra e pela Universidade Johns Hopkins. Dirige também o Observatório Social de Espanha.
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C H I N A C
北京PEQUIM, NA MA
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António Graça de Abreu NOS MEUS PRIMEIROS quatro anos de vida em Pequim, de 1977 a 1981, tive uma bicicleta a pedal, grande, verde, pesadona mas funcional. Tal como os seis milhões de chineses então habitantes do burgo, contava com duas excelentes rodas para pedalar por dentro da imensa, e na altura calma, capital da China. Entrava no infindável pelotão de velocípedes – em 1978 existiam três milhões de bicicletas em Pequim --, e deixava-me rolar na companhia dessa vasta mole humana que dia e noite circulava por dez mil ruas e avenidas. Deixava Haidian, o grande bairro da cidade onde então vivia, e partia à descoberta dos lugares de que ainda hoje mais gosto, a velhíssima Pequim, os becos, as ruelas compridas entre os 胡同 houtong, os vetustos quarteirões de casas baixas com pátios quadrados no interior e muros cinzentos a tudo rodear. No final dos anos setenta do século passado começavam a surgir, timidamente, os primeiros arranha-céus que mudariam o horizonte da capital mas esses bairros, os houtong mantinham – mantêm, por bem, até hoje, pese embora alguma destruição -- toda a cor dos séculos, a pequena arquitectura, os cheiros, os quotidianos da velha Pequim das dinastias Ming e Qing (1368 a 1911), como pude comprovar uma vez mais no Verão de 2011. Na parte norte da capital, na cidade tártara ou manchu onde os carros quase não entravam, nem entram, havia sempre recantos a descobrir. Dois terços dos espaços da Pequim imperial estavam ali. Eram as vielas em redor do Gulou, as torres do Tambor e do Sino, os Shichahai, os pe-
quenos lagos a norte do parque Beihai onde então, no Verão de 1980, os habitantes dos houtong, apesar do muito lixo a boiar nas águas, faziam praia e tomavam banho, e que hoje, mais limpos, se encontram rodeados de restaurantes, discotecas e de animada vida nocturna. Por detrás dos muros altos, bordejando as ruas pequenas, adivinhavam-se residências de gente importante do Partido Comunista, Guo Moruo, o intelectual famoso, Soong Qiling, a viúva de Sun Yat-sen, Hua Guofeng, o breve sucessor de Mao Zedong, afastado do poder por Deng Xiaoping. Apercebi-me nessa altura da existência, logo ali quase na margem dos lagos, da grande mansão do príncipe Gong e fixei o lugar. Estava fechada, durante a Revolução Cultural fora parcialmente aproveitada para fábrica de aparelhos de ar condicionado. Não era possível visitá-la mas adivinhavam-se grandes obras para breve e lá dentro sabia-se da existência de mil maravilhas. Com as aberturas registadas na sociedade chinesa, com o fim da catalogação pejorativa de muitos monumentos antigos até então associados a um passado considerado reaccionário e feudal, a mansão do príncipe Gong acabou por ser impecavelmente reconstruída e restaurada. Numa noite de Verão de 1995, -- longe iam os tempos da minha bicicleta pedalando pelo meio dos houtong --, o programa a acontecer era ópera de Pequim a ter lugar exactamente no teatrinho de finais do século XVIII da mansão do príncipe Gong. Que fascínios! Os tons verdes, creme, dourados e rubros da decoração dos espaços interio-
res, as lanternas, a música estridente e sincopada, o canto, a voz de falsete dos actores, as máscaras, as pinturas, os trajes coloridos de seda e brocado, os saltos acrobáticos, e três excertos de óperas, as aventuras de Sun Wukong, o macaco que provocava distúrbios no céu, a formosa menina da Bracelete de Jade, e a Fada das Flores salpicando a terra com pétalas. Do outro lado do teatro, junto ao lago e aos pavilhões havia holofotes, gruas, câmaras de cinema suspensas no ar e sobre tripés. Toda uma equipa de produção e realização de cinema trabalhava, filmando, com actores impecavelmente maquilhados e vestidos ao modo do século XVIII. O cenário natural era magnificente, o lago bordado a folhas e flores de lótus, as rochas perfuradas, os montes artificiais, os terraços ondulantes, os corredores de madeira pintada, os jardins debruados a bambu, o Pátio das Peónias, o pavilhão da Neve Perfumada. Mais um extravagante jogo de luzes e de sombras. Eu saltitava entre a ópera de Pequim e o cinema, as filmagens, com os actores, de um e de outro lado, todos reinventando magias em cenários falsos e reais. Solitário entre os encantos da ópera e as fantasias do cinema, passeei-me depois sereno pela mansão do príncipe Gong. A lua a faiscar no céu e o teatro do mundo, aqui, a borbulhar no meu ser sensível, e diante dos olhos. Uma saudação ao príncipe. Em breve, pelos caminhos do nada, pelos atalhos do Céu, viajarei ao seu encontro. MAS AFINAL QUEM FOI O PRÍNCIPE GONG (1832-1898)? O príncipe Gong foi o sexto filho do imperador Dao
Guang (1782-1850), nasceu em Pequim, no actual Palácio de Verão no ano de 1832. Inteligente, estudioso e determinado, irmão do imperador Xian Feng, sucessor de Dao Guang, estavam-lhe destinados importantes cargos governativos. Desempenhou, a partir de 1861 um posto algo semelhante ao de ministro dos Negócios Estrangeiros e, até falecer em 1898, era tido como um dos mais hábeis negociadores e governantes do império. A sua mansão, a Lanyunyuan, em Pequim, de que falámos a semana passada, tem uma longa história que começa em He Shen, o gelao, o grande secretário imperial que em 1777, nos finais do reinado do imperador Qianlong (1711-1796), a mandou construir. He Shen, primeiro proprietário deste esplendoroso palácio, é uma das figuras mais curiosas da história moderna do Império do Meio. Em 1774, Qianlong (leia-se Chien-lung) havia descoberto entre os pequenos oficiais da sua guarda pessoal o jovem He Shen, então com vinte e cinco anos. O imperador perfazia sessenta e quatro anos. Uma paixão súbita inflamou o coração ainda pujante do soberano chinês. Qianlong adivinhou em He Shen uma reencarnação da primeira mulher que partilhara o seu leito, uma concubina de seu pai chamada Xiangfei, a Concubina Perfumada, que decidira iniciar o rapaz nos segredos de alcova, conceder excelsos prazeres ao filho mais simpático e brilhante do imperador Yongzheng. Descoberta a relação incestuosa -- o jovem Qianlong tinha por amante uma concubina que pertencia ao pai --, a imperatriz-mãe sugeriu a Xiangfei que se suicidasse.
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ANSÃO DO PRÍNCIPE GONG (I)
Dias depois a bela concubina enforcava-se com um laço de seda. Qianlong jamais esqueceu a companheira da sua adolescência que lhe desvendara, pela primeira vez, mil segredos do sexo. Reencontrava-a agora reencarnada na figura de He Shen. Rapidamente o oficial da guarda imperial foi promovido a general das tropas manchus, comandante da guarnição de Pequim, ministro dos Assuntos Civis, vice-ministro das Finanças com a responsabilidade de controlar as taxas e impostos a pagar por muitas das mercadorias que circulavam no império. Logo depois era gelao, um dos quatro grandes secretários, na prática política quotidiana a desempenhar funções de primeiro-ministro. Como costuma acontecer
nestas situações, o relacionamento sexual entre o imperador e o favorito sempre careceu de comprovação, mas era voz comum na época e tem sido referido por quase todos os historiadores chineses e ocidentais. Nos últimos quinze anos de vida de Qianlong, com o velho soberano debilitado pela avançada idade, He Shen tornou-se, mais do que “os olhos e ouvidos” do imperador, o verdadeiro centro do poder. Venal, corrupto e desonesto, He Shen era senhor de uma fortuna fabulosa que ultrapassava a do erário imperial. Durante vinte e cinco anos, a gestão dos negócios da corte, as promoções, as nomeações para os cargos mais importantes do aparelho de Estado, a gestão dos exércitos haviam passado pe-
las mãos e pela cabeça do grande secretário. E tudo tinha um preço, elevado. Foi com esse dinheiro que He Shen, logo nos primeiros anos de poder, mandou construir o seu sumptuoso palácio, hoje conhecido apenas como mansão do príncipe Gong. O imperador Qianlong faleceu a 7 de Fevereiro de 1799. Cinco dias depois da morte do pai, o novo imperador Jia Qing mandou prender He Shen. “Benevolente e justo”, considerando que o império estava de luto, concedeu ao gelao, o grande secretário favorito de seu pai, o especial privilégio de se suicidar. Toda a corte sabia que o crime de alta traição de que He Shen era acusado tinha a ver com o facto de o amante do falecido monarca haver acumula-
do uma enorme fortuna, dinheiro que o imperador precisava agora para si e para revigorar a economia. Não por acaso, nesta altura foi inventado um oportuno e esclarecedor trocadilho He Shen die dao, Jia Qing chi bao, isto é,“He Shen cai, Jia Qing enche-se.” É difícil imaginar o que são 60 milhões de onças de prata, 27 milhões de onças de ouro, 9 mil ceptros em ouro pesando cada um quarenta e oito onças, 3.900 ceptros em jade, 18 estátuas de discípulos de Buda em ouro maciço, um serviço de mesa em ouro com 4.283 peças, 144 sofás decorados a ouro e laca, 744 rubis, 4.283 safiras, 10 árvores de coral, 140 relógios de ouro, 38 relógios de parede europeus cobertos de pedras preciosas, 1.907 peles de raposa, 67 mil outras peles, 28 mil
A lua a faiscar no céu e o teatro do mundo, aqui, a borbulhar no meu ser sensível, e diante dos olhos peças de joalharia de diferentes dimensões, etc., etc. São alguns dos números recenseados após a prisão de He Shen, no primeiro inventário feito aos seus bens. He Shen possuía tudo isto e muito mais, uma fortuna avaliada em 900 milhões de taéis. Cada tael são 37,5 gramas de prata. A riqueza colossal de He Shen corresponde a uma imagem depurada da abas-
tança, luxo e privilégios dos grandes do império.1 Entendê-la-emos melhor se considerarmos a quase miséria em que vivia a esmagadora maioria do povo, se pensarmos no mundo chinês -- para citar Fernand Braudel -- como “uma sociedade onde a pobreza era latente, omnipresente.” Hoje quem se lembra de He Shen, ou sabe sequer da sua existência quando visita a mansão do príncipe Gong? Eu próprio só há meia dúzia de anos soube mais sobre a história deste excelente complexo e palácio e fui capaz de o associar a He Shen. Tenho, no entanto, quase a certeza de que é um lugar com um bom feng shui, associado à boa sorte e à fortuna. Lá dentro existe um pequeno lago emm forma de morcego e também um pavilhão do Morcego. Ora morcego em chinês diz-se fu 幅 que é homófono de outro fu 偪 que significa “felicidade, fortuna”. Na mansão do príncipe Gong, no pavilhão do Morcego, no antigo palácio do riquíssimo He Shen vendem-se bem cópias do ideograma fu, na caligrafia da imperador Kangxi( 1654-1722). Mas os morcegos “fu”, homófonos de fu “fortuna”, voam por toda a parte. Eu gosto mais do conjunto de pavilhões, telhados de porcelana, torreões, terraços, corredores, varandins, balaustradas, escadarias de mármore, pátios, jardins, pontes, lagos, árvores e flores, gosto da harmonia dos espaços, gosto mais da mansão do príncipe Gong ao entardecer, quase vazia, gosto da serena solenidade do sinuoso lugar. 1 John K. Fairbank, China, a New History, Harvard, Harvard University Press, 1992, p.182, calcula que, em termos actuais, a fortuna de He Shen na época seria superior a mil milhões de dólares “probably an all-time record.”
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luz de inverno
Boi Luxo
O DELFIM E FERNANDO LOPES
COMO NÃO HÁ FILMES japoneses sem comboios, também não há filmes portugueses sem criadas. Exceptuem-se os muitos filmes recentes sobre bairros periféricos e habitantes destituídos, curtas de João Salavisa ou compridas de Pedro Costa ou João Canijo. Admita-se o exagero mas são as criadas criadas por Isabel Ruth em Os Verdes Anos, Vale Abraão ou O Estranho Caso de Angélica, as criadas de Uma Abelha na Chuva ou de O Delfim (ainda Isabel Ruth) de Fernando Lopes, ou de Brandos Costumes, as causadoras de tudo isto. Faz lembrar Agustina Bessa Luís quando diz (cito de cor) ²em Portugal os comunistas batiam nas criadas², e não nos livramos delas. Se esta circunstância aponta para uma extrema hierarquização da sociedade portuguesa ou para a permanência na intelligensia portuguesa de uma nostalgia por uma ideia de uma ruralidade abastada e vagamente aristocrática será para outros avaliarem. Neste caso foi a Isabel Ruth (ainda ela) de O Delfim que me fez lembrar que pode ser assim. Os mais interessados poderão, ao estudar a história do cinema português, sentir melhor como o cinema de Fernando Lopes se desenvolve a partir da nova energia que este congrega durante os anos 60 e 70, aqueles em que a estagnação a que o regime condenara o país obrigou, em conjunto com o exemplo europeu livre, à criação de um cinema novo. É neste ambiente cultural e artístico que os seus filmes se começam a desenvolver. Mas Fernando Lopes tem, sempre, uma tendência para se centrar obsessivamente
em volta de uma figura, muitas vezes masculina, e para criar desvios de vária ordem. Este tipo de focalização é um dos desvios que o torna um caso particular. Mas há outros, de outro tipo, que têm de ver com a divagação do olhar. E é essa uma das impressões que fica sempre dos seus filmes, de que houve um desvio do olhar e da atenção, um desvio que sai do filme como se um filme fosse uma sala e ele pudesse entrar e sair sem qualquer respeito pelas graças sociais que devem presidir ao saber estar numa sala. Por vezes é necessário que alguém exótico ao país nos venha lembrar que o cinema português é um corpo extraordinário. Que venha lembrar que o cinema deste pequeno país é um corpo alto e elegante, por vezes arrogante, quase sempre sincero e bem parecido e carregado de uma capacidade infinita para surpreender. Vem esta consideração a propósito de um texto de Dennis Lim na edição de Verão da revista Artforum. Não um texto dedicado a alguma das suas figuras mais internacionais, como Oliveira ou Paulo Rocha, não dedicado a Pedro Costa ou João Pedro Rodrigues, de fama mais recente, mas, surpreendentemente, dedicado a dois autores que se tornaram conhecidos por retratos de uma terra granítica e longínqua que só experimentada, na sua rudeza e nas incompreensões mágicas que suscita, se pode pretender conhecer – António Reis e Margarida Cordeiro. Dennis Lim afirma que “… o cinema português pode frequentemente parecer um mundo em si mesmo, um território semiautónomo que evoluiu segundo o seu próprio ritmo e graças a um produtivo afastamento do
resto do continente. Os anos perdidos da ditadura de Salazar e as energias enclausuradas em décadas de repressão e letargia; as arreigadas tradições agrárias e a chegada adiada da industrialização; o vasto manancial de mitos e história local e a vibrante atmosfera de cinemateca que se seguiram aos anos de Salazar – conspiraram para criar em Portugal uma das mais distintas e ricas culturas fílmicas do mundo. ” Ao ler estas observações, justíssimas, lembro o cinema de um outro país que se tem distinguido por uma singularidade, uma qualidade e uma coragem que o tem coberto de um vasto afecto – o cinema iraniano. Penso sempre que o cinema iraniano é um milagre. O que está para lá do ordinário, num cinema tão pequeno como o português, é este terse ramificado num conjunto tão grande de vectores excêntricos. E excêntricos também a vagas ou modas internacionais. Entre eles conta-se o cinema de António Reis e Margarida Cordeiro (revisto e homenageado recentemente nos Estados Unidos da América), mas também o de Paulo Rocha ou Pedro Costa, de Manoel de Oliveira ou João César Monteiro. Se pensarmos respectivamente em Ana, A Ilha de Moraes, No Quarto da Vanda, Amor de Perdição ou Branca de Neve perceber-se-á em que pode consistir essa diversidade. O cinema de Fernando Lopes, e estas linhas não escondem uma intenção homenageante a este realizador recentemente falecido, situa-se um pouco ao lado daquele que possamos considerar mais excêntrico ao gosto do grande público, mas não deixa de exibir marcas bem distintas, uma das quais, a que mais
me agrada, a tendência para o desvio a que em cima se alude. Uma marca definidora das suas histórias é a forte concentração no desenho de uma figura, geralmente masculina. Essa atenção causa uma voragem que pode ser engolidora mas é ela que dá por vezes uma grandeza épica suave aos seus quadros. Assim acontece com o seu primeiro filme de maior metragem, Belarmino, com Nós por Cá Todos Bem (centrado na mãe), Matar Saudades, O Fio do Horizonte, ou com este filme que aqui nos traz, O Delfim. Neles encontramos a permanência de uma violência, ou, pelo menos, de uma enorme teimosia masculina. Mas, a par, existe a divagação do olhar de que se falava antes (e que pode fazer lembrar Apichatpong Weerasethakul). O que percebo agora é que a extensão que estas linhas ganharam atirarão com a apreciação de O Delfim para outra semana. De qualquer modo não constitui este desenvolvimento causa para frustração, apenas causa para lembrar, inesperadamente, aquele que poderá ser o seu filme mais extraordinário, um em que a linha da narração se vê frequentemente interrompida pela exibição de traços inesquecíveis e aparentemente desnecessários, traços de uma atenção ao que não é imediato, uma recusa constante em levar o espectador por um caminho fácil e previsível. Este filme terá de ser aqui alvo de apreciação e este filme é Uma Abelha na Chuva. Não é a primeira vez que isto acontece. Não é a primeira vez que a intenção de falar de um filme se esbate noutras prioridades. E tudo isto por causa das criadas.
29 6 2012
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C I D A D E S I N V I S Í V E I S
metrópolis
Tiago Quadros
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CIDADE NO AR ARATA ISOZAKI iniciou o seu percurso, em 1954, no atelier de Kenzo Tange, seu antigo professor. Enquanto a arquitectura de Tange, o personagem mais influente na arquitectura japonesa do pós-guerra, se apresentava radical em termos conceptuais, foram os seus projectos urbanos que mais influenciaram a nova geração de arquitectos, incluindo Isozaki. O Plano de Tange para Tóquio, delineado em 1960, é disso mesmo exemplo. Ao procurar conciliar a densidade intrincada do tecido urbano de Tóquio com a rápida expansão e reformulação das modernas estruturas sociais, a proposta de Tange definia uma construção urbana multi-nível em camadas sobre a cidade existente e os seus canais. Mas as novas e radicais visões da cidade não se limitaram ao Plano de Tange para Tóquio. Entre outros exemplos, destacam-se o Projecto Nova Babilónia que Constant Nieuwenhuis iniciou na década de 50, o Plano Espacial para Paris de Yona Friedman, de 1958, bem como o trabalho desenvolvido pelo colectivo Archigram, na década de 60, que defendia a transformação urbana como um meio para alcançar a mudança social. Em Cidade no Ar de Arata Isokaki, projecto desenvolvido em 1960 para a cidade de Tóquio, as
várias camadas da cidade pairam sobre a cidade tradicional. Estradas e núcleos de estacionamento surgem implantados entre torres maciças que suportam blocos de escritórios e de habitação. Os pisos mais próximos do solo são reconfigurados em níveis ajardinados acima e no interior dos blocos. Concebido como uma contraproposta ao plano que estava em curso para a implantação dos arranha-céus que hoje dominam a linha do horizonte de Tóquio, em Shinjuku, o conceito defendido por Isozaki encontrou na noção prevalecente de divisão do espaço urbano em secções rectangulares horizontais limitadas em perímetro e em altura, o maior problema. Em oposição, a proposta de Arata Isozaki sugeria a necessidade urgente que novos tipos de arquitectura urbana pudessem ser encontrados através de formas de crescimento interligadas, horizontalmente, no ar. Todavia, quando os arranha-céus que hoje preenchem a linha do horizonte na área de Shinjuku de Tóquio foram propostos, uma alternativa ao sistema foi prevista. O plano, balbuciante, apontava a divisão da área em grelhas comuns e a implantação de edifícios em altura nesses espaços delimitados. Mais uma vez, Isozaki sentiu que um novo tipo de arquitectura urbana precisava de ser desenvolvido
– edifícios elevados e interligados acima do nível do solo que podiam ser ampliados de modo sistemático. As infra-estruturas da Cidade no Ar, incluindo os elevadores, estavam contidas no interior de cilindros denominados de núcleos comuns. Estes núcleos comuns estavam estruturalmente ligados por longas treliças que acomodavam área para escritórios. A série de projectos identificados com o nome Cidade no Ar baseou-se sempre neste sistema. A intenção primordial era fazer expandir a arquitectura para uma escala urbana e reconsiderar todos os tipos de construção através da introdução de factores urbanos no planeamento arquitectónico. O mesmo sistema foi utilizado no projecto Tóquio 1960, elaborado pelo atelier de Kenzo Tange, na concepção do centro de negócios, coordenado por Isozaki. Isozaki, nascido em 1931, tinha idade suficiente para recordar a Segunda Guerra Mundial. Assim como Tange, Arata Isozaki fazia parte de uma geração particularmente vulnerável ao trauma da destruição atómica de Nagasaki e Hiroshima. Com efeito, estes momentos foram imortalizados pelo arquitecto japonês no Labirinto Eléctrico, apresentado em 1968, na Trienal de Milão. A noção da destruição da arquitectura em Isozaki
diz respeito, em uma das suas interpretações possíveis, a esta exposição. Os traumas da guerra, sem necessariamente terem sido reprimidos, foram integrados na narrativa cultural da entrada do Japão, no espaço de quatro gerações, no mundo moderno. Na literatura, o ciclo dessa transformação foi eloquentemente tratado desde o início, enquanto que na arquitectura nunca houve no Japão um Wren ou um Schinker ou um Viollet-le-Duc. Em vez disso, os objectivos semi-programáticos da arquitectura moderna japonesa dos anos de 1950 e início de 1960, parecem ter-se desvanecido depois de 1968. O projecto Cidade no Ar de Isozaki foi realizado em 1960, no mesmo ano em que um conjunto de arquitectos mais jovens, quase todos eles com ligações a Kenzo Tange, publicaram o Manifesto Metabolista. Enquanto Isozaki nunca foi formalmente um membro do grupo, o seu Projecto e o trabalho produzido pelos Metabolistas ao longo da década, reflectem, em grande medida, a descrição que Kenzo Tange faz do seu próprio trabalho de urbanista: “Ao incorporar elementos de velocidade, espaço e mudança drástica na ambiente físico, criámos um método de estruturação procurando obter elasticidade e mutabilidade”.
29 6 2012
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10 gente sagrada
José Simões Morais
鲁班 LU BAN, O ANTEPASSADO DOS ARTESÃOS LU BAN, chamado também Gongshu Ban, nasceu em 507 a.C. e viveu no reino de Lu, hoje Shandong. Era um inventor e um hábil artesão, que aprendeu o ofício com o pai. Diz a lenda que quando nasceu, um grupo de aves pernaltas (grous) voava à volta da casa. A família era pobre e por isso não houve dinheiro para colocar a criança a estudar. Aos 15 anos de idade teve Zi Xia, um discípulo de Confúcio, como educador. Este ensinou-lhe o básico sobre confucionismo (Ru Jia) e como estudante inteligente, rapidamente percebeu os ensinamentos. Estava-se no fim do Período Primavera-Outono e os muitos reinos existentes combatiam entre eles, o que deixava Lu Ban triste e zangado. Por isso resolveu viajar por diferentes reinos oferecendo os seus conhecimentos aos governantes. No entanto, ninguém o escutava, tantas eram as pessoas que faziam o mesmo e mais famosas como Confúcio e Mo Zi que foi contemporâneo de Lu Ban. Por isso foi viver numa pequena montanha, Xiaoheshan, a Sul de Taishan, onde um dia encontrou-se com o seu mestre de ofício, Bao Lao Dong. O professor ficou muito agradado com o empenho de Lu Ban e o seu trabalho minucioso e cuidado. Por isso, ensinou-lhe tudo o que sabia, desde escultura a pintura, desenhar e construir edifícios, carros e barcos. Assim rapidamente se tornou um melhor artesão que o seu mestre. Começou a inventar instrumentos para trabalhar a madeira, como planador, espátula, serrote, furador (sovela), verruma, esquadro e muitos outros utensílios que ainda hoje se usam na marcenaria. Ajudou o reino Chu, quando este combatia pela primeira vez com o reino Yue, criando um instrumento para ser usado em combate naval, o que deu a vitória ao reino Chu. Quando o reino Chu combateu com o reino Song, Lu Ban criou as escadas para subir as muralhas, o que levou de novo o reino Chu a vencer. Uma vez Lu Ban criou um papagaio de madeira que conseguia voar, o lhe deu muito orgulho e começou a gabar-se das suas qualidades. Quando Mo Zi ouviu foi ter com ele e disse-lhe: este pássaro pode voar, mas não trabalha para o ser humano. Prefiro um artesão que não trabalhe tão bem, mas que faça coisas, que sejam úteis para o ser humano. Isso é que é engenhoso e utilitário. Quando Lu Ban ouviu tal, decidiu passar a fazer utensílios e objectos que fossem utilitários. Com um trabalho tão louvável e perfeito ganhou a consideração de todos os que o conheceram, que se referiam a ele como prendado pelos deuses. A partir daí todos os artesãos o colocaram como protector e quando começavam qualquer obra, iam ao seu templo pedir a bênção para conseguirem resolver os problemas que pudessem surgir durante o trabalho e criar uma boa obra. Durante a dinastia Ming, o imperador Yong Le (1403-1424) deu-lhe o título de Mestre Assistente do País As festividades em honra de Lou Pan, como é conhecido em cantonense, realizam-se no 13 dia da 5 Lua e no 21 dia da 7 Lua, situando-se na Rua da Cal o Lou Pan Si Fu Miu, um dos quatro templos existentes em Macau.
29 6 2012
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HUAI NAN ZI 淮南子
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O LIVRO DOS MESTRES DE HUAINAN
As leis e convenções são instrumentos de governo, mas não são aquilo que constitui o governo.
DO ESTADO E DA SOCIEDADE – 11 Certa vez, alguém perguntou a um sábio qual de seis generais seria o primeiro a perecer. O sábio nomeou um deles e, quem havia perguntado, quis saber porquê. O sábio disse: “Na sua administração, a dureza é tida por preparação, o prazer é tido por iluminação e a crueldade para com os subordinados é tida por lealdade”. É por isto que Lao-Tzu disse: “Quando o governo não constitui obstáculo o povo é puro; quando o governo se intromete, o povo vive em falta”. *** Aquilo que tenha sido inapropriado nas políticas de antigos regimes deve ser abandonado, enquanto que aquilo que tenha sido bom nas práticas de
tempos recentes deve ser adoptado. Nunca houve qualquer constante fixa nos comportamentos e na cultura, por isso, os sábios formulam os comportamentos e a cultura sem serem regidos por comportamentos e cultura. *** Recitar os livros de antigos reis não é tão bom quanto escutar as suas palavras. Escutar as suas palavras não é tão bom quanto atingir aquilo que levou tais palavras a serem proferidas. Atingir aquilo que levou tais palavras a serem proferidas é algo que não pode ser posto em palavras. Como tal: “Uma via que possa ser dita não é a Via eterna”. *** Quando um pais muda de líderes repetidamente
e as pessoas usam a situação para fazerem o que querem e esse poder para alimentar os seus desejos, querendo ao mesmo tempo adaptar-se aos tempos e lidar com a mudança de modo uniforme e através de leis fixas, é obvio que não têm capacidade de gerir a responsabilidade. Assim, aquilo que os sábios seguem se chama Via e aquilo que fazem é chamado o seu trabalho. A Via é como metal e pedra, imutável; o seu trabalho é como um instrumento musical, que deve ser afinado de cada vez. *** As leis e convenções são instrumentos de governo, mas não são aquilo que constitui o governo. Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho
Huai Nan Zi (淮南子), O Livro dos Mestres de Huainan foi composto por um conjunto de sábios taoistas na corte de Huainan (actual Província de Anhui), no século II a.C., no decorrer da Dinastia Han do Oeste (206 a.C. a 9 d.C.). Conhecidos como “Os Oito Imortais”, estes sábios destilaram e refinaram o corpo de ensinamentos taoistas já existente (ou seja, o Tao Te Qing e o Chuang Tzu) num só volume, sob o patrocínio e coordenação do lendário Príncipe Liu An de Huainan. A versão portuguesa que aqui se apresenta segue uma selecção de extractos fundamentais, efectuada a partir do texto canónico completo pelo Professor Thomas Cleary e por si traduzida em Taoist Classics, Volume I, Shambhala: Boston, 2003. Estes extractos encontram-se organizados em quatro grupos: “Da Sociedade e do Estado”; “Da Guerra”; “Da Paz” e “Da Sabedoria”. O texto original chinês pode ser consultado na íntegra em www.ctext.org, na secção intitulada “Miscellaneous Schools”.
FERNANDA DIAS Uma leitura do
YI JING O SOL, A LUA
E A VIA DO FIO DE SEDA A nova tradução do livro que há milénios ilumina a civilização chinesa