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Voos imortais

Ana Cristina

SÓ OS PÁSSAROS imortais voam na verdadeira acepção do termo, isto é, livremente, sem quaisquer condicionalismos ou restrições naturais; os outros, os pássaros do mundo foram feitos para voar: voam segundo um plano estabelecido pela própria ordem natural. Têm uma liberdade condicionada, mesmo assim representam, para maioria das culturas – e os chineses não são excepção –, uma ordem superior, simbolizam, habitualmente, os valores mais sagrados para as sociedades humanas.

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Os chineses que, como todos os orientais, mais facilmente criam empatia com os seres da natureza, identificam-se inteiramente com os pássaros. Estes são imagens vivas de homens e mulheres, de seres sábios, poderosos, autênticos, livres, imortais. Os símbolos variam ou aperfeiçoam-se consoante a filosofia que os adopta.

Assim, para os confucionistas os pássaros, especialmente as fénix masculinas, personificam o governante justo, que traz consigo o mandato do céu e o dita à terra. Para os daoístas, os pássaros são, na maioria dos casos, símbolos da liberdade, autenticidade e sabedoria imortais. É interessante notar que, tanto para os daoístas como para os confucionistas, simbolizam os vários tipos de poder.

Mas os pássaros não são escolhidos apenas pelas filosofias eruditas para representar uma ordem ética e ontológica superior: também ao nível popular é completa a identificação entre as aves e o melhor que a natureza humana tem. Os pássaros aprisionados simbolizam os próprios grilhões humanos.

Diz-se que antigamente os homens ricos da China tinham belos pássaros engaiolados que identificavam com concubinas. Tanto as aves como as concubinas estavam inteiramente à mercê destes poderosos e serviam apenas para lhes ornamentar o ego, por causa da sua bela aparência.

Entretanto, a sociedade chinesa foi-se democratizando, no sentido mais etimológico da palavra, e hoje o costume popularizou-se, por isso, já encontramos muitos homens do povo a passear as suas belas “concubinas” nas ruas e nos jardins.

A Fénix, que como vimos pode ser masculina, representa normalmente o princípio feminino. Ela é a parceira do dragão e simboliza a imperatriz. Qualquer mulher que a traga pintada, por exemplo, na roupa, é “rainha” enquanto a ostentar. O corpo da fénix representa as cinco qualidades consideradas humanas: a cabeça, a virtude; as asas, o dever; as costas, o comportamento; o peito, a humanidade; e o estômago, a confiança. Já a fénix masculina é a incarnação de uma ordem e de uma justiça sobre-humanas, como nos recorda, tanto Confúcio, como Zhuangzi, o segundo maior filósofo daoísta.

Numa fábula apresentada por este filósofo daoísta, a coruja possui uma sabedoria inteiramente mundana, luta pelos bens da terra e tritura tudo o que lhe possa dar alimento, como ratos mortos e já meio decompostos. Ela representa o homem prisioneiro do mundo que pretende governar; a fénix, pelo contrário, aparece, em contraponto, como uma ave sobrenatural, surgida do mar Meridional, em voo para o mar do Norte. Esta pousa apenas em certas árvores sagradas, come e bebe de fontes celestiais (XVII,2).

Os pássaros, como todos os outros seres, estão condicionados pela sua própria natureza, têm asas, é natural por isso a sua apetência para o voo, que personifica o gesto verdadeiramente livre. Deste modo, as aves optam pelos impulsos espontâneos que as governam, opondo-se, sempre que lhes surge oportunidade para tal, a ordens artificiais, como a humana.

Segundo a filosofia daoísta, o caminho da liberdade é preparado pela obediência à natureza de cada um. Assim, Zhuangzi relata-nos que um pequeno faisão do pântano tem pular dez vezes sobre um pé, só para comer razoavelmente e deve correr cem passos antes de beber um pouco de água. Não obstante o esforço, evita o galinheiro onde poderia sobreviver sem canseiras. (III,3) Pássaros como os grous são símbolo, por exemplo, de figuras humanas imortais e, como tal, da própria sabedoria imortal.

Corre que Qing Wu, o pai do Feng Shui, ou Fong Soi em cantonense, terá vivido durante a dinastia Han e adquirido a sua sabedoria intuitiva de grous imortais. Estes metamorfosearam-se em homens para lhe transmitirem a sabedoria divina. Foi assim que ele aprendeu a reconhecer a energia que

Este espaço conta com a colaboração do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, sendo que

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