ÓRPHÃO

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Nós não existe. Eu também não mas, pelo menos, existe o prazer e a dor ou a ilusão deles e outras coisas. Em nós, bem espremido, não há quase nada. Cada um de nós existiria per si se por acaso existisse. Em comum temos a escrita, as artes, o pensamento compulsivo e a orfandade. Não explicamos nada. Seria inestético. Ou se compreende ou não interessa. Qualquer acto de significar uma geração, sobretudo literária, afigura-se-nos absurdo. Esse afigurar, amiúde, atrai-nos; a maior parte das vezes repugna-nos. As causas não existem.

Toda a luz é órphã. 3


Celebração dos 100 anos da revista Orpheu

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“órphão”

revista de literatura, arte e ideias

Portugal e Macau Propriedade de: Órphão, Lda.

Editor: Carlos Morais José

direcção João Corvo - Rua da Emenda Imperfeita, 33 - Taipa

Ano I — 2015

número único sumário

Gregório Samsa

Poemas

Francisco Serra de Almeida

Arquitectura - Pangim (fotografia)

Carlos Morais José

Livro dos Nomes II (poesia)

Alberto Bernardes

Jazz Frio (teatro)

Alberto Bernardes

As águas verdes do Pacífico (monólogo)

Pedro Magro

Propósitos de Trieste (poesia)

António José Castro

Água Ardente (prosa)

Carlos Morais José

O Império do Fim (conto) e A dor que deveras sente (ensaio)

Arte As exposições de A. Conceição Júnior • J. Drummond • C. Marreiros

Cinema Macao por Joseph von Sternberg

Oficinas : 72, Travessa das Gralhas, ao Mercado Vermelho

Macau 5


Zuo Kaizi, Locked house, 贸leo sobre tela

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Gregório Samsa

Ecclesiaste’s

nouveau Não há tempo para nascer nem tempo para morrer Nem tempo para amar ou tempo para odiar. Não há tempo para semear nem tempo para colher Nem tempo para ficar ou tempo para largar. Não há tempo para ser nem tempo para desistir Nem tempo para atacar ou tempo para defender. Assim o mundo se organiza. Não há tempo para ti, meu deus parado e mudo. Sobra o tempo para rezar: faz-nos falta a mãe dos lugares, sem estribo ou redenção. Não há tempo e aqui me quedo, cúmplice com a monção. Falta tudo. Descem pelos rios os desfiles do entrudo. Que viagem sem coragem ? — Serei teu irmão, prometo eu, indeciso, torturado. — Nada. Mais nada. Só órfão me acharei. Sem pai nem mãe. Sozinho. Orgulhoso de ti, meu deus abandonado.

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Foi a alma que partiu? Olha para mim. Lucidez de areia que não conta. O malho a cair, obliterado no dia, como caiu anteontem. Olha para mim. E vê a névoa, a espera de veludo, o carnaval, a capa veneziana, condução espartana ao suplício. No início vi a tromba, obscura; procura desleixada e outonal. Olha para mim. Sê general. E no discurso (e que ele seja geraldino) implica comigo e sê disciplinada. Lá fora já não há nada. Barco, gertrudes, capitães. Acabou. Nada mudou. Eu não mudei. Fiquei aqui. — Quis voltar a encher meu copo e por tanto me acusaram de refilar. Olha para mim. Amorável a insónia, a capitulação. Ando pela casa, quase sempre rente ao chão. Existe pois outro andar que não seja rastejar? Creio que não. Ando pela casa, quase sempre rente ao chão. Agrada-me, contudo, a ideia de uma vida presa ao tecto. Do diálogo para baixo, com o corpo abandonado, visto de cima, obsoleto. Foi alma que partiu? Não: — a puta que a pariu...

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Adamastor Entre os dentes do Adamastor procria um buraco e tanto bastaria para o confundir com a porta de um segredo para o mistério do medo Há também o corpo espalmado na pedra em esotérica torção de uma penosa existência. Vai do medo à paciência. E desta de novo ao altar. Só nos falta meio mar e um gigante de pedra que por ali se interpõe. A noite acolhe-o no seu cobertor. Não é amor: ele é , simplesmente, um de seus inúmeros filhos. E todos eles são órfãos, pensionistas dos dias e das catástrofes. Nos escuros braços adormecem e provavelmente sonham estar vivos. Só a aurora os apoquenta. E sobrevém a ira, a garganta de pedra, as algemas de marfim, a tormenta... A noite não deve ter fim. De novo se sublimam gentes em redor: finalmente assusto-me e um intestino de fumo evola-se do ventre retraído da estátua...

Gregório Samsa nasceu em 1976, em Braga. Trabalha em Macau, como funcionário público, desde 1995.

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Zuo Kaizi, Big Wing, Small Heart, tempera sobre papel

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Zuo Kaizi, The nomad pagoda, tinta-da-china sobre papel

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Zuo Kaizi, Heaven’s wit, tinta-da-china sobre papel

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Francisco Serra de Almeida

Arquitectura O risco nunca foi uma profissão. É um gesto instaurador. Na cidade de Pangim, em Goa, existem edifícios que presentificam uma época da arquitectura ocidental, temperados tanto pelo clima como por uma estética que introduz elementos inesperados num discurso convencido da sua eficácia. Aqui se opta pela reprodução do detalhe, do olhar em movimento, ao invés de proporcionar uma volumetria inclusiva.

Pangim 14


a

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Francisco Serra de Almeida ĂŠ arquitecto e nunca lhe aconteceu demorar-se mais de dois anos numa cidade.


carlos morais josé

Livro dos Nomes II excertos inéditos. edição no prelo.

Fonte do Lilau Vai à fonte, meu amor, vai à fonte... mas não beijes a criança que junto à fonte resmunga: esquecer-te-ás de mim. Vai à fonte, meu amor, e verte-me nos lábios da sua água. Ela traz os vícios e os suspiros, que me prendem a esta rocha. Aqui ficarei para sempre. A águia terá piedade de mim. Canal dos Patos É daquele lado que o mundo se inicia, fora desta falsa ilha dos amores. Dali se bebe a planície e se miram as montanhas. Por ali, dizem, esplêndidas cidades espraiam-se por vales, as pessoas sorriem e os animais são felizes, à excepção dos patos. Foi da beira do canal que pela primeira vez espreitei esse mundo. E decidi, com os patos, que não havia de o atravessar.

Casa Garden Na fundação deste jardim, sonhei-te o palácio, onde nunca realmente habitámos. Seria de pedra a escadaria onde te pedi mão. O teu vestido cintilava e as estrelas empalideciam de vergonha. Nunca haverá outra como tu: um degrau acima de mim, ligeiramente inclinada, talvez benevolente. Sorriste e foi então que o jardim e a casa desapareceram para sempre. Quartel dos Mouros Havia nos arcos uma espiral de fumo. Olhámos o rio. Fizemos amor por mil noites. Tudo parecia possível até tu não voltares. Subi então ao terraço e invoquei os djins. Queimei incenso e bebi aguarrás. No entanto, nada aconteceu: as nuvens emudeceram quando deram com os versos que deixaste escritos no meu coração. Foi só mais uma noite, uma eventual madrugada, mas um imenso silêncio sobreveio. Fizeste de mim o necromante que na friagem do seu corpo procura as reservas do futuro.

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Livro dos nomes II

Rua dos Mercadores Não te esqueças da carteira, meu amor, e não te esqueças de mim. Compra tudo, meu amor: o vestido, o casaco, a mala e o manequim, mas não te esqueças de mim. Compra a rosa e compra o tule, a seda e o bandolim, mas não te esqueças de mim. Compra a renda em cara tenda, compra um corte de cetim, compra a mesmo toda a venda, mas não te esqueças de mim. Serás tola quando mercas, compras sem tino nem fim, mas por mais ouro que percas — tu não te esqueças de mim! Avenida Wenceslau de Moraes Silêncio que passa o velho mestre, marinheiro da tristeza, embaixador da saudade, fabro da vida distante, do instante em que a língua se fez lar e amante dedicada. E, na obsessão das letras, voltarão os dias do início, o sol benigno do país. É apertado este jardim onde se esquece do chá. Arrefece. Lá fora, bem sabe... — velho exótico barbudo alquebrado sob as nuvens brancas — será atormentado pelas crianças. Elas lembrá-lo-ão de que nunca se está sozinho.

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Café Nga Tim Era por um peixe que aqui vinha mas ele foi nos teus olhos a outro país. Uma ânsia de turistas oculta a igreja. Espero-te, entre goles de cervejas e restos de chao-min, mas tu não voltarás. Por onde nadas, peixe meu? Por que olhos vagueias agora, que mar procuras ateu? No aquário, caranguejos, lagostas e camarões lamentam comigo a tua ausência. A humidade inutiliza as lágrimas.

Jardim de Camões, dito das Pombas Seriam aves ou donzelas que neste jardim se abrigavam (havia lá em baixo o mar... havia lá em baixo o mar...). E nele se mudavam as aves em donzelas e as donzelas em aves, enquanto entardecia e se esvaía a sombra do poeta. Rimas e corpos ascendiam aos ramos e neles ardiam. Fez-se escuro sem luar. E de um sono de aves e donzelas, o poeta estremunhou. Restava o ronco (havia lá em baixo o mar... havia lá em baixo o mar...).


Livro dos nomes II

Palácio de Santa Sancha Uma mão branda nos juntou, meu amor, um tirano nos separará. Duvida do muro rosa, das intenções acumuladas (jamais pagas), das delícias por cumprir. O mundo é nosso hoje. Por que desconfias, meu amor? Por que olhas o rio cruamente? Nada te fará acreditar e nada te deterá. Partirás mas permaneces, no tactear do gato pelo restolho do meu jardim.

Biblioteca Sir Robert Ho Tung És linda. Não existiras e o mundo confrangeria até ser de outra maneira. Mais pequeno, mais leve, subtil. Não existiras e seria o paraíso dos tempos recuados. Eva, minha mãe, eis-me serpente e desígnio. Tudo está contigo, menos a árvore inchada do conhecimento. Biblioteca: local para incendiar os dias.

Palácio do Governo À beira da baía, dançou-se o solidó, em partilhada solidão. Havia festas, nesse tempo, antes de ser museu. Mas nos jardins ainda repicam valsas e uniformes, rosas de antanho e estéreis fontes. Volteiam fantasmas por estes corredores. Uma flor desfolhada, ali um cisne moribundo. Sentadas em larga mesa, pela eternidade as sombras ainda se interrogam sobre um possível desgoverno.

Seminário de São José Indeciso me sustenho neste amor, sem arder, todo ele benevolência e luz. E por isso, ele há tempos de desafio, em labirinto de quartos, a encontrar o que exactamente me convém, sem olhar às expensas do corpo. Não chega a branda claridade, nem da fonte pura sai veneno: sou feito de noite e asperezas, o sacrifício e o negro habitam em mim. Serei por isso maior que Deus.

Pátio da Eterna Felicidade Prometeste-me a eternidade e eu prostrei-me a teus pés, mostrando assim que não acreditava: seria deus nesse momento. Sei que te esperei neste pátio, imenso e feliz, levado por uma euforia leve, anisada pelo coar das horas. Para além de um livro e depois outro, nada mais se passou. Ainda te espero, para sempre esperarei, neste pátio que ergueste para mim.

Teatro da Taipa Nunca foste minha. Amei-te à primeira vista, fenda triste no corpo assírio da vila. Mas ali te quedas, escrava vendida, exaurida de ti. Nunca assistira, sossegado e de primeiro balcão, a tamanha decadência. Fostes de todos e dos mais vis. Contudo, prometo, ainda hoje te daria a minha mão, viveria contigo e te faria feliz.

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Armazém do Boi Foi aqui que Rembrandt se deteve espantado, pela diversidade da luz na carcaça avermelhada. Numa tontura se quedou. A janela dourava toda a sala. Com o passar do tempo e das carroças, o pretexto de sangue mutou-se em gente e a gente mutou-se em povos. Tornou-se por isso num lugar de Bacon sem ovos. Teatro D. Pedro V O mundo não é um palco mas o pesadelo de um santo desvairado. Sonhou o palco e sonhou Shakespeare para o encher e, nesse afã, tornou pleno o mundo. Corcéis, adamados, os reis das decisões, as mulheres cheias. As teias, os umbrais, formigas, a macedónia. Além do teatro, aquém das cortinas, sobra a vida, nos gemidos da madeira intermitente. Templo de Na Tcha Foi horrível, meu amor, abandonar-te na porta inútil deste templo. Já não sei quem partiu. Provavelmente, ficámos os dois a horas desconexas. Procuro a tua sombra entre as sombras e falo com elas, a perguntar por ti. Sim, terás passado, asseguram. Mas as sombras não sorriem. Depois de te ver os dentes, quem poderia voltar a sentar-se neste amparo de ruínas?

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Cais 22 Atraquei neste cais na vertigem de uma fome milenar. Fôra longa e estéril a viagem. De tudo comerei, engolirei este e outro mundo, sem pudor nem piedade. Na mesa, sobrarão ossos, memórias e espinhas cravadas, restos malva de vozes e mariscos. Ao lado, o rio refila nos cais amadeirados e nas conversas laterais. Prosseguirei. Vou para ali. Isto e de onde venho, tudo farei por esquecer. Vila da Taipa Dizia-te para me seguires sem perguntas. Como se chama esta rua?, começaste. Chhhh... murmurei embevecido. Anda daí, disse apavorado que fizeras menção de te sumires. Olha vês, continuei, um monge absurdo. Anda, só mais uma curva, agora um meridiano consentido. Vamos embora, já chega, imploravas desesperada. Foi então que te perdi. P’ra ali me deixaste abandonado: um minotauro embaciado num labirinto de ti.


alberto bernardes

JAZZ FRIO Peça em um acto, sem intervalo. Personagens Ele Ela Músico

Cena I Escuro total. As luzes acendem-se imperceptivelmente permitindo entrever uma cama. Um casal, ela recostada, ele deitado. A cena abre a meio de uma conversa. Ela - Conheci-o há cinco semanas. No clube de jazz. Ele - E depois? Ela - Foi estranho. Não meteu conversa comigo. Disse-lhe qualquer coisa ao ouvido e ele fugiu. Só o voltei a ver uma semana depois. Ele – Por quê uma semana? Ela - Que pergunta mais estúpida! Porque só no sábado seguinte voltei ao clube de jazz. Ele - E, claro, queres-me contar como é que foi... Queres-me descrever os pormenores... Ela - Quero. (Mais baixo) Agarra-me com força no escuro. E cobre-me com o seu corpo. Depois aperta-me, eu não percebo muito bem onde, nem como... percebo muito pouco... Quase não falamos...

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jazz frio

Ele levanta-se. É a primeira vez que se lhe vê a cara. Dirige-se a uma mesa e serve-se de um uísque. Ele – Sempre gostei da tua casa. Queres um uísque? Ela – Não. Contigo não. Ele - É bom ver que gostaste. Ela – De quê? Ele – Dele. Desse gajo do clube de jazz. Ela - Amo-o... Ele- Como? Ela - As coisas não têm de ser sempre iguais, nem como tu pensas que são, meu querido. Às vezes amamos criaturas que não merecem dois olhares na rua. Não podes imaginar como é... Ele - Mas se o amas... Qual é o teu problema? Ela - Chateia-me. Não diz nada. Fica calado. Talvez seja por isso que preciso de estar sempre com ele. Ele fica de costas para a cama. Ele - Sempre a mesma coisa. Jazz frio... Ela - Desta vez é diferente. Ele - Pelo que ouvi, em nada difere dos outros. De todos os que me falas, sempre que nos encontramos. Ela - Isso perturba-te?! Ele - Sabes bem que não. Ela- Então deixa-me contar-te. Não sou capaz de

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acreditar num homem só porque ele me convence ou gosto dele na cama. Sei que podem existir outros, que existirão outros, e depois desses, outros virão. Mas este... Ele vai ficando como se não reparasse em mim. Parece-me que só existo na sua vida como o almoço, o jantar ou o sexo à janela, a ver passar as pessoas e gemer baixo. Tudo muito natural e sem problemas. Ele - E tu és sempre amável. Ela - Sim (com um sorriso). (Agora séria) Ele vai ficando. Fica calado com uma capacidade única para existir em silêncio, a fazer pequenas coisas, de um lado para o outro, como se eu não existisse. Inventa merdas. Fica para o pequeno almoço, para o almoço que prolonga pela tarde. Ficaria até ao crepúsculo e pela noite fora, depois de um último banho, um restaurante, para depois voltarmos a casa e fazermos amor... se o telefone não tocasse e me desse força para me livrar dele. Ele - E ele trabalha? Ela - Não sei. Ele - E o dinheiro? Ela - Aparece. Ele - Aparece... Não percebo nada... Dizes que o amas. Ou melhor, se calhar percebo: fazes tudo para gostar de quem sabes não poder gostar. Gostas da escrita, da encenação e representação de uma peça que sabes poder controlar até ao fim... até saíres do palco para entrar noutro teatro. Ela - Amo-o mas estou cansada da sua presença silenciosa. É como se esse silêncio lhe permitisse permanecer comigo mesmo quando o deixo. Sempre ao meu lado... mesmo quando o jazz se cala.

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(Noutro tom) Não lhe tenho o mínimo respeito e ouço com esforço as historiazecas que me conta. São maldosas. Talvez tenha medo de me ver envolvida. Ele - Mas conta-te o quê? Ela - Episódios da sua vida. Ele - Que episódios? Ela - Sei lá, histórias. Não sei se te deva contar. Ele - Tu estás aqui para isso. (Irónico) Desde que não chores... Ela - (Começa em tom muito baixo que vai crescendo até ao paroxismo. As luzes vão-se fechando sobre ela, até terminarem no enquadramento do seu rosto alterado) Contou-me a história de um Russo que era seu amigo. Vivia à conta de mulheres. Era terrível, o Russo. Muito alto, muito forte e loiro. Imagino-o perverso e de olhos cruéis... Ele descreveu-mo distraidamente... O Russo, para se vingar de uma miúda que fugira, mandou alguém deitar fogo ao apartamento onde ela vivia com o namorado. Morreram os dois queimados nas chamas. A polícia confirmou ter-se tratado de suicídio ritual. Atribuíram tudo a um grupo de criminosos. Na mesma noite – contou-me ele – o Russo estava especialmente divertido e brincalhão. Na sua mesa choviam garrafas de vodka, despejadas em grandes goles por raparigas loiras que, de repente, começavam também a arder, depois as toalhas, as mesas, todo o restaurante... tudo em chamas. Tudo acalma, ela retoma um tom frio, as luzes regressam ao ambiente inicial Ele também estava lá e foi assim que me contou. Acho que vê demasiados filmes. Cai para a cama, ele vem ter com ela agasalhando-a no seu corpo

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Cena II Clube de jazz. Um homem sentado numa cadeira, junto a uma mesa, um copo, um cinzeiro. Um tom azulado. Paira um som de saxofone. (voz off) Músico - A noite era de jazz frio. Cheirava a insónias e cinzeiros. Olhava para ela: sentada, o perfil, os olhos fixos no gigante negro agarrado ao saxofone. Estava muito bonita, uma despreocupação perfeita, atenta e as narinas ligeiramente abertas, dilatadas pela música. Uma princesa... Aproximou-se e fez-me uma pergunta ao ouvido. Pensava em mim, não tanto como eu pensava nela, mas pensava em mim. Tive de sair, depressa e desajeitado, se não beijaria, ali mesmo, aquelas narinas dilatadas pela música. Semanas mais tarde, em minha casa, ela dizia que tinha medo, que me receava, não a mim propriamente, mas a ela junto a mim. Eu acreditava porque tinha de acreditar em qualquer coisa e no fundo só queria possuí-la e quem tinha verdadeiramente medo era eu, não dela nem de mim, mas das suas palavras. Beijava-a e temia pelo preço dos meus beijos quando ela falasse. Mas beijava-a uma e outra vez. Ela queixava-se, talvez porque os meus beijos a faziam pensar nela, porque simplesmente não a possuía. Tudo era frio como o jazz. O que eu não queria era parar de a beijar porque não podia começar a pensar. Parar para pensar... Só gosto de pensar em movimento, iluminado por um ritmo, sempre a deambular. De vez em quando páro ao pé de alguém que me lembra que deambular é errar. Foda-se... não consigo deixar de me sentir culpado. (Bebe) Voltei-me para ela, que me pergunta-

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va se eu dormia. Claro que dormia. Vi um beicinho ofendido. Mas eu nem sequer sonhava ainda. Ouvia o som distante do saxofone, vagas e mais vagas de saxofone; mais longínquo ainda o piano. Só o frio é verdadeiramente triste. No calor, o corpo alarga-se para o mundo. O frio dá-nos conta da solidão. Ficamos mais pequenos e concentrados. Somos falsos. O calor é verdadeiro porque nos mostra a extensão e anula o tempo. No frio não passamos de uma alma enfiada num copo, com dois cubos de gelo, como o uísque. Não esquecemos nada. No jazz e no álcool afasto-a de mim sem a mandar embora. Ambos são curvilíneos. Em excesso tornam-se vórtices, que nos é penoso abandonar. Ela saiu sem piedade visível, irritada, no momento em que lhe pedi qualquer coisa. Não me lembro do que foi. Adormecia. Não foi sexo. Provavelmente, não lhe pedi nada. Cena III Escuridão total Ele - Para ele, tudo se passara assim. Mas ela não tinha a mesma opinião. Naturalmente adoptava outro ponto de vista. As luzes acendem-se sobre a cama. Ela está atravessada sobre a cama, a cabeça pendente. Ele sentado, os joelhos em posição fetal. Ela - Ele é triste, obsessivamente triste. As palavras dão-lhe náuseas. Parece que me quer provar alguma coisa. Doutras nem parece dar pela minha presença. Ele - Continua...

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Ela - Ontem à noite, fizemos amor. Ele - E isso é extraordinário? Ela - Ele veio-se rapidamente e depois adormeceu. Meteu-se em cima de mim e foi tudo muito mecânico, automático. De certeza que não sentiu prazer... Eu gostei do seu alheamento, do silêncio. Ele - Como jazz frio... Ela - Eu sentia-o pairar nos sons do saxofone. Ele - Mal ele sabe como é importante a música para ti... Ela - Conhecemo-nos no clube de jazz. Ele - Nunca me levaste ao clube de jazz. Ela - Não é lugar para ti. Tu falas demasiado. Ele - A diferença é que eu penso. Ela - Ah, esse é o vosso problema: os homens não ousam saber que as mulheres pensam; mais e muito mais depressa... Ele - Continua... Ela - Nós não paramos nunca de pensar. A mão dele num lugar do corpo dela. Ele - Continua... Ela – É absurdo este alheamento... Ele - Mesmo quando te toco? Ela - Quero abraçar-te totalmente, mas perdi os braços. Ele - (Grita-lhe)Responde-me! Mesmo quando te toco? Ela toca-o também. Ela (suavemente) - Porque me gritas? Não estamos aqui para falarmos, para nos tocarmos?

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Ele (também com suavidade) - Tu estás aqui para me sentires, dentro de ti, quando me falas dos outros. Mas nós, os dois, juntos não corremos riscos porque esgotamos tudo nas palavras. Que importância podem ter os teus outros homens para mim? Ou mesmo tu. Percorro o teu corpo o mais sabiamente que sei e tu fazes exactamente o mesmo comigo. Nenhum sortilégio nos une. As palavras salvam-nos sempre. Ela - Sim, sim. Gosto de te falar dos outros, antes que a água nos apague do corpo um do outro. Ele - E não me pedes mais nada senão esses dez minutos de conversa. Ela (em crescendo) - Não! não te peço mais nada. Nunca nos perseguiremos até ao fim do mundo. Nunca terei medo de ti. Somos frios... Nunca saberás como faço amor. Escuro. Ele - Eu sabia que nunca saberia. Apesar disso continuei a amá-la. Quis acreditar que ela só queria magoar-me e acreditar também que sou forte e racional. Amei-a de novo, lentamente, procurando obedecer ainda mais às regras do nosso jogo e tornando-me, a meus olhos, mentiroso. A isso também me habituei: a mentir a mim mesmo e não me ralar com isso. Não me faz verdadeiramente mal. Escuro total. Cena IV Cena de rua. Marcada por apenas um objecto. Uma passadeira, um candeeiro, um sinal de trânsito? Músico (voz off)Voltei ao clube. O jazz continuava frio e indiferente. Ela deixara-me a meio da noite, mal eu adormecera por cinco minutos, como se não me reconhecesse capacidade de acordar. Nessa noite, ainda me lembro, levantei-me uma hora de-

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pois e saí. Em baixo da minha casa havia um bar. Costumava atormentar-me as noites com o som de risos de mulher e chios de automóvel. Era só um balcão atulhado de gente baça. Pedi uma cerveja, à distância. Claro que me conheciam. Uma mulher voltou-se e perguntou se eu acabara de acordar. Um homem moreno olhou-me com ar sério. Olhei em frente para o homem do bar. Insisti no pedido. Veio a cerveja e saí. Estava sentado e lembrava-me disto enquanto me chamava estúpido. Aparentemente, pensava nela. Estranho, pensava, possuo-a como um louco. Faço amor como não sou e não gosto. Só para poder continuar a possuí-la. Perco-a na noite em que quiser mudar as regras. Mas não há sexo normal. Nesse bar, que fica debaixo da minha casa, passam mulheres que me olham quando por perto estão os seus amantes. Costumo ficar sentado numa mesa, ao canto, a rir-me da minha pose de homem sentado ao fundo de um bar. Às vezes penso que pareço um cão triste com qualquer coisa para dizer. Mas depois penso também que não tenho como mudar e, muito obviamente para mim próprio, tenho de continuar a ser assim. Ela chama-me egoísta... As coisas são irónicas, profundamente irónicas... Uma vez disse-me que eu só a desejaria enquanto não estivesse realmente perto. Que senão tudo seria frio. Ironizava. A boca dela sabia a metal, cheirava a sexo frio. Ela dizia que eu a desejaria mais se soubesse da existência de outro homem. Eu respondia que não e tinha medo de enlouquecer se isso de facto acontecesse. A loucura preocupa-me, preocupa-me a que nos dá a sensação de heroísmo, quando somos capazes de tudo por uma causa que julgamos justa, ou por uma atitude que pensamos acertada. Nessa altura, esqueço as minhas próprias limitações, as mentiras, os desvios do meu comportamento. Hoje nada se passa, tal como ontem. O jazz nem

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sequer está frio: não existe porque o saxofonista negro não veio. Ficou deitado de barriga para o ar com a sua amante que chegou, entretanto, num navio. Rio-me de mim. Rio-me tão alto que as minhas gargalhadas – estas que conheço tão bem – me despertam um prazer desmedido. Pois não é boa esta sensação de crítica total, de tal modo total que és o teu primeiro objecto? Adoro insultar a minha imaginação estereotipada.E ria para dentro enquanto o jazz continuava imperturbável a sua rota. Já comparei, embriagado, um grupo de jazz a um navio. Depois pensei no mar e no vento e comparei-os a quase tudo. Estou estúpido. Melhor não pensar. Cena V Uma sala, sugestão de um quarto ao fundo. Jazz toca imperceptível. Ela sentada. Levanta-se, anda pela sala. Claramente, espera. Serve-se de um whisky. A tensão aumenta. Uma campainha toca. Ela poisa o copo, abre a porta e ele entra. Ela – Estás atrasado. Ele – A sério? E deste por isso? Ela- Nunca tinha acontecido. Ele – Há muitas coisas que nunca tinham acontecido. Ela (rindo e volteando) – Talvez... talvez sim... talvez não... talvez sim... talvez não... A que te referes? A ele? Ao meu músico? Ele – Voltaste a vê-lo? Ela (sorrindo) – Claro. Praticamente vivemos juntos. Ele – O quê?! (olha em volta)

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Ela – Não te exaltes, meu querido. Ele – Não estou exaltado. Mas não gosto de surpresas. Não gosto que alteres as nossas regras. Ela – Tu é que parece quereres alterá-las... Ele- Não... Ela – De certeza? Ele – Não te percebo. Como podes dedicar tanto tempo a um homem... que não amas? Ela – Amo sim. Já te tinha dito. Lembras-te? Ou a tua preciosa memória falha quando te é conveniente? Ele – Impossível. Ela – Impossível o quê? Ele – Amares um homem que não fala. Ela – Ele é forte e determinado. Ele – Isso não chega. Isso não chega. Essa não és tu. Talvez parte de ti mas isso não é amor. Amor é totalidade. Ela – E que sabes tu sobre isso?! O que leste nos livros e recitas, como se as palavras fossem realmente tuas? Sinto-te como um ladrão, um rato nocturno de biblioteca, pilha-frases de ocasião e uso condicionado. Mesmo quando me tocas, parece que folheias um livro e procuras uma lição. O teu orgasmo é uma tese vazia, sem emoção ou conteúdo. Um frouxo exercício de estilo... frouxo como... Ele – Cuidado com as palavras... não te deixes levar por elas... Ela - Sinto que ele me ama sem restrições, que faria tudo por mim. (Pausa, outro tom) Se tu soubesses como ele se entrega... faz-me esquecer o meu próprio prazer pelo prazer de o sentir a vibrar nos meus braços. Depois a esvair-se... a sossegar...

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levanto-me e trago-lhe água. Pego numa toalha e limpo-lhe o corpo devagar, enquanto o beijo uma e outra vez. Ele – Espera... não é aqui na sala que me deves falar disso. Ela – Ainda não te estou a contar nada. Mas compreendo-te. Vai buscar o seu copo, serve-se Ela – Queres um uísque? Ele – Estou cheio de sede. Na alma. Um uísque é perfeito. Ela – Gelo? Ele – Não. Estou algo farto de coisas frias. Prefiro o uísque puro e ardente. Afinal, há tão poucas coisas assim... Ela – Tens razão. Há tão poucas coisas assim... (entrega-lhe o copo) Silêncio. Ele bebe. Ela – Estás melhor? Ele (serve-se doutro)- Sim. Mas confesso que não deixas de me surpreender. É uma qualidade que não perdes, uma mania que persiste... Ela – Uma maneira de não morrer de tédio, diria eu. A vida é demasiado igual a si mesma. Tu és demasiado igual a ti mesmo. Ele – Eu sei. Pensava que isso te atraía, que te dava a segurança necessária para manter os nossos encontros. Qiue táo ]uteis que são... Ela – As coisas só são úteis até certo ponto. Ele – Como?! Ela – Enquanto realmente demonstram ter uma qualquer utilidade.

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Ele – És fria como o... Ela – Não comeces. Tu não és melhor que eu. Quando as coisas se repetem... a repetição é insuportável, assassina... Ele – Não concordo. É através da repetição que apuramos o prazer, que aperfeiçoamos o gesto, que descobrimos a sensibilidade do outro... Ela – Sim. Que, entretanto, já não é a mesma. Não, meu querido. Quando algo acontece muitas vezes, exala um cheiro a máquina, a matéria morta, putrefacta... perde o interesse, a chama... como nós os dois. Ele – Mas nós nunca fomos assim. O nosso jogo é sermos frios. Desde o início que afastámos a ideia de paixão, de amor, ou de qualquer outra emoção que não nos guiasse nos caminhos do prazer. Foi essa a via escolhida e não podes negar que a recheámos de surpresas. Abolimos o esquecimento, pois entendíamos (lembras-te?) que isso era comportamento de gente menor, pessoas sem coragem para olhar e explorar de frente a vida, fazendo uso do instrumento mais nobre que a natureza nos dotou: a razão. Ela – A razão, a razão... a que engendra monstros, queres tu dizer. Monstros como tu e eu. Ele – Seja. Mas unidos na monstruosidade de procurarmos as fronteiras. E não o fizemos como os outros, que se agasalham em desculpas, nas malhas do esquecimento, da bebedeira. Se bebemos, fizemo-lo para exaltar a nossa sobriedade. Ela (carinhosa) – De acordo, meu querido. Mas a existência dos outros nunca te preocupou. Ele – Tu estás diferente. Ela – Não. Ele – Dizes que o amas. Ela – Ele seria capaz de fazer tudo por mim.

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Ele – Isso é o que tu pensas. Ela – É verdade. Ele disse-mo, numa das poucas vezes em que abriu a boca. Ele – Disse-te o quê? Ela – Que faria tudo por mim. Ele – Como por exemplo?... Ela – Matar alguém. Ele – Que disparate... Ela – Disparate por quê? Ele – Matar uma pessoa... por que razão? Ela – Porque eu lhe pedi. Ele (entredentes) – Porque tu lhe pedistes... E isso chega? Tu... pedires?... Ela – Parece que sim. Ele disse que faria tudo por mim. Ele – Repetes-te. Matar não é uma brincadeira. Ela – Não. É uma coisa muito séria. Exige um grande espírito de sacrifício. Ele – Presumo que isso realmente não passe de uma brincadeira, de um exercício de poder. Está bem. Ele mataria por ti. OK. Ganhaste... Que estupidez. Ela – Não se trata de uma brincadeira. Nem de uma estupidez. Eu quero mesmo que ele mate alguém por mim. Ele – Quem? Ela – Queres mesmo saber? Ele – Estás a falar a sério? Ela – A sério, como a morte. Ele – Quem é que tu queres matar?

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Ela – O meu tio, o irmão da minha mãe. Ele – Estás louca? Ela – Não. Esse homem destruiu a minha vida. Ele – Nunca me contaste nada. Ela – Não. É difícil.... (irada) e por que queres que te conte?! Para te excitar?!... (mais calma) desculpa mas... Ele – Não faz mal. Eu compreendo. Ela – A leviandade assusta-me. Ele – A mim também. Ela – E no entanto... às vezes olho em redor e tudo me parece leviano. Como se as acções não tivessem consequências. O meu tio... Quando eu tinha doze anos, ele voltou da tropa e instalou-se na nossa casa, durante um certo tempo. A minha mãe adorava-o. Ele era o benjamim, sempre mimado pelas irmãs, muito simpático e brincalhão. À noite, contava-nos histórias da recruta, de escapadelas, aventuras e outros disparates que nos faziam rir. Piscava-me o olho e dizia-me para me sentar no seu colo. A meio de uma dessas noites, quando já todos dormiam, abriu silenciosamente a porta do meu quarto e meteu-se na minha cama. Quando acordei, senti o corpo dele encostado ao meu e as suas mãos nos meus seios que despontavam. Ao princípio fiquei muito assustada e pensei em gritar, mas ele tapou-me a boca enquanto me dizia para não fazer barulho, nem contar nada à mim nha mãe, que ninguém podia saber e que se soubessem ficariam todos muito zangados comigo. Que era o nosso segredo. Podes imaginar o resto. Ele – Não. Conta-me tudo. Ela – Não. Não posso. A cena passou a repetir-se quase todas as noites. Ele magoava-me... eu não aguentava mais... vê-lo na sala, todo derretido para a irmã, à espera que a noite avançasse para

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voltar ao meu quarto. Eu não aguentava mais e... contei tudo à minha mãe. Ela pôs-se ao lado dele. Disse que a culpa era minha: eu é que o provocava. Falou das minhas primeiras experiências com a maquilhagem, das minhas poses ao espelho. Chamou-me puta, puta! e preveniu-me para a vergonha que se abateria sobre a família e sobre mim, se eu falasse a alguém no assunto. E muito menos ao meu pai que, segundo ela, não voltaria a olhar para a minha cara. Ele – E como resolveste o problema? Ela – Na noite seguinte, quando ele chegou ao quarto,disse-lhe que tinha falado com a minha mãe e ele ficou muito agitado, pálido como um fantasma. Saiu da cama e voltou para o seu quarto. Não voltou. Passada uma semana, ele foi-se embora, mas eu nunca mais considerei a minha mãe da mesma maneira. Odiei-a tão profundamente que esse ódio me queimava a barriga e me excitava e me fazia entregar a quantos rapazes podia. Compreendes? Ele – Penso que sim. E é por isso que o queres matar? Ela – Talvez. (Meio louca, dançando) Talvez sim... talvez não... Talvez sim... talvez não... Quem sabe o que pode redimir uma morte?... Quem sabe o que pode incomodar uma vida? Anda, meu querido, vem (pega-lhe na mão e leva-o na direcção do quarto). Não vamos falar mais disso. Vamos fazer amor, sentir ao mesmo tempo essa morte e essa vida. Vamos adoptá-las como se fossem verdadeiramente nossas filhas... nossas filhinhas... Talvez sim... talvez não... Talvez sim... talvez não... Quem sabe? Talvez sim... talvez não... Escuro

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Cena VI Quarto do músico. Néon lá fora. Voz off Músico – Deixei-a no clube, mas ela nunca se sentirá abandonada. Outros homens se aproximarão. E ela não conhece entraves... como o jazz. Ela é livre, improvisa, faz exactamente o que lhe apetece e não tem que o anunciar. Age, simplesmente. Eu já devia saber. Devia precaver-me contra o que é livre, como ela e como o jazz. Devia ter tido em conta a minha velha e estranha vontade de seguir tudo o que voa e se espreguiça, de espiar a sua incomparável graça e pagar o preço pela companhia dos deuses. O jazz escravizou-me e ela quer o resto. Houve uma noite em que saímos juntos do clube. Beberamos para além do imaginável, mas ela ainda tinha sede. Encontrara uma carta no porta-luvas do meu carro. Fez-me uma cena quando chegamos a casa. “Ela tem importância para ti?”, gritava. Eu não respondia. E perguntava-me: amo-a? Ela abanava a cabeça, eu não reagia. Lamentava a sua dor. Mas só acreditamos no amor dos outros quando os vemos sofrer. Tudo isto é ridículo. Terei deixado a carta de propósito? Para ela descobrir em mim as marcas de outra mulher? Ela estava fora de si, tinha sede. Isso serviu-me de pretexto para sair e voltar ao clube de jazz. Devo ter andado pelas ruas, fumando cigarro atrás de cigarro, intimamente satisfeito com a minha pose de homem que anda pelas ruas a fumar cigarro atrás de cigarro e pensa a sério na vida e ama a solidão de longos passeios nocturnos. Ficarei também satisfeito quando me sentar no clube de jazz, na mesa do fundo, enquanto a banda

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começa outro tema. A música entra em mim devagar, sem que grandes emoções floresçam, a não ser uma antiga piedade por mim próprio que em tempos resolvera enjeitar. Não consegui. Transformou-se numa máscara que transporto e exibo sem remorsos. (Mais excitado) Remorsos?! Eu quero aquela mulher, sentada do outro lado do bar, essa mulher que é feia e certamente nada tem para dizer, excepto palavras vazias que também não quero ouvir. Quero, no entanto, a sua intimidade. Quero rir com ela, apenas com um forte nexo alcoólico e que os gestos se sobreponham à existência do mundo. Quero fechar os olhos e beijá-la, sentir o seu corpo sob as minhas mãos e a sua vida pendente do momento em que a penetrarei. O resto não interessa. A banda, alheada, toca os mesmos blues que sempre ouvi e gosto de voltar a ouvir porque já não me dizem nada. Como tu, já me disseram tudo. Os blues passam por mim como as refeições, os passeios por sítios familiares ou o sexo à janela e tu a gemeres baixinho. Fico frio, agradado mas frio, quando oiço blues. Não consigo explicar-te nada. Tu desfias as tuas razões sem pressentires como tens razão. E como nos separa essa muralha de silêncios, que certamente se vê da Lua. Quase caio na tentação de te contar, com pormenores, as mais remotas perversões, mesmo as que não realizei (a não ser naquela noite em Islamabad), mas deixo-te sossegada, sem papel na minha vida. Olho para ti e tu não és o mar, não és o poente nem as estrelas ou sequer o jazz. És uma mulher com sede. Como muitas outras, que regularmente encontro, aqui neste deserto.

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Cena VII Quarto. Ele e ela. Jazz evola-se pelas paredes. Ele – Como vês, está sempre tudo na mesma. Ela – Talvez para ti. Ele (excitado) – Para ti não? Notaste alguma diferença? Ela – Sim. Notei a diferença de o mesmo me aborrecer. Ele – Não parecias aborrecida. Ela – Senti muito prazer. Ele – Então o que queres dizer com aborrecida? Ela – Sabes que fizeram uma lei num certo país que pune com mais severidade um violador, no caso da mulher... ou o homem... sentir prazer. Entendem que existe uma violação ainda maior da intimidade da vítima. O horror de sentir prazer com quem não se quer. Percebes? Ele – Percebo. Mas não percebo o que tem isso a ver connosco. Ela – O facto de sentir prazer não me salva. Nem te salva a ti. Somos previsíveis, mesmo quando pretendemos usar a razão para atingir novos patamares. Tudo é... deduzível, lógico, exasperadamente lógico. Ele – Deves preferir estar com ele. Ela – Meu querido, isto não é uma crítica. A culpa não é tua. Mas tudo o que se repete acaba por saber a lodo... Ele – Já falámos sobre isso. Não é essa a minha opinião. Ela – Tu és senhor de muitas opiniões mas que só

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funcionam no teu mundo. Ele – Nem fazes ideia... Ela – O que queres dizer com isso? Ele – Tu menosprezas-me. Não imaginas sequer quem realmente eu sou... Ela – Não sei se me interessa esse “quem realmente eu sou”, o que realmente tu és. Pensei que só partilhávamos prazer e razão. Ele – Desculpa. Deixei-me levar... pelas palavras. (Silêncio, levanta-se) Ela – Estarás... sentimental? Ele – És muito caridosa. Primeiro lembras-me do meu lugar, do nosso pacto. Depois queres saber dos meus sentimentos. Dos meus sentimentos... Contigo vejo-me livre para sentir, quase... plenamente, esta energia que me faz pensar e me faz procurar-te viciado. Na claridade. Não é no escuro, como tu procuras com esse músico. Quero-te branca, aspergida de lucidez. Deixar fluir a música, lida em pauta e recitada. Previsível como uma fuga. E no fim iludir os teus fantasmas, expô-los no seu ridículo. Esses homens, que me contas, não passam de instrumentos. Utilizo-os para te dar mais prazer. Dizes-me que o prazer não salva. Eu sei. Nada salva porque nada há para salvar. Ela – Sinto-te mais frio que o habitual. Tens febre? Estás bem? Ele – Sim. Hoje vejo mais claro. Vejo tudo mais claro. Ela – Quão claro tu vês!... que extraordinária... que romântica racionalidade! E acreditas que assim chegas a algum lado? São palavras, meu querido. Uma mulher precisa de actos. A minha vida precisa de actos. Tu és... o resto. Onde as coisas vão morrer na forma a que tu chamas palavras. És um ce-

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mitério cheio de razões, como todos os cemitérios. Ele – Acusas-me... Ela – Como se o fizesse a mim própria. Ele – Mas não tens qualquer razão. Ela – Não. Não tenho. Não tenho que ter. Enjoas-me. (Pausa) Não me interpretes mal, peço-te. Não és tu. Somos nós. Este castelo obsceno, sem portas, sem janelas, sem saída. Ele – Pediste-me esta muralha. Ela – Não chega. Faz-se tarde. (Pausa) Vou sair... Já chega por hoje. (Arranja-se para sair) Ele – Vais ter com ele? Ela – Vou. Ele – E beijá-lo? Ela – Pára. Ele – Páro onde? Ela – Na hipótese de eu ainda te voltar a ver. Não fales dele. Eu também não o farei. Ele – É assim tão importante? Ela – Ele age. Não é como tu. Faz o que eu lhe peço. Ele – Claro, meu amor. Ele faz o que tu lhe pedes e eu não. Eu falo. Mas, apesar dessas tuas intenções, tu regressas. Faz-te falta a música, o jazz frio das minhas palavras. Ela – Não me sossegam essas tuas palavras. Nem me curam. Tens razão. Há nelas um vento frio. Um sopro que invoca uma falsa morte. Depois... depois é só mais dor. Nada me basta aqui, contigo. Não estás a ver o que te digo?! Tu não percebes nada?! (Noutro tom, dirigindo-se para a porta, falando

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para si mesma) Ele agirá em meu nome e será santo. Prostrada, satisfarei os seus desejos muito antes de ele sentir que o roem. Entre ele e mim, cairão as fronteiras... as estrias do passado, as pequenas, as mortais hesitações. Voaremos acima das convenções, ignorando os preconceitos. Eu serei homem e ele será mulher e depois nenhum de nós será nada disso. A realidade deixará de existir, o reino da dor cessará. Nunca menosprezar o que pode estar para lá de uma curva. Tudo pode mesmo acontecer. Percebes, não percebes? Entre ele e mim, há algo ainda por criar. Um outro patamar. Qualquer coisa muito além da cumplicidade. Sai, escuro Cena VIII Escuro. Ouve-se a voz dele. Ele – Ela foi ter com o outro. O outro age. Eu falo. Eu não ajo. Eu não existo. O outro existe. O outro existe sempre, está por ali, lá fora, a pairar, em todo o lado. Lembra-me que falo... lembra-me que falo... o outro. Mas eu não sou o que falo. Serei o outro? Não. Não sou o outro. Mas conheço-o muito bem. Quero espelhos. Quero ver a minha figura furtiva passar numa montra. Rapidamente. A celebrar a morte de todos os reflexos, de todos os que um dia surgiram num espelho. Um extraordinário funeral!... A luz acende-se sobre ele. Posição fetal. Levanta-se aos poucos Invejo o olfacto frio, as cores suaves das paredes oficiais, a regularidade dos semáforos. Não serei isso. As águas quietas assustam-me. Ao fundo, se a

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Serra existisse, os sinos atormentariam a noite, numa pressa de incêndios. Os olhos querem-se arregalados. A-rre-ga-la-dos. Ainda assim, não temos mapa, não chegaremos a sítio nenhum. Não há ilhas encantadas ou sereias a proporcionar a morte. Só a voz, pastosa e persistente. Fico mudo, espantado, perante a ausência radical de explicações. Estarei condenado a ser um ponto absurdo, movente mas sem lugar para ir, navio que não deixas ancorar nesse porto que todos os dias me prometes? Julgas-me triste por ti, mas a tristeza é uma condição, um véu que nos tolda o olhar, uma culpa estranha que se carrega sem razão, um mal cinzento que nos é companheiro de viagem, o remorso persistente de um pecado por cometer. O homem triste tem uma consciência aguda da sua fraqueza. Se calhar, a tristeza não passa disso mesmo: de um momento de extrema consciência. A tristeza... talvez o único manto verdadeiramente nobre... talvez o que nos limpa um pouco do ridículo, essa peça de roupa com que, todos os dias, fazemos questão de nos cobrir. Vai regressando à posição inicial Ela saiu. À procura do jazz. Mas o que tem a música de tão importante, que a faz sair assim a meio da noite? Não lhe bastam as palavras. São frias. Não lhe bastam os orgasmos. São frios. Sabem a lodo, disse ela. Tudo que não te disse foi o amor. Deixei-o pendurado, do lado de fora, na corda da roupa, a secar. Nunca se intrometeu. Também não te disse quão pouco me interessam as palavras. Mantive-te atenta, quase dormente, embalada, liquefeita de prazer. Minha...

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Chega o dia e os seus exércitos vermelhos. É a hora de me retirar, de marcar o compasso da partida. Acordarei num outro país. Recolhe-se, escuro Cena IX Clube de Jazz, o músico sozinho, numa mesa; ela sentada no bar, de costas para ele. As vozes são off Músico – Pergunto-me se a loucura é contagiosa. Ela - Pergunto-me se a loucura é contagiosa. Músico – Ou nos faz ser mais determinados na nossa normalidade. Ela - Ou nos faz ser mais determinados na nossa normalidade. Músico – Eu nunca estive neste bar. O clube de jazz só existe enquanto ela estiver sentada ao balcão. Ela - Ele nunca esteve neste bar. O clube de jazz só existe enquanto eu estiver sentada ao balcão. Músico – E ela nunca se sentou naquele balcão. Ela – E eu nunca me sentei neste balcão. Músico – Não estou sequer convencido da minha existência. Os músicos de jazz morreram. O jazz está frio. Como pode alguém acreditar que um homem calado e forte ame à loucura uma mulher? Ela - Não estou sequer convencida da sua existência. Os músicos de jazz morreram. O jazz está frio. Como pode alguém acreditar que um homem calado e forte ame à loucura uma mulher? Músico – Poderia fazer tudo por ti se ao menos existisse. Se a minha matéria não fosse da qua-

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lidade dos acordes, dos solos, das progressões, das fugas. Ela - Poderias fazer tudo por mim se ao menos existisses. Se a tua matéria não fosse da qualidade dos acordes, dos solos, das progressões, das fugas. Músico – Se a mulher tombada à minha porta tivesse a duração de uma ária... Ela passou a noite nas escadas, à minha espera. Fumou cigarro atrás de cigarro, até formar uma poça de beatas e bâton. Eram essas as pistas da sua presença. Nenhuma música se ouvia, nenhum silêncio se escutava. Ela - Se a mulher tombada à sua porta tivesse a duração de uma ária... Passou a noite nas escadas, à espera dele. Fumou cigarro atrás de cigarro, até formar uma poça de beatas e bâton. Eram essas as pistas da sua presença. Nenhuma música se ouvia, nenhum silêncio se escutava. Músico – Fizeste-me triste, minha mãe. E pedes-me o impossível. Assim me elegeste homem de fronteira. Um atonal sem lugar, da viagem contrafeito, músico, dançarino, vagamundo. Estive em Buenos Aires e dei aulas de tango em Macau. Fui contabilista e senador. Arrebento de dor. Ela – Fiz-te triste, meu filho. E pedi-te o impossível. Assim te elegi homem de fronteira. Um atonal sem lugar, da viagem contrafeito, músico, dançarino, vagamundo. Estiveste em Buenos Aires e deste aulas de tango em Macau. Foste contabilista e senador. Arrebentaste de dor. Músico – Eu nunca fui nada, mãe. Não me deixaste. Só me pedias para não ser. E nem um personagem obedece sempre aos caprichos do seu criador. Quanto mais o teu amante. Ela - Tu nunca foste nada, filho. Não te deixei. Só te pedia para não seres. E nem um personagem obedece sempre aos caprichos do seu criador. Quanto mais o meu amante.

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Músico – Saía do escuro com as marcas do teu corpo nas minhas mãos. Nunca tive cabeça para mais. E tu agradecias. Eu era feliz. Nesse tempo... Contaram-me de um tempo que não passa. Suspenso no espaço, perfeitamente imóvel, jazz totalmente congelado. E uma chama, no centro desse cubo de gelo, a arder... a arder... Ela - Saías do escuro com as marcas do meu corpo nas tuas mãos. Nunca tiveste cabeça para mais. E eu agradecia. Tu eras feliz. Nesse tempo... Contaram-te de um tempo que não passa. Suspenso no espaço, perfeitamente imóvel, jazz totalmente congelado. E uma chama, no centro desse cubo de gelo, a arder... a arder... Músico – Mandas-me embora como se pressentisses a felicidade. Deixo-te cravos e rosas. Deixo-te o jazz. Deixo-te o que tu quiseres. Gostava de levar nas mãos as marcas do teu corpo mas não há escuro suficiente para isso. Sei que morrerei em breve, que não resistirei à tua pobre realidade. Ela – Mando-te embora como se pressentisse a felicidade. Deixas-me cravos e rosas. Deixas-me o jazz. Deixas-me o que eu quiser. Gostavas de levar nas mãos as marcas do meu corpo mas não há escuro suficiente para isso. Sabes que morrerás em breve, que não resistirás à minha pobre realidade. Cena X Sala, ela, jazz Ela - Lembro-me de uma aranha, inquilina do meu quarto, que fazia a teia no candeeiro de cabeceira. Costumava seguir com os olhos as suas geometrias. Alguns nós dessa teia brilhavam mais intensamente, eram as minhas estrelas. Olhava para elas, antes de adormecer. Esperava a hora de me mandarem para

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a cama, para ficar muito quieta, a olhar os movimentos da aranha e as volutas daquela teia, os pequenos nós a que chamava estrelas. Assim passou mais de uma semana. Uma noite, ao chegar ao meu quarto, acendi a luz do candeeiro e vi que a teia desaparecera. Fora dia de limpezas. E o último em que chorei por ter perdido alguma coisa. Ao longo do tempo, convenci-me a mim mesma que a aranha nunca existira. Não passara de um sonho. Batem à porta três vezes. Ela vai abrir. Ele entra coberto de sangue. Ela dá um passo atrás. Estacam, à frente um do outro. Ela – De onde vens nesse estado? Ele (cambaleia um pouco) – Não adivinhas? Ela – Tiveste um acidente? Ele – Um acidente... não podes chamar-lhe assim. Não. Não foi um acidente. Ela – Enervas-me! O que se passou? Ele – Matei o teu tio. Este é o seu sangue. Ela (afasta-se, tonta) – Mataste o meu tio? Ele – Sim, o irmão da tua mãe. Ela (aproximando-se, até lhe tocar) – E este é o seu sangue... Ele – O seu sangue... ainda quente... o sangue da nova e eterna aliança... Ela (roçando-se nele, acaricia-o, cheira-o) – Ainda quente... Como o fizeste? Conta-me... Ele – Com uma faca. Derramado por vós... Ela – Há pouco tempo? Ele – Há menos de dez minutos. Apanhei-o a entrar na escada. Eu já estava lá dentro, escondido a um canto. Agarrei-o por trás, pelos cabelos, e cor-

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tei-lhe a garganta. Não lhe cheguei a ver os olhos. Houve um enorme esguicho de sangue... Ela – Ele soube por que morria? Ele – Talvez... Quando o deitei no chão, disse-lhe o teu nome, mas ele parecia já ter partido. Sangrei-o como um porco. O medo que ele sentia ajudou o sangue a sair mais depressa. Sabes, a adrenalina tem um efeito... Ela (interrompendo)– Sei, meu amor. Sei tudo sobre os efeitos da adrenalina. Alguém te viu? Ele – Não. Já é muito tarde. Não havia ninguém na rua. Ela – E a faca? Ele – Deitei-a fora, depois de limpar as minhas impressões digitais. Ela – Mas conta-me, conta-me. Como foi que tudo se passou? Ele - O mais difícil não foi tomar a decisão. Foi mantê-la. A espera. Uma imensa espera. Nunca o tempo passou tão lentamente. Uma ideia insinuava-se, pouco a pouco : eu nunca mais seria o mesmo. Matar é uma fronteira; atravessada, nunca se voltará ao mesmo país. Esta ideia tão depressa me excitava como me enfraquecia. Trazia medo. Quase a ponto de de me fazer desistir. Como tu dirias, as palavras não ajudam. Precisei de as bloquear. Evoquei a paciência do predador, de músculos retesados, concentrado, pronto para se atirar à presa. Nenhuma piedade me assoberbou, a decisão estava tomada. Depois de ele aparecer, foi só agir, como se tudo estivesse realmente predeterminado. Não se pode parar, não se pode voltar atrás. Quando tudo acabou e dei por mim a limpar a faca no seu casaco... a razão serve qualquer selvajaria... Ela – Mas, logo tu... por que o mataste?

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Ele – Por ti. Porque te queria. Porque tu és minha. Serás minha. E de nenhum outro. Ela – Eu fui sempre tua... Eu... Ele – Não. Precisavas de outros porque não me conhecias completamente. Ela – E agora? Ele – Agora conheces. Sabes do que sou capaz. E eu também sei do que sou capaz. Sei de mim o que não sabia e do amor que cria monstros e é frio como o jazz. Ela – Sim, monstros... Mataste o porco do meu tio... Isso muda tudo. Não esperava que fosses tão longe... que tivesses tanto dentro de ti. Ele – Frio como o jazz. Nunca mais serei o mesmo para ti. Ela – Não. Ele – Farás amor comigo no escuro. Ela – Sim. Ele – E vou apertar-te com força. Ela – Sim. Ele - Serás um homem e eu serei uma mulher. Ela – Sim. Ele – Suportarás o jazz e as minhas palavras. Ela – Sim. Ele – Gostarás de mim como gostas de qualquer outro homem. Ela – Sim. Ele – Como gostas desse músico. Ela - Gostarei mais. Dedicar-te-ei a minha vida.

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Ele – Como? O que queres dizer? Ela – Tudo será para ti. Eu serei para ti, a minha vida será para ti. Casarei contigo... Ele – Sim. Ela - Iremos de lua-de-mel. Ele - Sim. Ela – Teremos um filho. Ele – Sim. Ela – Todos os dias nos encontraremos em casa depois do trabalho. Ele – Sim. Ela – Jogarás playstation. Ele – Sim. Ela – Passaremos férias em praias exóticas. Ele – Sim. Ela – Teremos fotografias na internet. Ele – Claro. Ela - Criticaremos os outros para nos sentirmos melhor. Ele – Sim. Ela – Visitaremos casais amigos nos fins-de-semana. Ele – Sim. Ela – Eventualmente, poderemos ter amantes. Ele – Sim. Ela – Ó meu amor, como vamos ser felizes! Ele – Sim, meu amor, vamos ser felizes para sempre! FIM

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As águas verdes do Pacífico (Monólogo) Personagem Débora, mulher casada, com uma filha Cena única Cozinha. Débora corta vegetais.

mar... a que mar chegará?... dizem que é ali a Cascais, mas eu não acredito... até a água suja tem direito de esperar um pouco mais... uma viagem maior... que o mundo não acaba em Cascais... da outra vez disse ao António que me ia embora para as águas verdes do Pacífico, como aquelas das revistas, mas ele pôs-se a gozar comigo e disse-me que eu era sempre a mesma coisa... sempre a sonhar demais... sonhas demais, disse ele, e por isso serás sempre infeliz. mas ele está enganado... há muito tempo que não sonho... nada de jeito... com as águas verdes só sonhei acordada... e isso é lá no Pacífico... muito longe... onde deve haver uma grande paz de ondas verdes... que ninguém diga que é fácil so-

... ontem disse ao meu marido que isto não podia ser assim... é demais... pensando bem: de menos... não me posso esquecer de comprar o bâton... na nova perfumaria... é demais!... ontem disse ao António... é demais, António, demais... – não a perfumaria que o António não percebe nada disso e não fosse eu e cheirava como um porco, um porco não, um boi – disse ao António que me vou embora até ao fim do mundo e, se preciso for, vou a pé! estava a lavar a loiça e a água demorava a escorrer, tive de usar o desentupidor, depois a água suja desaparecia no buraco... a desaparecer num remoinho... a água preta dos restos de café e gordura a ir para os canos e esgoto fora, até ao

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de rosa... eu não sonho acordada... há os que vão às águas verdes do pacífico e aparecem nas revistas... a minha fotografia também já apareceu num jornal... aí há vinte anos... quando eu era mesmo nova... havia quem acreditasse em mim... diziam que era linda, que tinha um corpo de princesa... belo como uma vírgula... e era verdade... eu era bonita... mas as fotografias não saíram grande coisa... mas as roupas também não ajudaram... malhas Marilu... malhas Marilu... quem já ouviu falar nas malhas Marilu?... para mais, hoje o nome está totalmente fora de moda... depois ainda tive um convite para uma sessão fotográfica ou um casting ou lá o que era mas eu fui lá com o António e ele viu o aspecto do prédio já não me deixou entrar disse que depois logo se via e se queria casar que não admitia não sei o quê... já nem o ouvia... queria casar com ele e o balcão do café prometido, entre Cascais e Lisboa, o sítio mais excitante do mundo, longe de Mirandela e da casa dos meus pais... quem sabe?... o senhor Pires levanta-se e o António ri-se ainda da última anedota de alentejanos... repetindo o final entredentes...

nhar acordada!... as horas mortas atrás do balcão a matutar nas minhas coisas. só que o fim é sempre o mesmo, nada parecido com a telenovela... alguém entra, pede uma cerveja e uma sandes mista e eu fico assim: também mista, entre o que estava a ruminar e a fome e a sede do senhor Pires que é homem de graçolas. e o António lá está, a levantar-se a custo e a levar a imperial do senhor Pires que conta a última anedota de alentejanos... eu corto o pão e barro... e barro... e barro de manteiga... há quem diga que abuso, mas barrar o pão é um dos meus prazeres, um daqueles que é só meu... e abro as caixas de plástico e tiro uma fatia de fiambre, outra de queijo... divido a sandes a meio e lá vai ela para cima do balcão... o António está distraído... ele está sempre distraído... parece aqueles bois que olham tanto para uma coisa que ela desaparece... o António é assim... olha para as coisas como se não as visse e olha tanto que irrita e fica assim, parado, embaciado como um dia de chuva noutro lugar qualquer... e eu volto para a revista... o professor disse na televisão que a gente devia ler, mas isso já eu sabia... o professor tinha uma gravata cor

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as águas verdes do pacífico

esparramada, e eu a preparar as sandes mistas do Pires... e eu que ainda sou... diabo, de que me serve isto? de que me serviu a carinha bonita, o corpo fino que os homens sempre comeram com aqueles olhos porcos dos homens?... e meteram-se comigo... meteram... tanta vez... mas para quê?... para levar com outro?... já me basta o boi do António (boi salvo seja, que nunca eu dei razões para que tal lhe chamem...), mas de que me serviu isto?.. de que me serviu ter sido tão apreciada se recusei todos os convites?...ah, confessa, não te apetecia mesmo... ainda se apetecesse... pois... havia aquele, o Espanhol, muito alto e delgado... passou no café três vezes... que belo homem... faríamos um lindo par... tinha uns olhos... batia as unhas sobre o balcão... suavemente para ninguém ouvir e sussurrava uma música lá da terra dele... eu ouvia aquela música e no fim sorria-lhe... depois... nunca mais voltou... o António, coitado do António... não é mau homem... é assim, o que para ali está... para ele está sempre tudo bem desde que esteja tudo bem para ele... o que não é difícil... a princípio contrariava-me... agora parece que já

como faz com quase tudo... repete entredentes... não sei se é um tique mas eu detesto e afinal o café não era em Cascais nem em Lisboa, e as únicas coisas que passam são o comboio e a faca da manteiga pelo pão e ninguém me vê que não seja para propostas que se estão mesmo a ver pró que é... sim... que ainda sou uma mulher atraente... e que se sabe arranjar... aliás, uma mulher com M grande tem que se saber arranjar e não andar para aí como uma desleixada... é o pior que pode haver numa mulher: ser desleixada... de que lhes vale o dinheiro... disse ao António: repara no carro novo da Gisela... o marido anda metido com os espanhóis, num negócio, e vê lá tu: carro novo e daqueles que aparecem na televisão, de último modelo... não pode ser coisa boa... quando muito é da companhia, e aquela Gisela, que nem parece ser minha irmã: nem uma sombrazinha que lhe componha os olhos ou um baton que lhe anime os lábios... uma matrafona!... ali repimpada no bem bom... o meu paizinho dizia: esta nunca há-de ser nada, mas tu... referia-se a mim... hás-de ir longe... mas agora olha: ela é que vai a Lourdes e à Serra Nevada e no último modelo, toda

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não me lembro do nome mas que tem águas verdes, muito verdes e transparentes... Também não lhe serviu de nada... a Gisela é que teve sorte!... não é porque seja melhor que eu ou mais trabalhadora... teve sorte do marido arranjar negócios com espanhóis e o meu António não passa desta cepa torta... no Natal lá tenho eu de levar com a Gisela e os presentes caros que o Rui lhe compra, mais os primos dele que não conheço de lado nenhum... e a mim calha-me a mala do costume... e mesmo assim já é um grande esforço para o meu António que gostaria de me dar melhor mas não pode... rica ... rica... andar em Cascais... também não é na Quinta da Marinha... coitada... ela é minha irmã e é com ela que me vejo... anda doente, coitada... eu por mim já tinha acabado com estas coisas do Natal que não passa de uma grande trabalheira e não me serve para nada... no dia seguinte sou eu que tenho de lavar tudo que a Gisela mete-se na bela viatura com os primos do Rui e ala que se faz tarde e vem aí o trabalho... e não fosse a minha Elisabete e era eu que limpava tudo sozinha... acabo com isto tudo... apanho o primeiro comboio que passar

só não me quer ouvir... não é que eu fale muito, falar de quê?... ainda me lembro dele, a dar-se ares importantes lá em Mirandela... estava de passagem... o tempo custava a passar naquela terra... ele tinha aquele bigode assim... vigoroso... estava na moda... que tinha vindo da guerra... falava da África, do calor... dos sargentos... das mulatas, mostrava-me a tatuagem... dizia: “Amor de mãe Bissau 1972”... a mim que nem conhecia Lisboa e um homem que ama a mãe não pode ser mau homem... disse-lhe a tudo que sim... ele nunca cortou o bigode... nem quando passou de moda... a Bibi Pessanha da Costa matou-se... vinha na revista: SUICÍDIO...tomou uns comprimidos... dizem que quem toma comprimidos não se quer mesmo matar... mas a Bibi tomou uns, daqueles para dormir, que mal caem no estômago, zás... é morte certa... são uns especiais... parece que destroem qualquer coisa no cérebro e pronto... não há nada a fazer... foi a criada que a descobriu, a espumar coitadinha... ainda lhe fizeram uma lavagem ao estômago... que horror!... mas já foi tarde demais... dizia na revista... ela tinha estado no Pacífico... naquela ilha de que

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as águas verdes do pacífico

ultimamente enjoa-me o cheiro dos croissants quentes... sinto-lhes a manteiga e quase vomito... na verdade, vomito para dentro como tenho andado a fazer há muito tempo e qualquer dia não sei se não sufoco num destes vómitos... estou cheia daquela água negra de café e gordura... a Paulinha pinta-se bem mas exagera um pouco... não sabe onde parar... isso não é para todas... saber fazer uma maquilhagem que realce mas não exagerada, assim a querer dar mesmo nas vistas... não é preciso... às vezes peço-lhe que me empreste o baton, que é de uma marca muito boa, e vou à casa de banho num instante... pinto os lábios e fico ali a fazer de puta ao espelho... se o António soubesse... mas não tem mal nenhum... com um baton daqueles as putas ficam com ar de senhoras, as senhoras também podem ficar com ar de putas que daí não virá mal ao mundo e sobretudo a mim fica-me especialmente bem... o meu baton não é tão bom... esvai-se ao longo do dia e fico com a boca descorada como se já estivesse morta e não desse por isso... morta e ainda não dei por isso... é isso, estou morta mas a servir o senhor Pires e a Paulinha e os outros que descem

e pronto!... pouca terra, pouca terra... mesmo que não vá para o fim do mundo... o fim do mundo é já ali!... não é lá nas Índias ou nas Chinas, como eles dizem... é já ali... o fim do mundo é onde uma mulher quiser... ouviram!... estou farta de levar com o comboio e não partir nele!... pouca terra, pouca terra... a cada comboio que apita, já sei que perdi mais uma oportunidade... mas a Paulinha acabava de entrar e ela gosta do seu croissant aquecido e a Paulinha é boa rapariga, apesar da vida que leva, e ajuda o irmãozito, que também não tem culpa... afinal, ela merece o pequeno almoço... o compal e o croissant aquecido, apesar de já ser meio-dia e ela ainda trazer nos olhos a noite passada... quem tem culpa sou eu... que não faço nada e não apanho de vez o comboio... uma vez disse ao António: qualquer dia apanho o comboio e nunca mais me vêem... mas quando saí de casa era de noite e a estação estava fechada e os comboios não passavam... não há direito que os comboios deixem de passar... a verdade é que voltei para trás... o António e a Elisabete andaram por todo o lado à minha procura... o croissant da Paulinha já está quente mas

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as águas verdes do pacífico

Soa falso.

na estação, ainda com o corpo vibrante do comboio, e me pedem: uma bica, faz favor... uma meia de leite bem quente... uma torrada com pouca manteiga... (que nervos!... eu gosto de pôr muita manteiga nas torradas!...) um cachorro e uma mini... uma bola de Berlim com creme... meu Deus... meu Deus... Euromilhões... Euromilhões... e sabia... tinha a certeza de que seria eu a sortuda...ficar assim tão gorda de rica que nem os vestidos da Gisela me serviriam... que horror... olha que brincadeira... jogava porque havia de receber... como se me tivessem feito uma promessa... e depois... nunca saiu nada... dei por mal empregue o dinheiro... e o creme... e o creme que... não vale a pena... não vou nunca comprar o creme nem fazer o peeling, o lifting, a lipo e todas essas porcarias... isso é tudo uma porcaria!... ficarei aqui sem o Euromilhões até porque já não jogo... deve-se ter esgotado a sorte... tenho de ver melhor no supermercado... Isto está muito mal feito.

a Elisabete saiu... como o Euromilhões... mas não foi a mim... Péssimo exemplo... péssimo exemplo... a maçã zangada no cesto desta merda de harmonia familiar... enervam-me... não têm culpa... eles não têm culpa... a culpa é minha... e não dá para fazer nada... é a sorte de cada um... o esgoto não vai dar a Cascais mas aqui a esta praia... o mundo afinal acaba aqui... depois posso chegar a casa e a pretexto de arranjar as unhas fechar-me uma hora na casa de banho... não falar com ninguém... a Elisabete está ao telefone... o António resmunga com o telejornal... deixá-los... deixá-los... as águas verdes do Pacífico devem ficar do outro lado deste mar tão negro e tão frio... lá os raios de sol brilham na água... os comboios não páram nunca de passar...o esgoto não... se calhar conseguia mesmo dormir... finalmente calmo e verde... não terá cheiro, não soprará vento... nenhuma voz... podia dormir... dormir.... dormir... dormir... dormir...

Trauteia uma canção em voga.

alberto bernardes é dramaturgo e recusa-se a fazer outra coisa que não seja escrever peças de teatro.

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Zuo Kaizi, Man-Woman, Lรกpis sobre papel

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A hipocrisia não se limita ao espanejar, mais ou menos conseguido, de uma máscara ou ao titubear de um papel. Não é uma arte, embora exija artistas. A hipocrisia partilha com a mentira um papel fulcral na coesão das sociedades. Existem momentos em que todos resolvem partilhar uma mentira e todos, hipocritamente, se dizem convencidos, sabendo que estão a mentir. O grande trunfo da hipocrisia consiste em ignorarmos sobre que verdade edificar.

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Christopher jones

Barbarian writing If the only writers are those who write with blood, this assertion is doubly true when we consider the writing of the exile. We can admit a primordial confusion between the writing and the writer, between the radical distance of the writer over the page (or the screen) and his loss in the labyrinth of the world. This is the confusion that today I will try to render more complex, for there is nothing more lacking in interest than the explanatory speech about writing. Exile writing or simply writing, the act of writing represents in itself the acquisition of a distance, of a strange and self provoked autism, which is a source of clarity over internal rhythms and, fore and foremost, over the unbearable voices that live within us. I may wish to invent worlds but, as they rise, those worlds invent me, emerging from a revolutionary region that exists inside of me but which is not me at all. That search institutes the exile and the departure. That is it: writing is the departure and, in a way, an endless search of a place whose virtual dimension goes far beyond the fragile barriers of consciousness. Red writing, cruelly spreading over nothingness, rolling as a horse rolls over the short grass which grows at the edge of cliffs, and returning to nothingness on the path of continuos oblivion, inefficient, all along the inexorable flux of each minute event, as if destiny would indeed exist.

Let us confess: destiny is the creation of a writer scared by a radical vision of solitude. Don’t fool yourselves by trying to find in my writing the picturesque or the confessional intimacy. Slowly, I have realized the need to experiment less and merely enjoy the world which offers itself without need for conquest. I return as often as I can to a place of assured pleasure, in imperfect circles, returning home, drenched, savouring the peace of the pilgrim who prepares to spend the night under the sky. To this movement I call the voyage. Voyage is an anesthetic by which the senses are purified and reduced to a death. Voyagers, or travelers if you will, know their own voice, and also know silence, because they communicate in foreign languages. English has had the destiny of becoming the most strange of all languages. Half way through the voyage we shall wipe our empty hands and our eyes, clouded by the dust of the world. Knowledge turns us into disbelievers in beauty and even in the possibility of knowledge. I aspire to dissolution in continuous, patient and meticulous crawling through bizarre roads and habits. At the same time, I know that travels in terra incognita are totally useless. Traveling induces an inexorable solitude and, as we all know, the solitary are taken for gods. Traveling leads to madness, schizophrenia, the invention

of characters to entertain strangers. To follow roads that we would otherwise refuse. Travel literature, explorers accounts, have always bored me - filled with its lies and fabulous descriptions. Perhaps for that reason I disdainfully browsed through the works of Sven Hedin, Bruce Chatwin and Victor Segalen. To whom, in fact, I like to return when there isn’t nothing better to do, just to take it as a reference and avoid repetition. Repetition of what? Repetition of this role of European exile who walks the world with an unconcealed smile of superiority, exhibiting an inexorably unsatisfied sexuality, a self destroying, disbeliever´s rationality. I could speak about myself, about the tension created in a barbarian day-to-day, about the threadbare values that I carry. Everything else would be just literature, of the kind foretold to die one hundred years ago by Nietzsche. I´ll wake up out of bed, in an unknown room, as if I was dead. I´ll come down to the street in a city that I don’t know, where no one shall speak my language. I´ll have no money or credit cards in my pocket. I´ll look for some identification but the wallet will have been lost. I shall not remember my name. I´ll be grateful if some one calls me, but who will recognize me here? And I said - Good day - to passing old lady.

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Durante o dia vejo do meu escritório a bandeira chinesa. Mas à noite, depois do crepúsculo, tenho mesmo à minha frente o Farol da Guia, com o seu ténue fio de luz a riscar, intermitentemente, a noite de Macau. Em certos momentos, parece nunca o tempo, aqui, ter passado, nada mudou, vou chegar à rua e apanhar um riquexó. O condutor tem os olhos estriados do ópio e levar-me-à por ruelas bafientas, de muros semi-desfeitos e paredes em decomposição. O cheiro a canja é ensurdecedor. Há uma cabaia que se esgueira numa porta e uma luz acende-se, ténue, vermelha, na calidez de um quarto sóbrio. Não sei se amo mais esta cidade ou os meus sonhos, ou sequer se elas (a cidade e a cabaia) existem mais além, fora da minha imaginação. João Corvo


As Ruínas de São Paulo não

“Nada perturba o meu pequeno mundo”

existem

Agrada-me na poesia chinesa a aparente simplicidade arrebatadora das suas frases. É claro que não sei se serão verdadeiramente simples do ponto de vista fonético e gramatical: tenho de me ater aos conceitos que apreendo das traduções. No caso do poeta Bai Juyi, da dinastia Tang, retiro a que serve de título a este texto. Numa primeira leitura parece quase pueril, mais que uma verdadeira afirmação quase a expressão de um desejo: a vontade de sossego, de paz, de quietude. E também quase dá vontade ao leitor de dizer algo ao poeta sobre a impossibilidade real de nada nos perturbar o mundo no qual estamos inseridos. Contudo, uma palavra altera significantemente uma interpretação mais descuidada: “pequeno”. Uma palavra que metamorfoseia o sentido completo da frase. Bai Juyi revela aqui um dos sinais mais fortes da cultura chinesa: a procura de um “pequeno mundo”, muito próprio, muito subtil mas poderoso, que protege do exterior, no interior do qual poderá existir equilíbrio e harmonia. Repare-se que nenhuma civilização como esta se preocupou tanto em barrar o caminho ao exterior. Nenhum outro império construiu uma tão Grande Muralha. Nenhuma cidade como as chinesas se debruçaram tanto sobre a importância das portas, desses limiares que erguem uma barreira para além da qual tudo se passa longe da vista dos outros. Não se tratará de um espaço de solidão, mas sim de um lugar familiar onde o indivíduo se vê rodeado do que ama e, sobretudo, respeita. A casa chinesa tradicional, como a do escritor Pu Songling continha uma espécie de microcosmos, no qual se destaca as grandes pedras nos pátios interiores e uma pequena floresta de bambus, no meio da qual pontifica uma mesa de granito. Trata-se, pois, de um universo extremamente privado, quase de reclusão, onde miniaturas de montanhas e riachos, de florestas e grutas, permitem a um espírito concentrado adivinhar o universo. A construção de um “pequeno mundo” faz parte integrante de uma essencialidade chinesa, de algum secretismo, que em todos os chineses conseguimos reconhecer. Não se trata de algo apenas estranho aos olhos de um estrangeiro. Faz é parte de um modo de ser tão próprio e milenar que nenhum outro chinês estranharia a existência, mas desconhece os percursos íntimos. Se pensarmos no nome chinês de Macau verificamos que esta cidade é também ela uma porta. Uma porta que se, por um lado, se abre à baía, por outro fecha o acesso ao interior do continente. A imagem das bonecas russas que se encaixam, infinitamente iguais, umas nas outras, transmuta-se na China numa infinitude de portas que permitem sempre o acesso ou o vedam a paisagens surpreendentemente diferentes. Se cada homem é em si mesmo um mistério, para si e para os outros, tal asserção é mais verdadeira na China, onde a contenção é apreendida na cultura, onde a defesa da privacidade quase uma religião. Finalmente, não será o horror de tirar a face ao outro, um respeito último, um não querer ver o que se oculta por detrás dessa porta com que saímos à rua todos os dias e nos garante a respeitabilidade? Não será a forma encontrada para garantir que “nada perturba o meu pequeno mundo”?

F

alemos do fim. Falemos, sobretudo, do fim da História e do deserto do real. Não o fim da História como o entendeu (parece que já não entende) Francis Fukyama, por esgotamento de alternativas ou realização utópica, mas do discurso histórico, afinal o grande órfão das metanarrativas, a quem teima recusar ainda a eutanásia. Falemos dessa impossibilidade actual de aprisionar o acontecimento numa qualquer rede de sentido ou mesmo num qualquer sentimento. Para entendermos a fragilidade do Real na era da sua disseminação, fractalização global e instantânea. Ou, se quisermos, ainda pré-tecnológicos, substituir os termos da proposição de Adorno: depois do 11 de Setembro, poderemos ainda escrever História? Não existe, contudo, essa necessidade do recurso a Hegel, cujos restos ainda vamos encontrando desfeitos por sobre as mesas de trabalho dos nossos mais edipianos intelectuais. Nada. Nada para além do Matrix, só mesmo o deserto do real. E Matrix em constante reversibilidade, mutação viral, jogo de aparências num universo onde a sedução se explana no arranjo floral dos simulacros, como na mesa japonesa. E onde, como entre os nipónicos, somos os espectadores embevecidos do “crepúsculo do cru” (Barthes). Tudo se revela com uma visita inesperada: Umberto Eco, nos insanos anos 90, de corpo gigante assente na mu-

António José Castro

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ralha da Fortaleza do Monte, e uma exclamação incontida, no momento em que pela primeira vez depara com as Ruínas de São Paulo: “mas... eis a pós-modernidade!”. Voilà. O pensador italiano e a sua intuição perante a fachada mais célebre da Ásia, na véspera da sua total perda de sentido. Talvez a sua última réstia se quedasse na representação do poder português em Macau, ele próprio um poder de fachada, efémero, sem conteúdo e sem continuidade institucional. Nunca a História demonstrou de forma tão banal a sua actual vacuidade como na transferência de soberania de Portugal para a China desta cidade que já foi do Nome de Deus. A cerimónia do último solstício do milénio foi a coroa da inutilidade do acontecimento, do seu despojamento, da sua inanidade. Por detrás da fachada de São Paulo não há nada. Eis um monumento sem conteúdo, pleno de vazio, sem outro sentido que não seja a sua erecção e reprodução. Repare-se como foi fácil reproduzir as Ruínas de São Paulo, quando da EXPO 98, exactamente porque o próprio original já não existe enquanto tal, esgotada que foi qualquer função que lhe fora atribuída. Hoje existe um fundo, um cenário, para as fotografias dos turistas, essa gente sem singularidade, manada acéfala que percorre os fluxos do entretenimento. Existem cópias e cópias das cópias, simulacros que percorrem o Matrix, decompondo-se e recompondo-se, rebatidos nas redes de consumo, a


carlos morais josé

como se a História e o próprio destino nunca tivessem existido. (Há uma estranha fixação das autoridades de Macau pela erecção. Para elas, o importante é que o património se mantenha de pé, independentemente das suas actuais funções. Esta obsessão fálica desvela um conceito ainda antigo de sexualidade, cujo fantasma se prende, antes de mais, com a importância da visibilidade, que é como quem diz

desse arranjo conjuntural de circunstâncias, valores, estruturas mutáveis, a que se dá o nome de face... Não perder face é manter, a todo o custo e visível, a erecção. Nem que isso denote a ausência de desejo. Viagra rex.) * Se Christo tivesse embrulhado as Ruínas de São Paulo, então talvez as pudéssemos ter visto. Mas isso não aconte-

ceu.Assim, existem as ruínas unicamente enquanto simulacro, visitado por simulacros, numa imensa e constante procissão de clones produzidos pelas agências de viagens, basicamente todos despojados da sua singularidade, como o próprio monumento estampado nas t-shirts, logro ou definitiva ausência de sentido. Nunca por aqui houve pudor. Nunca houve contenção em homenagem a esse subtil jogo

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das aparências que nos assegura um resto de humanidade. Hoje, depois da invasão dos marcianos de Las Vegas, Macau finalmente cede e transforma-se num verdadeiro entreposto para o futuro, miradouro excelso da abolição do sentido e da nulidade. Onde tudo continua a ser possível porque já não existe. As Ruínas de São Paulo não existem. Bem vindos ao deserto do real.


Zuo Kaizi, Way to nowhere, tĂŠcnica mista

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Zuo Kaizi, The last birds, tĂŠcnica mista

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Zuo Kaizi, Tree of death, tĂŠcnica mista

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Sozinho e manco, descrente e nu; pela latada, empoleirada, sorte vendada no forro velho do meu baú. * Seria árvore se despontasse e do meu corpo brotasse a seiva da inclusão e dela um mero chão onde espojar a vontade. Ter, outra vez!, piedade e daí partir “p’ró outro lado”. Falta um bocado para chegar. Mal comecei o caminho. — Estarei mesmo sozinho?

propositos de

trieste Pedro Magro

I Ando pelo caminho. É uma senda estreita sobre o mar. Caminho. Sozinho pelo caminho. Não há estrelas. Não há luar.

Lá em baixo, rente ao mar, não se morde a boca, não passeiam lábios, não se cravam dentes no corpo espojado da praia. Quando o passo não se ensaia de intimar o abismo, num fervor de catecismo, desço de novo à raia.

Existe o mar e nele arestas novas, cintilações. Serão mil, dezanove mil corações que ali se afogam. Neste mar rogam e perecem aos milhares. O que será nos outros, nos outros mares? O que se passa além? — Não faço ideia. Não posso ver: há um Sol que me encadeia.

Por onde irei? Por qual caminho? Rumo ao castelo? Rumo ao moinho?

Duíno espera-me... todo em ouro envolto...

Aumenta o branco. Não vejo nada, só o caminho, o tal que percorro sozinho.

Por que duvido, acidental? Tenho bornal, cajado e andadura... Nada me falta, tudo me dura.

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propositos de

trieste Falta um bocado... um bom pedaço do caminho. — Estarei mesmo sozinho?

por não ter sido tido nem achado. Agradecido me prostrarei ou assim me provarei.

Dois sábios passeariam, dado o braço, pela falésia. Sob o Sol (e em risco de amnésia), entre golfadas de riso e muitíssima falta de ar, eis dois homens a voar. Por ali e sobre o mar, eis dois homens a voar.

Antes me tomasses, como não tomaste ninguém. Deves ser só. Irritadiço de não ter mãe. Dormirás pouco, não o farás bem... Sobretudo quando acordas a desoras tortas e o mundo dorme um sono informe, a contar notas, ainda embevecido.

Topo de novo o caminho. E vou de novo sozinho sem companheiro provável. Não há Deus, não há aragem nesta estreita passagem. Sabe a pouco, a poucochinho, — Estarei mesmo sozinho?

Fico aqui. Chucho no dedo deste globo encardido. III Um mundo ergue-se em sombras mortas, corpos distendem-se entre as portas.

II Ofereces-me o calor e o dia, a ideia de entropia, uma estrofe de Baudelaire sobre o mar, uma ardência mortal de voltar; o riso das mulheres e a demência, como se pudesses, por uma mera inexistência, fazer de mim o perdão de tua serena ausência.

Será alguma coisa objectiva e primária, não um mero nada, a pairar sobre a diária? Para quê um saber ausente, a exercitar a mente, num plano de anuência sem pudor? Que deus trocista se enquistou e ufano se veleja neste meu mar interior... usufrui pleno das ondas, das angústias que destemo?

Ofereces-me a friagem e a noite, o poente, a santidade e o açoite, a ausência máscula da verdade. Muito, muito obrigado, pela idade,

Plana a ave... (gaivota ou demo)... e eu permaneço, sem graça, nas lajes gastas da praça...

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propositos de

trieste Por quê esta maldição, o relinchar do trovão, se ele não salva ou iliba e o tempo só castiga a casta imaginação?

IV Não te vejo. Há muito sol e muito frio também. Ao pensamento nada cai bem. Não te oiço. Cantam os pássaros e silvam os barcos também. Ao pensamento nada cai bem.

Não há perdão — nem disparate que mate — sob a lua ou sob o sol.

Não te cheiro. Sobram insectos e olores de cactos também. Ao pensamento nada cai bem.

Cinzento. Só há bemol. Nada de notas fixas, atropelos, parasitas entre pêlos, sequer menores ou majores licenciados.

Sem mim, meu querido amor: Quem alimentará os teus templos de voos e de exemplos? Quem gritará pelos teus pais no ondulado dos cais? Se vens ou não, é indiferente. Ouvir-te os passos, descompor-te, ou tão somente ignorar.

Existe o rumor dos dados, sobre um estranho lajedo. Vou a medo e sinto frio. Mas além do arrepio, reina a alucinação. Ó triste rouca prisão!

Fazer-te ver: não és o mar.

Quanto de ti eu não oiço? Quanto de ti eu não rio? Não é destino nem sorte: por certo só tenho a morte e nada mais me alucina. Incomparável ravina, sossegada, a conspirar.

V Para Duíno, pelo caminho, o Sol ofusca e remete à poeira e ao silêncio do homem que não promete. Vem do céu e pelo mar. Vem de um barco e do luar.

Lá em baixo, boceja o mar... Lá em baixo, boceja o mar... Lá em baixo, boceja o mar...

Num ápice de ouro, é agora definido, a traço mouro, o castelo.

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propositos de

trieste as obras!, as obras!, as obras!, o motor de explosão!

Alma de rio: a sonhar o zumbir frio do apressado cutelo.

Por favor, sossegue a afinação... Dou-vos razão...

Na matéria que... (lá no fundo, no fundo) é muito pouco regrada, a ausência das partículas gerou pécora sagrada...

Mas a matéria não sossega... Sossegue tudo! — ordeno, e nada se aquieta. As ordens não colhem frutos nesta matiné inquieta.

— Zombai por nós! (pedia mas de pouco lhe servia: a zombaria ecoava pela noite e pelo dia.

Afinal que me concentra, para lá da infinda divisão? Mais além o que me tenta e me comove azulado. Ficar turvo, olhar parado...

nunca pela nossa voz se ergueu o coro. foi sempre tarde, foi tarde; nunca pela nossa voz se ergueu o coro)

Mas como por dentro ficar? Não há livro, não há monte, não há ramo onde poisar.

VI Por demais conhecida é a insondável matéria as venosas vibrações, deletéria unicidade, aflições de cordas e de cordel, histórias de tigres, em bom papel, por demais conhecida é a insondável matéria.

(Sossegasse esta interminável afinação!.. Terminasse o mundo o seu lamento!... O desconchavo sonoro que sustento!...) Lamentos de gaivotas e de motores, amores perdidos, ruidosos desamores, as cordas, os metais, a percussão,

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Água ardente I. “La pluie tombe doucement sur la ville” (Rimbaud)

A chuva cai docemente sobre a cidade. Navegaremos inicialmente no barco de Rimbaud e pelas frases sem geografia ou nação. Mas somente até à foz porque o oceano unicamente permite a embriaguez do álcool e do sal. Procuraremos antes os tsunami de gente nas grandes avenidas asiáticas, os fios de povo serpenteando por bairros de cidades no Levante, as pedrarias nocturnas dos arranha-céus. Não importa em que cidade do mundo, a chuva cairá docemente e em alguém desocupado ressoará, não importa em que língua, a mesma frase, a visão e o tremor que ela transporta, igualmente espantado pela dimensão de tamanha simplicidade.

II. A escrita da água

Por quê a água? Pela mesma razão de Anaximandro ou dos homens do Tao. Ou dos astrónomos que assistem à sua permanência, à medida que perscrutam o universo. Primeira forma complexa, primeira também na sua extrema simplicidade química, estranha na solidificação. Mais que as montanhas ou que os desertos, as planícies ou as praias, mais que os meros sedimentos de terra ou que as tonalidades intangíveis do céu, é o universo interdito da água, aquele onde não podemos habitar, o primeiro responsável pela composição de sítios e atitudes. A água brota da terra e derrama-se do céu. Está oculta nos interstícios das pedras, no bafo dos homens, nas carícias das mulheres. Humedece o mundo e incita a vida; a sua inocência incolor, a paciência sombria, servem aos sábios de exemplo para proscrir as ambições; outros preferem a sua unidade e nela elaboram uma metáfora de poder. Sobre a água teceram mundos os Antigos mas nela esqueciam o pudor e a família.

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As cidades ergueram-se em função da geografia da água; o seu carácter e o dos seus habitantes moldaram-se ao modo de existir do líquido , copiando-lhe a ductiblidade. Rios majestosos ou truculentos, ribeiras plácidas ou atrevidas, meros oásis ou grandes lagos, assistiram à chegada dos humanos, à sua fixação e crescimento. E dessas diferentes relações decorre algo do carácter único de cada cidade.

III. Um fio de suor

Nesta cidade a chuva lambe gulosamente o asfalto, o empedrado, as esquinas angulosas; devora as paredes rasas dos grandes prédios. Os olhos dos homens, refractários, por detrás de grandes janelas de vidro, usufruindo da tormenta; aparentemente protegidos mas sufocados por uma ideia vaga de sublime que teima em lhes queimar o peito e a garganta. Calam-se as conversas de ocasião dos passeios. Nos rastos da chuva que deslizam pelos vidros dos automóveis sorriem sorrateiros os néons, ofuscando condutores embevecidos de escovas negras, pendulares, rentes aos olhos, a estrada transformada num sonho apático. A água amolece as almas e afasta o mundo. Toda a água converge para um único rio. Seguidos e honrados serão os seus caminhos. Chovia. As gotas grossas amavam o chão e os zincos. Choverão três dias, sem que ocorra o Dilúvio e se altere o curso das coisas. Fiel à neblina e à água, suspeitando da existência de prados verdes e felizes, quedar-me-ei encolhido à porta de uma casa qualquer, aproveitando o telheiro, enquanto espero o fim da chuva. Detesto sentir as roupas molhadas mesmo quando faz calor. Trepida no zinco quente e depois escorre, mesmo à frente dos meus olhos, esfumando a rua, os chapéus que passam. A chuva suaviza a urbe, dulcifica os metais. “Estranha... a condição do estrangeiro...”, pensei... enquanto sentia um fio de suor, a descer-me, ardente pelo pescoço.

António José Castro

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O império do fim — Hypocrite lecteur, — mon sem-

blable, — mon frère! Charles Baudelaire

I Foi no dia 6 de Novembro de 1999 que o caso de João Junqueiro apareceu pela primeira vez nos jornais portugueses de Macau, sob forma de breve: “Espionagem a Oriente - Um português residente em Macau fugiu ontem do território, levando consigo documentos secretos da administração portuguesa, relacionados com o processo de transição de soberania, relevou fonte oficial. João Junqueiro, 31 anos, consultor, terá apanhado um avião em Hong Kong para destino incerto. A mesma fonte assegurou que ‘o incidente em nada afectará as excelentes relações que Portugal mantém com a República Popular da China, nem o decorrer normal da cerimónia de transferência de soberania, no próximo dia 20 de Dezembro de 1999’. Hoje, o governo português encetou diligências junto da Interpol, no sentido da captura do alegado espião, foi ainda revelado.” Depois deste pequeno mas saboroso aperitivo, que deixava adivinhar uma suculenta história, nada mais apimentou a questão. Quer a imprensa chinesa de Macau (remetida desde o início a um perplexo silêncio), quer os jornais portugueses, entenderam ter o primeiro assomo ter tido origem mais num acto irreflectido de um assessor precipitado do que numa atitude de Estado, reflectida e ponderada. Afinal, um caso de espionagem, de traição, num momento tão delicado, em nada ajudava o normal desenrolar dos acontecimentos, pretendido pelos políticos envolvidos, portugue-

ses ou chineses. Por toda a cidade, na primeira semana, o assunto gerou grande entusiasmo. Que documentos teria levado João Junqueiro? Quem seriam os seu patrões? Teria mudado de identidade? Quanto ganhara? Estaria numa ilha a gozar o dinheiro? A exiguidade de factos dava pouco material à imaginação. As pessoas circulavam entre estas questões, sem pistas para as respostas. Depois as atenções voltaram-se para o julgamento de um gangster poderoso e o interesse esvaneceu-se. O assunto acabou por ser prudentemente esquecido. Se a Interpol estava, de facto, atrás de João Junqueiro, que documentos foram roubados, a quem os vendera, ninguém veio a terreiro esclarecer. Estranhamente distraídos, os jornalistas também não se lembravam de perguntar, nas esporádicas conferências de imprensa promovidas

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pela administração. Instalou-se um silêncio quase cúmplice sobre tão intrincado tema. Nalguns círculos, aos quais também não eram alheios os homens da imprensa, entrou-se por outro género de considerações: A quem poderiam interessar documentos do governo de Macau? Não certamente aos chineses: era voz corrente que estes estendiam longe os seus tentáculos na máquina administrativa, tendo acesso a praticamente todos os papéis que descansavam sobre a secretária do governador. Quanto mais simples documentos esquecidos por secretarias irrelevantes... Seria um caso de espionagem industrial? Mas de que indústria, se não havia conhecimento de existirem segredos industriais bem guardados que não fossem os da contrafacção? Pouco depois corria a notícia, não confirmada, de que João Junqueiro fora assassinado, algures no mundo, num epílogo do género “o crime não compensa”. E, lentamente, a memória daquele rapaz ia-se esbatendo, até porque a cidade se animava com os preparativos da festa da transferência de soberania. Por todo o lado se viam os visitantes da ocasião, caras conhecidas e desconhecidas que pairavam agora sobre Macau para respirar o perfume dos últimos dias, acrescentando alguma novidade e frenesim às tertúlias da cidade. O caso parecia definitivamente enterrado. Mas por mais que se pretenda apagar da memória certos factos, por mais que acreditemos estar livres de actos esquecidos, o passado é uma espécie de bela adormecida: basta um beijo ou um deslize para se revelar inesperadamente acordado no presente. Entretanto, chegava o dia 20 de Dezembro de 1999. No pequeno en-


clave de Macau, no Mar do Sul da China, foz do Rio das Pérolas, eram arriadas as cinco quinas e içadas as cinco estrelas. Era suposto ser o começo de uma nova era. II Chamo-me Raul Sempiterno, nasci em Freixo de Espada-à-Cinta, nordeste de Portugal. Escrevo esta espécie de confissão, a que preferia prudentemente chamar de relato, para esclarecer as autoridades ou qualquer interessado sobre a verdade dos factos que deram origem à minha detenção. Reafirmarei, aqui e sempre, a minha inocência. O inspector Lúcio Marques foi extremamente gentil ao conceder-me esta oportunidade (lápis e algum papel) para explanar por escrito as minhas razões, até porque a minha actual situação me impossibilita de estabelecer a minha inocência por outra via. Aliás, a montanha de equívocos que se ergueu na instrução do meu processo é de tal forma monstruosa que não a posso considerar criada por humanos: deriva certamente da imaginação de um ser divino e entediado, com algo de muito forte contra mim. Na cela, as longas horas de solidão exerceram-me na memória um estranho efeito: fico no escuro, a observar um interminável desfile de situações, frases soltas, pessoas, citações, provérbios, fórmulas químicas, sistemas de saber... Percebo agora os acontecimentos e revejo cada detalhe com uma clareza inexistente no momento em que os vivi. Revivo distintamente cada momento, sinto-os como pequenas queimaduras inscritas na carne e sobrevêm o remorso e a vergonha, não de crimes cometidos mas da minha incapacidade de prever o perigo, desta cegueira de pássaro hipnotizado, saltitando tolamente pelo ramo em direcção às entranhas da serpente. Neste princípio é preciso revelar a quem ler estas linhas que o seu

autor é um homem considerado, pela extensa maioria dos seus conhecidos e contemporâneos, normal e ajustado às exigências do seu tempo. Apesar de alguns hábitos solitários e de preferir aos humanos a companhia das pedras, nunca fui considerado um excêntrico, um esquisito, mas unicamente um indivíduo com interesses particulares, decorrentes óbvios da minha profissão de geólogo. Esta levou-me para países distantes do meu. Mal saíra da universidade, um artigo de ocasião, publicado numa revista da especialidade, despertou a atenção de uma pequena mas respeitável companhia de consultores nas área dos petróleos. A minha disponibilidade fez o resto. Assim gastei os meus últimos vinte anos: por desertos ressequidos, na solidão das plataformas marítimas, encerrado em laboratórios assépticos, por cidades de nomes impronunciáveis. III Conheci João Junqueiro em Macau, pouco antes da sua espectacular fuga, noticiada nos jornais. À época analisava amostras para uma empresa inglesa e a necessidade de resultados urgentes trouxeram-me do Pacífico Sul a Hong Kong. Gostei da vida imoderada da ex-colónia britânica. Outras transacções obrigaram-me a atravessar o Rio das Pérolas e desembarcar em Macau, o que — algo estranhamente, diga-se — não me tinha ainda passado pela cabeça. Só no jactoplanador, ao ouvir a voz amável dos microfones, tive a plena consciência de que ia desembarcar numa cidade onde residiam portugueses há quase quinhentos anos. Talvez por isso tenha decidido prolongar a minha estadia. Visitei tudo e repeti muitos lugares, muitas ruas, surpreendido pela arquitectura dúbia e a indiferença das gentes. Terei de vos contar as impressões, ainda que primárias e superficiais,

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que a cidade me causou. Isto porque serão também fonte de apreciação dos meus actos e motivações. Através desta leitura rápida, poder-me-ão julgar o ânimo, como se tornará também clara uma total ausência de expectativas ou ambições. De Macau, sabia-a cidade portuguesa, fundada como entreposto por comerciantes e aventureiros loucos do século XVI, que a impiedade tinha expulso das colónias relativamente mais acolhedoras da Índia portuguesa. Só no século XIX, depois do advento de Hong Kong, um governador sem um braço — e que era servido à mesa por um macaco de libré trazido do Brasil — proclamara colónia o pequeno enclave, expulsando as alfândegas chinesas e humilhando os mandarins. Por estes actos insanos, Ferreira do Amaral perdeu a cabeça, no sentido literal do termo. Reza a lenda que o seu crânio terá sido exibido em Cantão pelos dois assassinos. Algures na zona norte de Macau, o turista menos apressado pode visitar uma rocha junto à qual Amaral foi derrubado do seu corcel branco e esfaqueado sem piedade. Diz-se que teria mandado remover um cemitério para construir uma estrada e que os chineses não lhe teriam perdoado esta afronta aos antepassados. Esta é a versão geralmente aceite por académicos e historiadores dos mais variados calibres. Mas também se comenta, em círculos mais doutos, que a verdadeira razão não terá passado por ofensas a mortos mas a vivos. É sabido que o governador inspirava nas mulheres um fervor místico e sexual, com a sua pose romântica de militar maneta, suportada por um garboso uniforme de traça napoleónica. Há quem suspeite ter sido um marido enganado quem, aproveitando a conjuntura favorável, pagou aos dois assassinos para destruírem aquele que lhe tinha destruído a honra. Outra versão — que me sinto inclinado a subscrever — atribui ao


ópio o móbil do crime. Dois viciados que pela manhã saíam vacilantes de uma fumerie, sem dinheiro para manter os sonhos, terão atacado o primeiro cavaleiro que lhes surgiu à frente, sem saberem de quem se tratava, simplesmente para o aliviarem de alguns trocados e de novo se refugiarem no conforto das esteiras de palha entrançada, ao som da ópera de Cantão, amaciada pelas sombras furtivas do teatro. Sabia também que ainda este ano decorreria a transferência de soberania, algo que Portugal propusera desde 1975 mas que a China só no final do milénio, exactamente no último solstício, entendera conveniente aceitar. Para além dos casinos, a cidade é um entrançado de ruelas buliçosas, sem ordem e de asseio irregular, iluminadas pelos letreiros luminosos de um comércio baço, repreensível, e pelas lanternas vermelhas de esparsos altares taoistas. Durante o dia, as pessoas arrastam-se sob uma estranha luz coada por nuvens cinzentas e baixas, no meio de uma humidade sufocante. À noite, o céu avermelha e, sem que a temperatura desça, o ar torna-se um pouco mais respirável. É então quase agradável contemplar o rio e uma vírgula de lua, entrever entre os prédios as duas pontes que ligam a cidade à ilha da Taipa e a um aeroporto plantado sobre o mar. Agradava-me pois passear, a alma apodrecida de desejos simples mas extremamente enervantes. Contraditoriamente, o ócio também me proporcionava momentos de grande pasmo, ao fazer-me sentir nada ter realmente de interessante para fazer, nem mesmo a justificação racional da inutilidade de qualquer acção. Ficava longos momentos sentado, com o olhar perdido dentro de memórias que me remetiam a outras cidades, outras paisagens. Assim faria, a partir de agora, em qualquer outro sítio. Como se esta cidade me instilasse um veneno:

sentar-me-ia para fantasiar sobre um hipotético passeio em Macau. Estava sem estar e, prevendo que nunca partiria, sorria interiormente como se tivesse obtido a verdadeira e mais desejada condição: a certeza de estar em lugar nenhum, a capacidade instantânea de anular a viagem. IV Em Macau tudo pode suceder, porque surpreendentemente o mundo recusa-se a ficar suspenso e as coisas acabam mesmo por acontecer, como em qualquer outro lugar. Mas, tolhidos por um céu baixo e persistentemente nublado, mergulhados num calor ensurdecedor e numa humidade irrespirável, o mais esfuziante acontecimento, detalhe, observação, dedução, assemelham-se ao devaneio, por acção de um esmaecido poder de entorpecimento e cada um respira, afinal, sob a tirania do sonho. A sua natureza dúctil permite então ao pensamento evoluir num entrançado de sinestesias. A este clima não é alheia a existência do jogo. Ostensivo ou subterrâneo, assim se sente a sua omnipresença. Nas ruas traseiras, já longe das luzes potentes dos casinos, escuta-se o marulhar incessante das pedras de mahjong. Vem de bairros densos, de ruas esconsas, becos inesperados e travessas sem sentido. Os jogadores de Hong Kong acotovelam-se em filas na fronteira para depois encherem os casinos com uma febre moderada nos olhos. Em Macau não há glamour, nem chic, simplesmente se joga sem outra ostentação que não seja a do dinheiro. A roleta gira e os dados desocultam os seus números, as cartas saem de caixas onde reside o segredo de não existir nenhum segredo, que não seja o da probabilidade de tudo perder, de tudo dar, de tudo arriscar, só para ver mais uma volta da roleta, mais uma face impassível de um dado ou a figura cruel de uma carta de jogar.

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É impossível falar sobre o jogo em Macau sem prestar uma menção especial ao seu marco incontornável: o Casino Lisboa. A começar pela sua arquitectura., pelo aspecto exterior. Logo me pareceu um prédio estranho, um dos mais estranhos do mundo. Aparentemente, trata-se de uma gaiola eriçada; com uma grande boca em baixo, encimada por um letreiro luminoso, a servir de porta principal. O edifício ocupa o lugar da cabeça num dorso de dragão (a ponte dromedário que nele desemboca). Por cima do casino, paira o hotel. Depois, num dos blocos inferiores, repara-se numa cúpula circular, cujo desenho inevitavelmente lembra um disco voador. Dizem que é a sala de controlo. Que controla, via vídeo, este e todos os outros casinos, espalhados pela cidade. Numa parede gigantesca, lateral, vejo impressas, enormes, as armas da cidade de Lisboa: a caravela e os dois corvos, negros e baloiçantes. Pouco ultrapassará em estranheza o dourado baço deste edifício, a permanente nuvem sobre o seu topo. Por ela há quem adivinhe o clima, a meteorologia do dia seguinte. Outros prevêem os caprichos da sorte. Raras arquitecturas entretêm assim o olhar, estabelecendo simultaneamente um estado singular da sensibilidade: um sentido outro para a indecisão. O Casino Lisboa é uma grande gruta. De novo se sobrepõem as decorações sazonais, a estética que se espera encontrar em cidades insanas, mas sob o dourado pressente-se já o fervilhar das gentes em redor das mesas, das máquinas, parados à volta de salas privadas, pelos corredores, o cheiro esfumado de comida e pó-de-arroz. O interior do casino é a grande máquina do esquecimento, trabalhando para anular a passagem do tempo. Por isso provoca vertigens a sua estrutura de labirinto, a proliferação de bens de consumo, de bares, de restaurantes, de mulheres, peças de arte, joalharias, kitsch refulgen-


te e desmesurado, de acontecimentos constantes. Os elevadores deslizam até aos átrios e corredores bafientos do hotel, desvendando, na cumplicidade súbita da iluminação cabisbaixa, as portas estreitas dos quartos. As escadas de incêndio misturam-se umas nas outras, sugerem atalhos que vão dar a novos corredores, com portas de quartos e de escadas de incêndio. A alguém perdido nesta arquitectura babilónica basta descer, como nos labirintos clássicos bastava cortar à esquerda, para se escutar o barulho das salas do casino, o tilintar das máquinas de moedas. É seguir esse som. Acaba-se sempre por dar com uma entrada, vigiada por seguranças e detectores de metais, que assegura o nosso regresso a alguma realidade. A um intenso mar de indiferença. V Foi também o olhar indiferente de João Junqueiro que me fez reparar nele. Ou talvez um brilho estrelar, muito ténue, longinquamente cintilando no fundo das suas pupilas embaciadas. Vou tentar descrever o mais fielmente possível como conheci João Junqueiro e travámos conhecimento. Bem sei que este é um dos pontos fortes da acusação. Não duvido, no entanto, da boa fé dos magistrados; acredito ser sua intenção fazer emergir a verdade. Por isso a pretendo contar, não omitindo nenhum detalhe que a memória me faculte. Devo confessar (e não interpretem mal esta confissão): um dos aspectos mais penosos de todo este processo foi o facto de ter perante mim pessoas de bem que duvidavam da minha honestidade. Ainda pior: esta desconfiança desconcertou-me, emprestou um ar vacilante aos meus argumentos, transformou álibis seguros em episódios sem relevância, nos quais se leu mais serem invenções de um culpado que o relato de um inocen-

te, sobretudo por estar ausente, no meu modo titubeante de contar, a descontracção habitual dos que nada têm para esconder; nos olhos dos magistrados bailou sempre um sorriso de incredulidade que quase me tentava dar-lhes razão (pois não a têm eles normalmente?) e me faz sentir culpado; por cansaço ou profundo tédio, para me ver livre de tudo isto, pensava em assinar uma qualquer confissão. Repeti milhares de vezes durante os amáveis mas persistentes interrogatórios, conduzidos pelo inspector Lúcio Marques, nunca ter conhecido ou contactado João Junqueiro antes de desembarcar em Macau. Aliás, não pretendo aqui ironizar. Nos gabinetes da Polícia Judiciária nem sequer existiu alguma vez o chamado “mau”, o polícia ameaçador e violento. Pelo contrário, fui sempre tratado com a máxima consideração. Por exemplo: ofereciam-me assiduamente café, uísque, por vezes biscoitos. Bom... a verdade é mesmo esta: travei conhecimento com esse personagem do modo que passo a relatar. No Casino Lisboa, a sua figura contrastava com a dos outros jogadores, chineses na sua imensa maioria. Nem alto nem baixo, a pose era curvada como se pretendesse não ser visto ou estivesse prestes a desaparecer. Devia rondar os trinta anos, mas os seus gestos pertenciam ainda a um estudante pretensioso que deixou há uma semana a faculdade. Vestia uma camisa branca e calças indefiníveis. Não jogava. Seguia os acontecimentos do cussec, um jogo de três dados. Aproximei-me e, com toda a naturalidade, perguntei: — Não joga? Ele voltou-se e respondeu como se esperasse pela minha presença e se fossemos dois velhos conhecidos e cúmplices, num passeio pelo casino. — Não. Gosto de ver a sequência. — Qual sequência? João parecia agora encher-se de paciência.

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— Neste jogo existem três dados. Se a sua soma é igual ou superior a 11, chamam-lhe o Grande; se é inferior, chamam-lhe Pequeno. Quem acerta ganha o montante que apostou. Calava-se. Pensei que o aborrecia. Isso não me espantava: até à minha chegada ele era o único ocidental naquela sala; agora não só alguém lhe dirigia a palavra como ainda lhe fazia perguntas de principiante. Resolvi afastar-me mas não tive tempo para isso. Ele continuava: — Refiro-me à sequência dos números que vão saindo e às consequentes apostas dos jogadores. Sabe que há quem acredite numa certa regularidade e faça muitas contas; outros confiam num palpite. Agora curvava-se um pouco na minha direcção, como se me fosse confidenciar um segredo ou alguma informação importante. — Num ou no outro caso, é tudo uma questão de sorte. Endireitou-se e perguntou-me devagar (as sílabas escapavam-se-lhe dos lábios lentamente, suspiradas): — E você, acredita na sorte? Olhei para ele, desconfiado, sem saber se o havia de levar a sério. Não era a primeira vez que no Oriente alguém tentava gozar com a minha alienígena ignorância. Mas preferia dar-lhe o benefício da dúvida. — Não, não acredito — e fiquei à espera. Ele sussurrou, meio distraído: — O que eu gosto mesmo é de ver confirmado o predomínio do caos e a derrota das leis. Decididamente gostava deste rapaz. Estendi-lhe a mão. — Chamo-me Raul Sempiterno. — E é? — riu-se. — O meu nome é João. João Junqueiro. Desculpe a fraca piada. — Não faz mal. Já estou habituado. O jogo prosseguia; os croupiers lestos e indiferentes aos números, atentos às fichas coloridas. Naquela mesa saía continuamente o Grande, para gáudio de uma menina de unhas longas.


— João, parece fácil ganhar aqui. Afinal, existem cinquenta por cento de hipóteses de acertar. Ele encolheu os ombros e respondeu: — É verdade. O problema é não saber quando apostar; e a tentação, alimentada pelos palpites certos, de aumentar a parada. Repare na espiral de puras coincidências, que gostamos de interpretar como regularidades: imagine que joga e perde; na vez seguinte aposta o dobro, se ganhar recupera o que perdeu, se voltar a perder, terá de voltar apostar o dobro e assim sucessivamente, dependendo do seu capital inicial a capacidade de duplicar sempre a aposta. Quantas vezes pode um jogador perder de seguida num jogo em que há cinquenta por cento de hipóteses de acertar? Infinitas, acredite. — Esse método até parece eficaz... — atrevi-me a comentar. — A verdade é que não resulta e só utilizado por principiantes. Já assisti ao Grande sair dezasseis vezes. A partir da nona vez é óbvia a tentação de apostar uma soma astronómica no Pequeno. A lei das probabilidades quase grita que sairá na próxima. Mas não. A lei engana-se e os jogadores abandonam sobre a mesa montes de fichas impressionantes. Outros se aproximam, agora que a probabilidade vai aumentando até ser quase uma certeza. E também perdem. Quanto vezes poderá a sorte ludibriar a matemática? Esperou um momento, como se recuperasse o fôlego. Na mesa, o Grande voltava a sair pela sexta vez consecutiva. Um sorriso indisfarçável decorou-lhe os lábios e concluiu: — A sorte fez aparecer a vida, a matemática escreveu um mundo morto. VI Os olhos de João Junqueiro voltavam à mesa com uma fixidez esquisita, assim que a conversa se esfumava. Olhei à volta, sentindo que conversáramos como quem vai lá

fora fumar um cigarro, exercendo um vício breve. Na mesa contígua, a não mais de três metros, algo de excitante acontecera: a sala vibrava de exclamações dissonantes. Alguém ganhara, outros perderam. Muito, em qualquer dos casos. Ele levantou os olhos, mais por sentir uma mudança na minha atenção, do que por verdadeiramente ter reparado no que lhe devia ser familiar. Sorriu. — Existe aqui a possibilidade de um milagre, de uma revelação qualquer. Há mais emoções, mais energias, à volta de uma mesa de jogo do que num altar: concentração, decisão, tristeza, euforia, depressão. Se lhe acrescentar a beleza da contenção e o alheamento de todo outro e qualquer interesse, compreende que seja o espaço mais sacralizado que conheço. O meu conhecimento do jogo era suficientemente limitado. Entrara ali sem nenhum interesse especial, que não fosse um passeio pelo casino mais mítico do Extremo Oriente. — Vem aqui muitas vezes? — perguntei-lhe. — Lembro-me do casino quando passo à porta. De vez em quando entro, quase sempre que não tenho mais nada para fazer. Quase sempre… é como ir ao templo ou à igreja. — Não tem emprego?… — Tenho. Mas deixa-me muito tempo livre. Continuámos a nossa conversa pelos corredores do casino. Falámos de quase tudo o que não tem importância. Uma dessas conversas em que se aprecia o tom e as referências do outro, sem nada se dizer de comprometedor. Ficou a saber do meu emprego e do que fazia em Macau. Pelos corredores, abundava o mármore, o ar condicionado e o mau gosto. Chegados à porta, disparou: — Gostaria de ficar com o seu contacto. Estendi-lhe um cartão e despedimo-nos. Pensei ser essa a última vez que veria tal personagem. É muito

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fácil encontrar nesta cidade seres enigmáticos que, procurando muito saber sobre o estrangeiro, pouco ou nada dizem de si próprios. VII Os meus negócios concluíram-se com a celeridade esperada. Aliás, tudo fora combinado anteriormente e de mim só precisavam de uma assinatura. Nada mais tinha a fazer em Macau e ansiava já pelo estilo upgraded do meu quotidiano em Hong Kong. Os passeios enfastiavam-me, sobretudo por causa de um certo cheiro, a princípio dissipado mas depois a intrometer-se devagar na pele. As pessoas que conhecera por intermédio da firma insistiam em proporcionar-me “um bom bocado”, à noite, por saunas e cabarés. Infelizmente para as suas expectativas, eu não me deslumbrara com narrativas de banhos de espuma e alguma microscopia do prazer. Em geral, recusava acompanhá-los depois de jantar, quase exigindo que me deixassem no hotel a pretexto de imaginários telefonemas inadiáveis. Quase de seguida saía sozinho, calcorreando trajectos já habituais que, inevitavelmente, desaguavam no Casino Lisboa. Depois daquela noite não deixei de o visitar com uma regularidade excessiva. Felizmente não me sentia verdadeiramente atraído pelo jogo, talvez porque tivesse consciência das minhas limitações como jogador e não quisesse fazer a figura do pato que para ali vai largar dinheiro. Não tanto por razões financeiras mas porque não era esse o papel que me via ali a desempenhar. Preferia percorrer os corredores lentamente, ouvindo as propostas sussurradas de raparigas recém-chegadas do outro lado da fronteira, observando os peixes nos grandes aquários dos restaurantes, circulando pelas salas, por vezes estacionando perto das mesas de bacará. Para mim Macau começava a reduzir-se ao Casino, onde sob a protecção frígida do ar


condicionado, fugia ao forno húmido do exterior. Muitas noites por aí andei até de madrugada, assistindo ao vaivém de pessoas e de sonhos, beneficiando alegre da extinção das horas. Curiosamente, não voltei a encontrar João Junqueiro. Para dizer a verdade, pensava nesse rapaz estranho cada vez que franqueava as portas do casino, esperando ver a sua figura um pouco curvada perto de uma qualquer mesa. Mas tal não aconteceu. Finalmente, depois de uma madrugada demasiado intensa, decidi partir. Comprei bilhete para depois de jantar, pretendendo usufruir por uma última vez da boa mesa e dos vinhos portugueses. Na recepção do hotel esperava-me uma mensagem telegráfica: “Pouca sorte. Às sete e meia no Hotel Bela Vista. Venha, por favor. Preciso da sua ajuda. Destrua este bilhete.” Assinado: João Junqueiro. Faltavam dez para as sete. De algum modo considerei que este recado — quase súplica — implicasse a minha cumplicidade num qualquer acto criminoso, de consequências perigosas. Mas que teria eu de temer? Infelizmente, segui as suas instruções e deitei fora o bilhete. Sei que interrogaram o recepcionista. Este confirmou as minhas palavras. Mas era-lhe impossível lembrar-se da mensagem: não sabia ler português. A Polícia Judiciária não deu como provada a existência de um bilhete, escrito por João Junqueiro, a convocar-me para aquele encontro no Hotel Bela Vista. E, porque o afirmei, inscreveu este facto no rol de mentiras que me atribui. O inspector Lúcio Marques é um homem rigoroso e metódico. Para ele, se uma história não pode ser confirmada em toda a sua minúcia ignora-a. Parece dar mais importância aos pequenos detalhes que às linhas mestras das narrativas. Rapidamente, fiz a mala e deixei-a na recepção do hotel. Tive o cuidado de confirmar: sim, tinha o passaporte e o bilhete. Dava tempo

ainda de jantar e só depois deixar Macau por Hong Kong. Entrei num táxi. O céu estivera horrível durante o dia mas agora eram as cores do crepúsculo que o azulavam, um anil profundo e efémero a dois passos do vermelho e do negro. Meditava nas razões que levariam aquele rapaz a convocar-me, assim de forma tão repentina e bizarra, depois de se terem passados tantos dias desde o nosso primeiro e último encontro. Que, repito, foi totalmente fortuito. Deixava-me ir algo excitado por um certo mistério que pressentia aproximar-se da minha vida. Olhava as ruas sem as ver, sem reparar em nada, completamente toldado por aquelas reflexões absurdas. Decidi respirar fundo, encostar-me para trás, refastelar-me na vastidão daquele assento e dar a importância devida ao acontecimento, ou seja, nenhuma. Que me poderia querer de importante João Junqueiro? Que saberia ele trazer-me de novo, algo que eu não vira, não soubera, não experimentara? Nada, por certo. Tratar-se-ia de uma conversa quase corriqueira: na pior das hipóteses, pedir-me-ia dinheiro emprestado ou desabafaria um amor. O táxi está parado numa fila que antecede um semáforo. Como estarão os meus amigos de Hong Kong? Richard... Jane... Jasmine... encontrar-nos-emos hoje por volta da uma, num bar de Wan Chai. A noite será gloriosa. As rodas do táxi voltam a deslizar em silêncio sobre o alcatrão quente. São doces os frutos das bermas. O que se pode esperar de Macau? VIII O Hotel Bela Vista figurava em todos roteiros de viagem. A sua varanda sobre a cidade, ao gosto colonial, fora espaço de amores súbitos e de intrigas diversas ao longo dos anos mais interessantes do século. João esperava-me à porta. Pelos seus gestos mal contidos percebi que estava apressado, isto apesar de fazer um titânico esforço para

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ocultar — talvez por delicadeza, pensei — o seu estado de ansiedade. Não se alargou em grandes explicações. Mal nos sentámos e pedimos as bebidas, depois de cumprimentos ocasionais, olhou-me fixamente. A chama trocista dos seus olhos dera lugar ao medo. O mesmo nevoeiro avermelhado, certamente, mas as pupilas eram agora esquivas. — A minha presença em Macau tornou-se impraticável — afirmou. — Pensar que tenho de viajar é um enorme aborrecimento. Apetecia-me tudo menos ter de mudar de cidade, começar de novo noutro sítio qualquer. E ria-se, emitindo um som roufenho e trágico. A sua mão agarrou o copo sem tremer. Beberricou o uísque com visível satisfação. Depois contou-me uma história inverosímil que me escuso de reproduzir pois não passava claramente de um delírio. Metia um atelier de escultura, um homem de mãos sapudas e vários diagramas. Não lhe prestei muita atenção. Estava habituado a ser abordado por numerosas pessoas com histórias e conspirações extraordinárias. Aprendera a ouvir sem registar, a não prestar grande atenção. Ele também não se alongou. Rapidamente sorveu o uísque e fazia menção de se retirar. Nesse momento aproximou-se da nossa mesa uma mulher. João, parecendo surpreendido, levantou-se e apresentou-a: — É a Lara. Ela sentou-se imediatamente na única cadeira vaga que ali estava como se esperasse pela sua chegada. Praticamente ignorava a presença de João e fazia-me perguntas de rajada sem que os seus olhos denotassem a mais ténue curiosidade. Diria mesmo que não ouvia as minhas respostas. O seu olhar vagueava algures sobre o meu corpo, de tal forma intenso que me senti um pouco incomodado. — Suponho que não se deve demorar em Macau... é pena... — disse


com um suspiro. — É pena porquê? — perguntei num tom talvez demasiado susceptível. Ela não acusou o toque e respondeu-me calmamente com a mesma voz velada: — Por nada... esta cidade conhece-se devagar, quase sem querer. Foge de quem anda atrás dela. Resolvi ser contido e não lhes proporcionar demasiados pormenores. — Não tenho intenção de me demorar. Estou apenas de passagem. — Isso é o que dizem todos…, — replicou. — O que quer dizer com isso? Sorriu e respondeu, com os olhos verdes agora muito abertos, olhando um ponto distante por detrás da minha cabeça: — Oh... nada… nada… se tivesse tempo gostava que me levasse a passear pelas ruelas do porto. — Mas eu não conheço... — Por isso mesmo. Talvez descobríssemos qualquer coisa juntos. Esboçou de novo um sorriso e levantou-se para se ir encostar na varanda. Como nos filmes, soprou uma brisa súbita que lhe fez estremecer o vestido, colando-o suavemente aos contornos magros do seu corpo. Era uma mulher misteriosa e magnífica, uma dessas personagens sem país definido, que falam todas as línguas com um sotaque infantil e sedutor. Ela acendia um cigarro e soprava o fumo de encontro ao poente. As colunas da varanda perdiam a sua cor baça com o cair da tarde e Lara tornava-se numa silhueta recortada num céu ainda levemente anilado. Fez-se um pesado silêncio. Os criados sumiam-se por uma porta esconsa e os clientes esqueciam-se de falar, os olhos enevoados pela luz húmida, embrutecidos de calor e cheiro de álcool frutado. Tombava-lhes o lábio inferior sobre os peitilhos engomados. Lara voltou-se para mim e olhou-me longamente. Depois afastou-se para o fundo da varanda em passos rápidos, ritmados.

IX Esquecera-me da presença de João. Ele despertava de um torpor silencioso que Lara, mais que o entardecer, lhe parecia induzir. — Não me posso demorar muito mais — e ria uma vez mais rangendo uma fila de dentes demasiado pequenos —, ainda estou a tempo… talvez… Não fazia nenhum sentido... Chamou-a. Ela veio, com os seus olhos verdes, indiferentes. João, antes sair, meteu-me na mão um envelope grande, castanho, e disparou: — Faça com isto o que quiser. Pode até ser que lhe seja útil. Nunca se sabe. E saiu. Fiquei pasmado, sem resposta. Não voltei a ver os olhos de Lara. Seguiu-o automaticamente, ignorando o meu último olhar, como se nunca me tivesse visto, sem se despedir de mim. Poisei o envelope sobre a mesa. A noite hesitava ainda. Bebi, bebi muito. Sobre a varanda, a ponte apagava-se gradualmente dos meus olhos. Via a silhueta negra do Banco da China e o fogo dourado do Casino Lisboa. Passara uma meia hora. Enfastiava-me. Onde está a novela prometida? Onde estão as portas a franquear? Bocejava. Abri o envelope. Eram papéis, um monte desordenado de aparência duvidosa. Voltei a despejá-los para dentro do envelope. A partir deste momento não consigo explicar exactamente o que se passou. A minha situação não se aproxima dos casos descritos na literatura do absurdo, do fantástico, do simbolismo surreal, da psiquiatria, se quiserem. Sonho antes um enorme sol que se refracte em cores aparentemente arbitrárias, sem que lhes distinga uma lei, observe uma regularidade ou admita um processo. Fico do lado de cá de uma vitrina, um enorme vidro, sem saber se observo ou sou observado. As cores sucedem-se: amarelos, arroxeados carne, vermelhos, ciano,

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laranjas rugosos, espirais de cinzentos, estrelas de anil. As cores sucedem-se sem respeitar as formas, enovelam as texturas. (As máquinas desapareceram; calou-se o seu ruído universal e omnipresente. Sossego. Quantas vezes respiramos sem que ao nosso lado, subtil nos nossos ouvidos, já imperceptível de tão familiar, não resfolgue o motor de uma máquina? Ambicionei ao silêncio mas ganhei um ensurdecedor carrossel de cores. Desligar a luz… encontrar o caminho do interruptor, vaguear ajoelhado, tactear pelo telecomando. Dei por mim, infantil, a esgravatar na pele do mundo.) Ao que parece, os papéis de João Junqueiro revelaram-se um diário disforme, uma invenção monstruosa de situações, factos, diálogos, blasfémias e outros desmandos. Existem documentos cuja posse me compromete. Não sei. Não cheguei a ter oportunidade de os ler. Estava eu embrutecido do álcool e de uma persistente visão de Lara, também ela meio turva, quando senti um toque firme no meu ombro direito. Levantei a custo os olhos. Era um homem muito alto, seco, de cara rapada. Apresentou-se: — Sou o inspector Lúcio Marques, da Polícia Judiciária. Faz favor de me acompanhar. Disse-o de uma forma quase doce mas, no fundo, traía o hábito de dar ordens. Ergui-me da cadeira e acompanhei-o. Ele não estava sozinho: mais dois homens apareceram de um canto qualquer e seguiram-nos. Meteram-me na parte de trás de um automóvel. Fiquei no meio, Lúcio Marques sentou-se no banco da frente. Depois do carro arrancar, voltou-se e disse-me: — Se quiser pode fumar. Fomos em silêncio e assim ficámos até chegarmos ao prédio da Polícia Judiciária, passarmos um ror de corredores e escadas e, num pequeno escritório, me indicarem uma cadeira. Quanto ao resto poderão certamente consultar as transcrições


dos interrogatórios a que tenho sido sujeito, bem como o teor dos actos que me imputam. Torna-se desnecessário maçá-los com mais pormenores. X Gostaria, no entanto, de acrescentar mais qualquer coisa, para que os senhores magistrados possam aferir das minhas eventuais intenções futuras e também da ausência de motivações para o crime. Tive a sorte de ter nascido numa família abastada. Cresci no seio de uma educação católica e eduquei-me numa universidade considerada. Frequentei os círculos que me mais convinham às minhas afinidades. Passei regularmente por tertúlias de gente suficientemente esclarecida para que se evitassem as conversas demasiado fúteis ou profundas. Sou conhecido por me remeter a um silêncio educado, quebrado a espaços pela narração de um episódio que cuidadosamente selecciono segundo as pessoas presentes e os seus interesses. Tanto basta para ser considerado alguém com vida social, portanto aceitável e normal. É uma espécie de preço que sei ter de pagar para ser deixado em paz e não despertar a curiosidade dos intrometidos. Os meus vícios sempre permaneceram privados e também aqui não vêem à colação por não afectarem a vida alheia. A ausência de relações perenes, de um casamento, foi invariavelmente atribuída ao meu escasso sedentarismo. Depois de uma larga estada de vinte e dois anos por terras do Oriente, pretendo regressar e restabelecer-me em Lisboa, mais por facilidade do que por fidelidades de qualquer espécie. Levarei tempo a adaptar-me, mas apenas interiormente, já que a todos proporcionarei a imagem de alguém sempre confortável, à vontade, talvez de quando em vez eufórico, o que também não deixará de irritar a pequenez dos meus conterrâneos. Nada de grave: o hábito

das viagens acentuou o meu gosto pela solidão. Não me enfadarão os longos passeios pela cidade. Assumirei mesmo a atitude de quem tem pressa, de quem tem uma ocupação, um sentido, um objectivo bem determinado. Assim evitarei despertar a atenção. Recuperarei, no entanto, o hábito de juventude de passear com um pequeno bloco de apontamentos e darei por mim a esboçar aforismos de sentido duvidoso e escasso rigor. A manhã impregnar-me-á de uma estranha força, sentir-me-ei leve, quase embriagado pelo excesso de luz e céu, pelo calor subtil que o sol me imporá ao longo da sua marcha, até atingir o meio-dia. Praticamente sem ver nada, andarei mecanicamente pelas ruas, completamente absorto não exactamente em ideias mas em impressões vagas, palavras e frases que obsessivamente se repetirão, de nexo pobre e sem qualquer alcance prático que não seja proporcionar-me esse carrossel interior cujo movimento bárbaro esbaterá o desconforto da memória. Almoçarei sempre num restaurante diferente porque não quero ser conhecido e detesto as familiaridades entre empregados e clientes habituais. A sesta há-de ser feita em casa, relendo o produto do meu passeio matinal. Já não me assustarei, como acontecera na minha juventude. Lerei os meus apontamentos e sorrirei, a minha boca será o deserto. À noite, logo depois do poente, embriagar-me-ei numa lentidão ritual e exasperante de vinho de arroz e flores descarnadas. A partir do crepúsculo, recusarei qualquer companhia, mesmo a dos amigos mais íntimos, e simplesmente vou beber até sentir uma paz quente invadir-me o crânio e descer corpo abaixo, num sossego de pedra. Pensarei com a lentidão do mar. Raramente adormecerei depois da meia-noite. Não casarei, não cometerei crimes. Talvez assim percebam que não constituo, de modo algum, uma ameaça para a sociedade. Espero

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despedir-me com a sobriedade que a honra exige e a situação impõe. Muito obrigado! Com toda a consideração Raul Sempiterno, engenheiro XI Algumas das páginas supostamente entregues por João Junqueiro a Raul Sempiterno, dentro de um envelope castanho, ao crepúsculo, no Hotel Bela Vista, em Macau. “Odeio as viagens e os exploradores Claude Lévi-Strauss Ultimamente dou por mim sem vontade de trabalhar e a ociosidade leva-me a errar pela cidade, percorrendo ruas relativamente desconhecidas. Nomearei esta actividade de viajar com o orgulho de quem inicia uma narrativa diversificando um género. Não se trata de uma viagem no interior de um quarto nem de uma excursão dominical a Santarém. Tão pouco de assunto metafórico, apesar da minha viagem ter um carácter real, por vezes medonho, que me limito a registar numa espécie de diário de excessividades. Aos poucos fui interiorizando a necessidade de experimentar menos e somente desfrutar do mundo o que se nos oferece sem exercício, sem ser precisa a conquista. Por isso aproveitarei sedento as oportunidades, regressando sempre que possível a um local de prazer certo, em círculos pouco perfeitos, voltando depois a casa, alagado, na paz do peregrino que anoitece na laje de um cruzeiro. Realizo diariamente, portanto, uma etapa daquilo a que, para inventar tema, dou o nome de viagem. Afinal, a viagem é uma anestesia em que os sentidos se purificam, conspiram e resumem uma morte. A morte do que nos é familiar, no sentido em que esta palavra encerra o que nos é quotidianamente próximo e perceptível. Os territórios desco-


nhecidos aguçam-nos os sentidos, as comparações estimulam a inteligência. Os viajantes, porque comunicam em línguas estrangeiras, convivem de modo mais intenso com a sua própria voz e o silêncio. Mas as viagens são decepcionantes. Acabaram as terras por descobrir, esgotaram-se as ilhas e os amores. Muitos viajantes partem com objectivos definidos mas quando muito encontram vestígios de uma missão impossível de cumprir. A meio da viagem sacodem-se as mãos vazias e esfregam-se os olhos embaciados da poeira do mundo. Aparentemente, a viagem far-nos-ia acreditar numa essência, mas a sua literatura, de impressões de explorador, sempre me foi aborrecida, com as suas decorações natalícias de anedotas e confabulações. Por isso não me preocupo se o que se segue é exactamente verosímil ou sequer firme, merecedor de alguma credibilidade. Portanto, correspondente ao género. Viajava: aspirava à dissolução, num contínuo, paciente e meticuloso raspar por estradas e costumes. XII Perfilava-se um rapaz de rosto longo e moreno. Ofereceu-me água e depois um cigarro. Sentei-me. O Largo do Leal Senado desaparecia, coração do centro da cidade de Macau, desaparecia na neblina alaranjada. Era outra vez dia, o eclipse passava, era tarde, quase crepúsculo. Apresentou-se: — Chamo-me Almas... Almas S.I., Servo do Islão. Gostava de ironias o jovem Almas. O que fazer? Nada. Talvez portar-me como um viajante: mentir-lhe. — O meu nome é João. Não sou servo de nada. — Se és João talvez te julgues profeta. Ri para desdramatizar: — Só se for do Apocalipse, claro. Afinal estamos perto do final do milénio.

Vagueámos um pouco pelos lugares comuns para apaziguar a conversa. Ele era jovem e a religião deixara-lhe os símbolos para que ele fosse reconhecendo os caminhos que procurava. Estava há algum tempo em Macau e afadigara-se, nas horas livres, na demanda inútil de uma mesquita que lhe tinham descrito, algures, na curva de uma estrada árida, oculta num dos recantos mais côncavos da cidade. Procurara do lado errado porque partira do princípio que só poderia existir a poente. Não lhe disse nada, menti-lhe: expliquei que fora destruída por uma bomba sionista ou maçónica. Tinha olhos negros e possuídos. Dizia como se orasse: — A pretensão de um homem ou de um anjo é ser escolhido e toda a eternidade não passa da espera desse momento, a que se segue uma outra eternidade e assim sempre, sucessivamente. Ele escolhe os anjos entre os homens mas por razões que ultrapassam o nosso entendimento. Não é pela virtude, pelos excessos ou pela via do Meio. Tão pouco o jejum e a abstinência da mulher, do vinho e do suíno nos fazem merecedores aos Seus Olhos. A Sua acção considera o Todo e por isso é sempre incompreensível. Para mim basta, num momento qualquer de toda esta cadeia, ser a sua mão. Em breve se esgotou a crise religiosa. Gabava-se de ter estudado Física, gostava das estrelas e dizia nomes, olhando o céu sempre que descobria pontos de luz, onde eu vislumbrava apenas duas enormes pinceladas de óleo, cinzento e vermelho. Estava muito baixo. Dizia Almas: — Afoga o teu medo. — Não tenho medo, respondia. — Tens sim. Tens medo do céu. E contava em voz velada: — Como a luz, travelling light, que não consegue parar, que tem de existir em movimento constante, de espelho em espelho, de olhos para

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outros olhos, sempre em viagem... a maldição nómada da luz. XIII Era tarde, a luz vermelha esvaía-se e Almas estremeceu. Era o momento de nos separarmos. Muito sério perguntou-me o que fazia. — Nada — respondi também muito sério. Foi então que Almas me falou de um emprego. — Sou desenhador e trabalho no atelier de uma escultora. Ela está a preparar o projecto de um monumento para uma praça da cidade. É uma estátua magnífica. Muita gente se emprega no atelier. Mesmo pessoas que nada têm para fazer. Acho que não será difícil arranjar um lugar para ti. — E pagam? — indaguei. — Claro que pagam. Nem sempre no mesmo dia do mês, nem sempre o mesmo salário. Existem os bónus. Certos meses recebes mais que o acordado. Outros menos. Nunca percebes bem porquê. Em geral, todos estão satisfeitos. A curiosidade picava. De repente, queria saber mais sobre aquele Atelier, não porque fosse misterioso, mas porque o pressentia de qualquer forma ligado a mim e com um eventual papel no meu futuro. Almas era um jovem sem maldade aparente. Talvez nem se apercebesse do que me estava a propor. Arrastei-o para uma taberna próxima e mandei vir um jarro de vinho. As outras mesas estavam ainda vazias, esperavam as seis e pelos homens vindos do trabalho. — Conta-me Almas... que Atelier é esse? — Nada de especial... um Atelier... com a única diferença de que nunca vemos a Escultora. Para dizer-te a verdade nem tenho a certeza de que se trata de uma mulher. O meu trabalho é muito fácil: limito-me a dar ideias de alteração de monumentos ou estátuas já existentes, a maior parte muito conhecidos. Variações,


percebes? Não sei para que serve isto mas pagam-me muito bem para inventar. Ontem acabei de entregar o meu projecto sobre a Pietá, hoje de manhã comecei a Torre Eiffel. A semana passada foi um gigante de pedra da ilha da Páscoa. Não me dão descanso. — Estás a brincar? — Nada disso. Penso que utilizam estes trabalhos como testes. Alterações de Formas Estabelecidas. Ouvi dizer que a Escultora se interessa pelas metamorfoses, pelo crescimento e pela decadência, e se irrita por não poder construir estátuas que se alterem ao longo do tempo, como seres vivos. — Belo interesse, bela teoria... — Não é teoria. É simplesmente uma prática, uma experimentação. Um desenhador antes de mim quis desenvolver uma teoria mas foi despedido. Parece que considerava a hipótese de alterar radicalmente as cem imagens fundamentais do mundo. Os Yin/Yang dos templos, as cruzes das igrejas, as antenas dos telhados, a forma dos aviões, dos transatlânticos, da Gioconda. Das suas conclusões não sobrou nenhum escrito, mas a Escultora rejeita qualquer idealismo. Disso tenho eu a certeza: envia-me advertências por escrito. Recusa-se a considerar, por exemplo, qualquer referência mitológica ou étnica. Exprime-se sobre as religiões com asco. Não se justifica, apenas afirma e isso leva-me a permanecer, meio hipnotizado pela sua vontade. Deve ser um hábito. Se calhar foi por isso que me escolheram. No entanto, o Atelier é conservado — suspirou - apesar da boa vontade da Escultora. — E o outro? — Qual outro? — O idealista. O gajo da teoria. — Empregou-se num atelier de arquitectura. Sempre é mais sossegado. Menos teoria e mais prática. E também mais sintonia. — Tens queixas do teu Atelier? A Escultora às vezes trata-te mal?

Almas olhou-me com uns grandes olhos inocentes. Não me estava a perceber, afinal não tinha o espírito aberto à ironia. Mas recompunha-se e continuava: — No Atelier da Escultora é como se estivéssemos na rodagem de um grande filme, de uma superprodução, em que nunca vemos o realizador e só ao longe vislumbramos os actores principais; sabemos que existem muitos técnicos de várias áreas diferentes, com postos diversos na cadeia de produção; existem relações públicas, sectores administrativos e financeiros. O nosso trabalho desempenha um papel que nem sempre percebemos e é evidente que não vale a pena perguntar. Nestes contextos é melhor fazer parte da equipa, vestir a camisola ou então nem sequer entrar em campo. Dava a ideia de ser um convite inocente. Diluía a minha inércia e impelia-me ao movimento. Emergira de um pesadelo no centro da cidade e de uma mentira de viajante. Almas falara de anjos e de ser mão num desígnio. Despedia-se agora, com um salamaleque breve. — Aparece — e deu-me um cartão com a morada. Era no Beco do Enleio.

A rua confirmava o meu temor: era um dos dias mais quentes e húmidos do ano. O ar comprimia-me a cara, enclausurava-me o corpo numa armadura infernal. O corpo pesado, arrastava-me como se tivesse de lutar contra uma torrente. Logo o suor brotou. Por debaixo da roupa, milhares de pequenas gotas emergiram dos meus poros para se encontrarem em linhas de água e desconforto. As ruas estavam cheias de gente apressada. Rapidamente, saí da avenida principal e embrenhei-me pelas travessas vagas a que em tempos chamaram a cidade chinesa. Começou a chover. A chuva formava um muro de lágrimas diante dos meus olhos, o ruído das gotas grossas martelava o chão e os telhados, ensurdecedor. Não se vislumbrava uma paragem, um momento seguinte em que o sol brilhasse e a cara do mundo surgisse maquilhada de tons fortes e brilhos coloridos. Não... a chuva trespassa a paisagem e o céu desce sobre os homens para os envolver num manto húmido que entorpece a vontade. Tinha decidido que nesse estranho dia procuraria o Beco do Enleio, talvez para exterminar essa apatia que sobre mim se abatia... como chuva.

XIV Só a pé se podia chegar ao Beco do Enleio. Era um passeio que eu conhecia, através de um aparente labirinto de ruelas, afinal um sistema lógico de circulação de pessoas e mercadorias. Previa o percurso, através de passeios demasiado estreitos, encostado às lojas de fancaria e ervas exóticas. Os carros… as pequenas furgonetas… motoretas… passarão por mim como se eu fosse invisível, um espectro sem materialidade. De vez em quando repousarei num sopro de ar condicionado, blasfemando surdo contra o suor. O melhor é não hesitar. Fazer mais esta curta e absurda viagem: ir à procura de um emprego.

XV A calma sobrevinha à medida que me acercava do meu destino. Eis a placa: Beco do Enleio. Era uma rua estreita de que não se distinguia o fim, oculto por uma curva à esquerda. Parei, por uns instantes, mas depois avancei decidido a encontrar o atelier. Ainda antes de chegar ao cotovelo da rua surgiram cinco chineses de aspecto anódino que me rodearam. Dirigiam-me perguntas num cantonense áspero e incompreensível. Encostei-me à parede leprosa, tentando adivinhar o que queriam de mim ou de onde os conhecia. Vira-os talvez de relance numa esquina qualquer, talvez encostados a um carro, numa loja

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de sopa de fitas, no diabo… Não me lembrava deles mas, bizarramente, sentia-me culpado. Que fazia eu ali, afinal? Andava à procura de quê? Talvez de um emprego… E poderia falar do emprego livremente? Sem que isso causasse problemas a alguém — talvez a Almas — ou a mim próprio? Talvez o emprego não fosse uma justificação suficiente… uma desculpa eficaz que admita a minha presença naquela rua. Um beco tão estreito deve pertencer a alguém. Ser propriedade privada. Os chineses saltitam, pequenos e ferozes. Vociferam. Eu alimento-me da parede nas minhas costas para lhes fazer frente. Eles pulam como desesperados: querem que eu entenda qualquer coisa. Ameaçam. Subitamente, desatam a rir e seguem rua fora, deixando-me a tremer, estupefacto. Ao fundo, a uma dezena de metros, entrevi uma escada suja de cimento meio desfeito. Eram cinco degraus, iluminados por uma luz amarelada. Por cima da entrada — não existia porta — um néon lívido anunciava “Atelier do Enleio”. Senti uma grande sede abrasar-me a garganta. Talvez fosse melhor beber um pouco para ganhar coragem ou beber muito para perder as ilusões. Havia uma fenda ao lado da entrada e isso fez-me pensar que o Beco afinal talvez fosse uma Travessa e existisse uma saída para outra rua, eventualmente de grande movimento. Teria um metro de largura. Meti-me por ela adentro e fui andando entre paredes altíssimas. Uns metros mais à frente surgiu uma bifurcação, tinha de escolher entre dois sentidos opostos. Cada um deles era muito semelhante ao que tinha percorrido. Voltei rapidamente para trás. Tinha de entrar no Atelier. XVI Encostei-me à parede e acendi um cigarro. Na esquina da rua, no vão de uma porta, notei a chama de um outro isqueiro. Era um homem de

fato amarelo, encostado à parede numa imobilidade de camaleão; não tinha dado pela sua presença. Deu dois passos para o meio do beco e caminhou na minha direcção. — Senhor João?… — Sim… — João... Junqueiro? — Isso mesmo… Eu gelava, mas cidades pequenas são mesmo assim: personagens que nunca viste conhecem o teu nome, o teu apelido, os teus vícios… — Vem à procura de um trabalho no Atelier, não é? — Como sabe? — Não interessa. Mas tenho um negócio para lhe propor. — Não gosto de negócios. — Não se precipite. Este é muito fácil e sem consequências, se for cuidadoso. Esbocei um gesto, como quem enjoado se pretende retirar. Ele agarrou-me pelo abraço e, arrastando-me suavemente pelo beco, murmurou: — É muito importante e poderá ser vantajoso para si. — Vantajoso como? Subitamente estava interessado em ouvir aquele homem de fato amarelo. — Repare: temos o maior interesse em que arranje o tal emprego no Atelier. Aliás, o seu lugar já está assegurado. Não pense que é fácil, pois os candidatos abundam nestes tempos de vida incerta. Devia dar-se por muito feliz. Sobretudo, uma pessoa como você que… não sabe fazer nada. Em troca… queremos apenas um pequeno favor… uma insignificância… — Mas nós… quem? Quem são vocês? O homem sacudiu poeiras imaginárias do ombro inflamado do seu fato amarelo. Devia ser tique. — Nós somos os clientes da escultora. Pretendemos de si uma coisa muito simples: você terá o seu emprego; aos poucos dar-lhe-ão acesso a diversas partes do Atelier. O que

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nós queremos é o maior número de informações possível sobre a escultura, conhecer a maior quantidade possível de detalhes. Queremos que você seja nosso… digamos... se possível … informador. — Mas isso é ridículo... Vocês não são do governo? Não podem a qualquer momento saber tudo o que quiserem? — Aparentemente sim. Mas a triste verdade é que a escultora foi mal escolhida e as informações que temos garantem que o projecto não está a ser cumprido exactamente de acordo com os planos iniciais. Você compreende… é muito dinheiro em jogo e depois… bem depois, há os chineses… — Os chineses, o quê? — Bom… os chineses…. você compreende… os chineses… você sabe…— e abanava a cabeça com desalento, enquanto sacudia poeira imaginária, agora do ombro do meu casaco. XVII Não compreendia, não sabia. Passava-me ao lado, mas o sujeito nada tinha a ver com isso. Não tinha a ver com nada. Nunca conheceria — ele que me conhecia tão bem — as minhas verdadeiras motivações. Lembrei-me dos grandes traidores, dos agentes duplos, de criaturas de vidas dúplices ou tríplices, da honra dúbia, de quando a personalidade se esvai para dar lugar a nada. Algo respira e bebe o ar sozinho. A traição é unicamente estar do lado de cá. É compreensível que os traidores sejam abatidos. Eles queriam-me para espiar. Talvez me desprezem, talvez saibam melhor que eu o quanto fui vilão; talvez tenham registado os momentos, os acontecimentos inevitáveis, que tudo faço para deixar adormecidos, para esquecer. Terão razão. Se falaram comigo é porque têm a certeza do meu carácter egoísta e volúvel. Esta gente não corre riscos. Não sabe o que faz mas faz muito bem o


que é suposto fazer. Conhecem-me. De certo modo, fui escolhido. Não por eles, mas pelo meu trajecto desigual que nunca me fez pertencer. Eu estava lá, eles só repararam. Sem saberem, ignorantes, estendiam-me a oportunidade que eu esperava, também sem saber, há muito tempo: uma metamorfose séria de valores que por tédio, por inacção e facilidade, continuava a estimar; tinha aberta a porta para outro universo: uma solidão tortuosa, sem memória possível, sem amor, radical. Havia algo de sujo e gigantesco nisto tudo. O fato amarelo estava à espera, acendia outro charuto; no Dupont brilhava um dragão. Depois pensei em Lara. Também ela teria de ser alheia à minha vida. Enganar Lara seria cansativo. Não sei do que ela gosta, de que pessoas, de que géneros, não sei que parte de mim consigo mostrar e que parte consigo esconder. Não sei se gosta dessas margens que entrevê nos silêncios das frases que lhe dirijo, no que denuncio nos gestos, no mastigar da comida, na solicitude exagerada das minhas intenções. Sempre o soube e nunca me interessou porque a queria para além de si própria e das suas vontades, que nunca deixei de satisfazer. Não mentia: representava o papel que nos mantinha juntos. Amava-a e para a ter seria qualquer um. Chegara, no entanto, o tempo de fugir ao eco dos seus olhos. Assumirei só a traição. O tipo do fato amarelo metia o isqueiro no bolso, talvez depois de ver reflectido nos meus olhos o rubi que era o olho do dragão. — Vocês conhecem-me mal. Porque haveria de fazer isso? — Por muito pouco. Talvez cinquenta mil por mês?… Para além, claro, do que vai ganhar no Atelier. Era uma soma considerável. Queria saber mais. Ver até onde o fato amarelo iria. — Não estou interessado. A minha vida passa bem sem empregos.

— A escolha é sua. Saiba que é bom ter amigos para que nos protejam em momentos delicados. Você gosta e sempre gostou de passear pela cidade. Lembra-se exactamente de tudo o que fez e que sítios visitou? Das pessoas com quem falou, com quem bebeu, com quem fodeu. Provavelmente não. Mas há quem se lembre. Há sempre quem tenha visto qualquer coisa, quem se lembre do que você esqueceu ou nunca chegou a saber porque era demasiado tarde. É bom estar protegido. Um homem sozinho é muito vulnerável. XVIII Não podia ser mais claro. Chegara a altura de dizer qualquer coisa. De fazer crer que aceitava o jogo ou, pelo menos, uma talhada. Mais importante: saberem que eu ia alinhar, não lhes tornar as esperanças infundadas. Esse sim, seria um jogo perigoso e precisamente o que eu farei. Far-me-ei caro, farei valer a minha importância estratégica, a minha invisibilidade; serei o agente perfeito, protegido pela pobreza, sacralizado pela humildade. Ninguém desconfiará de mim no Atelier , de mim que venho somente à procura de Almas. O fato amarelo estava à espera. As minhas suspeitas tornavam-se realidade. Tudo se consumava neste momento por acção de um homem que nem credenciais apresentara. A não ser o que sabia da minha vida. Se é que sabia mesmo alguma coisa. Como ter a certeza de não estar perante um bluff bem arquitectado? Este homem representará quem diz? Ainda assim, que governo ou que parte do governo? Quem terá conhecimento detalhado desta missão, da minha existência de peão? Até que ponto o meu disfarce seria eficaz, não existiriam fugas de informação que me pusessem numa situação desagradável perante Almas e a própria Escultora? Não tinha nenhuma garantia. Este facto deu-me alguma paz, a paz de quem se sente morto e perdeu o

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medo. Tentaria manejar a situação mas no fundo sabia que o meu controlo seria muito vago, ténue, periclitante. Nada de novo, portanto, na minha vida. Uma vez mais, apercebi-me de que eles sabiam escolher. Rabisquei um número num papel e passei-lho. — Podem depositar nesta conta. De quinze em quinze dias essa quantia que referiu. Dar-lhes-ei o que puder, o que for encontrando, sem levantar suspeitas. — Tente ser interessante… e assíduo. Sabe… gostamos de… assiduidade. Falava devagar com uma especial tendência para repetir a última palavra, pronunciando lentamente cada sílaba. Faltava-me a atitude final: — Não me contacte. Deixarei tudo numa caixa postal, quando for buscar a minha própria correspondência. É um sítio demasiado central e frequentado para levantar suspeitas. Telefone… a dizer o número. Adeus. E dirigi-me para a entrada do Atelier, sem saber ao certo qual ia ser a sua reacção. Quando cheguei à porta e me voltei o fato amarelo sumira-se. Finalmente fazia sentido a vida a Oriente. Acreditara sempre — se bem que confessasse ocultamente saber ser ficção —, na ocorrência de um momento que transmuta a vida e traz recompensa ao desatino. XIX O Beco do Enleio ficou deserto, cor de musgo, vagamente iluminado. Do outro lado, pelas paredes dos prédios escorriam altares vermelhos. Já não podia entrar no Atelier. Teria de voltar noutro dia. Dirigi-me para a Rua e mandei parar um táxi mas logo me arrependi. Não queria entrar num carro: preferia subir a Avenida, devagar, ainda de ventre quente e a boca enfim seca, a precisar de esquecer para matar o medo. Mandei o táxi seguir. O que pensará o motorista: sentirá raiva ou pieda-


de, certamente indiferença? Talvez assim se possa resumir a humanidade. Preciso de palmilhar a Avenida sob os arcos, em trote sóbrio, para fixar cada sombra alaranjada e no chão o que ficou do apagado dia, espreitar as lojas e memorizar os manequins. De noiva, de turista, de séria executiva, de jovem liceal, mas sobretudo aquelas vestidas de malhas pobres, chegadas de fábricas ignotas, sobre bonecas com muitos anos de montra. Talvez até escolher uma só para mim. Ou então beber e mergulhar nas vibrações eléctricas dos bares, nos caudais de olhos, de relances, de meios sorrisos e meios silêncios. Andar, percorrer os balcões como falésias, olhar as ondas à luz da grossura do vidro. Lara estava, eventualmente, à minha espera. Dois dias depois uma voz desconhecida, ao telefone, soprava-me um número que me abstenho de escrever: as intenções dos meus novos clientes eram demasiado óbvias e perigosas e nesse número estava bem claro o que esperavam de mim. Procurarei não os desiludir, como certamente não me desiludirei a mim mesmo, recorrendo a este último expediente como salvação de uma existência vazia, percorrida de sentidos vagos, sem dinheiro nem propriedades. XX Não agir. Saí de madrugada, ainda a luz bordava apenas a linha do horizonte. O céu estava escuro, o sinal amarelo dos táxis desocupados pontilhava as avenidas. Tomei a direcção do Beco do Enleio e dispus-me a percorrer o trajecto mais longo possível. Não tinha pressa de chegar e as ruas eram o espaço ideal de deserção. Andar pela alvura lazúli da manhã — e talvez seguir a ponte com os olhos — bastava para esquecer o dever e a missão por cumprir. Nenhum facto ocorreu que mereça a pena ser relatado, talvez à excepção de uma maldade de Lara. Eu dormia. O som do telefone ecoou

num sonho relativamente distante e acordei. Eram três e um quarto. Lara não estava na cama. Atendi: — Estou? Lara? — Sim. — Onde estás? — Na sala, a telefonar do teu telemóvel. — Para quê? —Para nada. —Então porque telefonas? — Por nada. — Existe alguma coisa que não consegues dizer à minha frente e queres falar ao telefone? — Não... não é nada. — Então?... Se não se passasse nada, não me acordavas. — Porque não? — Porque não havia razão. E tu não és má. — Talvez seja, um pouco. — Anda cá... — Não. Volta a dormir. Eu depois volto a telefonar. — Quando? Quando eu estiver a dormir? — Sim. — Está bem. XXI A alucinação é um aviso, quase ameaça: não sabes nada e nada vês. Toda a minha vida se desenrola agora, ébria, nas ruelas que ladeiam o Beco do Enleio. Entrevejo o Atelier mas não me aproximo. Faço uma espécie de reconhecimento prévio do terreno. Janto nos pequenos restaurantes chineses, bebo cervejas verdes em grandes golos para sarar uma sede inextinguível. Noite fora vigio sem precauções o movimento das gentes. Conheço já vários lojistas, os mais curiosos, os que querem saber o que fará ali um homem apagado, de gabardine a tiracolo, para cima e para baixo. A repetição levanta suspeitas. As minhas actividades não poderão durar muito mais tempo. Sei que se vão quedar sossegados quando me virem entrar no Atelier e perceberem que aí trabalho. Ontem pensava enquanto

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espreitava uma montra apinhada de ninharias:

(Acordarei fora da cama, num quarto desconhecido, como se estivesse morto. Sairei para a rua numa cidade que não conheço onde ninguém falará a minha língua. Não terei dinheiro nem cartões de crédito no bolso. Procurarei alguma identificação mas certamente perdera a carteira. Não me lembrarei do meu nome. Agradeço que alguém me chame mas, aqui, quem me vai reconhecer? E disse: — Boa noite —, a uma velhota que passa. É boa, confortável, esta autorização implícita do mundo: não é pecado falar às velhas. Ninguém se interessará por isso. Ninguém me condenará. Continuarão a andar e o seu olhar dirá simplesmente: “Olha, aquele ali a falar com a velha” e nada acontecerá. Ela não me respondeu mas espelhou o mundo num sorriso ocasional, sem saber que sorria. Não era ternura, compaixão, de nenhum sentimento, mas de uma questão puramente cognitiva. Naquele sorriso desvendava-se um universo completamente arquitectado e polido, uma civilização distante; um rol imenso de criaturas vivas e mortas que desfilavam silenciosamente, coladas às minhas pálpebras. De olhos postos no chão, em preto e branco, as carantonhas cinzentas, as bocas negras, sem carmins, sem remissão. Passavam. Alguns traziam cadáveres embrulhados em sudários avinhados.) XXII Aprendi muito na repetição dos meus passeios pelas imediações do Beco do Enleio. Julgava, a princípio, que me impelia o medo de iniciar o meu trabalho no Atelier. Que retardava o dia em que cruzaria aquele portal escancarado como uma boca açafronada no fim do Beco do Enleio. Que talvez o tempo passasse e eu pudesse evitar afinal aquele pesadelo e refrear-me desse caminho


obscuro que me arrastaria sabe-se lá a que perdição. E ria muito para dentro, por saber que nada disto era verdade. Que na verdade desejava tão ardentemente dar início à minha missão que adiava a minha entrada no Atelier, precisamente para saborear o prazer subtil da aproximação lenta, da vertigem do predador. Percorria as ruas, as travessas e os becos para conhecer antecipadamente o labirinto. Quero sabê-lo de cor, tatuá-lo nas costas de modo a transportá-lo comigo sob forma de mapa doloroso e ambíguo. A minha nova actividade não admitirá remorsos, muito menos piedade, por mim ou por outros. Serei impiedoso e só. Chega. Palmilho o Beco do Enleio. Medito a cada passo um sistema, cumpro a penitência obesa dos pecados. Resolução. Um dia terá de ser, penso. Aquela entrada sórdida é uma porta sem porteiro, sem gente que me barre o caminho. Penso nisso por hábito. Sei que me conhecem, que têm os meus dados, que não levantarão problemas, nem mesmo imaginários. Faço parte da casa ainda que lá nunca tenha entrado. Alguém estará informado, tenho a certeza. A escultora, o governo... Tilito temeroso escadas acima. Sim, transpus o portal amarelado e as pernas sobem-me narcotizadas ao primeiro andar. O patamar é enorme e vazio. Existem beatas pelo chão o que me leva a pensar que lá dentro talvez não se possa fumar. Talvez os funcionários utilizem este imenso espaço desolado para os cigarros interditos, para conversas breves enquanto tragam o fumo e se sentem culpados. Decido fumar um antes de entrar. Lá dentro ouço ruídos abafados como se lá houvesse de facto gente. Olho o morrão do cigarro avançar pelo papel, ao longo das rodilhas de chumbo. Meço o tempo. Mercadejo comigo a entrada no Atelier. … tempo de escancarar a porta sem medo de surpresas. A timidez humedece-me as mãos, puxo fumo

em grande quantidade até o sentir arder nos pulmões. Há um vómito que não me chega à garganta mas que se espraia pelo corpo até aos seus extremos mais remotos e me dá um frémito de prazer. O chão é de cimento, já vos tinha dito. Existem veios subtis, resultantes de uma aplicação defeituosa do material. É tempo. XXIII — Olá Paulo, olá José António. São dois amigos que não sabia empregados no Atelier. Estão nus, os pénis pendentes e de meias. Sobre estiradores castanhos, raparigas oferecem as nádegas em silêncio. Eles saltitam pela sala e numa eventual erecção fornicam por instantes as linhas debruadas, voltando a um canto onde se acumulam cervejas. Não riem. Corre na sala o vento regular das máquinas, cheira a cola e bafio. Não sorriem. Entrava em silêncio. Paulo e José António não me viram ainda. As raparigas escondiam os olhos em grandes mechas de cabelos negros ou castanhos muito escuros e ninguém dava pela minha presença. Na ausência de reposteiros avancei. — Olá Paulo, olá José António — repeti. Não se admiraram da minha presença. Estariam informados?… Eles também?… A situação não lhes era surpreendente. Talvez o contexto... — Olá João — disse Paulo, com um sorriso amarelo, — como podes ver, estávamos à tua espera. — À espera porquê? — Porque nos informaram de que tu és somente um passante, que o teu lugar não vai ser neste andar, mas num outro qualquer do Atelier. No fundo, estamos aqui para te estender uma passadeira vermelha — e ria-se, amareladamente. José António entretinha-se com uma rapariga de rosa tatuada numa curva absurda entre as nádegas. — Isso quer dizer que não me posso despir como vocês?

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— Claro que não. Aqui somos nós os funcionários. Só nós funcionamos. Fomos escolhidos para ocupar o primeiro andar. Não leves a mal, é mesmo assim. Fomos nós como podiam ser outros. Eu por mim trocaria de lugar com o primeiro candidato, caso alguém reunisse as qualidades que eles entendem necessárias para esta posição. — Quais qualidades? — Não sei. E, no entanto, parece que as tenho. Ou pelo menos eles acham que sim. José António mudava de estirador. — Eles... a Escultora…. vive no último andar, uma espécie de bunker. Dizem que tem medo de ser assassinada. … muito rica e gorda, vive rodeada de Gurkhas que dizem usar também... para outras actividades — riu alarvemente por um momento mas depois fechou a cara —, mas aqui ninguém acredita em nada… Tudo mentiras... tudo mentiras. E suspirou. — Mas, então, são eles ou ela?... — São eles também. Paulo fazia uma expressão cómica de tão perdida. E continuava: — Vêm a meio da noite. Mas não é pela rua. Ninguém sabe como chegam ao quinto andar. Também não se sabe exactamente se alguma vez alguém a visita. Mas nada disso interessa. Importante é o trabalho fixo, o salário gordo — e ria, agora infantil. — Queres dizer que conheces a Escultora? — dizia eu olhando para as meias. — Não. Mas ela conhece-me a mim. Não penses que estás aqui por acaso. Os agentes do Atelier procuram pessoas pelas ruas, pelos cafés, pelas repartições, enfim, por toda a parte. Depois de uma primeira selecção seguem durante algum tempo os escolhidos. Informam-se sobre as vidas, os vícios, os defeitos. Existe uma compreensão muito clara das aptidões principais de cada sujeito e é nessa medida que deci-


dem dar ou não emprego a alguém. Eles sabem exactamente o querem de ti, mas tu só irás descobrindo por tentativa e erro. Eu também sou um grande ignorante. Conheço apenas este andar. Algumas das raparigas já frequentaram outros sítios do Atelier e às vezes, quando há vinho, deliram sobre paisagens lunares e noites largas. Eu e o José António não sabemos se esses delírios serão também parte de um plano arquitectado especialmente para nós, para o nosso bom funcionamento, mas isso não nos interessa. Voltava a repetir: — O emprego não é mau... XXIV Levantava-se uma poeira muito fina que embaciava o ar. Não havia janelas e a luz, saindo compacta do chão branco, espalhava uma névoa azulada. O outro voltava ao canto das cervejas. Pegou numa garrafa verde, quente, e emborcou metade em grandes goles. — Venho à procura de um tipo chamado Almas… Já não me ligavam nenhuma. As raparigas permaneciam imóveis sobre os estiradores e um grande silêncio oprimia a sala, entrecortado pelo ruído da cerveja, escorrendo pela garganta de José António. Soltou um grande arroto que ressoou pelas abóbadas curvas da sala. — Almas, Almas... — retomava Paulo, saindo daquele estado abstruso em que de repente parecia estar enfiado — não me lembro de ter conhecido nenhum Almas. É português? — Não. Acho que é iraniano. Os dois olhavam-me agora estupefactos. — Iraniano?... Não sabíamos que havia aqui iranianos. Pareciam verdadeiramente surpreendidos, como se o facto de eu saber algo que lhes era desconhecido os incomodasse. E voltaram à sua ocupação junto das raparigas. Paulo ainda me dizia, enquanto massaja-

va o pénis semi-flácido, incapaz de cumprir a sua função: — Desculpa. Não podemos perder mais tempo contigo. Afinal, estamos na nossa hora de trabalho e a Escultora não gosta de desleixados. Avisaram-nos, mal aqui entrámos pela primeira vez. Tenta subir ao segundo andar e pergunta por esse tal de Almas. A escada fica ali ao fundo. Atirou as últimas palavras num riso cacarejado. Num dos cantos da sala erguia-se uma escada de caracol; furava o tecto e certamente dava acesso ao andar seguinte. Mas eu não tinha já grandes certezas. Sentia medo. — Paulo... Paulo, espera. A escada vai mesmo dar ao segundo andar? — Não sei. Nunca subi. É-nos proibido. Tu pareces ter todas as autorizações... Aproveita. Sobe a escada e depois conta-nos tudo. XXV Fiquei sozinho num largo entrecortado de árvores e pequenos caminhos asfaltados, a desaguarem num jardim. Cercado, indistinto da noite infectada, segura de si no asfalto irregular. Invocava baixinho a noite dos farsantes, das figuras distantes. Escutava com atenção, evitando os automóveis que deslizam, sem gravidade, oblíquos, imparáveis. A noite faminta que me afaga à proximidade da morte. Os dois insuportáveis minutos da noite fedendo a badaladas, bater de asas, máquinas. Ensurdecer de sapos, mecânicas de néons. XXVI — Tenho sono — disse Lara muito calma. Ajeitou os cabelos. Estava calor. A terra exalava um bafo tépido e persistente. Cavalos trotavam, recortados pelas primeiras cores do sol. Era cálida, aquela madrugada. Abraçava Lara pela cintura como se ela não estivesse ali. Não éramos deuses, nem podíamos conceber o incesto sem remorso. Nada experi-

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mentámos mais baixo que a terra quente e vermelha. Os regatos cursavam em silêncio, animados de escarlate. A terra comprimia-me os dedos e abria-se no vagar ronceiro de quem desperta na bílis de uma madrugada. — Podia ter ficado a ver os centauros. — Lara de roupão turco. — Não eram centauros, Lara. Eram homens sobre cavalos. — Isso é o que tu dizes agora… que já me enganaste. Estou tão arrependida... — e levantava-se a rir. Deslizava até à janela e olhava para baixo. Não tive tempo de me aproximar. Voltou-se num repente e veio-me abraçar, muito colada, quase ofegante. — Deves cumprir as promessas que me fazes. Por mais absurdas que sejam. Houve um momento em que desaparecestes, depois de teres prometido que me levavas a ver centauros. Pela tua promessa esqueci os meus amigos, os compromissos, um olhar a encontrar algures… Lara era por vezes de uma maldade penetrante. Sempre a atribui a uma infantilidade de vertentes encantadoras. — Eu sei, Lara… — agora inventava a nossa conversa — era um hotel numa cidade qualquer, podia ser da Pérsia ou da China, o que só agravava a situação, e como tu me eras estranha... Que situação singular, entre nós, que nos conhecíamos... Sobre isto não havia dúvidas. Eram uma vez mais imagens que estalam na cabeça e não deixam ver. Não deixam estar. São elas que nos dão conta do erro, da falta de oportunidade de um encontro. Ou de que este encontro errado pressagia outra porta: talvez a porta dos centauros que eu te imaginei. Na mitologia tudo é permitido. E ela responderia que só aos deuses — e nem sempre — tudo é permitido. Se eu lhe tivesse dito, se eu tivesse contado... Fim das páginas escritas por João


Junqueiro e deixadas a Raul Sempiterno dentro de um envelope castanho, com um carimbo vermelho, no Hotel Bela Vista. XXVII Muitos portugueses partiram e a comunidade viu-se reduzida e diferente. Novos arranjos, novas solidariedades, novas amizades tiveram de ser construídas, algumas inesperadas; não o suficiente para chocar alguém ou sequer surpreender: há muito que nada espantava quem vivia em Macau. Aqui ficara o inspector Lúcio Marques. Era um tipo de uma estranha afabilidade, na qual não estava ausente um tique profissional, como se a sua simpatia fosse ela própria um meio de saber a verdade, uma forma subtil e disfarçada de interrogatório. Raramente falava sobre a sua própria vida mas demonstrava sempre alguma preocupação pelos outros, pelos seus problemas, pelas suas opiniões, dando a sinistra impressão de tudo tentar memorizar, para depois, em casa ou no seu escritório da Rua Central, introduzir esses dados no computador e assim ir coleccionando informação sobre toda a cidade. O seu ar sério e grave era compensado por uns olhos perturbadoramente afáveis que desarmavam quem dele suspeitava. Aliás, esta era uma primeira impressão, portanto a predominante na cidade. Lúcio Marques iniciava uma conversa que começava por ser académica para logo descambar, com a naturalidade de quem já não teme o seu interlocutor, para alguma política local e nacional. Interessava-se pelos pequenos detalhes, pelos acontecimentos ínfimos (como a inesperada subida de cotação de uma empresa ignota ou uma linha misteriosa num artigo de opinião num jornal), proclamando na sua voz pausada: — Meu caro — dizia a um amigo — temos de reparar nos pequenos movimentos, seguir o método dos sismólogos, compreender que uma

série determinada de insignificantes tremores de terra anunciam o grande terramoto. A investigação consiste em unir pontos, aparentemente irrisórios, até se conseguir adivinhar a figura. Recusava-se a admitir diferença entre a ciência e a sua prática judiciária. Em certos momentos comparava-se ao filósofo, desenvolvendo uma maiêutica muito própria, levando os outros a relatar as suas convicções, a confessar as verdades. Aprendera um chinês áspero e fortemente carregado de sotaque estrangeiro; contudo fluido e talvez algo intimidatório. Gostava de o exibir, embora o fizesse de forma natural e despreocupada, quando se encontrava rodeado de desconhecidos. Claramente, Macau não lhe proporcionava os casos que fariam jus ao seu intelecto e ambições detectivescas. Aborreciam-no os crimes insignificantes e banais como a agiotagem e a extorsão. Daí que se encerrasse num intrincado labirinto de leituras, basicamente ensaios, de temas diversos, mas submetidos ainda assim a um pendor que denunciava a sedução exercida pela imagem de Sherlock Holmes no seu próprio imaginário: agradavam-lhe as revistas científicas, da criminologia à astronomia; não dispensava a suave ostentação de uma profunda cultura musical. Sobretudo, alimentava a esperança de ter de enfrentar um grande cérebro criminoso, um doutor Moriarty, que pusesse à prova as suas faculdades e o obrigasse a deitar mão de uma gama que considerasse digna de recursos. Mantinha, sem regularidade, um pouco à mercê de algum texto, de um filme ou de um acontecimento, contacto com um amigo, limitado à circunstância de um deles achar interessante discutir com o outro. Quando assim era marcavam longos jantares de cozinha chinesa, num discreto restaurante, regado a bom vinho português, que ele fazia

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questão de beber em taças de champanhe. Raramente chegavam a alguma conclusão e poucas vezes discutiam profundamente os assuntos. A tal não era estranho o seu feitio reservado, que o mergulhava num silêncio encapotado de interjeições, cuja função era fazer falar, obrigar a discorrer, entre contidos acenos de aprovação e algumas palavras que asseguravam da continuidade da sua atenção. Tinham adquirido a delicadeza de se escusarem a repetir argumentos, mudando o rumo das discussões sempre que o raciocínio impelia a tiradas anteriormente rebatidas ou conclusões cujo conteúdo ético faria por certo discordar. Uma espécie de acordo tácito impedia de, como tantos fazem, sustentar toda a vida o mesmo diálogo. Este facto decorria também de não existir entre eles uma verdadeira amizade. Muitas vezes limitavam-se a exercitar um estilo, talvez por desfastio, talvez por dele ser carente o mercado. O silêncio, entre eles, seria impossível. A situação tornar-se-ia constrangedora. Uma falta de educação. Esta ausência de silêncio, de familiaridade, era largamente compensada por longas e contínuas conversas, cuja elevação temperava alguma falta de autenticidade; a espaços, algumas irreprimíveis precauções. XXVIII Era uma dessas tardes feitas para não serem vividas, propícias ao repouso, ao abandono do bulício exterior das ruas, dos escritórios, uma dessas tardes invernis e desagradáveis em que a generalidade das pessoas se refugia no trabalho. Foi então que Lúcio telefonou. — Boa tarde. — Boa tarde, Lúcio. — Reconheceu a minha voz. — Era o habitual interlúdio que satisfazia a sua inconfessável vaidade. — Claro. — Rogava-lhe que nos encontrássemos, hoje, às sete. Para jantar.


Eram incomuns as palavras. Rogar não pertencia ao seu vocabulário, quando na primeira pessoa. O amigo suspendeu a resposta por três segundos, por surpresa e malícia. — Com certeza... Está tudo bem? — Está. Então às sete. Adeus — e desligou. Quantas vezes nos arrogamos de conhecer as pessoas, sem deter os dados mínimos para perceber o que realmente perpassa pelos espíritos alheios, sem auscultarmos os seus abismos turvos? Privava com Lúcio Marques fazia mais de seis meses. Mas tal não dava carta de alforria quando se tratava de compreender o personagem, especialmente se o tom do seu discurso sofria uma tão inesperada inflexão. Muitos me haviam prevenido contra o seu ânimo paranóico, uma espécie de instinto que o incitava a detectar culpados e a levar à justiça fautores menores pelo prazer de regular a partir de baixo. Nunca acreditara realmente que este traço fizesse parte do seu carácter e o convívio dissipara eventuais dúvidas a esse respeito. Estava perante um homem íntegro, incapaz de usar o artifício da amizade para prejudicar os que acreditassem na sua ausência de intenções. Quando entrei no restaurante Lúcio Marques bebia chá. Na toalha verde branca, quadriculada, entre as tigelas e os pratinhos, reparei num telemóvel e numa chave de pequenas dimensões. Cortesmente, convidou-me a sentar no único lugar vago. As outras cadeiras estavam ocupadas pela sua gabardine e vários embrulhos. A atitude não diferia do habitual. Nada de extraordinário sobressaía da figura e dos modos. Os pequenos ritos não pareciam também alterados. O jantar estava encomendado e a garrafa de vinho, trazida de casa, esperava no balcão, já aberta, a minha chegada. XXXIII Foi então que ele disparou:

— Vou-me embora... — Está a brincar... — Não. — Vai-se embora como?... O que quer dizer com isso? — Vou partir de Macau. — De vez? — De vez. Fez um sinal para que servissem o vinho. Precisava de uma pausa qualquer para avaliar a sua afirmação. Ele compreendeu e manteve-se em silêncio, enquanto a empregada nos enchia os copos. Provaram. Era bom. — Para Portugal? — Não. Estou a pensar no Pacífico Sul, numa peregrinação antiga. — Porra, Lúcio... desculpe.... não é isso. Não estou a falar de férias mas de para onde vai viver. — É isso mesmo. Vou começar pelo Pacífico Sul. Depois logo se vê. Sabe como é...: viver de room service. Um ano aqui, dois ali... — sorriu como se estivesse a contar uma aldrabice. — Sempre disse a mim mesmo que havia de passar seis meses na ilha da Páscoa? Uma espécie de promessa de juventude...a seguir, a seguir... talvez um ano em Veneza. — Vejo que dinheiro para si não é problema...—, ironizei. — De facto, não é. O problema é extinguir o desejo que se tem de permanecer num sítio. Normalmente, isso sucede apenas quando esse lugar nos invadiu até ao nojo e não parece então difícil de abandonar. Descobrimos ser pior. Descobrimos estar agarrados a esse espaço como a um vício mau, árduo de extirpar. Certos sítios medram dentro de nós, dotados de um forte poder hipnótico, envenenam. Por isso, de bom grado, aí nos esquecemos do mundo e nos deixamos morrer. Mudara tão habilmente de assunto que eu corei. De qualquer modo, não o sabia rico. Se o era não mostrava. — É por isso que se vai embora? — Talvez. — Disse-o prontamente demais e calou-se. Era um convite a novas perguntas. De algum modo,

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ele parecia conduzir, através de mim, um interrogatório a si próprio. Nem a propósito refilou: — Mas pergunte-me sobre o dinheiro, não se acanhe. — Não, não me acanho. E o dinheiro? Meteu a mão na massa, não me diga? — Por acaso conhece uma... mulher chamada Lara? XXIX — Não. Quem é? — Quem é Lara, meu caro? Eis uma questão de difícil resposta. Lara é... uma criatura fascinante. Imagine uma mulher que fosse ninfa e femme fatale ao mesmo tempo. Um ser indomável e submisso por deleite. Capaz de causar a mais deliciosa das surpresas e a pior das decepções. — Demasiados filmes, meu caro... demasiados filmes. Infelizmente, a realidade revela-se bem mais prosaica. — E você é demasiado cínico, tende a desacreditar tudo. Assim fecha a porta a qualquer vislumbre de felicidade, reduz as possibilidades de elevar-se acima das suas próprias fraquezas. Prefere, como se diz..., andar sempre na merda... — Repare Lúcio: desculpe se o interrompi. Lamento. É como se tivesse acordado alguém a meio de belo sonho. Mas não é este o registo habitual das nossas conversas. Não me preveniu de que hoje teria de ser compassivo ou ter piedade de si mesmo. Como sabe, nunca pretendi nem pretendo convencê-lo de nada. Talvez seja esta minha ausência de crenças que o irrita, porque dela decorre uma ausência de ambições. E você, apesar de as saber fúteis, não consegue fugir-lhes, não consegue viver sem certezas. Apesar dessa sua aparência distanciada, você é um homem que mantém sempre uma réstia de esperança. Sei lá em quê... na sua carreira, na sua possibilidade de inovar, quem sabe na construção de uma vida heróica. E


deve ser essa pulsão que o faz partir. Mas não cometa a indelicadeza de me vir com desculpas. Deixe lá a rapariga em paz e fale-me do dinheiro. — Foi um acaso, tudo não passou de um acaso. Não o vou rebater porque seria um exercício inútil. E você também não acredita exactamente no que diz. Desculpe se dei a impressão de estar a personalizar a discussão. Quer saber do dinheiro? Com certeza. Só que o tema levar-me-á a falar de Lara, por muito que isso lhe custe. — Está bem. Fale lá da mulher. Se tanto insiste. Ele inclinou-se um pouco para trás e suspirou. Demasiadas memórias pareciam entrechocar-se na sua mente, criando aquela confusão que não nos deixa começar uma história. XXX — Era uma noite calma, dessas noites em que depois do trabalho, de um jantar solitário, nos apercebemos não ser possível ficar sentado, nem nada nos entretém em casa. Vesti um casaco escuro e, sem gravata, saí. Como sabe moro a poucos passos de uma grande escola infantil, rodeada por um jardim. É um edifício antigo, meio caduco e ultrapassado, apesar das obras de remodelação a que tem sido sujeito. O jardim é simples e agradável; alguns casais abraçam-se pelos bancos ao cair das luzes mas, depois das onze, raramente se vê alguém. É quando aí costumo passear. Nessa noite o ar estava especialmente sufocante porque não corria a menor brisa. Num retalho de céu sem nuvens piscava, pálida e longínqua, uma estrela avermelhada. Entrei pelo jardim. Como previra não havia vivalma e acabei por me sentar num banco, algo ofegante do calor. A madeira estava quente, causando-me o desconforto de me sentir pousado numa espécie de forno, em lume brando. Esta sensação causou-me um arrepio fazendo-me mudar de

posição e foi então que, pela primeira vez, a vi. Olhava, muito quieta, de costas para mim, para dentro da escola primária, encostada às grades. Não se mexia... Lúcio Marques semicerrava os olhos e reclinava-se um pouco mais na cadeira. — Esteve imóvel durante muito tempo. Pelo menos para mim. Sabe, os estrangeiros ganham aura em Macau. Àquela hora da noite, num jardim tão remoto no mundo, qualquer mulher se transforma num mito, eu sei... — novamente se quedou, aparentemente perturbado pelas suas próprias palavras. E recompunha-se: — Não meu amigo, ela não era mito nem visão. Era real: subitamente voltou-se e olhou em redor, ainda no contraluz dos holofotes brancos da escola. Ao ver-me caminhou na minha direcção sem hesitar, mirando agora o asfalto cinzento do caminho, os sapatos a pisar impunes a relva e a terra fresca dos canteiros. Parou a três metros de mim e disse, em tom de desafio: ‘Queres ver a minha antiga escola?’ Não teria mais de vinte e quatro anos. Não pense, meu amigo, que por algum instante pensei tratar-se de uma miúda inocente. Não... era uma mulher. Não tinha de me sentir culpado. Tinha uns grandes olhos verdes. A escola? ‘Claro’, respondi, ‘claro que quero ver a tua escola. É esta aqui?’, perguntei-lhe ainda meio embaraçado mas decidido a seduzi-la. Meu caro, não me julgue mal. Sabe que não me deixo embalar. Devia vê-la, à minha frente, ver o relance de uns olhos verdes muitos fixos nos meus, do fundo escuro do seu rosto em contraluz. Fez uma expressão sorridente e infantil: ‘Qual é a tua profissão?’ ‘Sou polícia’, respondi sem hesitar. ‘Ainda bem’, disse ela e riu-se, ‘assim não haverá problemas. Anda.’ E pegou-me na mão, arrastando-me na direcção das grades da escola. Deixei-me levar, meio inerme, até ao fim. Mas ela então

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puxou-me para um canto, onde acabava o gradeamento e começava um muro que não chegava a ter a altura de dois homens. ‘Vamos saltar, está bem?’ Não hesitei e num segundo estava lá em cima estendendo-lhe a mão para ajudar a subir. Senti agora a sua mão ligeiramente trémula e sorri um pouco como quem descobre ter finalmente controlado uma situação. Senti-me feliz, uma felicidade rara, na qual uma dose de euforia era um ingrediente principal. Quando ela se empoleirou no muro, imediatamente saltei para o outro lado e levantei os braços para a suster. Deixei-a deslizar pelo meu corpo e beijei-lhe o pescoço, a face, os lábios com um fervor estranho, a que ela correspondeu com um gemido suave e depois com uma corrida na direcção das traseiras do edifício cinzento e soturno da escola. ‘Vá, vamos entrar’, dizia num sussurro. XXXI — Caminhei, meio inconsciente do que fazia, interiormente seguro por saber que poderia encontrar uma justificação para a minha anormal presença numa escola infantil a meio da noite. Por uma porta lateral, creio que da cozinha, conseguimos entrar facilmente. E fomos andando até dar com os corredores ladeados de salas de aula. Lara entrava nas salas, pisando devagar as tábuas carunchosas do chão, parecendo aproveitar o prazer que cada segundo daquela presença lhe proporcionava, de tal modo que achei por bem manter-me afastado, não dando sequência imediata aos nossos beijos. Confesso-lhe que ardia, meu amigo, como talvez não me julgasse capaz de arder. Não sei quantas salas percorremos e o desejo tornava-me surdo ao que ela me dizia. Respondia-lhe, é certo, mas não sei reproduzir nenhum desse diálogos. Provavelmente, falava-lhe em monossílabos; se calhar, enfeitiçava-a com longas tiradas. Seguia-a sem limites por toda a escola deserta, pressentindo


a presença de pequenos miúdos nas salas e nos corredores, como se os seus corrupios aí permanecessem àquela hora, muito depois de ter soado a campainha que encerrava o dia. Estávamos numa grande sala com um mapa e preparava-me para lhe falar de países, quando ouvimos um ruído de passos no corredor. Era o guarda da escola, hóspede de um barracão dotado de uma mesa e um catre. Num primeiro momento, sobressaltei-me. Mas Lara colocou um dedo fino sobre os seus lábios de coral e segredou-me: ‘Vem comigo’ e levou-me para dentro de um enorme armário vazio. Fechou as portas e disse: ‘Faz como eu’. E começou a emitir um estranho som de fantasma: ‘Buuuuuuuh, buuuuuuuh’. Ainda antes de ter tempo para reagir, ouviu-se na distância o som do guarda assustado, que invertia o passo e descia rapidamente a escada, seguido de uma porta que se fechava e trancava com estrépito. Ainda dentro do armário enlaçou-me e dizia: ‘Estás a ver: por vezes é bom sermos fantasmas’, e ria, perto do meu rosto, os dentes brancos sobressaindo na carne escura dos lábios. O seu doce odor abafava o cheiro verde e bolorento da madeira; entrava-me pelas narinas e descia-me pelo corpo em arrepios suaves. Pairava uma luz vaga, pela porta entreaberta. Vinha das grandes janelas gradeadas, dos candeeiros alaranjados das ruas. Mal a beijei. Fizemos amor dentro da vastidão daquele armário, olhos nos olhos sem pudor, misturando gemidos com grandes gargalhadas, imaginando o guarda escondido no seu cubículo, tremendo, debaixo do magro cobertor. Fomos hereges desde a primeira vez. XXXVII — Quando saímos da escola, você pode imaginar a minha exaltação interior. Procurei, como é óbvio, disfarçar o quanto aquela mulher me fizera feliz. Mas não podia deixar de me sentir um homem de sorte,

alguém que não sente nenhuma preocupação, imune a qualquer mal, capaz de conquistar impérios, de mover montanhas. O ar era agora leve, os passos claros e as minhas pupilas cansadas distinguiam estrelas distantes e mortiças no céu nublado. Deteve-se. Não parecia emocionado. Os seus olhos brilhavam muito, fixos num ponto, até que agitou um pouco na cadeira e se voltou na minha direcção, inclinando-se, o cotovelo apoiado na mesa e a mão segurando o queixo. — Seria fútil comentar a sua história. Mas a mulher era assim tão magnífica?, perguntei. — A beldade, activa e submissa, sempre ao dispor para todos os prazeres — riu-se e endireitou-se, voltando a repousar as costas no espaldar da cadeira. — Conhece Bai Juyi? — , continuou. — Aqui ele refere-se à mulher que sonegou o imperador aos prazeres com as ‘três mil’. — Está bem. Vá-se lixar. É capaz de fazer inveja a um Salomão. — Se você o diz... A verdade é que ela me trouxe também um tesouro. Nessa noite, não pense que a deixei. Arrastei-a eufórico pelas ruas, sempre em frente. Ela obrigava-me a parar, às vezes, para me mostrar qualquer pormenor a que eu não dera atenção. Depois puxava-me, pendurava-se um pouco no meu braço e mudávamos de caminho. Parámos sob um viaduto, onde estavam estacionadas, quase empilhadas, dezenas de motas. Lara acendeu um fósforo e levou-o ao rosto onde, entre os lábios, repousava um cigarro. Apontou para o casino. ‘Vamos entrar ali. Vou-lhe dar sorte. Mas depois não pode esquecer-se da sua fada madrinha’. Aceso o cigarro, atirou o fósforo bruxuleante para trás das costas. Caiu sobre o assento de uma mota. XXXVIII — Dei por nós a atravessar uma porta lateral do Hotel Lisboa, subir

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uma escada rolante, cruzar o mezanine entre jades de Xian e raparigas de Xangai, para atingir uma entrada menor do Casino. Lara aconchegou-se mais no meu braço, levando-me por entre as slot-machines até à banca do cussec. ‘Aposte aqui, é mais divertido’. Olhei a mesa, os jogadores, os dois croupiers. A atmosfera estava de certo modo silenciosa, expectante. As jogadas sucediam-se sem sobressaltos. As pessoas colocavam as fichas sobre os números maquinalmente como se apostassem dinheiro alheio e a vitória ou a derrota não se revestisse de alguma importância. A minha atenção recaiu sobre um chinês alto de fato preto, encostado do outro lado da mesa. Mirava-me fixamente. Vestia com elegância, algo ostensivo, como um elemento de uma tríade. Talvez me conhecesse e me quisesse dizer que sabia quem eu era. Ergui a cabeça da mesa e olhei-o. Ele baixou os olhos e ouvi como uma voz, vinda da sua direcção, que me dizia: ‘Joga. Joga no dezassete. Joga. Joga no dezassete.’ Ele não falara, não se mexera, mas era como se a postura do seu corpo, as cores da sua roupa, o corte elegante do cabelo, me gritassem aquele número obsessivamente. Olhando à volta, dava a sensação que todos os outros jogadores, os croupiers, os números escritos na mesa, me gritavam dezassete. Tirei do bolso dez mil patacas (que levantara para efectuar um pagamento) e coloquei-as sobre o número dezassete, dois segundos antes de soar a campainha. Se ganhasse multiplicaria por cinquenta. Sentia Lara atrás de mim, talvez a respirar nas minhas costas, talvez distraída com outro jogador qualquer ou com o bulício da sala. Fiquei muito calmo, a respiração regular como que a soprar nas faces dos dados, ocultos por uma campânula preta. O croupier descobriu-os. Eu estava demasiado longe para conseguir ver os números. Ele carregou nos botões e uma luz amarela


acendeu-se por debaixo do dezassete. Acertara. Ganhara meio milhão. À volta da mesa, os jogadores romperam em exclamações de surpresa, chamando a atenção de toda a sala. O homem do fato preto desaparecera. Lara tocou-me no ombro e perguntou: ‘O que foi?’ Disse-lhe que tinha ganho, disse quanto. Ela respondeu, incrédula; ‘A sério?’ ‘A sério, graças a ti estou rico.’ Abraçava-me eufórica, pendurada no meu pescoço. De repente, escondeu-se no meu peito e disse: ‘Vamos embora.’ ‘Porquê?’ ‘O meu namorado está ali. Não quero que ele me veja contigo.’ Ela tinha outro homem. Isso deixava-me enfurecido, mas não o queria transparecer. ‘Quem é ele?’ ‘É fácil. Está do outro lado, a falar com um estrangeiro.’ Realmente eram os únicos ocidentais naquela sala. Levei-a escondida pelo meu casaco até à porta mais próxima e depois regressei com um seco ‘Volto já. Espera aqui.’ Dei a volta pelo corredor e entrei do outro lado, de tal modo que podia observar os dois homens sem que dessem pela minha presença. O mais novo, provavelmente o namorado de Lara, devia ter cerca de trinta anos. Era alto, moreno e ligeiramente curvado. O outro, mais velho, tinha o cabelo levemente cinzento e era baixo e entroncado. Reparei que os seus dedos eram extremamente grossos como se estivesse habituado a trabalhos manuais. Lara esperava por mim algo nervosa. ‘Não vais estragar esta noite, pois não? Afinal, fiz de ti um homem rico.’ Respondi-lhe que tinha razão, que deveríamos comemorar, que estava disposto a partilhar com ela a minha recente fortuna. ‘Partilhar não’, disse ela, ‘não sou mulher para partilhar nada’, talvez numa alusão irónica à minha situação. Achei estranho que recusasse 250 mil patacas, assim com tanto à-vontade, mas ela continuava: ‘se mo quiseres dar abres uma conta em meu nome, depositas tudo e depois fugimos os dois.’ Ria-se. ‘Fugimos quando?’,

perguntei. ‘Mal consiga resolver uns assuntos que tenho entre mãos’, respondeu. XXXII — Eu sei que não vai crer mas, naquele momento, o que ela dissesse faria sentido para mim. Claro que fugiria com ela daquele namorado mais novo do que eu, da minha vida regular, da carreira relativamente monótona. Lara era uma oportunidade sempre adiada, um caminho há muito secretamente atendido. Descemos e depositámos o meio milhão no seu nome. Na altura, se não acreditasse nela a vida deixaria de fazer sentido. O dinheiro não me serviria para nada. Estava disposto a arriscar. A pôr tudo em causa. Você sabe que tenho sido um polícia honesto. Nesta terra sempre achei desnecessário envolver-me em problemas especificamente locais, até porque o salário me permitia uma vida desafogada. Modesta, mas desafogada, — sorriu descontraindo um pouco a sua expressão dura. Perdera há algum tempo, durante a sua narrativa, um travo de devaneio que lhe assombrara o olhar. — Como pode imaginar que eu era capaz de... roubar? — perguntou divertido. Mas logo ficou sério e continuou, em voz mais baixa, talvez um pouco absorto: — Sabe que nesta cidade (já cá estou há vinte anos) as coisas arranjam-se de forma doce sem que sejam necessários verdadeiros conflitos. Ou mesmo operar em terrenos movediços. A minha decisão foi precisamente especializar-me em crimes incomuns, de tal modo que nunca me vi na contingência de atrapalhar os negócios locais. Para polícias e ladrões, sou um esquisito. Coloquei-me numa posição desinteressante de subornar. A minha modesta fama estende-se, quando muito, à polícia de Hong Kong e tem a ver, por exemplo, com o caso Big Spender. Não me pergunte os contornos. Está tudo num relatório que lhes enviei.

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É uma teoria sobre o desenvolvimento do processo —, não resistiu a dizer. — O Big Spender está morto e enterrado. Não me diga que tem outra opinião? Lúcio Marques pensou um pouco e respondeu: — Só disse que lhes apresentei uma teoria, baseada em factos e deduções. De qualquer modo, eles estão habituados. Em 86 resolvi-lhes um caso bicudo. Dei-lhes o homem de bandeja. Escrevi-lhes a dizer quem era o criminoso que procuravam, um vago assassino de empregadas filipinas. Mas nada disto tem importância: fi-lo para me divertir a recusar o emprego que me propunham. XXXIII — E Lara? — Não sei. — Não sabe? — Desapareceu. — Para onde? — Não sei. E não quero saber. — Fugiu com o dinheiro e... provavelmente... o namorado... Não é esse que a polícia andava à procura? — É. Também desapareceu. Prendi o indivíduo errado que se... suicidou na cela. Deixou uma confissão incoerente. O Junqueiro teve tempo de fugir. — É extraordinário. — Pois é... e não é.... — Você foi bem enganado. — Pois fui. Ou, penso para me animar: talvez tenha querido ser enganado. — Se quer acreditar nisso... — Nisso ou noutra coisa qualquer... — Mas vai-se mesmo embora?... Sozinho...? Que sentido encontra nisto tudo? — Nenhum. Desta vez é mesmo o fim.

carlos morais josé


Arte

P

Territórios

de António Conceição Júnior or oposição ao studium — grelha semiótica que subjaz a uma fotografia — Roland Barthes referia a existência de um punctum, reintroduzindo, por assim dizer, o indivíduo, quiçá uma subjectividade, na frieza da análise e da crítica estruturalistas. Para o autor d’ A Câmara Clara, o punctum de uma fotografia seria a representação daquela entidade corpórea que esteve ali, defronte à abertura da câmara, emitindo uma radiação que impressionou o filme, mais tarde transladada para o papel e depois para os olhos do espectador “como a luz de uma estrela” que poderá já não existir. É imenso o seu poder afectivo, por oposição ao studium que friamente descodifica e ex-

plica a fotografia. O punctum é, afinal, o lugar de adesão à imagem, o detalhe pessoal da fotografia que, a cada um de nós, aflige e cativa. De algum modo, o conceito de punctum parece ser da mesma família que o conceito de aura, de Walter Benjamin, no que partilham de uma visão romântica da arte, que bebe nos textos de Charles Baudelaire sobre a estética. No entanto, na série Territórios de António Conceição Júnior, como anteriormente em Transições, a posição da câmara anula a eficácia dos dois conceitos. E, mais do que para uma estrutura semiótica, as imagens, na sua ductibilidade, remetem para a impermanência: ali nunca esteve nada porque esse ali não existira antes de ser criado pela câmara. Consequentemente, não existem corpos irradiantes porque está ausente, ao limite, qualquer efeito de realidade. Não há punctum: a imagem emancipou-se, rasgou os seus protocolos, quer afectivos, quer estruturais. É que, na obra de António Conceição Júnior, a fotografia surge como um espaço de problematização do próprio acto artístico, do seu conteúdo técnico, metafísico e estético. Imagens produzidas por um olhar descentrado do quotidiano e avesso ao evento, propõem-se como índices, não como metáforas, de uma reflexão em forma de percurso por fímbrias do espaço, do tempo, do humano e do natural. Ali se inscreverão uma série interminável de trajectos, de possibilidades, diria mesmo de atentados ao senso comum e a uma percepção plana do real. Este, na sua factível inexistência, surge reconstruído na imagem, entabulando com o espectador uma imediata conversa, na qual a memória e a imaginação desempenham um papel fundamental. Não é, contudo, para a ideia ou a palavra, para um qualquer logos, que estas imagens remetem. Pelo contrário, escapando à tentação metafórica, estamos perante índices, sintomas, metonímias, que nos agarram por semelhança, num exercício mágico de codificação e contágio. Primeiro, a apreensão do detalhe invisível

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faz ver a fragmentação do mundo apreensível, do Umwelt, e a vigência de outro caminho para a percepção, outros territórios, mapas elaborados por um olhar nómada que uma demanda contagiou. A câmara está longe da realidade quotidiana, aparentemente divorciada do homem, do social, da cultura. Mas, porque num certo sentido a fotografia nunca poderá ser realmente abstracta, encontramo-nos aqui numa estranha fronteira entre percepção e imaginário, no sentido em que se tratam de imagens que, imediatamente, partindo de um distinto enquadramento do olhar, impelem a um percurso metonímico pela memória. E há então esses abismos de solicitações, encadeamentos, ramificações, rizomas, nervuras, estranhas baías, fragmentos de velhos mapas, continentes ignorados, pelos quais deambulamos na expectativa de uma resposta interna, do tal milagre — Borges assegura — que não se produzirá, mas onde o jogo de aproximação/distanciamento constitui a condição do sublime e da produção de um acto estético. As imagens que as fotografias de António Conceição Júnior nos propõem parecem ser uma resposta a essa inquietação metafísica relacionada com a dimensão cósmica do ser humano, de seus territórios naturais e artificiais, o repositório dos seus deveres e das suas vaidades. Caso se tratasse de uma genérica inquietação, próxima do conceito budista de dukkha (geralmente traduzido – mal – como sofrimento, mas que estará mais perto de ansiedade, insatisfação), ondularíamos na ordem da cura. Felizmente essa inquietação transmuta-se, na e pela arte, em interrogações nómadas, em afirmação territorial, no desempenho de uma absoluta liberdade. Cada imagem revela uma determinada ordem do olhar e murmura um território: lembra-nos que qualquer um de nós o poderia ter apreendido, que ele estava lá, que o universo se desmembra em mundos semelhantes, em dimensões aparentemente longínquas mas finalmente próximas, que um sentido de Unidade tudo permeia e equilibra. Mas, por outro lado, se o nomadismo é sin-

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toma de liberdade e de inquietação, o que dizer de um olhar que define territórios, cria mundos, encontra semelhanças, propõe índices, um olhar que permanentemente oscila entre criação e transição? Que se inquieta enquanto não define um território outro e lhe proporciona visibilidade? Que esse parto é um instante de felicidade? Que este instante inevitavelmente se esgota e a viagem compulsiva se reinicia? A resposta é, claramente, afirmativa, pois é neste paradoxo, entre a criação de novos territórios e o seu abandono, que se desenvolve a demanda artística, nesta exposição de António Conceição Júnior. Como série, estas fotografias perdem à partida um estatuto de corpus definitivo e remetem para múltiplas existências, múltiplas vidas, em múltiplos lugares. Existe, portanto, uma relação quase linear entre nomadismo e uma incessante criação de multiplicidades, fatalmente percorridas pela Unidade mas entre si cindidas e capazes de ofertar diferentes espaços de explanação e resolução. A câmara, enquanto objecto técnico, ilude o mundo e nesse movimento desvela a inesperada luz de certos corpos, as cintilações ou subtis curvas no espaço mas revela, antes de mais, uma semelhança, uma contiguidade inultrapassável, entre o real e a imagem, esse espaço indefinido de onde a imaginação pode, cautelosamente, subtrair uma tímida magia.


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Fairy Tales

de José Drummond osé Drummond inaugurou, na galeria da AFA, uma exposição intitulada “Fairy Tales”, constituída por três peças distintas (The Pretender, The Aesthetician, The Fighter) mas que emanam um discurso plástico que, eventualmente, marcaria uma ruptura na sua obra. Tal ficar-se-ia a dever à centralidade nos três trabalhos de figuras femininas, por oposição à presença regular do próprio artista como suporte de várias máscaras nas suas anteriores produções. (E tal presença iniciada com a escrita do corpo, nos anos 90, em The Others, passando pelo disfarce político, em The Intruder 2004, até The Double e The Narcissist, em anos mais recentes.) Seja como for, José Drummond persegue proficuamente uma continuada reflexão sobre o exercício da cultura nos corpos, quer como formadora de comportamentos, hábitos e derivas existenciais, quer como sobreposição de véus na percepção dos sujeitos. Estamos, assim, perante um cuidadoso plano de desconstrução cultural, em que as imagens, independentemente do suporte, surgem como ironias possíveis, denunciantes, do efeito perverso dos discurso sociais – no espaço da polis e no espaço virtual – nos corpos e seus avatares. Esse espaço não é mais plano mas recortado por diferentes expressões. Assim, em The Pretender o artista é ainda o móbil da peça, mas deixou de ocupar o seu centro. A narrativa tem a sua origem no exterior, que Drummond transporta para o centro da imagem para aí desvelar, evocando formalmente o registo da bailarina na caixa de música, os fragmentos que entende melhor a significarem. The Pretender, não por acaso em suporte vídeo, conduz-nos a uma realidade virtual onde se expõem as pós-identidades – formalização de um conjunto de estereótipos rapidamente interiorizados

no confronto com o Espectáculo e desenhado num complexo processo de identificações a esses neo-arquétipos. Estamos, porém, longe da representação e, pelo contrário, em plena vida, iluminada pela intervenção da esperança do sonho, poluída pela disseminação do controlo. Há neste exercício uma dimensão perturbante de realidade, de documentário, que perversamente capta e inclui o espectador num estranho looping de existenz. Já The Aestheticist se debruça sobre o mundo da representação, primitivizando os seus mais glamorosos ícones, numa intervenção plástica sobre figuras femininas na publicidade. Como o nome indica, é condensado no dualismo das cores a expressão fundamental do ícone. Este ainda subjuga ou não, depois da intervenção estética? Conseguiu esta reduzi-lo a uma expressão ainda eficiente, no seu primitivismo? Ao colocar estas questões The Aestheticist abre-se às inquietações do gosto, à formatação do belo, à simplificação do erotismo. E, como o nome também implica, a brutalidade da intervenção transforma-se em statement, plenamente irónico, sarcasticamente bruto, tremendamente eficaz. No mesmo sentido, podemos interpretar a repetição, a sequência (também presente em The Fighter), que

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não somente produz o efeito cinemático mas, noutro plano, refere a indiferenciação no culto sistemático da diferença – publicidade, moda, design, futebol e outros produtores destes ícones rapidamente elevados a ídolos. Da existenz na era do virtual, em The Pretender, à plasticidade da representação dominante, em The Aestheticist, tal como em The Fighter, José Drummond depara-se com figuras femininas em registos diversos, que ele insere num percurso expressivo coerente com os seus anteriores trabalhos. Tal é mais patente em The Fighter, peças construídas sobre folhetos de sauna erótica, normalmente distribuídos pela cidade, sempre ostentando convidativa rapariga. Aqui, como não acontece em The Aestheticist, não nos limitamos à intervenção sobre a representação quase pura: ela é assumida pela caracterização demoníaca que o artista impõe ao suporte mas que deriva do objecto primordialmente representado: a prostituta. Aterramos, outra vez, depois de The Pretender, no trabalho de um objecto que remete para uma existência, eivada de realidade e sobre a qual existe o ferro de um símbolo, conotado com o prazer e a infâmia. Drummond inverte o sentido da comunicação e as imagens, basicamente, devolvem o que lhes é atribuído, erigindo-se em espe-

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lhos de impurezas e medos primitivos. Uma vez mais, ironicamente, poder-se-ia perguntar: Escoou-se totalmente o carácter pretensamente sedutor das imagens originais? Ou, no rumor lento e real do desejo, sobrará ainda espaço para o inominável pútrido, para o interior oculto dos corpos e das mentes? O que vemos quando olhamos e que olhar não usa a faculdade de julgar? The Fighter reintroduz ferozmente nesta exposição um carácter agonístico, político, beligerante, confrontacional. Trata-se, contudo, de Fairy Tales, supostos relatos de emaravilhamentos, de utopias prometidas, de príncipes e princesas, de madrinhas cumpridoras. Tal por isso seja mais cruel e irónica a distância entre o desejo e a possibilidade de concretização, sobretudo na era dos acessos virtuais. Este tríptico de José Drummond prossegue o trabalho de uma concepção de arte que, na contemporaneidade, passa por uma reflexão sobre a própria possibilidade de ver e a caracterização do olhar e que, portanto, interrogará a plasticidade da arte no seu âmago. Por outro lado, mas no mesmo sentido, Fairy Tales utiliza habilmente a realidade para prender e tornar refém/cúmplice o espectador, cuja existência compreenderá estar igualmente ameaçada.


PatoMen

de Carlos Marreiros A Bienale de Veneza propõe uma incursão pelos terrenos da memória, da sua catalogação e conservação. Erigida em teatro ou palácio, é de uma exterioridade que se fala, de algo que, para além do sujeito, pretende na sua dimensão extrema servir de depósito a todo o conhecimento; feito a um indivíduo impossível, sobretudo no actual grau de conhecimentos. Não terá sido Leibniz o último homem que sabia tudo? Não se trata, portanto, de um desafio para uma reflexão sobre as mnemónicas internas, os palácios da memória de Matteo Ricci, que no século XVI ajudavam os jesuítas a decorar à primeira leitura um texto chinês de 500 caracteres; mas de uma confrontação com os homens e as obras que pretenderam coleccionar a memória do mundo, tal qual ela foi sendo produzida pelos homens. Giulio Camillo e Marino Auriti, cujos sonhos servem de mote à proposta, incarnam de modo ajustado o carácter utópico e feérico destes projectos. A convocação de Steve Jobs guarnece-a de contemporaneidade, agiliza as suas eventuais interpretações, centraliza-a no permanente descarrilar do presente para o futuro. Perante estes dados, a leitura de Carlos Marreiros desdobra-se numa representa-

ção contemporânea dos motes sugeridos, emprestando-lhe o olhar globalizado, irónico mas ainda encantado, do homem que, sujeito ao actual Maelstrom da memória, descobre na criação o refúgio ético e estético para uma compreensão hedónica do mundo. É por isso que, para quem conhece a sua obra, não é estranha a presença do desenho na instalação, enquanto gozo de recriação pessoal do mundo, processo genial e lúdico, por vezes delirante e satírico. Por outro lado, a instalação de Marreiros, na sua fisicalidade/proximidade e confesso desejo de entreter, ultrapassa um carácter meramente representativo. O ambiente esboçado, erigido em statement sobre as memórias organizadas –detectadas como mito, realidade ou pesadelo – existirá totalmente quando digitado pelo público. A instalação não será um lugar, como refere Mario Perniola, onde o visitante aprecia uma obra de arte. Pelo contrário, é a instalação que “sente o visitante, o tacteia, o apalpa, que tende para ele, que o faz entrar em si mesma, o possui, o penetra e o inunda”. Estamos longe do espaço sóbrio e solene do teatro de Camillo ou do classicismo expressionista de Auriti. É a Jobs que se vai buscar a interconectividade imediata e a relação preservada, familiar. Estamos distantes da obra de arte como mercadoria susceptível de se traduzir num valor de troca. Ao exacerbar precisamente o seu valor de uso, através da instalação, Marreiros recupera, por meio de um fetichismo moderno e ritualizado, a funcionalidade esquecida na organicidade do ateliê e na friagem do conceito. “Imagens que passais...” Se título, entrada e trajecto evidenciam uma reflexão sobre o tema da Bienale, na instalação indubitavelmente emerge o próprio palácio das memórias de Carlos Marreiros, num teatro por si arquitectado e concebido para a exposição de Veneza. No entanto, como a memória indelevelmente se infecta pela cidade primordial, Macau constitui, quer na representação

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quer em filigrana, um personagem quase omnipresente neste teatro de palácios de memórias. É a simbólica desse Macau eivado de duplicidade, efeito de camadas de duvidosa fronteira, há 500 anos traçadas em pinceladas paralelas, casualmente se tocando nesse infinito que são as pessoas. Macau, professora do Ocidente no Oriente, mestra do Acaso, doutora em Caos e Liberdade; Macau da megalomania branda, do desespero da cidade cercada, da euforia de um horizonte de desgraça anunciado. Macau, altar dos mundos conhecidos e a conhecer. A memória de heróis, de figuras identitárias – que o são da tinta ou do amor, não do sangue – dilui-se nas obras que são de uma cidade, de um povo, de uma aptidão e de uma sensibilidade. São também as memórias dos ambientes e das suas singularidades (vozes, cheiros, tessituras) a entretecer a rede própria a cada identidade. Esta apropriação de índole matricial de fragmentos/micro-histórias da cidade – a sua relevância em termos identitários e a consciência de que o princípio de um ciclo é terreno propício à erosão de memórias – impele mesmo Carlos Marreiros a sugerir a criação de um exemplar da memória macaense, a que chama carinhosamente Doce Cabana Enciclopédica de Macau (DOCEM),

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que surgiria justamente como uma tentativa ciclópica, digna de um início de ciclo ( à la Camillo e Auriti), de recolher a memória macaense. Porque cada era produz as suas memórias, subordinadas a um ritmo e uma escatologia diferentes, hoje as imagens de Macau irrompem futuradas pela tecnologia, disseminadas de forma tão incessante que se subtraem ao filtro da razão, da observação, da teoria, para se dissolverem, sem outro estatuto que o da sensação, no inconsciente, onde eventualmente realizarão o seu trabalho. Finalmente, habituámo-nos a “deixar passar”, a procurar o gozo instantâneo, o efeito especial entorpecente. “Imagens que passais pela retina dos meus olhos por que não vos fixais?”, perguntava o poeta Camilo Pessanha, assoberbado pela constatação da efemeridade da representação e das coisas, tão contrária ao desejo ínvio de tudo em si suster. Hoje ninguém pergunta nada. Narrativa da memória contemporânea, as imagens de Macau sucedem-se como série ilógica, desirmanada, como estado de sítio de uma cidade experiente da desagregação de um mundo, talvez por isso a precisar urgentemente de organizar a sua memória, na exacta medida em que clama por identidade e esquecimento.


Do Sacrilégio e do Monstro Um início de ciclo potenciou o aparecimento de projectos memorialistas. Tal deriva, talvez, de um presságio pós-apocalíptico – não tendo o mundo terminado, uma nova era se acomoda e o passado corre o risco de se perder. Constatamos esse facto no tempo de Camillo, com o advento renascentista, como o constatamos em Auriti, com o planeta pós-nuclear. Se a proposta camilliana era coleccionar sabedoria e ordená-la, segundo uma divina fórmula, para lhe garantir acessibilidade; ou se pretendia, mais além de um mecanismo de consulta, criar uma metáfora poética e arquitectónica do destino humano, divinamente projectado e tragicamente interpretado, vinculado e submergido na memória colectiva, parece difícil de responder. Sob um certo olhar, há algo de sacrílego nisto tudo. Pois propor o que assemelha o

homem aos deuses constitui um acto ímpio, uma herege ousadia, a remeter para o desafio de Babel. Afinal, um desmedido orgulho e uma persistente vaidade, porque estes projectos apresentam dimensões, na sua visão última, que muito ultrapassam a medida humana. O carácter blasfemo do utópico e um desejo luciferino de semelhança divina assombram estas pretensões. Pelo acesso a toda a informação, o homem seria detentor de todo o poder – eis o sonho imperial sempre revisitado de Roma à dinastia Qin, da burocracia kafkiana ao III Reich. Carlos Marreiros propõe-nos uma iniciação pela Arca do patriarca Noé. Atrevidamente mutada em prancha de surf, talvez signo da sua “inocência”, nem assim desdramatiza o conteúdo apocalíptico de tábua de salvação para a memória viva da Terra. Perante a catástrofe, para além da família humana, guardam-se as espécies, a diversidade da vida. Evola um cheiro a caos e a incesto. Ela por aí vem, por seu monte Ararat, que sempre se afasta do horizonte e as águas tardam em baixar. Por que baixariam?, perguntam os assustados passageiros. Dar-se–á o caso da Arca nunca ter realmente atracado e ainda balance nas águas de um irrazoável Dilúvio, sem terra firme onde aportar? Outros viajantes fazem do longe o seu caminho... Também o rigor divino do anfiteatro camilliano, com a sua proliferação da compartimentalidade e a possibilidade de um único topos onde está tudo, exala de igual modo um prenúncio apocalíptico, pois há sempre algo de excessivo, de titânico, nestes fabulosos projectos, que lhes atribui as características reconhecíveis num monstro. No caso de Camillo, a própria ordenação sistemática nos introduz ao registo do Deus ex machina cartesiano, um conceito de universo mecanicista regrado por uma razão divina homóloga à razão humana. O anfiteatro surge como reprodução de um mundo de ideias, muito ao gosto neo-platónico do seu tempo. Sob esta aparência, subtilmente oculto nas formas clássicas, ruge um carácter sacrílego e monstruoso, claramen-

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te iluminada na desconstrução tríptica da utopia auritiana, onde Marreiros expõe as três faces escondidas do edifício, revelando a excessividade, carácter de utopia frágil e o perfil concentracionário da informação coleccionada. Jobs for the boys O que nenhuma civilização construiu e nenhum homem nomeou, fê-lo o final do século XX de forma colectiva. Steve Jobs tornou a internet acessível a quase todos enquanto plataforma de comunicação, tavola rasa ou quase, para ser preenchida de forma global. Das sete partidas do mundo caíram num ápice torrentes de informação e hoje a internet – que tornou possível a globalização e que dela se alimentou – é um repositório de memórias mais vasto que qualquer enciclopédia. Com a diferença de ser acessível, a qualquer momento de qualquer ponto do planeta globalizado. O monstro está aí para durar. Trata-se, contudo, de um monstro subtil. É verdade que o palácio virtual de memórias hierarquiza a informação, mas fá-lo em pressupostos bem diferentes do passado. Estamos longe de uma compartimentação informativa, de uma numerologia divina ou de uma arquitectura de referência, mas perante uma funcionalidade adaptada aos valores do mundo contemporâneo. A hierarquia na internet é todos os dias desafiada por epifenómenos de curta duração cuja erupção constitui hoje o núcleo do próprio sistema e garante a sua vacuidade essencial. Subrepticiamente ou não, fluxos de dinheiro sustêm esta virtualidade e aí encontram a felicidade um novo espaço de reprodução. O seu consistente perigo está precisamente no quanto a sua existência nos fará esquecer (para além do seu papel como equalizador de identidades). Transferir a memória das pessoas para a rede, já que ela por todo o lado nos acompanha, é uma tentação que terá um efeito futuro de dimensão desconhecida. Quão relevante é a memória pessoal, culta e activa, para a formação de novas ideias, novos conceitos, novos modos de resolver

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problemas e, sobretudo, para uma formação ética? Até que ponto a permanência virtual do saber em local de acesso fácil não inibe nas novas gerações a necessidade de aquisição pessoal de conhecimentos e de uma produção moral abrangente e consistente? Se, por enquanto ainda nos seus inícios, a internet continua a ser uma fortaleza de difícil controlo, certamente que as grandes organizações estatais e privadas criarão sistemas apropriados aos seus interesses. Por agora, do lado da informação, a propagação imediata da notícia, o geral desinteresse pela credibilidade das fontes, a maximização da quantidade, a sua origem aleatória, os temperos de entretenimento, têm paulatinamente conduzido à descredibilização e à dúvida. Tudo e nada é verdade, porque tudo é possível e nada realmente acontece. Este pensamento nihilista e ataráxico tornou-se basicamente viral, não por ser transmitido através de ideias mas pela dissolução que estas sofrem na rede global. Excepção que Marreiros insiste admitir: os PATO.MEN, fila limitada de humanos, insistentes habitantes da vida para além das redes que transversalmente frequentam, guiados por uma Ética de forja incerta mas, a cada passo do caminho, voltada para a poesis e a beleza. Finalmente, o homem que se exige ainda actor no teatro da memória e utopiza formas de corresponder ao desempenho prescrito, ainda que secretamente almeje reescrevê-lo ao longo do caminho – rebeldia que tem sido seu calvário e salvação. Se domesticados, ordenados, catalogados, os fragmentos da memória oferecem a enciclopédia, a caixa-forte do saber, um novo ponto de partida, do qual só esporadicamente terá sentido olhar para trás. Ordenar a memória é também um modo subtil de esquecimento e o passado amiúde um inferno onde não se quer voltar, ainda que nele se aprenda, quantas vezes em elevado grau de fruição, como palmilhar as vias que a memória assim tornada futurante nos oferece. Eis o trabalho nesse amanhã cujo advento é contínuo motivo de espanto e celebração.


A dor que deveras sente carlos morais josé

H

“Avant tout la musique”

averá uma frase de Borges que nos remete para o devaneio de na poesia se encontrarem contidas a música e a pintura, pois a sucessão de palavras – para além das ideias – conteria ritmos, melodias e imagens. Deixando, por ora, de lado a vertente contemplativa e considerando unicamente a música, não será difícil atribuir o carácter encantatório do fluir poético à existência de uma musicalidade no poema, seja ela derivada da sonoridade das palavras ou do modo como se entrelaçam, para depois se sucederem as imagens e os conceitos. Existe na poesia um efeito vibratório, musical, onde reside, se não o seu principal pólo de interesse, pelo menos a fonte de parte considerável do seu fascínio. “Os estímulos visuais”, refere Ester de Lemos, “não escapam tão facilmente à vigilância da razão, não são tão facilmente encarados em si mesmos como os estímulos auditivos, sobretudo os musicais.” (Lemos, 1956, p. 30) Se a música escapa à vigilância da razão, ela será o meio excelente para arrebatar, para suster essa poesia que “eleva cada indivíduo através de uma ligação específica com o todo restante.” (Novalis, 2009, 121). Este carácter sintético da poesia, em grande parte ancorado nessa musicalidade, não deverá ser entendido como referido à dialéctica, que entende um momento de negação, mas a um mero gesto de apropriação criacionista, capaz de proporcionar polaridades outras e sistemas de leitura, o que equivale a dizer

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reinventar universos e abrir uma miríade de possibilidades à expressão da vida. A síntese, na dialéctica, exprime, afinal, o culminar do processo de aculturação; no criacionismo, a função da negação, fundamental na construção da identidade, só estará presente na expressão poética como condição de sinceridade do media, como se pretendesse operar uma regressão a um estado anterior onde a graça da criança (das três metamorfoses de Nietzsche/Zaratrusta) lhe permite apoderar-se do mundo num golpe. Não se tratará, contudo, de uma regressão propriamente dita mas de uma reaquisição — a saudade é do futuro. Se, para Rousseau, a primeira linguagem era poética tal seria no sentido em que uma palavra dessa primitiva língua encerraria muito mais sentidos que o seu significado literal (ou que este não existiria e muitos significados estariam contidas numa palavra só) e os homens de antanho falariam basicamente por metáforas, abarcando assim mais do mundo do que eles próprios poderiam compreender, sendo a Língua o repositório de um saber que os próprios indivíduos que a falavam apenas entenderiam parcialmente. A poesia inscreve-se numa ânsia de apropriação do mundo e dos seus sentidos ocultos, num claro sentir filosófico em que, para além da vibração musical (mas também em ela), o poema expressa uma visão, eventualmente, o esboço ou o castelo final de uma qualquer metafísica. É com o primeiro Romantismo que poeta e poesia exacerbam esta ânsia, assumindo o conceito poético que elevará o “homem acima de si mesmo”. Trata-se, no dizer de Novalis, de uma poesia “transcendental”, que é “mesclada de filosofia e poesia”, e que prefigura a dissolução dos sistemas filosóficos, na medida em que “se o filósofo ordena tudo, coloca tudo, então o poeta dissolveria todos os elos. As suas palavras não são signos universais — são sons — palavras mágicas, que movem belos grupos em torno de si”. Novalis remataria: “Quando mais poético, mais verdadeiro”. Parece então que com o Iluminismo, o poeta visa ultrapassar o mero papel mediador do xamã para aspirar a ser ele mesmo – através dessa transcendentalidade que lhe proporciona o pensamento filosófico e mesmo a ciência – uma fonte de permanente problematização, expressão radical da vida mas também das volutas do espírito, sem abdicar também do modo – mágico – como eventualmente recuperará alguns restos dessa linguagem primordial, onde se rebatiam os mistérios do mundo e das coisas.

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Pessanha e as “nobres especulações do espírito” Sem deter o exclusivo ou sequer a preponderância, poesia e filosofia particularmente se entrelaçam no espaço da Língua Portuguesa, por razões que talvez passem pelo defeito da segunda e o excesso da primeira. Após o milagre grego, raramente o Sul produziu um assertivo pensamento lógico, mas as preocupações metafísicas, lidas através dos penetrantes filtros da experiência do mundo e de particulares sensibilidades, cedo se imiscuíram em temáticas versejadas. Já em Camões, para não irmos mais atrás, ao vate, ao cantor épico, se sobrepunha o homem dilacerado pela dúvida, onde o recurso à mitologia soa – além da epocalidade renascentista – ao desespero de constatar uma diversidade percorrida, revivida, recebida e, por tanto, a intuição de um mundo desencantado. Na segunda metade do século XIX, a presença cimeira de Antero de Quental – o que “ensinou a pensar em ritmo; descobriu-nos a verdade de que o ser imbecil não é indispensável a um poeta” (Fernando Pessoa) –, com certeza deu um tom definitivamente filosófico à expressão da poesia lusófona e talvez poético à filosofia pensada em Português. As crises, civilizacional na Europa e muito específica em Portugal, na sequência do Ultimatum britânico, eram demasiado profundas e dolorosas para que os poetas se limitassem aos devaneios dos salões, às rimas de ocasião, enfim às actividades dos que Pessanha define como “essa legião de poeta mínimos, cuja pobre musa toda a sua fecundidade esgota na concepção de cem páginas de lirismo”. Como explica Gustavo Rubim, Camilo Pessanha critica a poesia como “uma expressão directa dos sentimentos, das sensações ou da experiência vivida do poeta e opõe-lhe uma concepção mais abstracta que inscreve o discurso poético no campo das ‘especulações do espírito’”. Ora para sustentar a filosofia no discurso poético, para lhe garantir o carácter especulativo, implica, como diz o autor de Experiência da Alucinação, “uma certa dimensão impessoal” (Rubim, 1993, 142). Ou seja, o que Fernando Pessoa já exprimia, quando escreveu este revelador apontamento: (...) A cada um de só três poetas, no Portugal dos séculos XIX a XX, se pode aplicar o nome de «Mestre». São eles Antero de Quental, Cesário Verde e Camilo Pessanha. (...) O terceiro ensinou a sentir veladamente*; descobriu-nos a verdade de que para ser poeta não é

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* Este sentir veladamente pode-se prestar a variadas interpretações, entre as quais esotéricas, que remetem por exemplo para o mitema do Homem do Velo, presente na pintura Ecce Homo, de um anónimo português do século XV, de influência templária, onde Cristo surge de olhos velados; ou no Veloso, o que busca para além da colina, personagem de Os Lusíadas.


mister trazer o coração nas mãos, senão que basta trazer nelas os simples sonhos dele. Estas palavras que não são nada bastam para apresentar a obra do enorme poeta Camilo Pessanha. O mais, que é tudo, é Camilo Pessanha.” Este “trazer nas mãos os sonhos do coração” implicará um duplo distanciamento: uma consciência primeira que, se bem que sob o filtro da sensibilidade, exige a exterioridade; e uma exterioridade que permite a reflexão distanciada. O poeta adquire esse distanciamento em relação a si mesmo (ao lirismo óbvio) e a possibilidade de contemplar (teorizar) o que detém agora nas mãos, operando uma espécie de processo alquímico de destilação, decantação e, finalmente, sedimentação – de sensações, sentimentos e ideias – nas palavras finais do poema. Isso é de tal modo presente em Pessanha que, mesmo quando produzia “os seus poemas por uma premente necessidade espiritual”, fazia-o “numa atitude eminentemente intelectual (...) vivendo e revivendo o sentir dos momentos de concepção poética.” (Dias Miguel, 1956, 185) É então a poesia o canto desses sonhos do coração? O que são eles? Parece-nos que Pessoa se refere, quase falando numa linguagem gémea da de Pessanha, a um processo poético. Curiosamente (e tal não deverá passar de uma coincidência), no pensamento tradicional chinês, seja ele confucionista ou daoísta, o coração (xin) é a entidade onde residem as emoções, os desejos, os sentimentos, o pensamento e a moral, ou seja, ali se entrelaça toda a fenomenologia da existência interna dos seres humanos. Se entendermos coração neste sentido, teremos então o indivíduo e todos as seus rizomas culturais nas mãos. Mas Pessanha, por outro lado, entregava-se “ao trabalho do aperfeiçoamento da expressão, preocupado até à angústia com o sortilégio e a magia verbal, condensando e polindo de tal modo, que muitas vezes obscurecia quase totalmente o sentido biográfico e directo que tinham essas poesias”, nas palavras de António Dias Miguel. (Dias Miguel, op.cit.) Assim se revelam a existência de uma matriz filosófica e uma a exigência de distanciamento biográfico, a par com a demanda extrema da musicalidade. Seguindo estas referências, parece inegável que a reflexão filosófica ocupa um lugar fundamental na poesia de Camilo Pessanha. Ainda que nem sempre explícita, a sua concepção

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do mundo constituiu, talvez de forma dolorosa, uma das principais episteme onde a sua poesia lançou raízes e a partir da qual se desenvolveu. A pergunta e o gelo Já em 1887, no poema Soneto de Gelo, o poeta explicitava algumas das preocupações derivadas do seu dispositivo ontológico: (...) “Eu mesmo quero a fé, e não a tenho, – Um resto de batel – quisera um lenho, Para não afundir na treva imensa, O Deus, o mesmo Deus que te fez crente... Nem saibas que esse Deus omnipotente Foi quem arrebatou a minha crença” Ou seja: a ausência da fé, uma existência num mundo sem Deus e, consequentemente, a morte como fronteira de dissolução do indivíduo. O poeta quisera uma pequena prova, ainda que só “um lenho”, de “um resto de batel” (a barca, baraka — animal fantástico, montada de Abraão e Maomé, que na mitologia islâmica opera a comunicação entre dois mundos), algo onde se suster, que o não deixe “afundir na treva imensa” de um universo vazio de sentidos divinos ou de quaisquer outras satisfatórias respostas. É precisamente essa “treva imensa”, o segredo insondável, que provoca no poeta o início de uma profunda dor metafísica, quase revolta contra a divindade pelo seu silêncio/inexistência e sua consequente falta de fé. Se foi Deus “quem arrebatou a minha crença” é porque o estado de descrença é anterior ao próprio advento do raciocínio científico-filosófico ou da intromissão da cultura. É certo que a falta de fé surgirá também como decorrente do próprio ZeitGeist, da posição do poeta num dado momento civilizacional. É a religião na qual foi educado, as relações familiares, a escola frequentada, o valor atribuído ao conhecimento científico, a sociedade emergente, enfim, o conjunto global de valores e procedimentos que constituem uma Cultura num determinado momento da História, que tornavam problemática a existência de Deus. Mas Pessanha parece afirmar que sente a sua descrença, de algum modo, anterior, constitutiva e fatal, porque lhe foi arrebatada por Deus, o que não deixa de exalar uma paradoxal ironia. A extinção da crença resultará como anteriormente resul-

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tava a sua afirmação: sem que o sujeito nela tenha uma real intervenção. Pessanha assume neste poema o seu ateísmo como condição (dolorosa) e não como decisão consciente. Até porque o novo universo, dessacralizado, não lhe fornece respostas. Simplesmente, efemeramente o admite, na sua fria indiferença, sem proporcionar qualquer consolo às angústias fundacionais dos humanos. O poeta refere esse mal-estar matricial no poema Estátua: Cansei-me de tentar o teu segredo: No teu olhar sem cor, — frio escalpelo, O meu olhar quebrei, a debatê-lo, Como a onda na crista dum rochedo. Segredo dessa alma e meu degredo E minha obsessão! Para bebê-lo Fui teu lábio oscular, num pesadelo, Por noites de pavor, cheio de medo. E o meu ósculo ardente, alucinado, Esfriou sobre mármore correcto Desse entreaberto lábio gelado: Desse lábio de mármore, discreto, Severo como um túmulo fechado, Sereno como um pélago quieto. O cansaço de procurar de respostas no olhar – acto que remete para a contemplação, a teoria –, dá lugar à ousadia do beijo – acto amoroso, a poesia. No primeiro caso, a contemplação esbarra e quebra-se “como a onda na crista de um rochedo”. No segundo, produz-se um esfriamento do que era “ardente, alucinado”. Ou seja, nem a razão consegue penetrar o insondável; nem um extremo desejo e uma vitalidade transbordante obtêm outro resultado que não seja a sua própria dissolução. Em ambos os casos, sobrevém uma existência assombrada pelo silêncio. Emana, de facto, deste poema uma sensação de horror perante um universo feito estátua, em cuja indiferença nem Razão nem Vida penetram. Estátua porque, se bem que gelado e silencioso, de olhar sem cor como as estátuas gregas, ainda assim, tal como a escultura clássica, o universo não deixa de exibir uma certa ordem e exalar uma profunda bele-

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za. Tal acentua o sofrimento do poeta perante a impossibilidade de – não de o conhecer – mas de beber esse segredo. Não serão os conhecimentos científicos, racionais, que trariam satisfação a Camilo Pessanha, pois estes nem de perto pretendem responder às questões que o habitam. Mas, mesmo face às suas ousadias, de pesadelo, nada acontece a não ser o esfriamento perante a gravitas de um “túmulo fechado” ou de um “pélago quieto”. Pessanha habita um universo novo, que a ciência descreve através das teorias quânticas, do princípio da incerteza, da transformação sucessiva de matéria em energia e de energia em matéria, em que a própria matéria não é mais que uma vibração ou ondulação, obediente a ritmos misteriosos, desconhecidos mas dessacralizados. Não será também o uno conceito de Vontade, de Schopenauer — como tem sido repetidamente afirmado por uma ligação rápida ao dito pessimismo do alemão —, que aqui estará em jogo. Não existe uma Vontade (conceito eivado de metafísica), mas um palimpsesto de forças, de energias, de vibrações, num universo em que as formas se limitam uma existência efémera como no poema “Imagens que passais pela retina dos meus olhos / Porque não vos fixais?”, em que tudo é transitório e de sentidos vagos. Os “olhos pagãos” somente vêem os “sucessivos desertos”. E nem a sua presença deixará qualquer rasto: “Fica sequer, sombra de minhas mãos”. No lugar de Deus não existirá nada, sequer faz sentido o panteísmo de Espinosa. A ideia de um ser divino, antropomórfico ou disseminado, dará lugar a esse resfolgar contínuo de todas as coisas, essa dimensão pulsante que permite supor a existência de um ritmo primordial, incessante, inesgotável, sem face nem propósito, sem leis morais, mera energia e mera matéria, em permanente metamorfose, como o poeta sussurra ainda no seu leito de morte, à laia de despedida: “Tudo podridão... tudo matéria...” E podridão, o leitor do Octave Mirbeau de “O Jardim dos Suplícios”, novela passada em Cantão no século XIX, que Pessanha certamente era, sabe que significa metamorfose. Num plano mais pessoal, é a ausência de uma consciência divina que torna fútil a crença num destino, dando ao indivíduo a sensação solitária de à toa marear na vida, tornando-a também a ela fútil e levando à invocação da morte como acto estético último, no sentido borgesiano da iminência de uma revelação que não se produzirá.

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Enfim, levantou ferro. Com os lenços adeus, vai partir o navio. Longe das pedras más do meu desterro Ondas azuis do oceano, submergi-o. Que eu, desde a partida, Não sei onde vou. Roteiro da vida Quem é que o traçou? (...) A sensação de inutilidade da vida (“Foi um dia de inúteis agonias”... “Floriram por engano as rosas bravas...”) percorre a obra de Pessanha. A vivência num mundo desencantado, sublinhada pela decadência do país, estriba-se numa ontologia melancólica, onde a aura materialista acaba por ser, em confronto com a sensibilidade do poeta, fonte de uma inextirpável dor. Camilo Pessanha será um daqueles primeiros homens a ter nascido no mundo de um Deus morto (Nietzsche), mas onde a estrutura religiosa se encontra profundamente imiscuída na Cultura e mantém a sua influência noutros domínios que não o filosófico. Por exemplo, nesta linha, Michel Onfray, no seu Tratado de Ateologia, classifica de ateísmo cristão o pensamento dos homens oitocentistas que não acreditam na existência de Deus, mas cuja moral se rege pelos valores do cristianismo. No caso de Pessanha – também porque a sua poesia mergulha “as suas raízes no húmus natal” – existirá, não uma moral cristã, mas uma estética primeva que não dispensa uma concepção divina, um plano do mundo. É, sobretudo, em termos estéticos, imagéticos até, com todas as suas consequências, que esses arquétipos assombram Pessanha. Ele recorre aos mitemas da sua cultura, claramente perturbantes, para exprimir o seu desvanecimento no mundo contemporâneo e também na sua própria sensibilidade. Tal procedimento é recorrente quando o poeta se refere, por exemplo, a figuras femininas, segregando imagens como “Magra figura de vitral...”, “Madalena, cabelos de rastos...”, de nítida influência religiosa ou, num registo mais rural, mas igualmente irreal: a alma de sua mãe, pela neve, a mendigar à porta dos casais. Repare-se ainda no poema Transfiguração: Mulher forte, remiu-me a tua prece: Penitente, pagão, bem lusitano

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Ergo os braços ao céu quando anoitece. Judas divaga, em espiras de pecado Eis-me o Verbo de Deus, sacramentado No rebuço dum capote alentejano. A mulher (origem, cultura) fica como repositório da crença, que eventualmente, à la Pascal, o redimirá. Mas ele é Judas (traidor, em pecado) e mesmo quando poeta, expressão divina, “sacramentado”, acaba rebaixado à banal, prosaica, desencantada condição de existência “no rebuço dum capote alentejano”. Fusão ou barbárie Uma das consequências principais de um universo dessacralizado é o surgimento da morte como espaço de dissolução do indivíduo. Deus existiu moribundo na poesia do século XIX, até encontrar a sua mais desesperada e última expressão no satanismo, que precedeu o nosso poeta. Tais caminhos mostraram ser becos sem saída, meras expressões contingentes de um problema que cavava mais profundo que uma inversão, na qual, afinal, se declarava um amor supremo edipianizado. E não seria por aí que Camilo caminharia. Como refere Rubim, a partir da crítica do poeta ao livro Flores de Coral, de Alberto Osório de Castro, nele a vida surge como “uma consequência lógica” da morte, a vida significa a morte, uma não é a negação da outra. “De que havia pois de lamentar-se, ou contra o que havia, pois, de insurgir-se, se a morte é, em relação à vida, não só o termo fatal, mas também a consequência lógica?” Contudo, Pessanha não deixa de considerar a morte como algo de fatal, a par com uma consequência lógica. Daqui se entende a concepção da vida — apenas porque no humano existe à partida o conhecimento antecipado do fim —como fatalidade, embora esteja ausente o destino. O que parece aconchegar tal concepção da morte como dissolução do indivíduo, em que esta não passa de uma “consequência lógica da vida”, parece ser um desejo último de fusão com o Cosmos, finalmente de participação total, expurgadas que serão a consciência e a dor. Recortes vivos das areias, Tomai o meu corpo e abride-lhe as veias... O meu sangue entornai-o, Difundi-o sob o rútilo sol (...). Só o meu crânio, fique,

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Rolando, insepulto no areal, Ao abandono do simoun Que o sol e o sal o purifique. A morte será uma porta para a integração total no universo, integração que não será a de uma alma una mas da matéria que se transforma, de um corpo que se desfaz: “Róseas unhinhas que a maré partira... / Dentinhos que o vaivém desgastara... / Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos...” é o que sobra de uma vida e da “fúlgida visão, linda mentira!”. Poderá ser correcto afirmar que a biografia infantil do poeta, as suas desilusões amorosas e mesmo a sua frágil saúde terão sido razões importante para conferir à dor um lugar de relevância nos seus poemas. Mas creio que, aquém e além das referências biográficas, fará sentido outorgar a esta dor metafísica – consequência da consciência da inexistência de Deus, do indivíduo após a morte e do Destino – um papel central na obra do poeta de Clepsidra. A dor que deveras sente De tal modo a questão da dor é central na poesia de Camilo Pessanha que o poeta a transforma em energia necessária, como se ela fosse o único instrumento que permitiria uma visão mais profunda do universo e, de um modo quase perverso, justificasse a existência humana: uma espécie de Sofro, logo existo, na medida em que seria um garante de Ser. Tenho sonhos cruéis: n’alma doente Sinto um vago receio prematuro. Vou a medo na aresta do futuro, Embebido em saudades do presente... Saudades desta dor que em vão procuro Do peito afugentar bem rudemente, Devendo ao desmaiar sobre o poente, Cobrir-me o coração dum véu escuro!... Porque a dor, esta falta de harmonia, Toda a luz desgrenhada que alumia As almas doidamente, o céu de agora, Sem ela o coração é quase nada:

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— Um sol onde expirasse a madrugada, Porque é só madrugada quando chora. Sem a dor, o coração, os tais sonhos, “é quase nada”. São as lágrimas que justificam a madrugada e sem elas o sol não seria sol, nele se extinguiria o que ele próprio proporciona. A importância atribuída à falta de harmonia remete para a frase de Rimbaud: “Finalmente, acabei por considerar sagrada a desordem do meu espírito”. No caso do poeta português, essa desordem é fruto da dor, mas é também fonte de iluminação, de uma percepção outra do mundo, como se fora um método poético de absorção mais intensa das coisas. Este poema é de 1888. Mais tarde, o poeta acabaria por rever esta posição como adiante demonstraremos. Ora a questão da dor fora colocada no debate filosófico, entre outros, por Soren Kierkegaard e por Nietzsche que, na sua Genealogia da Moral, a refere como a grande criadora de memória. O filósofo alemão evoca os grandes espectáculos públicos da dor: as matanças, as carnificinas, as execuções públicas e a tortura, a que a Humanidade tem paulatinamente assistido e cuja função, afirma, é precisamente a criação de uma memória; a dor como uma terrível mnemotécnica, que passa mesmo, em certas sociedades, por rituais extremos e pela inscrição dos corpos. Num plano individual, a dor também proporciona a memória e demarca os limites de acção dos indivíduos, mas a sua persistência, nomeadamente de uma dor metafísica, impele o sujeito para a reflexão filosófica e – pretenderão alguns – estende o campo de percepção a outras realidades. Tal fará, em Pessanha, que a dor seja invocada: “Saudades desta dor que em vão procuro / Do peito afugentar bem rudemente”. Repare-se no paradoxo: sente-se a falta (heurística) de uma dor que se pretende eliminar, porque ela é “a luz desgrenhada que alumia as almas” e o “céu d’agora”. Ou seja, a dor é ainda o que permite, no caos que desencadeia, um determinado conhecimento de si próprio e a intuição do universo. Veja-se o exemplo do poema Branco e Vermelho, no qual a dor se transmuta em luz, em lúcida febre e proporciona a visão, a contemplação do mundo. E é toda uma humanidade agrilhoada que o poeta nos descreve, atravessando um mundo deserto, futilmente explorada e temente de um castigo, seres viventes nos charcos do medo, que só a morte liberta do sofrimento. A dor induz o poeta a um estado de luminosidade/alucinação que lhe proporciona a visão da humanidade que desfila, açoitada ao ritmo dos seus versos. E que humanidade é essa?

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Um grande painel de sofrimento, de desconforto metafísico e também produto do crime cometido desde o alvorecer da História: a exploração do homem pelo homem. Claro que neste poema existem outros cambiantes, outros caminhos interpretativos, nomeadamente (uma vez mais) para quem se quiser referir a conhecimentos esotéricos e à importância do maniqueísmo (a oposição luz/trevas) no pensamento templário e maçónico, sabida que é a filiação de Pessanha à maçonaria. Contudo, cremos que esta filiação, longe de ser religiosa, passava precisamente pela recusa da Igreja e por uma tendência de fraternidade social. É sabido em Macau que a loja a que Pessanha pertencia não tinha um carácter teísta, bem pelo contrário. Dela fizeram parte conhecidos ateus e republicanos. Alma lânguida e inerme À medida que em Macau Pessanha vai adensando os seus contactos com o pensamento chinês, podemos vislumbrar nos seus poemas alguns pontos de contacto com a tradição oriental, nomeadamente eventuais influências daoistas. De facto, a concepção de um mundo heraclitiano, em permanente movimento, não andará muito longe da ontologia proposta pelo pensamento daoista, mas será sobretudo o retorno à pureza original, que todo o pensamento clássico chinês prescreve, que encontra nos daoistas um método que nos surge como próximo de certos versos do nosso poeta. Para o sábio daoista, deve o homem retirar-se do mundo, afastar-se para o ventre da terra onde, no silêncio, num processo de metamorfoses, comparável ao de uma crisálida, se transformará no Feto Imortal. O daoista alimentar-se-á na sua gruta, sugando as estalactites, como se fossem os seios da Terra. Pessanha abre precisamente a Clepsidra como o famoso poema Inscrição: Eu vi a luz em um país perdido. A minha alma é lânguida e inerme. Ó! Quem pudesse deslizar sem ruído! No chão sumir-se, como faz um verme... Ou mais à frente no mesmo volume: Porque o melhor, enfim, É não ouvir nem ver...

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Passarem sobre mim E nada me doer! — Sorrindo interiormente, Co’as pálpebras cerradas, Às águas da torrente Já tão longe passadas. — Rixas, tumultos, lutas, Não me fazerem dano... Alheio às vãs labutas, Às estações do ano. Passar o estio, o outono, A poda, a cava, e a redra, E eu dormindo um sono Debaixo duma pedra. (...) E eu sob a terra firme, Compacta, recalcada, Muito quietinho. A rir-me De não me doer nada. Ora não se trata aqui da morte mas de atingir um estado outro de consciência, em que a fusão com a Terra, que um psicanalista poderia atribuir a um desejo de fusão com a mãe, seria o passo principal para conseguir um determinado tipo de repouso, que eliminaria a dor. Gaston Bachelard, curiosamente no mesmo livro em que refere Lúcio Pinheiro dos Santos, um filósofo amigo do poeta de Macau, entende “o repouso como um dos elementos do devir”, que se inscreve no “cerne do ser, que devemos mesmo senti-lo no fundo mesmo do nosso ser, ao nível da realidade temporal sobre a qual se apoiam a nossa consciência e a nossa pessoa. (...) Que cada um, à sua maneira, se liberte das excitações de circunstância que o põem fora de si. (...) o ser libertar-se-á de um impulso vital que o afasta para longe dos objectivos individuais, que se desgasta em actuações imitadas. (...) A consciência pura aparecer-nos-á como uma potência de espera e vigia, como uma liberdade e uma vontade de nada fazer.” (Bachelard, 2006, V-VI).

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Estamos então perante uma espécie de quietismo como panaceia para a dor, fonte de iluminação e, no sentido referido por Gustavo Rubim, de alucinação, na medida em que a percepção do mundo se altera, se refina, se torna rítmica através da escuta aproximada do pulsar do pensamento e da própria matéria. Também nessa crisálida emerge, finalmente, um fio de voz, plena de consciência e de musicalidade, que dará origem ao poema. Não se trata, portanto, de um desejo de morte mas de obter um lugar excelso de compreensão do mundo que passa, como no daoismo, pela participação no todo, quase mineralização, onde a impessoalidade não significa necessariamente despersonalização mas, pelo contrário, a formação de um ser outro, como a borboleta Aurelia dos neo-platónicos de Alexandria, símbolo de uma nova sabedoria. Podemos concluir que o ateísmo de Camilo Pessanha não o conduziu a um beco sem saída, como o poema Estátua parecia anunciar. Pelo contrário, permitiu-lhe navegar por territórios desconhecidos, não se fechar na sua própria cultura e dotar a sua poesia de uma universalidade e de uma atemporalidade inegáveis. Quando nos subtraímos a essa ideia onde tudo cabe e que tudo explica, ficamos sós perante o Cosmos mas é precisamente nesse momento que se revela a tragédia e a beleza da condição humana, desse animal cujo dever é olhar o universo de frente, sem improváveis mediações, assumindo-se como filho das estrelas e do mar, assombrado pela ideia de infinito e orgulhoso por ser uma pequena chama no vasto incêndio do universo.

Bibliografia citada Bachelard, Gaston. La dialectique de la durée. PUF: Paris, 2006 Dias Miguel, António; Camilo Pessanha – Elementos para o estudo da sua biografia e a da sua obra. Edição de Álvaro Pinto (“Ocidente”): Lisboa, 1956. Lemos, Ester de. A “Clépsidra” de Camilo Pessanha: notas e reflexões, Tavares Martins: 1956 Novalis. Fragmentos, diálogos monólogos. Editora Iluminuras: São Paulo, 2009. Rubim, Gustavo. Experiência da Alucinação – Camilo Pessanha e a Questão da Poesia. Editorial Caminho: Lisboa, 1993.

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Cinema Macao (1952)

de Joseph Sternberg, com Robert Mitchum, Jane Russel, Gloria Grahame, Brad Baxter e William Bendix

“sonho americano”, as imperialmente expandir. Os americanos estão no mundo, dizia-nos o cinema dos anos 40 e 50. E era verdade: no caso americano, a narrativa mitológica tem uma rara sincronia com a História e talvez esse seja um dos sucessos mais radicais da cultura americana. Em 1952, Josef von Sternberg apresenta o filme “Macao”, cuja acção decorre nesta ci-

I descend upon all those cities, and rise from them again Walt Whitman O segredo da América é o grande impulso, a imensa energia, que os emigrantes transportam consigo e aplicam aos espaços onde chegam e chamam seus. Essa energia aboliu fronteiras para, mais tarde, na rarefacção do

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macao - joseph sternberg compõem os afazeres da cidade. Estes passam como irrisões, momentos quasi folclóricos, nos quais não se deixa, apesar de tudo, de ridicularizar o americano que crê estar entre selvagens (vide cena da barbearia entre o comerciante e a “barbeira”). Há que dar o braço a torcer a Sternberg, que aliás deixou a conclusão da rodagem ao jovem Nicholas Ray: o bom gosto do casting é perturbante: Robert Mitchum, Brad Baxter e William Bendix, do lado masculino; Jane Russel e Gloria Grahame, do lado que interessa. Há quem diga que o mítico director nunca perfilhou totalmente o filme. De facto, nota-se, nomeadamente a nível da iluminação, que não estamos perante um típico von Sternberg, como um “Der Blauer Engel”, “The Scarlet Empress” ou o já referido “Shanghai Express”. A luminosidade difusa que costuma envolver as suas personagens, com uma imensa capacidade mitológica — uma das suas mais famosas assinaturas —, desaparece; surge agora um contraste de pretos e brancos bem definidos, mais perto do estilo do filme noir que das suas efabulações luminotécnicas habituais. Já o guião não faz jus à qualidade/glamour do naipe de actores. Mas se as suas falhas se situam nos nódulos narrativos, que apresentam soluções inverosímeis, já a caracterização dos personagens não deixa de ser relevante para localizar uma imagem de americanos, criada por americanos, de passagem por esta misteriosa cidade do Extremo-Oriente. Afinal, que tipo de gente é esta, tal qual a mitologia de Hollywood a descreve? Poderá isso ser importante ainda hoje para compreendermos os americanos que agora aqui habitam, como tribo ou como vírus?

dade do Extremo-Oriente. Nada de surpreendente se atendermos a uma carreira pontuada por numerosas incursões em cenário exóticos, desde “Morroco”, com Gary Cooper e Marlene Dietrich, até à China — “Shanghai Express”, igualmente protagonizado pela diva alemã. Desta vez, Sternberg escolhe Macau para servir de cenário a uma trama de aventuras, o que dá bem a ver que esta cidade — o seu nome — despertava certo tipo de reminiscências no público americano, afinal o primeiro destinatário destas produções que se impunham rentáveis. Não se compreende que os estúdios aceitassem um nome que não provocasse no público um frémito, um desejo de assistir ao que se passa num sítio desses. O nome Macau tem, portanto o poder de evocar um imaginário, que só episodicamente terá algo a ver com a realidade, repleto das fantasias que bem entenderam lá colocar, mas que não deixa de se colar a esta cidade como imagem global. Claro que as filmagens foram esmagadoramente feitas em estúdios de Hollywood, tendo sido recolhidas, sem os actores, uma série de hoje interessantes imagens da cidade que, depois, são projectadas, inseridas como cenários, dentro do próprio filme. É, por exemplo, o caso da chegada do ferry, vindo de Hong Kong, e a vista do singelo Porto Interior de antanho, cruzado por juncos e sampanas, com os seus cais a fervilhar de gentes, “mainly chinese”; como o é também um passeio de autocarro pela Avenida Almeida Ribeiro, com locução do motorista em brasileiro, perfeitamente fora de contexto. Vistas bem as coisas, a excentricidade do filme não reside no exotismo da cidade em si mesma, já que esta lhe é estrangeira, mas no Macau recriado por Sternberg e sobretudo na caracterização dos americanos que deliram por estas paragens. O excêntrico — ou seja, os descentrados, o punctum do filme — são eles e não, propriamente, os costumes coloridos que

Que americanos são estes? Eles são — como não poderiam deixar de ser — o centro do argumento, da acção, dos torvelinhos do Bem e do Mal, do amor e dos ódios.

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macao - joseph sternberg O vilão, um americano de nome Vincent Halloran (Brad Dexter), é por coincidência com os tempos actuais apresentado como sendo o proprietário do mais rentável casino de Macau. Tendo a seu lado a imperscrutável Gloria Grahame, Vincent anda fugido ao FBI e à Interpol, por crimes não revelados, refugiando-se nas três milhas dos limites marítimos de Macau. Robert Mitchum encarna um ex-soldado com problemas legais nos Estados Unidos, vagabundo sem poiso certo, carteira vazia e alguma habilidade para o jogo. O acaso, os seus desatinos, trouxe-o até Macau, onde pensa arranjar um emprego no casino de Vincent. Atrás destes personagens vem William Bendix, um inocente comerciante que acaba por se revelar ser um paisana do FBI, no encalço do bandido. A pobreza do argumento acabou por se transformar, com o decorrer do tempo, como certos vinhos, num tecido podre, cujo interesse reside exactamente nos avatares da podridão, na tradição de “Os Jardins dos Suplícios”, de Octave Mirbeau, que, não por acaso, tinha como pano de fundo as concessões europeias de Cantão. Ele, ela, eles, não passam de personagens mal construídos, mas nisso reside hoje o seu encanto, na medida em que é muito por aí que Macao permite a erupção de personagens de outro modo relegados a papéis secundários nas várias histórias que Hollywood contava. A mulher de vida duvidosa, o homem sem horizonte, o vilão, o sargento, todos giram num torvelinho de ambição e ausência de valores que, por si mesmo, acaba por desembocar na regeneração.

A cidade e os seus habitantes limitam-se ao estatuto de cenário propício à emergência de determinadas características, princípios e valores que os personagens transportam de Ocidente. Os americanos deslizam por Macau imersos nas suas próprias histórias, ficando por exemplo bem claro que nenhuma ligação amorosa ou simplesmente erótica é susceptível de acontecer fora da sua “raça”. Pelo menos neste filme, neste contexto concreto. Contudo, também nenhuma das personagens apresenta os tiques completos do herói clássico: belo, bom e justiceiro. Trata-se de gente batida e calejada por andanças orientais, entre outras, sobreviventes sem um horizonte definido e sem outro tempo que não o da luta pela sobrevivência. “Cão come cão”, com mais ou menos estilo. A proximidade da II Guerra incensava este tipo de desajustado, de loser, que por motivos sombrios não tinha lugar no seu país natal, dando rebeldes a uma juventude tão insatisfeita que, ficando em casa, acabaria por não ter causa. Aqui perpassam os fantasmas de uma América em mutação rápida e impiedosa para os que são lentos no ajuste aos novos tempos. Estes encontram o seu lugar ailleurs. Neste filme, os três personagens principais são claramente uns desajustados, cuja presença em Macau não é uma escolha, mas uma espécie de etapa final de uma descida aos infernos (não será por acaso que um filme francês que também elege Macau como pano de fundo se intitule “L’enfer du jeu”). Jane Russel, a cantora de óbvios predicados, confessa existir um motivo que a obriga a sair de Hong Kong e a aportar em Macau, “a place healthy for plants, unhealthy for humans”, segundo o barómetro do ferry que no filme efectua a travessia. Por ela não deixaria a colónia britânica para se refugiar, como não hesita em classificar, nesta “lixeira”.

Macau e o halo Toda a acção se desenrola num Macau infernal de fantasia americana, de sampanas e riquexós, residenciais de toque latino e mesmo um corrupto sargento de polícia macaense,

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macao - joseph sternberg mundo, onde se esbatem as regras e se forjam novas identidades: Macau. Não o Macau real mas todos os fiapos de imaginação que a palavra Macao poderia despertar na mente de um americano dos anos 50. Um espaço onde se acredita ser possível a regeneração de uma vida, num lance de dados ou numa paixão. Esse espaço sem regras que constituiu desde o início o ideal do sonho americano, mas que o tempo se encarregou de transportar para outros lugares, como se actualmente só pudesse existir em sítios de filiação real mas cinematograficamente (miticamente) engendrados. Da limpidez da planície, dos grandes espaços por domar, à degradação da última cidade, à sujidade dos becos e das relações humanas, eis os avatares de um espaço proposto como lugar para o sonho que, propagado pela mais poderosa máquina cultural de sempre, ainda hoje domina o mundo: “Eu, carregando uma culpa, correrei as sete partidas do mundo e nos seus mais profundos baixios encontrarei a regeneração. Poderei viver de novo, livre da própria Memória; que é — como o cinema exaustivamente nos mostra — a nossa última prisão”. Venham, pois, até Macao. Assim, já não há em lugar nenhum do mundo. Aqui, se calhar, também não.

interpretado por um actor mexicano. O objectivo é atrair Vincent para lá das três milhas marítimas, onde um barco da Interpol, sediada em Hong Kong, espera para o capturar. É, pois, criado uma espécie de horizonte de legalidade, para cá do qual existe um espaço de impunidade seja para quem for. É uma espécie de confortável prisão ou inferno onde alguns têm forçosamente de permanecer, sob pena de serem apanhados pelas forças do Bem e castigados. Vincent Halloran vive nesse halo que Macau proporciona, uma frágil bolha de segurança que o estranho estatuto da cidade permite. A lei é vaga e o braço da polícia internacional não chega aqui. Estamos num paraíso de refugiados, ladrões, contrabandistas, aventureiros de ambos os sexos e de todos os países. Um mendigo cego, chinês, amigo dos bons, completa o ramalhete e ajuda a resolver o imbróglio, absolvendo toda uma civilização. É este o Macau dos anos 50 que Sternberg apresenta. Finalmente, o vilão é castigado e o casal parte para uma nova vida. A frase de Mitchum para Russel, que remata o filme quando ele sobe ao barco, a pingar de uma luta marítima, é um belo epitáfio para o filme: “You’d better get use to see me when I get out of the shower”. A moral da história é, então, um vago recomeço do novo casal, numa espécie de casa da pradaria, que se pode situar em qualquer lado e onde se reproduzirá a família americana. O happy ending / redenção do costume. Espaço de regeneração Espécie de excessos, restos desorientados de uma era, o espaço possível, físico e emocional, destes personagens foi encolhendo; por exclusão sucessiva deste e daquele obscuro negócio, desta e daquela cidade, deste ou daquele país, desta ou daquela paixão; até não ter que um lugar situado num extremo do

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á uma noite sobre nós. É espessa e difícil de enxotar. Somos filhos de uma alcateia expulsa daquela serra. Houve por lá um incêndio. Ainda arde. Os sinos repicam mas é em vão o chamamento. Repara-se agora não haver ninguém realmente capaz de o apagar.

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Foram impressos em Macau, Sul da China, no Outono de 2015, 100 exemplares da revista Ă“rphĂŁo na Tipografia Welfare.

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