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A transformação no universo do trabalho

“O mercado de trabalho valorizava muito a disciplina, a hierarquia e a previsibilidade. Hoje, os profissionais mais valorizados são os que lidam bem com criatividade, flexibilidade e adaptabilidade”

Guilherme Velho, professor e administrador de empresas

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Mercado A transformação no universo do trabalho

ápidos avanços e inovações tecnológicas, envelhecimento da população, globalização, aumento do comércio e dos investimentos diretos no exterior, intensificação da concorrência nos mercados internacionais, alterações climáticas e, mais recentemente, a Covid-19, uma pandemia. São fatores que impactam diretamente o mercado de trabalho. É o que aponta estudo recente publicado na Revista de Administração e Inovação (RAI). E há quem diga que estamos na “Era Trans”, uma era sempre em mutação: temos uma alimentação transgênica, relações e migrações transcontinentais, transparência de informações, debates sobre os direitos dos transgêneros, conteúdo transmídia.

Guilherme Velho, administrador de empresas, professor do Istituto Europeo di Design e da Sustentare Escola de Negócios, explica melhor: “Tudo está em transição, em transformação. Sendo assim, todos os setores saem impactados. Na administração de empresas, dizemos que as ‘Variáveis S.T.E.P.’ sopram sempre. São as variáveis sociais, tecnológicas, econômicas e políticas. Elas reconfiguram mercados de uma maneira que dificilmente imaginamos”, contextualiza o professor, especialista em economia criativa, inovação e gestão de negócios culturais.

Para Guilherme, as profissões “do futuro” são aquelas que interagem com as cidades, o campo, a indústria e o varejo, em processos permeados pela tecnologia. Ele cita algumas áreas que são tendências, tais como biotecnologia, urbanismo focado em grandes metrópoles, gestão de resíduos, programação, logística complexa, agrotecnologia e design de inovação.

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“Simultaneamente, vemos também uma grande valorização das profissões do campo humano, como antropologia, sociologia, filosofia, artes plásticas e teologia. Tudo aquilo que dá conta do que a máquina não trabalha, o que é abstrato, sensível ou intangível”, observa. As duas frentes, segundo Guilherme, tendem a se unir e se confundir. “O mercado financeiro contrata cada vez mais serviços de psicologia social para entender em que momento os clientes irão largar suas ações, para entender perfis, propensões de risco etc. Ao mesmo tempo, gigantes de entretenimento televisivo se valem cada vez mais de algoritmos para compreender interesses e tendências do seu público”, exemplifica.

De acordo com a pesquisa “Mapa do Trabalho Industrial 2019-2023”, do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), nos próximos anos, haverá crescimento de profissões ligadas à tecnologia. Charles Christian Miers, professor e pesquisador da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) e atuante no Laboratório de Processamento Paralelo e Distribuído (LabP2D) da instituição, evidencia que os dispositivos com sensores, como os celulares, possuem cada vez mais a finalidade de mapear continuamente a vida dos usuários, impactando as profissões. “Gera-se uma quantidade considerável de dados sobre os hábitos e preferências. Essa massa de dados é chamada de Big Data. Analisar e fazer previsões se mostra cada vez mais relevante no planejamento, tanto pessoal quanto profissional”, sinaliza.

Além da Big Data e IoT, Guilherme

No período de pandemia, as profissões e funções se remodelam em meio ao avanço tecnológico; modelo de home-office é adotado e reuniões passam a ser feitas por videochamadas

ressalta a importância de que os profissionais saibam lidar com conceitos novos, mas emergentes, como realidade aumentada, realidade virtual e machine learning. “Mais relevante do que as novas tecnologias ou novos conceitos é perceber a necessidade que o profissional do futuro tem de ‘ligar e desligar chaves’, entender detalhes de perto, ter uma análise do todo, oscilar entre eficiência e eficácia, real e virtual”, enfatiza. Nessa linha, o professor ressalta que o perfil desejado do profissional tem mudado tão rápido quanto a conjuntura atual. “Há pouco tempo, em um mundo mais estável, o mercado de trabalho valorizava muito a disciplina, a hierarquia e a previsibilidade. Hoje, pelo contrário, os profissionais mais valorizados são aqueles que lidam bem com criatividade, flexibilidade e adaptabilidade”, aponta, ressaltando que atualmente as habilidades comportamentais (soft skills) são tão significativas quanto as técnicas (hard skills). Liderança, comunicação, diplomacia, empatia e postura empreendedora são outros comportamentos desejados.

Charles enfatiza alguns requisitos das profissões futuras, principalmente as ligadas à tecnologia. Uma dela é saber fazer programação, ao menos básica, para controlar os dispositivos e entender a quantidade massiva de dados. Outro fator é saber analisá-los. “Nunca houve tanta informação disponível, mas ao mesmo tempo também nunca tivemos também tanta informação ruim. Mais do que analisar dados, é necessário saber separar as informações, eliminar as duplicações e excluir as questionáveis”, ressalta. Método, portanto, é essencial. “A quantidade de recursos disponíveis exige disciplina para não se perder nos meios e conseguir atingir os seus objetivos”, enfatiza. Saber trabalhar em equipe ganhou

“Estamos isolados fisicamente, mas não socialmente. Nunca interagimos tanto, nunca trocamos tantas mensagens, nunca foram criados tantos grupos de Whatsapp, nunca estivemos tão conectados”

relevância, assim como ter iniciativa e independência: “Não adianta ser bom tecnicamente se não conseguir contribuir efetivamente para o coletivo”. A persistência, o bom-senso e a visão sistêmica também são atributos essenciais.

No campo fabril, Charles indica uma forte tendência de incorporar cada vez mais a Internet of Things (IoT), na quarta revolução industrial chamada de Industrial IOT e suas vertentes, como a Indústria 4.0. “Os maiores impactos serão nas empresas que conseguem processar um conjunto considerável de informações e ajustar seu posicionamento de maneira dinâmica e proativa. Empresas meramente reativas verão suas oportunidades minguarem cada vez mais”, constata.

É necessário, ainda, aceitar e abraçar as incertezas do mercado atual, e promover mudanças a partir delas. “Não há mais planejamento de longo prazo, o ideal é o replanejamento trimestral. Ninguém pode mais se esconder atrás de burocracia ou de e-mails longos. As reuniões precisam ser mais rápidas. Os métodos ágeis podem e devem ser implementados”, enumera o especialista. Do mesmo modo, softwares de gestão de equipe ganham cada vez mais força. Outro ponto: produtividade e performance precisam ser levadas a sério. “Os paradigmas devem ser questionados. A ‘cultura do erro’ é um acerto; melhor testar, errar e corrigir do que demorar demais. Antes feito que perfeito. A hierarquia não é mais importante do que conhecimentos, habilidade e atitudes. Incubadoras internas devem estimular novos projetos. Programas e campanhas de inovação devem estimular colaboradores”, sublinha o professor Guilherme Velho.

Maria Elisa Máximo, antropóloga

O usuário no centro do negócio digital A área de design é antiga, mas suas vertentes se amplificaram. Taís Ertl, 21 anos, é formada em análise e desenvolvimento de sistemas pela Udesc. Trabalha como User Interface (UI) Designer há um ano e meio. “Um UI Designer é responsável por projetar toda a interface (tela) com que um consumidor terá contato, seja um site, um aplicativo, um sistema”, define. “Sempre gostei muito de desenhar e criar coisas. Na empresa em que trabalho, iniciei como analista de documentação e estava próxima de outros designers. Até que tive a oportunidade de mudar de área”, conta a jovem, que terminou a faculdade em fevereiro deste ano, e agora tem como objetivo continuar se especializando.

Taís ressalta que para ser um UI Designer, além da formação em design ou em alguma área tecnológica, é preciso entender de tecnologia e produtos digitais. A jovem alerta que sua área está conectada diretamente às transformações tecnológicas, exigindo aprendizado constante sobre novas funcionalidades e tendências. Uma vez que as empresas estão cada vez mais se preocupando com os usuários, a área de design vai ganhando força e, os produtos, incrementando a qualidade, requisito cada vez mais relevante diante do quadro atual de pandemia. “A área de UI Design é fundamental para assegurar a adesão do cliente ao produto e proporcionar uma melhor experiência para o usuário”, garante.

Taís Erti, de 21 anos, é User Interface (UI) Designer, profissão emergente no mercado digital

À direita, Maria Elisa Máximo, doutora em antropologia social, pesquisadora na área da cibercultura e professora; abaixo, pandemia evidencia a expansão do e-commerce e pedidos por delivery

O cenário do trabalho na pandemia A reinvenção de diversos serviços também está sendo fundamental em meio à pandemia. O atendimento a pedidos por delivery e on-line exige que as empresas invistam cada vez mais em comércio eletrônico. Um levantamento recente da Glassdoor, plataforma com avaliações de mais de 1 milhão de empresas em 190 países, destaca que setores de logística e comércio passaram a apresentar mais vagas depois do surto do novo coronavírus no Brasil, assim como trabalhos que pudessem ser realizados de maneira remota, como atendimento ao cliente e telemarketing.

A quarentena fez com que a demanda por entregadores e motoboys também crescesse. Pesquisa do Laboratório do Futuro da Coppe/ UFRJ (Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia) mostra uma tendência de modificação nos modelos de negócios. Os empresários devem avaliar como gerar receita sem depender de aglomerações em seus estabelecimentos, no comércio ou na indústria. Haverá menor quantidade de funcionários presentes fisicamente. O que está acontecendo agora poderá antecipar, para os próximos anos, a substituição dos seres humanos por robôs, pela automação, na execução de tarefas. O estudo indica que 60% do emprego no Brasil deve ser altamente impactado pela automação nas próximas décadas. A análise também revela que os grupos sociais mais vulneráveis serão os mais impactados.

Segundo Maria Elisa Máximo, doutora em antropologia social, pesquisadora na área da cibercultura e professora, a vida social de nenhuma sociedade ou grupo pode ser pensada separadamente das suas técnicas e tecnologias. Um conjunto de associações e interações que inclui pessoas, objetos e ideias. A antropóloga afirma que está cada vez mais difícil pensarmos em uma vida “real”

separada de uma vida “virtual”, principalmente no trabalho, mesmo nas profissões mais tradicionais. “A experiência nos chamados ambientes digitais é tão real para todos nós quanto qualquer outra”, argumenta. Mas essas vivências modificam nossos hábitos e práticas sociais, e isso pode ser observado principalmente agora, em meio à pandemia.

“Estamos isolados fisicamente, mas não socialmente. Nunca interagimos tanto, nunca trocamos tantas mensagens, nunca foram criados tantos grupos de WhatsApp, nunca estivemos tão conectados”, evidencia. No entanto, o modelo de trabalho remoto, realizado em casa, ainda é uma dificuldade mundial. “Muitas pessoas consideravam pejorativas formas remotas ou virtuais de prestar serviços (ou até mesmo trabalhar e estudar) porque nunca as testaram ou experimentaram de forma incisiva. A pandemia forçou as pessoas a de fato experimentar e conhecer as potencialidades de meios remotos de trabalho ou ensino”, observa o professor Charles.

As profissões que serão tendência no pós-pandemia Muitos profissionais estão perdendo empregos ou enfrentando dificuldades em encontrar um novo trabalho em meio ao surto da Covid-19. Por outro lado, todos os processos que regem o trabalho estão sendo questionados, enquanto outros cargos, funções e modelos estão se abrindo. Profissões que prezam pela sustentabilidade e preservação ambiental ganham força. Nathalia Baylac, 31 anos, é arquiteta, urbanista e empreendedora em arquitetura sustentável. Ela vê a crise provocada pelo novo coronavírus como um momento de reflexão, criatividade e oportunidades. “Muitos autores e cientistas afirmam que o mundo após a quarentena será novo. Se for, esperamos que seja melhor, que caminhe para uma economia de baixo carbono, com soluções mais locais, redução dos desperdícios, incentivo aos pequenos negócios, articulações em redes e oportunidades inovadoras”, enfatiza. A arquitetura sustentável, apoiada em um tripé social, ambiental e econômico, de forma equilibrada, segundo a especialista, ainda tem poucas iniciativas concretas. No entanto, a população mundial está cada vez mais se interessando por métodos sustentáveis, assim como marcas investem mais no setor. “Infelizmente, no Brasil, ainda existem muitas pessoas que não se deram conta do quanto isso é importante para o planeta e a vida, e por conta disso pode haver um retrocesso”, lamenta.

Para atuar na área, a arquiteta diz que um primeiro requisito é levar em consideração os aspectos socioculturais do projeto. Depois, conhecer materiais e técnicas locais e de baixo impacto ambiental, com baixa emissão de carbono e baixo consumo de água e energia, tanto na produção quanto na construção. “E, em terceiro lugar, utilizar meios e técnicas inovadoras para redução dos custos e eliminação dos resíduos. Para isso, buscar conhecimento em outras áreas (como a economia, sociologia, biologia e engenharias) é fundamental”, elenca. Também é necessário atentar às mudanças digitais, que transformam a arquitetura, desde o modo de projetar até o modelo de visitas de canteiros de obras e sua fiscalização, realizados a distância. “Além disso, os materiais e técnicas construtivas estão passando por grandes transformações com as impressões 3D e outras que, em breve, estarão disponíveis ao mercado. O modo de construir e ‘encomendar’ uma construção também deve passar por transformações,

principalmente agora, no mundo pós- -pandemia”, analisa a arquiteta.

A saúde é outro campo diretamente impactado pela pandemia. O estudo do Glassdoor mostrou maiores demandas por cargos como médicos, enfermeiros, farmacêuticos e técnicos de laboratórios. A telemedicina – utilização da tecnologia ligada a meios de saúde para passar informação e cuidado médico a pacientes e profissionais que estão em outros locais – tende a ser mais regulamentada. Segundo James Hunter, professor afiliado à disciplina de doenças infecciosas do departamento de medicina da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), membro do Laboratório de Retrovirologia da faculdade e professor da escola de negócios Sustentare, a ciência da computação está sendo aplicada de forma massiva no mundo da medicina, saúde e biologia. “Até apareceu a nova subdisciplina de bioinformática, a área em que faço muito de meu trabalho. Posso destacar a aparência dos estudos genômicos, que analisam as sequências de DNA ou RNA (o material que contém o código genético

do vírus). O esforço sendo aplicado para entender o novo coronavírus está desvendando os segredos da RNA e permitirá que possamos desenvolver tratamentos antivirais e uma vacina para essa nova praga”, aponta James, que é especialista na aplicação de técnicas de bioinformática aos estudos virológicos e microbiológicos.

James também prevê que algumas atividades relacionadas à pesquisa, especialmente o sequenciamento de genomas, vão migrar para o ambiente clínico. Atualmente, são os biomédicos que fazem as análises clínicas. “Com o desenvolvimento de sequenciadores genômicos com preços mais acessíveis e médicos e técnicos estudando o assunto, conduzir sequenciamentos vai se tornar parte do dia a dia nos hospitais e laboratórios clínicos. Preparar o material e fazer os passos de sequenciamento é uma tarefa muito exata e precisa de bastante treinamento”, analisa. Infelizmente, segundo ele, ainda faltam itens essenciais na formação da nova geração de médicos para que isso ocorra, como conhecimento em matemática e facilidade com outros idiomas.

A arquiteta e urbanista Nathalia Baylac, que empreende no segmento de arquitetura sustentável

Uma nova geração no mercado de trabalho

De acordo com a psicóloga clínica Glaucia Bonotto, do Hospital Dona Helena, o uso excessivo de dispositivos tecnológicos entre os adolescentes demonstra uma perda do encanto da fase juvenil. “Isso remete a várias complicações de ordem psicológica, pessoal e social, do isolamento do mundo real à dependência do virtual, podendo estimular e até corroborar com transtornos de ansiedade, distúrbios de comportamentos ou condutas antissociais, depressão, chegando à dependência psicológica”, frisa. No mercado de trabalho, a nova geração se mostra mais familiarizada com as novas tecnologias, mas há consequências. “Não só fazem muitas coisas ao mesmo tempo, como também pensam e conectam numa velocidade incrível, possuem habilidades lógicas, são criativos e dinâmicos e não são passivos, todavia, estão cada vez mais acelerados, imediatistas, sempre com pressa e com necessidade de estar conectado”, observa Glaucia.

O neurologista Felipe Reis afirma que essa capacidade “multitarefa” é um “neuromito”. “Dividir a atenção em vários estímulos ao mesmo tempo reduz a eficiência do cérebro em ser assertivo, fazer as melhores escolhas, considerar de forma racional o melhor caminho. Quanto menos foco, mais erros e maior a chance de nos atermos a detalhes múltiplos e variados, mas que em conjunto não trazem clareza ou satisfação, mas angústia, impulsividade, ansiedade e frustração”, esclarece. O cérebro da nova geração é o mesmo, o que mudou foi o crescimento de estímulos diários. “Nosso cérebro responde a esses estímulos se adaptando, ativando vias e conexões cerebrais e inibindo outras, conforme o uso rotineiro das mídias digitais”, explica o neurologista. A exposição excessiva, principalmente nos primeiros anos do desenvolvimento das crianças, pode afetar de modo negativo o funcionamento das estruturas cerebrais.

“A nova geração pode apresentar importante dificuldade para selecionar e fazer escolhas, além da pouca capacidade de resiliência, intolerância a frustrações, impaciência e irritabilidade, com capacidade limitada de empatia. Vivenciamos uma verdadeira pandemia de medo, insegurança, ansiedade, depressão e insônia, além de vários outros problemas de saúde graves, com jovens cada vez mais sedentários, intolerantes, com pensamento acelerado, dificuldade de atenção e foco, incapazes de lidar com os desafios e frustrações que todos vivenciam”, analisa.

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