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Quando o isolamento social é de apertar o coração
Saudade
Quando o isolamento social é de apertar o coração palavra saudade só existe na língua portuguesa e no dialeto galego, mas é um sentimento universal, que encerra uma experiência psíquica necessária e bela na existência de qualquer ser humano. É filha da solidão, vem do latim “solitas”, que significa solitário, e, junto com o amor, torna-se um dos termos mais constantes na boemia, na literatura e na música. “Pertence à natureza humana, e vai se apresentar inevitavelmente em algum momento da nossa vida, pois está relacionada a pessoas, fatos ou situações vivenciadas no passado”, frisa Janynne Caovila, psicóloga especialista em neuropsicologia, professora do curso de Psicologia da Faculdade Guilherme Guimbala (ACE), de Joinville. “Saudade é a uma expectativa por algo que já foi e que desejamos que volte a ser. Faz uma ponte entre o presente e o passado, pois permite reviver cenas e emoções, mas não nos permite permanecer lá. Um caminho, por onde as lembranças buscam encontrar as marcas do que fomos”, define.
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No contexto atual de isolamento social, devido ao novo coronavírus, a saudade adquiriu novas modalidades. “Temos a saudade irrecuperável dos que perdem a vida na epidemia, a angustiante, de quem tem entes queridos contaminados ou internados, a preocupante, relativa aos profissionais de saúde e outras pessoas que conhecemos e que estão na linha de frente do combate à epidemia etc.”, detalha a profissional. Importante entender e aceitar esse sentimento, já que o atual estado de afastamento não significa o fim dos laços afetivos, mas um momento temporário de adaptação.
Do mesmo modo que Janynne, Sabrina Gauto, psicóloga clínica do Hospital Dona Helena, compreende a saudade como uma relação passado-futuro. “Sentimos falta de algum momento vivido e o desejamos novamente. Isso se relaciona com
A
a nossa capacidade de ser felizes, de viver um momento feliz”, revela. “Não temos a capacidade de voltar no tempo, mas podemos usar essa experiência para entender o que nos faz bem e re-experimentar essas vivências de novas maneiras.”
Marina Bosio, 31 anos, é servidora pública e mora há oito anos sozinha, seis deles em Joinville. Sua família está dividida entre o Paraná e o Distrito Federal. O namorado também não reside na mesma cidade que ela, e sim na vizinha Jaraguá do Sul. Eles se viam semanalmente, mas a rotina imposta pelo isolamento social mudou tudo. Marina tem diabetes do tipo 1, o que a coloca dentro do grupo de risco para contrair o vírus. Por isso, desde o começo da quarentena, realiza home-office e não vê familiares nem namorado, por segurança. Ela costuma trocar mensagens, fazer videochamadas ou ligações telefônicas com eles. Por toda a situação, acabou
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emagrecendo, mesmo mantendo dieta saudável. Marina fica preocupada em não saber quando irá rever as pessoas que ama. “Saudade é querer estar com a pessoa e isso não ser possível por motivo que não é da sua vontade, como agora”, conceitua.
Para se esquivar do sentimento, Marina tenta se distrair realizando afazeres domésticos e assistindo a filmes. “Para mim, a saudade vem acompanhada de angústia. É a questão de ter que fazer tudo sozinha”, desabafa, contando que sente dificuldade em pedir ajuda a pessoas que não são do círculo afetivo mais próximo. “Vivemos tempos difíceis, um momento de crise que tem provocado o distanciamento do outro, mas também o distanciamento de nossas rotinas, dos nossos planos, nos obrigando a olhar para dentro de nós, provocando a vivenciar uma solitude, permitindo a ouvir, enxergar e experimentar sentimentos que estavam perdidos em meio à correria do dia a dia e à sobrecarga dos nossos afazeres”, expõe Sabrina. “A solitude é saudável, pois é uma oportunidade para reflexão, a possibilidade de uma releitura da nossa trajetória, bem como dos caminhos que queremos trilhar. Ainda assim, nesse cenário, a solidão poderá nos visitar: é prudente prestar atenção ao que ela representa para nós, para entendermos se é uma saudade, uma dificuldade de ficarmos na nossa própria companhia ou um desconforto por estarmos sozinhos”, analisa a profissional.
A psicanalista Dircelene Pscheidt entende a saudade pela óptica da perda do objeto de desejo e do processo curativo do luto. “Por meio desse processo, podemos nos libertar e reconstruir a vida com um novo objeto, ou a transferência do nosso desejo, e a partir disso criar a ‘boa saudade’, que se expressa no sorriso ao lembrar de um antigo amor, os pais e avós que já se foram ou um momento de felicidade no passado”, explica. Segundo Dircelene, na falha desse processo, criamos a “saudade ruim”: a melancolia, que mantém a pessoa ligada à perda, impedindo-a de seguir em frente. Sentir falta, de acordo com a psicanalista, é normal; o problema está em permanecer nesse sentimento. “A saudade é um sentimento importante, mas, como na solidão, deveríamos nos beneficiar dela e não ser consumidos por ela”, enfatiza.
Fernanda, que prefere não divulgar seu nome completo, tenta não se deixar abater pela saudade. Ela tem 24 anos, é jornalista, nascida em Carazinho, no Rio Grande do Sul, e reside em Joinville há menos de um ano, com a família. Namora com Maraisa, que permanece no interior gaúcho. “Foi desesperador, porque ela morava a cinco minutos da minha casa e nos víamos com regularidade. Cheguei em Joinville e parecia que faltava um pedaço de mim”, conta. As duas não se encontram pessoalmente desde fevereiro. “Tentamos reagir a essa sensação terrível planejando o que vamos fazer quando tudo acabar: viagens, lugarzinhos onde queremos ir, shows imperdíveis e até as coisas mais simples, como assistir a séries policiais juntas e fazer panquecas”, elenca. O isolamento, para Fernanda, está sendo “cruel demais”, por ter hipocondria e transtorno de ansiedade. “Acabo me enchendo de informações e, na menor falta de ar, já acho que estou com coronavírus e vou incomodar a minha família e a Maraisa. Tento me acalmar e meditar, só que não saber quanto tempo tudo isso vai durar me esmaga”, confessa.
Segundo a psicóloga Dircelene, o mal-estar psicológico causado por períodos de isolamento social pode fragilizar a capacidade de adaptação e reação ao estresse do confinamento, o que produz respostas fisiológicas e emocionais que impactam o sistema imunológico e a condição de equilíbrio mental. Entre as suas sugestões para minimizar os efeitos da nova rotina, estão aproveitar o tempo disponível fazendo boas escolhas em livros, filmes, cursos on-line e conversas por telefone. É necessário estabelecer uma rotina, respeitando horários de trabalho e intervalos para descanso e exercícios físicos, além de evitar o excesso de informações, procurando assistir aos noticiários uma vez ao dia, e evitar pensamentos vitimistas, que distorcem a realidade.
Sabrina Gauto, psicóloga clínica do Hospital Dona Helena
A psicóloga Sabrina complementa, fazendo um alerta quanto às compensações. “Ao vivermos um desconforto, nos compensamos com alimentação excessiva, bebidas alcoólicas, drogas lícitas e ilícitas e outros tipos de busca por prazer. Esse comportamento não aliviará o desconforto de forma efetiva e poderá nos causar maiores problemas. É preciso adotar comportamentos adaptativos, com atividades que costumam ser prazerosas, aquilo que fizer o nosso pensamento se deslocar para além da crise”, sugere. Jannyne também recomenda o atendimento on-line com um psicólogo. “Ele vai ajudar a conversar, externar os sentimentos e emoções despertados nesse momento, já que é importante não reprimi-los ou desenvolver hábitos nocivos para preencher os vazios, pois, posteriormente, podem gerar quadros clínicos graves”, completa.
Para enfrentar o luto, a maior das saudades Mirian Hoffmann Rodrigues, 59 anos, é técnica de enfermagem aposentada. Natural de Pomerode (SC), ela mora em Joinville desde 1977. Atuou no Hospital Dona Helena por dois anos, época em que conheceu seu marido, José Caetano Rodrigues, com quem estava passando o período de isolamento social quando a entrevista para a Conecthos foi realizada, em abril. Ele faleceu cerca de uma semana depois, aos 67 anos, por pneumonia e outras complicações. Há dez anos, José já estava gravemente doente: era cardiopata e tinha problemas pulmonares.
“Acredito que quem ama, cuida. E quero realmente cuidar dos meus e que todos sejam cuidados”, disse Mirian, antes do falecimento, frisando a importância do isolamento para resguardar a saúde dos familiares. A saudade até então era fácil de contornar, com conversas e videochamadas. Mirian dizia que era um sentimento estranho, que está nas pequenas coisas. Em alguns momentos, a saudade provocava uma dor física, “difícil de explicar”. E é fato: no período imediato após uma
Janynne Caovila, psicóloga especialista em neuropsicologia
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Dircelene Pscheidt explica a saudade sob o ponto de vista da psicanálise
perda ou separação significativa, a pessoa pode sentir sintomas físicos semelhantes aos da abstinência de drogas. “Podemos pensar também que é uma resultante da somatização do sofrimento psicológico e do efeito prolongado dos hormônios no organismo, como o cortisol, o hormônio do estresse”, aponta a neuropsicóloga Janynne. Os sintomas físicos podem ser um mal-estar generalizado, dores e pressão no peito, respiração ofegante, coração acelerado, cansaço, fraqueza etc. O estado também provoca distúrbios emocionais.
Um dos pontos que Jannyne considera essencial para a superação é permitir-se viver o luto pela separação ou perda de uma pessoa ou situação. “Tentar reprimir ou esconder esse sentimento torna o sofrimento mais intenso. O ideal é expressar o que está sentindo por meio do choro ou do desabafo com alguém de confiança, refletir
e voltar a atenção para si.” Para isso, é importante entender que não se pode mudar o passado, por mais que a dor da ausência seja difícil. “Podemos e devemos sentir falta daquilo que nos fez bem. No entanto, precisamos ser gratos pelos momentos bons e saber admirar os novos. Pois não é saudável viver de comparações ou em busca de repetições do passado., frisa Dircelene.
Como o cérebro a interpreta a saudade? A saudade tem origem no sistema límbico, área do cérebro em que existe a amígdala cerebral, uma pequena estrutura que processa tudo o que está relacionado às reações emocionais. O hipocampo também integra esse sistema, sendo o principal encarregado da memória emocional. “É por causa dele que conseguimos lembrar não somente das experiências, mas daquilo que sentimos em relação a elas, bom ou ruim”, explica a neuropsicóloga Janynne, frisando que o hipocampo transforma a memória de curto prazo em memória de longo prazo, impregnando a amígdala cerebral com emoções e, auxiliando, assim, no desenvolvimento da saudade.
Além disso, existem os hormônios e neurotransmissores, substâncias químicas produzidas pelos neurônios que têm a função de manter o funcionamento do cérebro e corpo, fornecendo sensações de bem-estar e ajudando na formação dos laços afetivos. “Quando estamos com alguém de quem gostamos ou em um lugar que nos traga tranquilidade, os níveis dessas substâncias sobem muito, e podemos dizer que ficamos ‘inundados’ com a dopamina do prazer, endorfinas do relaxamento, serotonina do bem-estar e todas as substâncias prazerosas. Nosso corpo quer a repetição do que causa esses sentimentos todos, de uma memória feliz, e por esse motivo acabamos ‘viciados’ na convivência com a pessoa amada, por exemplo”, detalha Jannyne.
E se algum fato ou acontecimento não permitir mais termos essa sensação? “O cérebro fica com dificuldade para processar essa informação e não consegue se ‘conformar’ em perder algo registrado como muito importante, e nosso organismo fica uma ‘bagunça’, pois não está mais recebendo a sua dose de hormônios e neurotransmissores que dão a sensação de bem-estar. Pode levar bastante tempo até ele voltar ao normal ou encontrar outro estímulo para produzir as substâncias necessárias”, explica.