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NÓS ACUSAMOS! NÓS REQUEREMOS
titularidade do imóvel tanto da empreiteira como do beneficiário da vantagem, a fim de ocultar qualquer relação entre o político e a empresa que possa levantar suspeitas sobre a origem ou a natureza da transação que resultou na transferência do imóvel.
Nesse contexto, a manutenção do apartamento em nome da empresa acusada de corrupção, enquanto o político supostamente corrompido usufrui dele não parece ser um ato de ocultação ou dissimulação.
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Não existe um distanciamento do bem em relação aos agentes do crime. Ao contrário, a permanência do imóvel em nome da empresa enquanto o agente político o utiliza é ato que evidencia a prática do delito, que faz transparecer a proximidade entre corruptor e corrompido, que revela a existência de uma relação de fato que demandaria explicações.
Assim, se o delito de lavagem na modalidade ocultação “requiere um estado de oscuridad o confusión tal, que haga difícil el estabelecimiento de lazos entre los bienes y su raiz delictiva”5, não parece ser possível classificar como ocultação o fato de um funcionário público usufruir de um imóvel em nome do corruptor.
A retenção do bem no patrimônio do último enquanto o beneficiário da corrupção o utiliza e dele dispõe seria prova da corrupção e não ato de dissimulação capaz de mascarar a prática delitiva.
Carla De Carli, em estudo sobre o tema, aponta como “exemplo de lavagem de dinheiro na modalidade ocultação é o simples depósito de valores recebidos em paga de corrupção em conta de terceiro – oculta-se a origem, a localização e a propriedade dos valores ilicitamente havidos. A chave, aqui, é ser a conta bancária de terceiro. Caso estivesse em nome do autor do delito de corrupção não haveria lavagem, porque ele não estaria ocultando a verdadeira propriedade desses valores”6
É possível que a autora tivesse em mente afastar a lavagem de dinheiro apenas no caso em que os bens estiverem em nome do corruptor passivo, destinatário das vantagens indevidas. Mas o mesmo raciocínio parece possível nos casos em que o corruptor ativo mantém o bem em seu nome, enquanto o corrompido dele usufrui.
Não existe aqui a figura do laranja, do testa de ferro, porque aquele que oferece a vantagem indevida é parte no crime, de forma que não presta a dissimular nada. Seu contato com o bem o contamina, dificultando – e não facilitando – o distanciamento deste de sua origem criminosa.
5 GÁLVEZ BRAVO, Rafael. Los modus operandi en la operaciones de blanqueo de capitales. 2ª ed. Barcelona: Bosch, 2017, p.46. 6 DE CARLI, Carla Veríssimo. Lavagem de dinheiro, Prevenção e controle penal. São Paulo:
Verbo Jurídico, 2012, p. 240.
Gálvez Bravo apresenta, em sua obra “Los modus operandi em las operaciones de blanqueo de capitales” uma vasta tipologia das técnicas de lavagem de dinheiro, que inclui jogos de azar, contratos fictícios, uso das mais diversas operações financeiras, atividades simuladas no mercado de valores mobiliários, manejo de meios de pagamento pela internet, de seguro e inúmeros outros. Nenhuma delas consiste no ato de retardar a transferência de um bem por parte do corruptor ativo para o corruptor passivo.
Considerar a ausência da transferência do imóvel um ato de ocultação significa reconhecer que todos os casos de corrupção passiva em que o corruptor não transfere a vantagem indevida ao corrompido por qualquer motivo deveriam ser punidos em concurso com lavagem de dinheiro. Não parece correto sob o aspecto da tipicidade, nem sob uma perspectiva politico-criminal.
Por isso, não parece haver lavagem de dinheiro no caso Lula.
Pietro Alarcón1 Leonardo Godoy Drigo2
Em 1898, Émile Zola publicou o J’accuse (Eu acuso), manifesto no qual se insurgia de forma veemente contra a segunda condenação injusta proferida em desfavor de Alfred Dreyfus, oficial judeu do Estado-Maior francês acusado, sem provas, e condenado a deportação perpétua por espionagem a favor da Alemanha, em 1894, com sentença confirmada em segundo julgamento, mesmo após prévia confissão do verdadeiro espião, o major Walsin-Esterhazy. Sobre esse famoso caso, Hannah Arendt afirmava3: “Enquanto o Caso Dreyfus em seu amplo aspecto político pertenceu ao século XX, o processo Dreyfus e os vários julgamentos do capitão judeu Alfred Dreyfus são bem típicos do século XIX, quando se seguiam com tanto interesse os processos legais, porque cada instância tentava testar a maior conquista do século, que era a completa imparcialidade da justiça. (...) A doutrina da igualdade perante a lei estava ainda tão firmemente implantada na consciência do mundo civilizado que um único erro da justiça era capaz de provocar a indignação pública, de Moscou a Nova York. Ninguém, exceto na própria França, era suficientemente ‘moderno’ para associar o assunto a questões políticas.” (grifos nossos) E, com efeito, tratava-se de perseguição política travestida de processo judicial contra o único oficial representante de uma minoria étnica (judeu) que poderia, em tese, ter participação em atos relacionados ao envio de carta com conteúdo de espionagem, mas contra o qual não existia prova concreta que suportasse uma
1 Pietro Alarcón é doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) e Professor dos cursos de Graduação e Pós-graduação em Direito da mesma
Universidade. 2 Leonardo Godoy Drigo é mestre em Direito Público e Bacharel em Filosofia pela PUC/SP. 3 As origens do totalitarismo. Anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. Trad. de Roberto
Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 113.
condenação criminal. A Europa da época, principalmente na França, indignou-se e dividiu-se e debateu o caso a fundo, porque envolvidos valores jurídicos como o devido processo legal, o ônus probatório em processo criminal, a imparcialidade do Juízo e do próprio Poder Judiciário.
Já no século XX, na sua clássica obra sobre o papel do Advogado, publicada em 1921, o ancien bâtonnier Henri Robert dedicava um capítulo à Magistratura e destacava o discurso de Dupin que exaltava a função do juiz. Nas palavras de Dupin, o juiz deveria “assegurar o império das leis e a paz entre os cidadãos; permanecer impassível em meio ao choque das paixões e a agitação dos partidos (...)”.4
Hoje, século XXI, devemos novamente voltar a lembrar o papel do Magistrado e, sobretudo, à acusação contra decisões judiciais que repercutem erros processuais, materiais e de parcialidade jurisdicional contra representantes de minorias, e/ou sob cunho político, tal como ocorreu no caso do acórdão proferido no julgamento da Apelação Criminal nº. 5046512-94.2016.4.04.7000/PR, no bojo da denominada “Operação Lava Jato”, no qual é recorrente, dentre outros, o Ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Nós acusamos, portanto, em primeiro lugar, o referido julgamento de ofensa direta à supremacia da Constituição Federal, em particular ao postulado do devido processo legal, (art. 5º, LIV), principalmente quanto à possibilidade efetiva da ampla defesa (art. 5º, LV).
Com efeito, uma análise pormenorizada da decisão permite enxergar que possui nada mais do que oito itens preliminares (dentre dezenove) abordando tanto a inexistência de prejuízo para a defesa pela negativa de produção de provas, inclusive a gravação, pela defesa, do interrogatório pessoal do réu, quanto a possibilidade do indeferimento das mesmas a critério do Juízo, desde que fundamentado. Se esse critério já mereceria reparos, a questão fica ainda mais grave ao se verificar que tal negativa de produção de provas veio aliada a um entendimento, no mérito da ação, segundo o qual não se exige prova da participação ativa do réu com as atividades criminosas, chegando-se mesmo a afirmar que “a corrupção passiva perpetrada por um dos acusados difere do padrão dos processos já julgados (...), não se exigindo a demonstração de sua participação ativa em cada um dos contratos” (item 27). Ainda, dispensou-se, no bojo do acórdão, a prova de conduta específica do réu, considerando-se que o denominado ato de ofício “caiba no âmbito dos poderes de fato inerentes ao exercício do cargo do agente” (item 25).
4 O Advogado. Trad. de Rosemary Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 103.
Ora, ainda que cada elemento isolado da decisão possa subsistir em conjunturas específicas e tenha aplicação isolada até mesmo tolerada em sede doutrinária e jurisprudencial, observa-se que o conjunto da decisão torna-se altamente atentatório aos direitos fundamentais dos réus, ao devido processo legal e à ampla defesa, pelo simples motivo de que, ao mesmo tempo em que se legitima o indeferimento da produção ampla de provas, promove-se, por outro lado, a adoção de teses de condenação por condutas que não precisam ser comprovadas ou que podem ser presumidas, aceitas “em tese” como possíveis (mesmo que não necessariamente tenham ocorrido na realidade).
Não estamos, portanto, a falar de construção de norma de decisão judicial pautada em provas e na distribuição do ônus de provas de um processo constitucionalmente adequado.
Nós acusamos, em segundo lugar, o julgamento realizado de ser manifestação de uma absoluta tolerância de situações que levam à parcialidade judicial e à utilização política do processo criminal em desfavor dos réus.
Conquistas históricas do Constitucionalismo como a imparcialidade do Juízo e a neutralidade política do Poder Judiciário constituem balizas do sistema jurídico de qualquer Estado democrático. No Brasil, trata-se de garantia constitucional que se depreende do acesso à Jurisdição (art. 5º, XXXV), da inexistência de juízo de exceção (art. 5º, XXXVII), do processamento e julgamento de alguém apenas pela autoridade competente (art. 5º, LIII), das vedações impostas aos juízes, principalmente a impossibilidade de exercício ou dedicação a atividades político-partidárias (art. 95, parágrafo único, em especial seu inciso III), dentre outras. Ainda, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LC nº. 35/1979), principalmente nos artigos 35 e 36, define deveres ao magistrado, para resguardar justamente a imparcialidade jurisdicional e neutralidade política, fixando-se, por exemplo, a vedação de “manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério” (artigo 36, III).
É com espanto, portanto, que devem ser lidos trechos do acórdão proferido pelo TRF da 4ª Região, quando, por exemplo, ali resta afirmado que “Não gera impedimento do magistrado, tampouco implica em antecipação do juízo de mérito, a externalização das razões de decidir a respeito de diligências, prisões e recebimento da denúncia” (item 5) ou que “A participação em eventos, com ou sem a presença de políticos, não macula a isenção do magistrado, em especial porque possuem natureza meramente acadêmica, informativa ou cerimonial, sendo notório que em tais aparições não há pronunciamento específico a respeito dos processos em
andamento” (item 8). Causa ainda maior rejeição uma decisão de segunda instância que entende que a presença de afirmações ofensivas aos advogados na sentença apelada é tema “descontextualizado das circunstâncias examinadas na decisão” (item 34), negando-se, pois, a enfrentar a matéria.
Da maneira em que proferido, portanto, o acórdão permite a quebra da imparcialidade do Juízo ao negligenciar a manifestação do magistrado sobre o processo em diversos veículos de mídia, ao negligenciar a participação do magistrado em diversos eventos nos quais presentes agentes políticos (inclusive e principalmente de orientação partidária de oposição à dos réus do caso específico em análise), ao negligenciar a conduta específica do magistrado de primeira instância de utilizar termos pejorativos em relação aos advogados dos réus. Aqui, interessante observar ainda o seguinte: o próprio acórdão afirma que a 13ª Vara Federal de Curitiba/ PR é “especializada para os crimes financeiros, de lavagem de dinheiro e conexos” (item 1) e, depois, aduz que o magistrado, altamente especializado, pode comparecer a eventos com políticos, ainda que meramente acadêmicos, sem manifestações sobre o caso específico em andamento. Quer fazer crer o acórdão na inverossímil conjuntura de que se trata de magistrado altamente especializado, chamado para se manifestar sobre caso de repercussão nacional e internacional, em evento de natureza política ou acadêmica no qual, de maneira “notória” (item 8 do acórdão), não se manifestará sobre questões específicas do processo em andamento.
Nós acusamos, em terceira ordem, que tal conjuntura representa nítida utilização política da jurisdição, com ferimento à sua necessária neutralidade. Em um caso outro qualquer, tratar-se-ia de hipótese clara, patente e inafastável de nulidade processual absoluta. Não houve tal entendimento na Apelação Criminal nº. 5046512-94.2016.4.04.7000/PR, tornando a segunda instância da Justiça Federal da 4ª Região mera passagem de autos e chancela das decisões da primeira instância, da 13ª Vara Federal de Curitiba.
Nós acusamos, em quarto lugar, o acórdão proferido de subserviência a interesses representados pela grande mídia de massas, interessada na retirada de agentes relevantes do cenário político nacional, para fins de consolidação de planos econômicos e de governo não legitimados pelo regime político democrático sob nenhuma de suas formas.
Ignorar-se toda a gama de direitos fundamentais titularizados pelos réus, manter a condenação nos moldes em que proferida pela primeira instância, apesar de todas as fundamentadas impugnações de cunho jurídico formuladas tanto à condução do processo quanto à conduta do magistrado e a suas decisões foi e é, no caso específico, uma forma de colocar-se a favor de certos ventos ideológicos e de certo setor