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TODAVÍA NO HA LLEGADO AL RÍO

jornais de grande circulação sobre o processo, a participação em eventos políticos organizados por partidos de oposição ao partido do réu e a página de Facebook criada pela esposa do julgador para exaltar o fato de serem casados, chegando o caso a ter conotação de coluna social de socialites.

O direito a um juiz imparcial é mandamento internacional previsto no Art. 14 do Pacto de Direitos Civis e Políticos da ONU (promulgado no Brasil pelo Decreto 592/92). Lula, assim como qualquer outro cidadão, tem o direito a ser tratado igualmente perante os tribunais e as cortes de justiça. Não cabe ao Poder Judiciário brasileiro adotar qualquer seletividade e celeridade processual pelo simples fato de ser o acusado o maior líder popular de esquerda da América Latina. Lula tem o direito de se ver julgado por um tribunal competente, independente e imparcial.

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O TRF4 chega ao absurdo de afirmar que “é certo que há uma busca pela politização do processo judicial, seja com a promoção de mobilizações sociais, seja levando o debate a foros internacionais.” Além de desconsiderar que levar o caso a palcos de cultos religiosos também é politizar e que as mobilizações sociais são autorizadas pela Constituição, o fato de levar um caso a instâncias internacionais às quais o Brasil se vincula por força de tratado não é politizar nada.

O Brasil é signatário do respectivo Pacto e apesar de ter aprovado o Protocolo Facultativo (Decreto Legislativo 311/09) que reconhece a competência do Comitê de Direitos Humanos respectivo sem promulgação presidencial, o que vincularia a jurisdição interna, existe uma responsabilidade internacional do Estado brasileiro perante os outros Estados signatários desses tratados. Ou seja, o recurso aos organismos internacionais cuja competência é reconhecida nos termos da Constituição e da jurisprudência do STF não se trata de politização do processo, mas simplesmente de acesso à Justiça no século XXI.

Por tudo o que assistimos na grande mídia, pela forma como os julgadores do caso se posicionaram em relação ao processo, ou seja, visando mais as eleições do que as regras do processo penal, a suspeição do juízo salta aos olhos como um fator negligenciado na condenação do Lula que, certamente, terá reflexos nefastos em todo o processo penal de todo e qualquer cidadão que destoe do projeto colonial, escravocrata e patriarcal que nos foi imposto desde 1500. Exatamente por isso, não foi condenado apenas o Lula, mas ao projeto de democracia no Brasil.

O GOLPE E O JULGAMENTO DO RECURSO DE LULA. LA SANGRE TODAVÍA NO HA LLEGADO AL RÍO

Wilson Ramos Filho1 Ricardo Nunes de Mendonça2

Quando tivemos a oportunidade de analisar a decisão do juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba, dissemos que a sentença era “(...) o ponto alto de uma sórdida campanha político judicial de ataque à maior liderança política da esquerda brasileira, o ex-presidente Lula (...)”3 .

Não, não estávamos enganados. Aquela sentença não foi fruto da ação isolada e “independente” de um juiz de piso. Derivou de um golpe de Estado que tem no Judiciário um de seus atores preponderantes. Um Judiciário burguês – ressalvadas as muitas e valiosas exceções – que não aceita, e não aceitará, que a classe operária se meta a besta, que queira tomar as rédeas de suas próprias vidas e muito menos que interfira em seus planos de ser o “Poder do Século XXI”4 .

E assim como fizemos ao comentarmos a sentença proferida pelo mais afamado e midiático juiz brasileiro, também não teceremos longas digressões técnico-jurídicas a respeito do acórdão proferido pelo tribunal regional federal da 4ª Região (sim, em

1 Wilson Ramos Filho é doutor em Direito, professor da UFPR (doutorado, mestrado e graduação) e no Master/Doctorado em Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrollo (UPO/Espanha). 2 Ricardo Nunes de Mendonça é graduado em Direito pela UFPR, Mestre em Direito

Econômico e Socioambiental pela PUC/PR, Mestre em Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrollo pela UPO/Espanha, Doutorando em Ciencias Jurídicas y Políticas pela UPO/

Espanha, professor licenciado do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UNIBRASIL,

Advogado trabalhista. 3 RAMOS FILHO, Wilson. MENDONÇA, Ricardo Nunes de. O auge do processo de lawfare desencadeado contra Lula. O Direito morreu. E foi de morte matada. In Comentários a uma sentença anunciada: o processo Lula. PRONER, Carol [et al.] (orgs.). Bauru, Canal 6, 2017. p. 470. 4 O Ministro Ricardo Lewandowski, em aula magna do curso de Direito, proferida no dia 31 de julho de 2016, no Centro Universitário UNIBRASIL, afirmou que o “século XIX foi o século do Poder Legislativo, o século XX, o do Poder Executivo, e o século XXI será o século do Poder Judiciário”.

minúscula). Haverá, no livro a que se destina este artigo, análises técnicas muito mais acuradas que as que seríamos capazes de fazer, e sendo assim, deixaremos para os expertos em Direito Penal e Processual Penal a tarefa de evidenciar as atecnias e os erros de julgamento cometidos pelos desembargadores da 8ª Turma do predito tribunal.

De toda maneira, para não nos acusarem de diversionismo e de que sequer falamos das flores, afirmamos, à luz dos paradigmas jurídicos modernos, que o acórdão reafirmou as ofensas aos princípios, conceitos, regras e categorias elementares do Direito liberal como: i) o devido processo legal; ii) o contraditório e a ampla defesa; iii) o respeito ao juiz natural; iv) a vedação aos tribunais de exceção; v) a imparcialidade do julgador; vi) a presunção de inocência; vii) distribuição de ônus da prova; viii) a não utilização do processo como ferramenta de perseguição política e prática de lawfare; dentre outros.

E não há nisso nenhuma surpresa, pois, como escreveu Rafael Valim, na Lava Jato a ação coordenada do Ministério Público Federal e do Poder Judiciário não fica adstrita à primeira instância. Logo, o resultado do julgamento era esperado. Nas palavras do professor da PUC/SP: “(...) Outro problema gravíssimo que se apresenta, de maneira paradigmática, no processo penal em desfavor de Lula é a infame e, por óbvio, inconstitucional relação que se estabelece em muitos casos entre os juízes e os membros do Ministério Público. Há, sobretudo nas forças-tarefa, de modo aberto e declarado, uma ‘parceria’ entre esses órgãos, (...) Demonstrações públicas de apreço entre juízes e membros do Ministério Público, conversas reservadas ou almoços conjuntos nos intervalos de julgamento não são meros detalhes ou ‘implicância’, mas sim a prova cabal de que há uma profunda falha no sistema de justiça brasileiro e uma evidente disparidade de armas entre acusação e defesa. (...) O caso tríplex é uma prova eloquente do que estamos a dizer. Tanto em primeira quanto em segunda instância, os órgãos julgadores e os membros do Ministério Público se portaram como aliados, enquanto a defesa foi, em diversas ocasiões, desrespeitada com truculência (...)”.5

Isso nos faz lembrar que, na distante China, em outros tempos, os Mandarins, por terem sido aprovados em concursos, achavam-se pessoas especiais. Havia hierarquia entre eles, identificadas nos barretes que utilizavam para esconder calvícies ou dominar madeixas. Uns, de maior dignidade auto atribuída ou em decorrência das carreiras, dispunham de muitos assessores que os endeusavam,

5 VALIM, Rafael. O caso Lula e o fracasso da Justiça brasileira. In JINKINGS, Ivana (org.). A verdade vencerá: o povo sabe por que me condenam. São Paulo: Boitempo, 2018. 1ª ed. p. 179-180.

elogiavam, paparicavam a tal ponto que, vaidosos, sinceramente se convenciam de seus méritos incomuns.

Outros, além do séquito, faziam questão de jamais cortarem as unhas das mãos. Quanto mais longas, maior o tempo de mandarinato. Cresciam retorcidas, algo escurecidas, a ponto de inviabilizar qualquer trabalho manual, por mais simples de fosse.

Com elas demostravam seu poder. Tinham quem lhes limpasse os venerandos traseiros, tarefa impossível com tamanhos gadavanhos. A nobre função era aspirada por Mandarins de piso, e pelos asseclas que gravitavam em seus entornos. Não eram coisa pouca, como as unhas atualmente exibidas por alguns cobradores de ônibus. Eram longas gafas a indicar aos incautos e aos ignorantes que o portador do gatázio se dedicava somente ao labor intelectual.

À quase totalidade não lhes ocorria que talvez não fossem tão excepcionais. O cosmos os havia predestinado ao Mandarinato, obtido por mérito segundo os desígnios da ordem do universo, como prescreviam o Confucionismo, o Taoísmo, o Budismo, e todos os esoterismos que importavam.

Havia mesmo um imperativo moral na defesa do Mandarinato. Era a ordem natural das coisas. Seus privilégios não decorriam de suas augustas vontades, estavam previstas em leis sobre as quais não caberiam críticas ou cogitações sobre a oportunidade ou justiça intrínsecas.

Assim era na China há muitos anos atrás. Havia sido e haveria de ser assim até o final dos tempos em respeito ao mérito, aos antepassados e à ordem universal. Quem haveria de contrariar o destino?

Ao nosso tempo, na ordem capitalista, a burguesia também cultivou os seus mandarins.

Como bem alertaram Marx e Engels, a história da humanidade sempre foi a história da luta de classes. Na era burguesa: a luta entre os burgueses e o operariado.

Os mandarins modernos repercutem os valores e se beneficiam dos privilégios atávicos ao mandarinato burguês. São burgueses, afinal. De origem ou por mérito.

E por mérito, não admitirão, custe o que custar, inclusive a democracia e o direito liberal, que um operário possa frustrar os seus planos.

Esse é o contexto em que se inseriu o julgamento que houve no tribunal regional federal da 4ª Região. Não havia dúvida que essa veia corporativa e classista saltaria e dominaria as ações dos desembargadores da 8ª Turma.

Não condenaram Lula. Condenaram o que ele simboliza. Um operário que ousou defender os interesses de sua classe contra os interesses de uma burguesia tacanha e cansada das sucessivas derrotas eleitorais.

Confirmaram a sentença – do amigo6 , “talentoso e brilhante” – que, nas palavras do desembargador Victor Laus, foi o ponto alto da “feliz reunião de talento, entusiasmo, interesse, competência e qualificação profissional” dos “policiais, peritos, membros do MP, delegados e brilhantes advogados”7, que se dedicaram à Operação Lava Jato.

Agiram com o propósito de alvejar o inimigo de classe e condecorar os companheiros de trincheira. Eles precisavam vencer, afinal, é guerra, e na guerra, não se vacila.

E aí de quem ousar criticar suas ações. Aí de quem arriscar afirmar que agem como atores políticos e não juízes de direito. Aí de quem se atrever a afirmar que não se trata de um julgamento consoante os termos, regras e garantias do Direito burguês, mas sim de um julgamento político, guiado por interesses alheios aos da Justiça. Aí de quem disser que os atores do MPF e do Judiciário são parte indissociável do golpe.

Esses merecerão, em coro, constrangimento. De preferência em público, para que seja pedagógico. Um exemplo do que se afirma é a fala do procurador regional da República, Maurício Gotardo Gerum, que, em sustentação oral no caso do tríplex, transmitida ao vivo pelos grandes meios de comunicação brasileiros, repreendeu os inimigos de classe e fez questão de manifestar que era uma ofensa a ele – assim como aos desembargadores – a acusação de que o julgamento em curso era político.

Disse que era um desrespeito para com ele, um procurador da República, para com os desembargadores federais e para com a memória das vítimas de processos políticos – igualando-se a elas, portanto – qualquer crítica que assemelhasse o processo em pauta aos processos políticos que vitimaram estes últimos8 .

Ora, a ofensa e o desrespeito não residem na honra subjetiva do ilustre Procurador da República, mas na flagrante violação aos direitos e garantias judiciais do acusado que está pagando por sua origem e sua ousadia de enfrentar a classe dominante.

6 Conforme matéria publicada em http://justificando.cartacapital.com.br/2016/10/20/desembargador-que-ira-julgar-suspeicao-de-moro-declarou-amizade-crescente-em-livro/, em que se afirmou que “(...) O desembargador do TRF 4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região) João

Pedro Gebran Neto, que deverá julgar nas próximas semanas um pedido de suspeição do juiz

Sérgio Moro feito pela Defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, declarou em um livro de sua autoria ser amigo pessoal do magistrado em questão, com quem mantém “uma amizade que só faz crescer”. 7 As afirmações foram feitas em sessão de julgamento, consoante noticiou o site https://www. jota.info/justica/apelacao-de-lula-no-trf-4-contra-condenacao-na-Lava Jato-23012018, acesso em 21 de março de 2018. 8 Idem, ibidem.

Condenaram um pobre que não cometeu crime. Sinalizaram, com isso, aos magistrados que iniciaram suas carreiras há dez ou doze anos um norte, um rumo, um sentido. Estimularam julgamentos condenatórios sem que tenha havido crime, sem que existam provas, por mera convicção ideológica. E se creem imunes às críticas.

O dia do julgamento no tribunal regional federal sem dúvida será memorizado como o do “ponto de não retorno” para as instituições e para a normalidade democrática brasileira, embora não tenha sido o último ato da perseguição implacável ao ex-presidente Lula. A sanha de destruí-lo ainda não está saciada.

No Callejon de la inquisicion, em Sevilha, do lado de lá do rio Guadalquivir, Joaquín Herrera Flores explicou o contexto em que surgiu a expressão sevilhana para situações que ainda não atingiram a gravidade máxima: “la sangre no ha llegado todavia al río”. Referia-se ao sangue que escorria pelo callejon, decorrente dos severos métodos de obtenção “da verdade” utilizados pelos inquisidores.

No Brasil, o golpe é um grande acordo, com o “Supremo, com tudo”. Por isso, não nos enganemos: “la sangre todavía no ha llegado al río”.

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