16 minute read

EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA: O CÁRCERE COMO FIEL ESCUDEIRO DO CAPITALISMO

O certo é que, no final de minha andança como integrante do Ministério Público, naquele momento em que se olha para trás, o sentimento foi de que caminhei, construindo meu caminho, sem que perdesse de vista a construção democrática republicana; nessa Torre Democrática todas as Instituições hão de carregar sua cota de tijolos, suores e sonhos, a fim de que nos tornemos, num futuro de nossos filhos, o país maravilhoso que o Pórtico da Constituição anuncia. Quando senti que o Ministério Público estava por abdicar de sua missão constitucional, em nome de um combate a uma criminalidade eleita, vi com clareza a dimensão gigantesca do maior erro histórico que se poderia cometer e que foi cometido.

Há outros que pensam como eu, mas sei, somos pouquíssimos, se comparados à maioria consensual e não pensante; até onde consegui chegar, estive certo de que cumpri meu papel como dominus litis ou como fiscal da lei; onde faltei, procurei não fazer vítimas inocentes, sem saber exatamente até que ponto nisso fui bem sucedido.

Advertisement

Ruben Rockenbach Manente1

O presente artigo objetiva analisar, a partir da perspectiva proposta pelo pensamento crítico no campo penal, a decisão proferida pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4)2, em 24 de janeiro de 2018, que confirmou a sentença da 13ª Vara Federal de Curitiba/Paraná que julgou parcialmente procedente a denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal, no âmbito da denominada “Operação Lava Jato”, para condenar, entre outros, o ex-Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva (a) por um crime de corrupção passiva (artigo 317 do Código Penal) pelo recebimento de vantagem indevida do Grupo OAS em decorrência do contrato do Consórcio CONEST/RNEST com a Petrobras; e (b) por um crime de lavagem de dinheiro (artigo 1º da Lei número 9.613/98) envolvendo a ocultação e dissimulação da titularidade do apartamento 164-A, “triplex”, e por ser beneficiário das reformas realizadas.

Em específico abordaremos a determinação, por unanimidade, da 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região3 para a “execução provisória da pena” de Lula em consonância com a decisão do Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus número 126.292 que admitiu a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário. Eis o trecho do voto do Desembargador Federal Leandro Paulsen:

1 Ruben Rockenbach Manente é doutor em Ciências Jurídicas e Políticas pela Universidad

Pablo de Olavide – UPO (Sevilha/Espanha) e Professor de Direito Penal da Faculdade

CESUSC (Florianópolis/Brasil). 2 Disponível em: https://www2.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=consulta_processual_resultado_pesquisa&txt Valor=50465129420164047000&selOrigem=TRF&chkMostrarBaix ados=1&todasfases=S&selForma=NU&todaspartes=&hdnRefId=b7cf269b32b63f6d5bcf 2d94657c0103&txtPalavraGerada=ajvn&txtChave=. Acesso em 13/03/2018. 3 Idem, eventos 89 e 90.

“Quanto à execução da pena, cabe destacar que a 4ª Seção desta Corte, nos EINUL nº 50085723120124047002/PR, firmou o entendimento de que o exaurimento do julgamento perante este Tribunal permite a imediata execução da pena. Foi editada a Súmula 122 do TRF da 4ª Região: ‘encerrada a jurisdição criminal de segundo grau, deve ter início a execução da pena imposta ao réu, independentemente da eventual interposição de recurso especial ou extraordinário’. Desse modo, aguardados os prazos ou julgados eventuais embargos declaratórios e infringentes, o juízo de origem deverá ser comunicado para dar início à execução da pena”.4

Partimos da hipótese de que os discursos legitimadores (manifestos) do modelo punitivo, ao afirmarem que a punição é a única saída para o combate da emergência e do inimigo, justamente reforçam àquilo que, de fato, tal sistema se propõe, o fato de que a própria narrativa serve como justificação para criar um estado de paranoia coletiva que autoriza o exercício ilimitado e desenfreado do poder punitivo (fim latente).

Nosso questionamento principal é saber se a decisão do STF que adotou uma drástica medida de política criminal operou de forma emancipadora ou reguladora em relação as garantias conferidas aos indivíduos como proteção aos atos do Estado. E, ainda, se o critério de valor adotado pela Suprema Corte favoreceu o desenvolvimento de capacidades por partes das pessoas e grupos vulneráveis ou debilitou tal sistema protetivo. O discurso produzido pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do Habeas Corpus número 126.292 (e reproduzido pelo TRF-4 no caso do ex-Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva) reflete o ponto de vista autorizado de seus agentes, e, sobretudo, o ponto de vista legítimo dos mandatários do Estado, sendo produto do funcionamento de um campo cuja lógica específica está duplamente determinada: por um lado, pelas relações de força específica que lhe conferem a sua estrutura e que orientam as lutas de concorrência ou, mais precisamente, os conflitos de competência que nele têm lugar e, por outro lado, pela lógica interna das obras jurídicas que delimitam em cada momento o espaço dos possíveis e, desse modo, o universo das soluções propriamente jurídicas.

Lembre-se que o STF justificou a execução provisória da prisão pela conjugação de três fundamentos jurídicos: (a) o pressuposto para a decretação da prisão no direito brasileiro não é o trânsito em julgado da decisão condenatória, mas ordem escrita e fundamenta da autoridade judicia competente; (b) a presunção de inocência é princípio e como tal está sujeita a ponderação com outros bens jurídicos constitucionais; e (c) após a condenação em 2º grau, a execução da decisão constitui

4 Idem, evento 90.

exigência de ordem pública5. Os dois primeiros fundamentos apresentados são de índole estritamente constitucional e servem para justificar a posição defendida pelo Supremo Tribunal Federal quanto ao momento de execução da decisão penal condenatória: (i) o direito brasileiro não exige o trânsito em julgado da decisão para que se decrete a prisão, (ii) a presunção de inocência, por ser um princípio, sujeita-se à ponderação com outros valores constitucionais, e (iii) o princípio da proporcionalidade como proibição de proteção deficiente impede que o Estado tutele de forma insuficiente os direitos fundamentais protegidos pelo direito penal. O terceiro fundamento é de ordem infraconstitucional: com o acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, a execução provisória da pena passa a constituir, em regra, exigência de ordem pública para assegurar a credibilidade do Judiciário e do sistema penal.

Outrossim, a Corte Suprema, em específico o discurso jurídico do Ministro Luiz Roberto Barroso, que extrapola o campo jurídico (mas mesmo assim dotando de “legitimidade oficial de nomeação”), evoca, além da conjugação dos fundamentos jurídicos, três fundamentos pragmáticos que reforçam a interpretação que permite a possibilidade de execução da pena após a condenação em segundo grau: (a) a garantia de equilíbrio e funcionalidade do sistema de justiça criminal; (b) a redução da seletividade penal; e (c) a quebra do paradigma de impunidade. Para o ministro, tal entendimento é fundamental para evitar três efeitos negativos: (i) o incentivo à interposição de recursos protelatórios; (ii) o reforço à seletividade do sistema penal; e (iii) o agravamento do descrédito do sistema de justiça penal junto à sociedade.

O campo jurídico é o lugar de concorrência pelo monopólio do direito de dizer o direito, quer dizer, “a boa distribuição ou a boa ordem, na qual se defrontam agentes investidos de competência ao mesmo tempo social e técnica que consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de maneira mais ou menos livre ou autorizada) um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social”6. É com esta condição que se podem dar as razões quer da autonomia relativa do direito, quer do efeito propriamente simbólico de desconhecimento, que resulta da sua autonomia absoluta em relação às pressões externas. O monopólio do Supremo Tribunal Federal (enquanto órgão máximo do Poder Judiciário brasileiro) favorece um trabalho contínuo de racionalização próprio para aumentar cada vez mais o desvio entre os veredictos armados do direito e

5 Disponível em: http://stf.jus.br/portal/diarioJustica/listarDiarioJustica.asp?tipoPesquisaDJ=

AP&numer=126292&classe =HC, p. 27. Acesso em 13/03/2018. 6 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: 2007, p. 212.

as instituições ingênuas da equidade e para fazer com que o sistema das normas jurídicas apareça aos que o impõe e mesmo, em maior ou menor medida, aos que a ele estão sujeitos, como totalmente independente das relações de força que ele sanciona e consagra7 .

O mais grave é que a retórica utilizada na decisão do STF, dotada de “neutralidade”, “verdade” e “universalidade”, está longe de ser uma simples máscara ideológica: ela é a própria expressão de todo o funcionamento do campo jurídico e, em especial, do trabalho de racionalização. O direito é a forma por excelência do discurso atuante, capaz, por sua própria força, de produzir efeitos. Não é demais dizer que ele faz o mundo social, mas com a condição de não se esquecer que ele é feito por este. Convém, com efeito, que nos interroguemos acerca das condições sociais – e dos limites – desta eficácia quase mágica, sob pena de cairmos no nominalismo radical e de estabelecermos que produzimos as categorias segundo as quais construímos o mundo social e que estas categorias produzem este mundo. O Supremo Tribunal Federal ao permitir a execução provisória da pena privativa de liberdade antes do trânsito em julgado da decisão condenatória transformou o homo juridicus (presumido por lei como não-culpável até julgamento judicial final) em homo sacer8 .

Resta claro que a decisão levada a efeito pelo STF, enquanto soberano, institucionalizou, no âmbito do campo penal, a figura do homo sacer, uma pessoa que, dotada da presunção de inocência, pode ter sua pena executada provisoriamente, sem a exigência do trânsito em jugado, não lhe sendo cabível os discursos oficiais da pena, nem os requisitos autorizadores das prisões cautelares. É dizer, nosso homo sacer do direito penal está excluído dos discursos e das finalidades da pena criminal, uma vez que sua culpa não está ainda sacramentada, mas incluído no sistema penitenciário nacional, ainda que de forma provisória, mas sem estar submetido as exigências da lei processual penal brasileira. O Supremo Tribunal Federal criou este terreno incerto e sem nome, uma zona áspera de indiferença, situando os acusados que ainda não possuem o trânsito em julgado da sentença penal condenatória e, portanto, não podem estar sujeitos ao regramento da pena criminal, em uma categoria jurídica que está excluída e incluída ao mesmo tempo.

Para denunciar tal lógica temos que compreender a própria concepção dos direitos humanos na atualidade e ser conscientes das relações de força que se dão

7 Idem, p. 214. 8 Neste sentido: AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

entre atores sociais e as possibilidades ou obstáculos postos a formas organizativas alternativas. Tais características são próprias da nova fase de apropriação do capital e estão provocando uma mudança importante na consideração dos direitos humanos, especialmente, no nível jurídico, com a crise do direito nacional nos direitos humanos (enfraquecimento da soberania dos Estados nacionais) e, no nível ideológico, com a globalização da ideologia-mundo. É que a história das políticas sociais e criminais modernas se caracteriza, entre outros aspectos, por seu caráter limitado, excludente e seletivo, tanto de um ponto de vista espacial como dos sujeitos abarcados por elas. A pretensa universalidade abstrata que reconhece os direitos a todos os seres humanos por natureza e pelo simples fato de terem nascido surgiu em determinado contexto histórico (trânsito para a modernidade e desenvolvimento do sistema capitalista) que atualmente não nos serve para compreender e atuar sobre a realidade social existente. Por trás de toda e qualquer norma jurídica de pretensão universal existem interesses (particulares ou não) concretos que (sempre) reclamam ser parte constitutiva de um novo sentido do humano que não descanse somente no reconhecimento do comum-coletivo, senão que estendam ao âmbito da diferença9 .

Eis a importância de uma consciência crítica acerca da atual conjuntura dos direitos humanos para possibilitar a abertura de caminhos à expressão das insatisfações sociais e humanas. A conscientização nos possibilita a inserção no processo histórico e permite a inscrição na busca da afirmação desses direitos em prol da humanidade sofrida. A possibilidade de um diálogo crítico e emancipador em prol de uma luta/movimento social de libertação da classe social que se encontra alijada do poder econômico e, em específico ao campo penal, é selecionada por meio de critérios úteis ao capital.

A urgente transformação das estruturais sociais só será possível com a capacidade de luta da multidão oprimida em busca da afirmação da subjetividade coletiva e da eliminação das relações desiguais de poder material no momento de acesso aos bens indispensáveis para uma vida digna. O reconhecimento da universalidade dos direitos humanos deve ser entendido sob um enfoque emancipador e libertador para que se possa empoderar novas subjetividades em busca de reconhecimento e poder no seio da sociedade e das instituições.

9 Neste sentido: GUTIÉRREZ, Germán. Globalización y liberación de los derechos humanos.

Em: HERRERA FLORES, Joaquín (Ed.). El vuelo de Anteo. Derechos humanos y crítica de la razón liberal. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2000, p. 185.

Desta forma, as bases de uma teoria crítica dos direitos humanos10 estariam esquematizadas em cinco pontos básicos assim reproduzidos:

Primeiro, devemos começar reconhecendo que nascemos e vivemos com a necessidade de satisfazer conjuntos culturalmente determinados de bens materiais e imateriais e, dependendo do entorno de relações nas quais vivamos, serão os bens a que tentamos ter acesso. Mas, em primeiro lugar não são os direitos, são os bens.

A adoção da teoria crítica dos direitos humanos proposta pretende fugir do círculo vicioso que nos encerra o aparente simplismo da teoria tradicional que começa falando dos direitos e termina falando dos direitos. Os três níveis de trabalho (“o quê” dos direitos; “por quê” dos direitos; e “para quê”) revelam que os direitos humanos – mais que direitos propriamente ditos – são processos, é dizer, o resultado sempre provisório das lutas que os seres humanos colocam em prática para ter acesso aos bens indispensáveis para a vida.

Lembre-se que a questão da proibição da execução da pena de prisão após a decisão condenatória em segundo grau de jurisdição está assegurada por vários “direitos”, de cunho nacional e internacional. No entanto, o “bem” presunção da inocência (e todos aqueles violados em decorrência da execução provisória da condenação), após a decisão do Supremo Tribunal Federal no habeas corpus número 126.292, não está ao alcance efetivo.

No plano nacional, o “direito” à presunção da inocência está “garantido” na Constituição Federal de 1988 ao afirmar, em seu artigo 5º, inciso LVII, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”.

Na mesma linha da Constituição Federal, o Código de Processo Penal brasileiro estabelece em seu artigo 283 que “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.

No plano internacional, o “direito’ à presunção da inocência está “protegido” pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 que afirma em seu artigo11.1: “toda a pessoa acusada de um ato delituoso presume–se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas”. O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966, em seu artigo 14.1, expõe que “qualquer pessoa

10 Neste sentido: HERRERA FLORES, Joaquín. A (re)invenção dos direitos humanos. Tradução de Carlos Roberto Diogo Garcia; Antonio Henrique Graciano Suxberger; Jefferson Aparecido Dias. Florianópolis: Fundação Boiteux e IDHID, 2009.

acusada de infração penal é de direito presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido legalmente estabelecida”.

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto San José da Costa Rica), de 1969, prescreve em seu artigo 8.1, que “toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa”.

Frise-se, ainda, que o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana de Direitos Humanos foram promulgados internamente e, nos termos do artigo 5, §2°, da Constituição Federal, integram o sistema de garantias do sistema constitucional brasileiro, tendo, inclusive, o Supremo Tribunal Federal decidido que tais tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil possuem status normativo supralegal, concluindo que as leis ordinárias, anteriores ou posteriores aos tratados, que com eles confrontarem, não terão eficácia jurídica naquilo em que conflitarem.

Por isso, nós não começamos pelos “direitos”, mas sim pelos “bens” exigíveis para se viver com dignidade, afinal estamos diante de bens que satisfazem necessidades, e não de um modo a priori perante direitos, os direitos virão depois das lutas pelo acesso aos bens.

As normas jurídicas resultantes nos servirão para garantir – de modo não neutro – determinado acesso a tais bens. Porém, daí também seu caráter instrumental e seu apego aos interesses e às expectativas de quem ostenta a hegemonia na sociedade de que se trata.

Segundo, devemos ter em conta que temos de satisfazer nossas necessidades imersos em sistemas de valores e processos que impõe um acesso restringido, desigual e hierarquizado aos bens, sendo este fato materializado ao longo da história por meio de marcos hegemônicos de divisão social, sexual, étnica e territorial do fazer humano.

Terceiro, a história dos grupos marginalizados e oprimidos por esses processos de divisão do fazer humano é a história do esforço para levar adiante práticas e dinâmicas sociais de luta contra esses mesmos grupos.

Lembre-se que o cárcere forma parte de uma extensa racionalização das relações sociais no capitalismo nascente, sendo operado pelo sistema penal enquanto nítida manifestação de poder para a construção da hegemonia e servindo como uma das diversas ferramentas utilizadas pelo controle social para produzir as mais variadas formas de dominação e exploração de determinados grupos e dimensionar sua relação com o poder. O interesse de classes imprime a cada sistema penal a marca da concretização histórica e somente com o completo aniquilamento das classes

é que se permitirá a criação de um sistema penal imune a todo elemento antagônico. O direito penal, desta forma, pertence à superestrutura jurídica na medida em que encarna uma modalidade dessa forma fundamental que está subordinada a sociedade moderna: a troca de equivalentes e todas suas consequências. Ou, em outros termos, o direito penal é uma forma de relação entre sujeitos egoístas isolados, portadores de interesses privados autônomos, sendo que os conceitos de crime e castigo são definições necessárias ao funcionamento deste tipo de forma jurídica11 .

Reconstruir, pois, as vicissitudes relevantes desta sociedade equivale a recorrer a história dos problemas de ordem e controle social deste mesmo tecido social. Até porque o delito, e mais em geral as questões sobre as diversas alterações e desobediências à ordem social, estão sempre presentes em todas as partes de cada sociedade.

As funções históricas do cárcere na produção e no controle dos grupos marginalizados (classe operária), e na criação do universo disciplinar de que a moderna sociedade industrial tem necessidade, são elementos indispensáveis a uma epistemologia materialista, a uma economia política da pena, uma vez que sob o viés institucional, o sistema capitalista pressupõe uma maior exigência de disciplina e de repressão, com a finalidade primordial de conter a incontrolável tensão das massas marginalizadas12 .

Quarto, o objetivo fundamental de tais lutas não é outro que poder viver com dignidade, o que, em termos materiais, significa generalizar processos igualitários (e não hierarquizados a priori) de acesso aos bens materiais e imateriais que levam a dignidade.

Quinto, se temos o poder político e legislativo necessários para estabelecer sistemas de garantias (econômicas, políticas, sociais e, sobretudo, jurídicas) que comprometam as instituições nacionais e internacionais ao cumprimento daquilo conquistado por essas lutas pela dignidade de todos e todas.

Pela nossa definição dos direitos humanos como processos sociais, normativos, econômicos e políticos que abrem ou consolidam espaços de luta pela dignidade humana, entendida como o conjunto de atitudes e aptidões necessárias para poder lutar contra os processos de divisão do trabalho que nos impedem o acesso aos bens materiais e imateriais de um modo igualitário e não-hierarquizado por alguma ideologia abstrata e funcional às desigualdades e desiquilíbrios existentes no mundo contemporâneo.

11 PASHUKANIS, Evgeny. La teoría general del derecho y el marxismo. Traduzido por Peter

Maggs. Londres: Bierne y Sharlet, 1980, p. 99. 12 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 193.

This article is from: