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O ACÓRDÃO QUE CONDENOU UMA IDEIA
Compreender seletividade penal importa identificar que a existência ou não de um processo penal, bem como a escolha do sujeito processado e o momento da intervenção importam mais ao Estado do que o objeto declarado da denúncia. Nesse sentido falar da velocidade do trâmite processual, marcado pela supressão de etapas processuais, pelo indeferimento das provas requeridas pela defesa, e pela antecipação da execução da pena enquanto ainda não esgotados os meios defensivos, é atentar para apenas um pequeno aspecto em um vasto rol de ilegalidades.
Todo o esforço processual em viabilizar o encarceramento imediato do ex-Presidente às vésperas das eleições faz notar, ao fim, a velha seletividade, mesmo no processamento dos ditos “crimes de colarinho branco”, mas com um novo componente: a representatividade. A prisão do candidato favorito do proletariado demarca o aprisionamento da voz popular e, consequentemente, das políticas públicas atentas às classes mais pobres.
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Trata-se, então, de uma seletividade representativa, isto é, de um direcionamento que se opera não diante de um sujeito individualmente considerado, mas de uma coletividade por este simbolizada – e, nesse particular, nada muda: são, ainda, os mesmos alvos desde as mais remotas legislações criminais brasileiras até o dia de hoje. As velhas práticas elitistas e seus novos discursos jurídicos fazem lembrar a oposição e resistência da arte de Hélio Oiticica, “seja marginal, seja herói”, de 196815. De Golpe a Golpe, aprende-se de que lado estão os verdadeiros heróis de um povo.
15 OITICICA, Hélio. Itaú Cultural. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/ pessoa48/helio-oiticica> acesso em 27 de maio de 2018.
Fernando Hideo I. Lacerda1
Ressobram análises políticas e jurídicas sobre a condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Todavia, quem melhor compreendeu a essência dessa perseguição foi o próprio Lula: “eu não sou mais um ser humano, sou uma ideia”. Numa autêntica democracia, seres humanos devem ser julgados e responsabilizados conforme a lei por aquilo que fazem. Em nosso Brasil contemporâneo, formas de vida e concepções políticas são eliminadas de acordo com os interesses do capital materializados no discurso midiático oficial, simplesmente por serem aquilo que são.
Um processo penal constitucional deveria apurar a ocorrência ou não de fatos, ações ou condutas criminosas praticadas por alguém. O processo penal de exceção do qual o ex-presidente tem sido vítima – o mesmo tradicionalmente empregado contra uma humanidade subalterna aos interesses econômicos – destina-se a perseguir indivíduos inúteis ou indesejáveis à racionalidade neoliberal.
Vivemos a crença insana de que teremos um mundo mais segura encarcerando pessoas em calabouços infernais. O levantamento nacional de informações penitenciárias – INFOPEN 2017 descortinou em números a triste realidade brasileira: com 726.712 pessoas privadas de liberdade, assumimos o terceiro lugar no ranking dos países que mais prendem no mundo. Como se não bastasse a desonrosa medalha de bronze, face os nossos três concorrentes diretos nesse pódio autoritário (Estados Unidos, China e Rússia) somos o único país cuja população carcerária segue aumentando.
1 Fernando Hideo Iochida Lacerda é advogado criminalista e professor de Direito Processual
Penal da Escola Paulista de Direito, mestre e doutorando em Direito Processual Penal pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
O público alvo do nosso sistema penal é bem definido: jovens negros de baixa escolaridade, acusados de tráfico e crimes patrimoniais. Os dados revelam que 55% dos presos têm até 29 anos, fração que se eleva a 74% se considerarmos os que possuem até 34 anos. No total, 64% são negros. Se considerados apenas a população do sistema penitenciário federal, 73% são negros. Do total de presos, 80% não concluiu o Ensino Médio. Em contrapartida, 0% possui Ensino Superior Completo. Quanto os homens, mais de 70% é acusado por tráfico ou crimes patrimoniais. Já em relação às mulheres, mais de 60% delas são acusadas por tráfico.
O que fazer diante desse cenário? Lutar pela universalização dos direitos e garantias fundamentais à população marginalizada e discriminada ou pela universalização do arbítrio à classe privilegiada? Não deveríamos ter dificuldade para responder essa questão, pois é evidente que o discurso da suposta universalização do arbítrio revela um déficit cognitivo insuperável e uma degeneração moral irreversível.
Ao legitimar-se a extensão do arbítrio através da negação de direitos fundamentais a mais uma parcela da população (inimigos políticos), o discurso hegemônico na esfera pública naturaliza o autoritarismo do poder penal. Abandona-se a luta pela universalização das garantias fundamentais em nome da (pseudo)universalização do sofrimento no cárcere.
O resultado óbvio é que essa falsa ideia de generalização das arbitrariedades jamais atinge os reais detentores do poder econômico – vide as tentativas de delação que comprometeriam os bancos ou os veículos midiáticos poderosos: todas rejeitadas –, mas apena potencializa o domínio cruel exercido contra os alvos tradicionais do sistema penal.
Segundo a narrativa oficial, a relativização das garantias processuais do indivíduo é implementada pelo sistema de justiça criminal a pretexto de contribuir com a segurança pública. Declara-se guerra à criminalidade, à impunidade e à ineficiência do poder punitivo, sem perceber que toda guerra é seletiva e destina-se a eliminar um inimigo.
Qual o inimigo atual e como se dá o combate?
Os números apresentados mostram que, se o inimigo de séculos atrás era dominado no contexto de uma relação explicitamente escravocrata, nos dias de hoje é o sistema de justiça criminal quem desempenha veladamente a mesma função. O fato de mais de 70% das pessoas encarceradas responderem por crimes contra o patrimônio (furto, roubo e receptação) ou tráfico de drogas retrata fielmente a pura e simples criminalização da pobreza que marcou toda a nossa República.
Ocorre que, paralelamente ao tradicional conceito de inimigo (o pobre: rotulado de ladrão, traficante, bandido), a década de 2010 assistiu ao surgimento de
uma nova curva autoritária mediante a ampliação do arbítrio do sistema de justiça criminal para a parcela da classe política indesejada pela racionalidade neoliberal, que ocupou o governo nacional até ser derrubada pelo golpe de 2016. E o símbolo maior desse projeto político é Lula.
Nesse contexto, por que Lula é um prisioneiro político? Pode-se apontar essencialmente três razões: (1) o ex-presidente foi vítima de um processo injusto e repleto de ilegalidades, (2) foi-lhe imposto tratamento singular e distinto dos demais políticos e cidadãos em situação idêntica ou similar e (3) o tempo do processo e de sua prisão foi cronometrado de acordo com o calendário eleitoral para inviabilizar a eleição do candidato apontado por todas as pesquisas como líder de intenção de votos.
Do primeiro ao último ato, o processo que resultou na condenação de Lula é repleto de ilegalidades. Desde as interceptações ilegais da presidenta Dilma seguida dos vazamentos em rede nacional para pressionar a votação do impeachment, passando pela condução coercitiva (contrariando textualmente o que dispõe o Código de Processo Penal, não passa de um sequestro), pelo indeferimento da produção de provas que interessavam à defesa, pela sentença desvirtuada, pelo julgamento da apelação em tempo recorde, chegando ao acórdão que adotou uma tese que sequer foi sustentada pela acusação.
O julgamento realizado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região que resultou no acórdão em questão merece entrar para a história como símbolo dos tempos sombrios que vivemos na presente quadra histórica.
De início, a sessão de julgamento foi inaugurada com a fala do membro do Ministério Público Federal, partindo de uma visão maniqueísta que enxerga o mundo a partir de uma guerra entre os heróis (membros do sistema de justiça aliados à mídia) contra os vilões (representados pela defesa e todas as manifestações críticas do mundo acadêmico nacional e internacional). Não há um jurista sério que defenda os fundamentos jurídicos da sentença. Bem por isso, todas as falas da acusação desviaram o foco para a questão ideológica.
No mundo da pós-verdade patrocinada pelo interesse econômico, importam menos os fatos do que as crenças, preconceitos e convicções. Diante da inexistência de provas, sustenta-se a hipótese acusatória apenas em contratos rasurados irrelevantes, notícia do jornal O Globo e a palavra de um delator informal. Aliás, a verdadeira corrupção é extrair declarações de um corréu que negocia delação premissa, mediante o oferecimento de benefícios ilegais referentes à sua liberdade.
Por sua vez, a Defesa foi clara ao demonstrar a incompetência do juízo de primeira instância, a suspeição do magistrado (que ficou clara pelo incômodo
demonstrado na própria sentença pelo juiz), a falta de correlação entre a hipótese acusatória e a versão apresentada na condenação, o cerceamento do direito de ampla defesa diante da proibição de oitiva de Tacla Duran e a absoluta ausência de provas em um processo que começou com uma apresentação de powerpoint.
Diz-se que “quando Pedro me fala sobre Paulo, sei mais de Pedro que de Paulo”. É somente nesse sentido que podemos compreender o desfecho da intervenção do procurador da república, ao citar Fiódor Dostoiévski sobre a existência de “homens de bronze”. Se existe alguém que na contemporaneidade deve se lembrar de que todos os homens são de carne, essa classe é composta pelos membros do sistema de justiça!
Iniciada a leitura dos votos, ficou clara a dificuldade do Tribunal em manter a frágil sentença da primeira instância. Bem por isso, o que se sucedeu foi o deslocamento das principais questões fáticas do processo e um julgamento absolutamente distinto do conteúdo da denúncia, da sentença de Curitiba e dos argumentos apresentados pelo Ministério Público Federal no recurso de apelação.
Antes de examinar o teor do julgamento, é importante lembrar que o crime de corrupção exige ao menos dois elementos típicos: vantagem + contrapartida. Em primeiro lugar, é necessário haver pedido, recebimento ou aceitação da promessa de receber vantagem indevida2. Em segundo lugar, é necessário haver uma contrapartida em jogo. É preciso que o particular ofereça ao funcionário público a vantagem em troca de um “favor”. E qual foi o resultado do julgamento?
Sobre a suposta vantagem, afirmou-se existir “prova acima da dúvida razoável de que o triplex estava destinado a Lula como vantagem, apesar de não transferido”. Chega a ser inacreditável constatar que a condenação foi mantida mesmo após o desembargador reconhecer que Lula nunca teve qualquer relação fática ou jurídica com o tal triplex: não usou, gozou ou usufruiu do imóvel, tampouco figurou nos registros como seu dono.
A vantagem considerada pelo desembargador, em suas próprias palavras não é uma vantagem. Que tipo de benefício Lula teria recebido? Nenhum. Haveria apenas um bem destinado como vantagem, embora nunca transferido de fato ou de direito ao réu. Para legitimar a condenação, seria pressuposto mínimo que o réu tivesse aceito receber tal vantagem, o que obviamente não se pode presumir, a menos que estejamos diante de um processo penal matrix.
2 Vejam, não é necessário receber efetivamente a vantagem. Basta que o funcionário público peça ou a aceite uma promessa. Em todo caso, a acusação precisa especificar na denúncia (e comprovar durante o processo) qual foi a conduta: recebimento, pedido ou aceitação de promessa referente à vantagem indevida.