Cadernos de Direito e Cultura do Instituto de Direito, Economia Criativa e Artes
Organizadores Guilherme Carboni Nichollas de Miranda Alem Isabela Andrello Forti Editora e Coordenadora Débora Cavaleri Projeto Gráfico e design da edição Paulo Zapella Revisão de Textos Ivan Borges Sales Autores participantes dessa edição (em ordem alfabética) Carlos Edson Strasburg Junior Carlos Eduardo Neves de Carvalho Cláudio Lins de Vasconcelos Eduardo Magnani Guilherme Carboni Maristela Basso Sérgio Vieira Branco Júnior Agradecimentos Agradecemos especialmente autores dos artigos dessa edição, que gentilmente nos autorizaram a incluir seus artigos na presente publicação. Informações adicionais A publicação é distribuída gratuitamente por meio digital. Qualquer forma de comercialização é vedada. Esta publicação teve a colaboração de toda equipe do Instituto de Direito, Economia Criativa e Artes. Guilherme Carboni; Nichollas de Miranda Alem; Isabela Andrello Forti (org.). Cadernos de Direito e Cultura. Volume 1: O uso de pequenos trechos de obras artísticas e o direito autoral. São Paulo: Instituto de Direito, Economia Criativa e Artes, 2016.
Contato contato@institutodea.com
APRESENTAÇÃO
Os Cadernos de Direito e Cultura foram criados para compilar diversos conteúdos jurídicos sobre um determinado tema e, assim, facilitar e incentivar o seu estudo. A maior parte dos textos que irão compor a coleção já foram publicados de maneira dispersa. Porém, acreditamos que estes mereciam uma reunião especial. Essa é a proposta dos Cadernos: juntar anotações, reflexões e o melhor de nossa produção teórica e técnica nos temas de convergência entre Direito e Cultura. Esta primeira edição traz à tona os limites da proteção do direito autoral. Via de regra, qualquer forma de utilização de uma obra depende da prévia e expressa autorização de seu criador ou titular de direitos. Porém, a legislação brasileira prevê algumas exceções a essa obrigação, como o uso de pequenos trechos sem prejuízo da exploração normal dos autores. No âmbito internacional, essa ideia também é chamada de fair use (“uso justo”). Escolhemos esse assunto pela relevância desse aproveitamento de pequenos trechos na contemporaneidade. Quantas vezes não nos deparamos com acusações de plágio pelo uso de samplers na música? Não são comuns casos de reproduções indevidas de textos ou fotos em sites? E partes de filmes em documentários? Com a evolução das tecnologias e mídias, trazendo novas formas de produção e distribuição de conteúdo, os contornos do que são pequenos trechos e uso justo podem ser menos evidentes. Na primeira parte da publicação, trazemos uma série de artigos que irão abordar tanto aspectos teóricos quanto práticos sobre o tema. Organizamos a ordem dos textos de modo a introduzir o debate ao “leitor de primeira viagem”. Além disso, tentamos preservar ao máximo a formatação utilizada pelo autor na fonte original. Na segunda parte, trazemos um compilado de jurisprudência inédito, organizado de acordo com o tipo de obra analisada pelos julgadores. Como um bom caderno, convidamos o leitor a usar as margens e abusar dos grifos. Boa Leitura!
Nichollas Alem
ÍNDICE AS LIMITAÇÕES E EXCEÇÕES AOS DIREITOS DE AUTOR NO DIREITO BRASILEIRO E NORTE-AMERICANO Por Eduardo Magnani O FAIR USE COMO LIMITAÇÃO AOS DIREITOS AUTORAIS NO BRASIL – PRECEDENTE DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Por Carlos Edson Strasburg Junior A DOUTRINA DO “FAIR USE” NOS EUA Por Carlos Eduardo Neves de Carvalho AS LIMITAÇÕES, O FAIR USE E A GUINADA UTILITARISTA DO DIREITO AUTORAL BRASILEIRO Por Cláudio Lins de Vasconcelos AS EXCEÇÕES E LIMITAÇÕES AOS DIREITOS DO AUTOR E A OBSERVÂNCIA DO REGRA DO TESTE DOS TRÊS PASSOS Por Maristela Basso LIBERDADE DE EXPRESÃO E DIREITO AUTORAL COMO FUNDAMENTOS DA CULTURA Por Sérgio Vieira Branco Júnior CRIAÇÃO DE MÚSICA ELETRÔNICA TEM REGRAS CONTRA VIOLAÇÕES DE DIREITOS AUTORAIS Por Guilherme Carboni JURISPRUDÊNCIA
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AS LIMITAÇÕES E EXCEÇÕES AOS DIREITOS DE AUTOR NO DIREITO BRASILEIRO E NORTE-AMERICANO
Por Eduardo
Magnani
Doutorando e mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-RJ. Pesquisador líder de projetos na área de Democracia Digital no Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS) da FGV DIREITO RIO. Professor convidado da graduação e pós-graduação da FGV DIREITO RIO. Co-coordenador da Newsletter internacional “Digital Rights: Latin America and the Caribbean” e do Creative Commons no Brasil.
Resumo: O presente trabalho busca consolidar uma nova perspectiva sobre o direito autoral, fundada num olhar menos individualista, orientada pelos valores constitucionais, analisando as limitações e exceções sob a perspectiva histórica do direito autoral. Serão analisados os pressupostos indispensáveis à aplicação e compreensão das limitações, bem como das alternativas que serão propostas à restritividade da lei e, para uma melhor compreensão do nosso sistema e das possíveis soluções, serão abordadas as exceções e limitações no panorama internacional, em contraste com nosso sistema de limitações. Palavras-chave: Direito Autoral; exceções e limitações aos Direitos Autorais; função social; função promocional; direitos sociais; acesso ao conhecimento, informação e cultura.
1. Introdução Com o desenvolvimento acelerado das novas tecnologias de informação e comunicação, o direito autoral enfrenta hoje profundas transformações e passa por um momento de crise de eficácia transparecendo a necessidade de revisão e reinterpretação dos seus institutos com objetivo de torná-los compatíveis com a nova realidade social que se apresenta. O direito autoral, à luz desta nova realidade, deve ser entendido não somente como um sistema amplo de incentivo à produção intelectual artístico-literária para garantia dos direitos individuais do autor, mas como garantidor, sobretudo, dos interesses da sociedade. Visando encontrar justamente o equilíbrio entre os interesses a serem tutelados, voltamos nossa atenção para as limitações aos direitos autorais nos modelos brasileiro e norte-americano. Largamente reconhecidas como essenciais para o equilíbrio entre os interesses públicos e privados, as limitações são inerentes à Lei de Direitos Autorais e intimamente ligadas aos fundamentos do próprio
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direito autoral, representando o verdadeiro ponto crítico do direito autoral contemporâneo. É através desta perspectiva desempenhada pelo direito autoral e principalmente pelo sistema de limitações1, que se pretende investigar os problemas e as possíveis soluções apresentadas pelo modelo nacional e norteamericano de limitações como o fair use.
2. Problemática das exceções e limitações no Brasil A atual lei de Direitos Autorais (“LDA”) estabelece expressamente em seus artigos 46 a 482, sob o título “Das Limitações aos Direitos Autorais”, alguns limites atemporais ao monopólio autoral, estabelecendo situações de isenção que dispensam autorização dos titulares dos direitos patrimoniais de autor3.
1 Os termos Limitações e Exceções são utilizados indistintamente ao longo do texto. Vale nota, no entanto, o posicionamento de Allan Rocha de Souza que considera inapropriado o termo “exceções” visto que o direito autoral compõe-se tanto de um conteúdo positivo de direito de autor, quanto negativo, caracterizado pelos limites ou restrições ao direito de autor, essenciais para a correta composição dos múltiplos interesses em jogo. SOUZA, Allan Rocha de. A função social dos direitos autorais: uma interpretação civil-constitucional dos limites da proteção jurídica: Brasil: 1988-2005. Campos dos Goytacazes: Ed. da Faculdade de Direito de Campos, 2006. p. 22. 2 Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais: I - a reprodução: a) na imprensa diária ou periódica, de notícia ou de artigo informativo, publicado em diários ou periódicos, com a menção do nome do autor, se assinados, e da publicação de onde foram transcritos; b) em diários ou periódicos, de discursos pronunciados em reuniões públicas de qualquer natureza;c) de retratos, ou de outra forma de representação da imagem, feitos sob encomenda, quando realizada pelo proprietário do objeto encomendado, não havendo a oposição da pessoa neles representada ou de seus herdeiros; d) de obras literárias, artísticas ou científi cas, para uso exclusivo de defi cientes visuais, sempre que a reprodução, sem fi ns comerciais, seja feita mediante o sistema Braille ou outro procedimento em qualquer suporte para esses destinatários; II - a reprodução, em um só exemplar de pequenos trechos, para uso privado do copista, desde que feita por este, sem intuito de lucro; III - a citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens de qualquer obra, para fi ns de estudo, crítica ou polêmica, na medida justifi cada para o fi m a atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra; IV - o apanhado de lições em estabelecimentos de ensino por aqueles a quem elas se dirigem, vedada sua publicação, integral ou parcial, sem autorização prévia e expressa de quem as ministrou; V - a utilização de obras literárias, artísticas ou científi cas, fonogramas e transmissão de rádio e televisão em estabelecimentos comerciais, exclusivamente para demonstração à clientela, desde que esses estabelecimentos comercializem os suportes ou equipamentos que permitam a sua utilização; VI - a representação teatral e a execução musical, quando realizadas no recesso familiar ou, para fi ns exclusivamente didáticos, nos estabelecimentos de ensino, não havendo em qualquer caso intuito de lucro; VII - a utilização de obras literárias, artísticas ou científi cas para produzir prova judiciária ou administrativa; VIII - a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustifi cado aos legítimos interesses dos autores. Art. 47. São livres as paráfrases e paródias que não forem verdadeiras reproduções da obra originária nem lhe implicarem descrédito. Art. 48. As obras situadas permanentemente em logradouros públicos podem ser representadas livremente, por meio de pinturas, desenhos, fotografi as e procedimentos audiovisuais. 3 Art. 41. Os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subseqüente ao de seu falecimento, obedecida a ordem sucessória da lei civil. Parágrafo único. Aplica-se às obras póstumas o prazo de proteção a que alude o caput deste artigo.Art. 42. Quando a obra literária, artística ou científi ca realizada em co-autoria for indivisível, o prazo previsto no artigo anterior será contado da morte do último dos co-autores sobreviventes. Parágrafo único. Acrescer-se-ão aos dos sobreviventes os direitos do co-autor que falecer sem sucessores. Art. 43. Será de setenta anos o prazo de proteção aos direitos patrimoniais sobre as obras anônimas ou pseudônimas, contado de 1° de janeiro do ano imediatamente posterior ao da primeira publicação.Parágrafo único. Aplicar-se-á o disposto no art. 41 e seu parágrafo único, sempre que o autor se der a conhecer antes do termo do prazo previsto no caput deste artigo. Art. 44. O prazo de proteção aos direitos patrimoniais sobre obras audiovisuais e fotográfi cas será de setenta anos, a contar de 1° de janeiro do ano subseqüente ao de sua divulgação.Art. 45. Além das obras em relação às quais decorreu o prazo de proteção aos direitos patrimoniais, pertencem ao domínio público: I - as de autores falecidos que não tenham deixado sucessores; 10
Entende-se por limites atemporais aqueles que independem do transcurso de qualquer prazo e refletem os interesses e necessidades imediatos da coletividade. Já os limites temporais são entendidos como aqueles que determinam um prazo de proteção, dispostos nos artigos 41 a 45 da lei vigente4. Tratando especificamente dos limites atemporais, se exclui do âmbito da proteção autoral, por exemplo: (i) a reprodução com objetivos informacionais na imprensa, de obras e discursos públicos; (ii) a representação de imagens feitas por encomenda; (iii) a adaptação sem fins lucrativos de obras para os deficientes visuais; (iv) a cópia parcial única, de uso privado, sem fins lucrativos, e feita pelo indivíduo; (v) citações; (vi) o apanhado de lições didáticas, para fins próprios; (vii) o uso de obras para demonstração de produtos eletrônicos; (viii) a representação teatral ou execução musical para fins educacionais ou no âmbito dos relacionamentos familiares, sem fins lucrativos; (ix) a produção de prova, judiciária ou administrativa; (x) o uso de pequenos trechos em obras novas, que não sejam o vértice essencial da obra nova e não prejudiquem a exploração normal da obra reproduzida; (xi) paráfrases e paródias; e (xii) reprodução de obras situadas em lugares públicos. Ocorre que as limitações atemporais que constituem espaços atemporais de uso livre, não somente deixam a desejar por não representarem de forma satisfatória os direitos da coletividade, em completo descompasso inclusive com as novas tecnologias, como geram graves problemas de interpretação. O caso mais ilustrativo desta problemática talvez seja aquele concernente à cópia privada. A lei de 1998 restringiu ainda mais o direito de cópia privada ao permitir a cópia somente de “pequenos trechos”, introduzindo no rol de limitações um termo cuja interpretação conduz muitas vezes à proibição de usos justos da obra alheia, como no caso de pesquisas acadêmicas e demais fins educacionais. A lei anterior no. 5.988/73 no inciso II de seu artigo 49 atestava não constituir ofensa aos direitos de autor “a reprodução, em um só exemplar, de qualquer obra, contanto que não se destine à utilização com intuito de lucro”. Há, portanto, um retrocesso na atual Lei frente à impossibilidade de se reproduzir uma obra na íntegra ainda que para uso particular e sem fins lucrativos ou mesmo II - as de autor desconhecido, ressalvada a proteção legal aos conhecimentos étnicos e tradicionais. 4 SOUZA, Allan Rocha de. Op. cit., p. 173. 11
para fins educacionais, didáticos ou de pesquisa. A limitação referente à cópia para uso privado atinge direta e primordialmente estudantes e pesquisadores que dependem do acesso às obras alheias para uma adequada execução de suas atividades. Além de ser quase impossível fiscalizar o cumprimento do disposto na lei, é ainda inviável e distante da realidade exigir-se deles a compra de todo material de leitura, restringindo a eles o direito de copiar as obras necessárias ao seu estudo. A introdução do termo “pequenos trechos” trouxe muita controvérsia e incerteza em relação à interpretação da lei, fazendo com que entidades defensoras de direitos autorais, como a ABDR (Associação Brasileira de Direitos Reprográficos) e algumas universidades, editassem resoluções e determinações para tentar definir o que vem a ser “pequenos trechos”. Vale ressaltar que esta tarefa já foi tema de Projetos de Lei5, com intuito de se abolir a subjetividade da expressão, garantindo maior segurança às partes envolvidas. Segundo o manual da ABDR, que tenta definir o termo “pequenos trechos”, tratar-se-ia de “(...) fragmento da obra que não contempla sua substância. Pequeno trecho não se refere à extensão da reprodução, mas sim ao conteúdo reproduzido. Assim, qualquer intenção de se associar o pequeno trecho a 10% ou 15% da totalidade de uma obra integral é descabida. Isto porque é possível que em 10% ou 15% de reprodução esteja contemplada parte substancial da obra”6. Este entendimento deve ser criticado tendo em vista que o critério mais adequado para se autorizar a reprodução não deve ser a extensão da cópia ou a porção utilizada, mas o uso que se faz da parte copiada. Ademais, a vedação ao estabelecimento de um número percentual deve-se tão somente ao fato de não haver qualquer dispositivo legal que limite a autorização de cópias a uma porcentagem. Apesar de ser um termo muito criticado e cotado por muitos para ser excluído do texto na revisão da LDA, vale salientar que as entidades defensoras de direitos autorais já se posicionaram contra a reforma em si, permanecendo a favor da manutenção da lei atual por entenderem que a regulação é adequada e suficiente. Permanecem tais entidades como únicos pilares de sustentação de um sistema de limitações inadequado, por diversas razões, militando de forma tendenciosa a favor de uma restritividade excessiva. No ambiente acadêmico, estudantes argumentam ser impossível adquirir toda a bibliografia solicitada pelos professores, devido aos altos preços dos exemplares e à grande quantidade de livros necessários a um aprendizado consistente. Além de o mercado editorial brasileiro apresentar preços muito elevados, a maioria das bibliotecas acadêmicas tem, como é sabido, acervos
5 Projeto de Lei do Senado, no 131, DE 2006, de autoria do Senador Valdir Raupp que visa alterar o inciso II do art. 46 da Lei no 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, com a finalidade de estabelecer limite para reprodução de obra bem como o Projeto de Lei 4266/2004 de autoria do Deputado Federal Júlio Lopes, que proíbe, nos estabelecimentos de ensino superior, o funcionamento de máquinas fotocopiadoras destinadas à reprodução de livros didáticos. 6 Ver <http://www.abdr.org.br/site/perguntas_respostas.asp>. Acesso em: 13.03.10. 12
insuficientes e livros esgotados, sendo frequentemente requisitados como leitura obrigatória, muitos livros difíceis de serem encontrados.7 A esquizofrenia do termo “pequenos trechos” além de representar um retrocesso e restringir, no contexto acadêmico, muitos usos considerados justos, afetou também outros usos legítimos. Esta problemática decorrente de uma infeliz alteração do texto anterior é consequência da insuficiência do texto legal para indicar a função pretendida por uma limitação, podendo levar a alterações posteriores que subvertam completamente a sua existência. Se olharmos, contudo para o inciso XXIX do artigo 5° da Constituição veremos que enquanto faltam fundamentos explícitos para o direito autoral e suas limitações, o mesmo erro não foi cometido com a propriedade industrial.8 Verifica-se que a Constituição federal ao positivar o direito fundamental à propriedade industrial, determinou que o direito concedido devesse ter por princípio e também como limite, o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do país.9 Os problemas oriundos de textos infelizes de limitações não se esgotam na problemática da cópia privada. No tocante à reprodução de notícias, artigos informativos e discursos públicos por empresas dedicadas à divulgação de notícias, observa-se através da leitura das alíneas “a” e “b” do inciso I do artigo 46, que o texto encontra-se antiquado visto à luz das mudanças tecnológicas introduzidas nos últimos anos. Os termos “imprensa diária ou periódica” e “diários ou periódicos” são inapropriados para identificar as empresas dedicadas à divulgação de notícias, pois levam a crer que somente aquelas que se dedicam à imprensa escrita estariam abrangidas.10 A era da tecnologia digital é muito mais complexa e exige limitações adicionais. A maior parte das notícias que hoje circulam advém da Internet, da imprensa radiofônica e da imprensa televisiva que fugiriam à ideia de “imprensa diária ou periódica”. À semelhança dos dispositivos tratados acima, as limitações relativas a obras derivadas são também insuficientes para o ambiente digital, deixando pouco espaço para as novas modalidades de produção cultural, mesmo quando são inteiramente não-comerciais. Com o advento das culturas do remix, Web 2.0, mashups e produção de peers em geral, a importância de limitações relativas a obras derivadas deve ser uma prioridade, sendo a revisão legislativa que se espera da LDA uma boa oportunidade para se adequar a lei às justas demandas da sociedade. Entende-se, contudo, que em países de tradição droit d’auteur como o nosso, a ideia de limitações relativas a obras derivadas encontra uma barreira ainda 7 MIZUKAMI, Pedro Nicoletti et al. Exceptions and Limitations to Copyright in Brazil: A Call For Reform. Cit., p. 88 8 Artigo 5°, XXIX CF: a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País. 9 CARBONI, Guilherme. Op. cit., p. 98. 10 CARBONI, Guilherme. Op. cit., p. 98. 13
maior que em outros lugares devido às doutrinas de direitos da personalidade - em especial os direitos morais, como o “direito à integridade”. A resistência que existe fundamenta-se no temor de que uma derivação ou uso criativo de uma obra possa ser prejudicial à reputação ou personalidade do autor. Isto fica evidente nas limitações concernentes às paródias e paráfrases (artigo 47) que restringem a abrangência da paródia lícita. Apesar de serem explicitamente permitidas, as paródias dependem de uma condição-chave para enquadrarem-se na limitação do referido artigo: o autor de uma paródia não pode tirar o crédito da obra parodiada. Tendo em vista que o objetivo da paródia é geralmente tirar o crédito, de alguma forma, da obra parodiada, essa limitação enquanto concede supostamente o direito de parodiar, deixa em aberto a possibilidade de se fazer censura privada com o aval do Estado.11 Com relação às limitações relativas aos direitos de interpretação e execução os incisos V e VI do artigo 46 dispõem de maneira expressa: Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais: V - a utilização de obras literárias, artísticas ou científicas, fonogramas e transmissão de rádio e televisão em estabelecimentos comerciais, exclusivamente para demonstração à clientela, desde que esses estabelecimentos comercializem os suportes ou equipamentos que permitam a sua utilização; VI - a representação teatral e a execução musical, quando realizadas no recesso familiar ou, para fins exclusivamente didáticos, nos estabelecimentos de ensino, não havendo em qualquer caso intuito de lucro; A insuficiência da lei é patente, ao prever somente hipóteses de uso de obras protegidas com intuito de demonstração à clientela e desempenho musical ou teatral no recesso familiar e nos estabelecimentos de ensino. A lei exclui do âmbito de proteção das limitações, por exemplo, a execução pública de trechos de música, ainda que tenha sido feita em atenção às regras do artigo 46, incisos III e VIII da Lei de Direitos Autorais. Além disso, trata-se de uma das raras limitações voltadas a fins educacionais e não há menção a outros tipos de obras, como por exemplo, obras audiovisuais. Não é de se espantar que a Lei de Direitos Autorais brasileira seja largamente considerada como uma das leis autorais mais restritivas do mundo, tendo em vista tamanha restritividade e má formulação do instituto das limitações. Somando-se o fenômeno da maximização do direito autoral ao insuficiente e problemático sistema brasileiro de limitações, vislumbramos hoje uma lógica de desenvolvimento nacional em matéria de direito autoral, que parece ignorar usos justos e a importância do acesso da coletividade às obras protegidas. Embora a atual lei brasileira tenha sido concebida de acordo com os princípios estabelecidos pela Convenção de Berna e pelo Acordo TRIPS (ADPIC), 11 Ibid., p. 83-84. 14
muitas das possibilidades e flexibilidades previstas em ambos os tratados não foram acolhidas pela LDA. Exemplo contundente disto pode ser oferecido no tocante à questão da cópia privada. O artigo 9 (2)12 da Convenção de Berna, incensado por introduzir a regra dos três passos acolhida também pelo Acordo TRIPS, não dispõe em momento algum sobre a proibição de cópia integral de obra protegida por direito autoral. A lei brasileira, no entanto, extrapola as diretrizes internacionais ao permitir a reprodução somente de pequenos trechos e ainda que o uso das obras reproduzidas seja realizado somente dentro da esfera privada da pessoa que realiza a reprodução. A disposição brasileira é indiferente aos fins educacionais ou de arquivo ainda que a cópia seja utilizada em um contexto estritamente privado e familiar. A Convenção de Berna teve como um de seus objetivos, a ampliação das possibilidades de uso das obras protegidas, com o propósito de promover o acesso ao conhecimento e dar cumprimento ao direito fundamental à educação. O artigo 10(2) de Berna13, demonstrando visível preocupação com os fins educativos abstém-se de limitar a extensão do uso autorizado, admitindo como factível o uso de uma obra na íntegra, sempre que a utilização tiver por fundamento um uso justo. As alternativas adotadas pela LDA além de provocarem toda a problemática analisada acima, contrastam com os tratados internacionais, deixando evidente a notória restritividade da lei brasileira em comparação aos diplomas internacionais. Não se deve ignorar o fato de que as grandes obras da humanidade no plano cultural, artístico ou científico foram fruto de uma longa gestação à base de enriquecimento intelectual, evidenciando a importância do acesso às obras intelectuais. Em razão da excessiva restritividade e do descompasso com as novas tecnologias da lei brasileira vigente, alguns especialistas defendem a incorporação do conceito norte-americano de fair use ao nosso ordenamento com intuito de flexibilizar o rígido sistema brasileiro de exceções e limitações como uma possível solução para adequá-lo à nova sociedade da informação14. Buscando investigar a aplicabilidade deste conceito como possível solução para o nosso contexto, analisaremos, no item seguinte, o funcionamento do fair use norte-americano, para refletirmos sobre a validade de sua incorporação.
12 O artigo 9 (2) da Convenção de Berna assim dispõe: “Às legislações dos países da União reserva-se a faculdade de permitir a reprodução das referidas obras em certos casos especiais, contanto que tal reprodução não afete a exploração normal da obra nem cause prejuízo injustificado aos interesses legítimos do autor.” 13 O artigo 10 (2) da Convenção de Berna assim dispõe: “Os países da União reservam-se a faculdade de regular, nas suas leis nacionais e nos acordos particulares já celebrados ou a celebrar entre si as condiçõess em que podem ser utilizadas licitamente, na medida justificada pelo fim a atingir, obras literárias ou artísticas a título de ilustração do ensino em publicações, emissões radiofônicas ou gravações sonoras ou visuais, sob a condição de que tal utilização seja conforme aos bons usos”. 14 ASCENSÃO, José Oliveira. Direito Autoral. Op. cit., p. 680. 15
3. As limitações e exceções no direito Norte-Americano A doutrina norte-americana do fair use guarda grandes semelhanças com a “regra dos três passos” da aludida Convenção de Berna, prevista em seu artigo 9(2), a qual também exerceu forte influência no desenvolvimento das limitações do direito autoral brasileiro, sendo mister ressaltarmos que a despeito de haver influenciado ambos os sistemas, foi absorvida de formas distintas em função das diferentes tradições seguidas por estes dois países. A “regra dos três passos” ao condicionar a limitação do direito exclusivo de autor a “certos casos especiais” impede a edição de limitações amplas e genéricas, sugerindo que sejam definidas e limitadas. Não obstante, esse entendimento não tem sido interpretado pelos países como um obstáculo à adoção de um tratamento mais amplo e genérico das limitações aos direitos autorais. O entendimento adotado hoje pauta-se na idéia de que é possível estabelecer limitações com base em “princípios gerais” desde que as hipóteses de incidência desses princípios possam ser razoavelmente previstas.15 É o caso do sistema de fair use norte-americano. O conceito de fair use, surgido como direito costumeiro, até ser incorporado ao “Copyright act” em 1976, permite o uso limitado de material protegido por direitos autorais sem que seja necessária prévia autorização dos titulares dos direitos autorais, desde que o uso seja considerado justo.16 Para tanto, quatro fatores são levados em consideração: a) O propósito e a natureza do uso; b) A natureza da obra utilizada; c) A quantidade e qualidade da porção utilizada em comparação com o todo da obra; d) As consequências do uso no mercado e seu impacto no valor da obra original. O primeiro fator refere-se, portanto, ao propósito e natureza do uso, ensejando a verificação da existência ou ausência de indicadores como “fins comerciais” ou “fins educacionais”. Vale dizer que, embora a existência
15 Como complemento a este entendimento é possível afi rmar que a “regra dos três passos” tampouco deve servir de empecilho para a criação de novas limitações com base em políticas públicas devendo ser interpretada como forma de garantir ou ao menos não colidir com direitos fundamentais e demais questões de interesse público. 16 Dispõs o Copyright Act na seção 107 do seu Título 17: “Notwithstanding the provisions of sections 106 and 106A, the fair use of a copyrighted work, including such use by reproduction in copies or phonorecords or by any other means specifi ed by that section, for purposes such as criticism, comment, news reporting, teaching (including multiple copies for classroom use), scholarship, or research, is not an infringement of copyright. In determining whether the use made of a work in any particular case is a fair use the factors to be considered shall include: 1.The purpose and character of the use, including whether such use is of a commercial nature or is for nonprofi t educational purposes;2. The nature of the copyrighted work;3. the amount and substantiality of the portion used in relation to the copyrighted work as a whole; and 4. The effect of the use upon the potential market for or value of the copyrighted work.The fact that a work is unpublished shall not itself bar a fi nding of fair use if such fi nding is made upon consideration of all the above factors”. 16
de fins comerciais seja um indicador negativo de grande peso, não descaracteriza por si só um uso justo. Da mesma forma, a verificação de fins educacionais e nãolucrativos, não garante por si só a caracterização de um uso justo, como veremos a seguir. O segundo fator leva o aplicador do direito a se debruçar sobre a natureza da obra protegida, fomentando diferentes tipos de discussões e análises. O primeiro ponto a ser discutido, diz respeito à natureza fática ou imaginativa da obra utilizada. Tendo em vista que ideias e meros fatos não são protegidos por direito autoral, é natural que nas obras mais fáticas o âmbito da utilização fair seja maior que nas obras mais imaginativas.17 Com relação aos demais pontos que devem ser examinados sob as lentes do segundo fator, podemos citar a existência de interesse público em relação ao material utilizado e a constatação do ineditismo da obra. Enquanto o interesse público é visto pela doutrina como um indicador positivo, o ineditismo da obra é alvo de controvérsias. Muitos doutrinadores consideram equivocado analisar o ineditismo da obra sob a égide do segundo fator, uma vez que a própria Seção 107 do Título 17 do Copyright Act norte-americano, reserva esta característica fora dos quatro fatores, devendo, segundo eles, ser analisado em separado e não constituindo, à semelhança dos demais fatores, um critério capaz de descaracterizar por si só o uso justo. O segundo fator é considerado, de forma geral, um fator de pouco peso na avaliação final do fair use.18 O terceiro fator enseja a análise em escala quantitativa e qualitativa da porção utilizada da obra protegida, devendose levar em conta o tamanho da obra nova e a relevância do trecho utilizado para ambas as obras. O quarto e último fator leva em conta o impacto da utilização sobre o valor ou o mercado potencial da obra utilizada, sendo considerado pela doutrina e jurisprudência norte-americanas como o fator mais influente no resultado final do teste do fair use. Com relação a este fator especificamente, vale citar a interpretação da OMPI ao artigo 9.2 da Convenção de Berna, disposta no Guia Interpretativo da Convenção de Berna, publicado em 1978. De acordo com a interpretação da OMPI, para se avaliar se determinada exceção é ou não válida no âmbito da Convenção de Berna, não se deve simplesmente levar em consideração se o autor sofreu ou não um prejuízo qualquer, mas se o prejuízo é ou não injustificado, tendo em vista que toda limitação, de uma forma ou de outra, sempre terá algum impacto no mercado reservado aos titulares de direitos autorais. É possível afirmar, a título ilustrativo, que em caso de utilização fundada em interesse público, ainda que haja prejuízo, 17 ASCENSÃO, José de Oliveira. O “Fair use” no Direito Autoral. Cit., p. 95. 18 Vide BEEBE, Barton. “An Empirical Study Of The U.S. Copyright Fair Use Opinions, 1978-2005”, in University of Pennsylvania Law Review vol. 156, no 03 (jan/08), p. 610-615. 17
em alguma medida, ao detentor dos direitos patrimoniais, trata-se de um prejuízo justificado. A aplicação do fair use a exemplo da aplicação da “regra dos três passos”, na qual se inspirou, deve atender também à função social do direito de autor, que consiste na promoção do desenvolvimento cultural e garantia do interesse público.19 Estes elementos devem ser levados em consideração ao se ponderar os fatores e mais especificamente ao se examinar o quarto fator. A ocorrência de um indicador negativo referente a um dos quatro fatores ou ao ineditismo da obra utilizada, não deve ser determinante para desconsideração de um uso justo. Do contrário, os fatores devem ser examinados conjuntamente e o resultado deve advir de um exercício de ponderação entre estes fatores, não se excluindo a consideração de outros fatores adicionais em função das circunstâncias do caso concreto.20 Vale mencionar que a figura do fair use não esgota a matéria dos limites aos direitos do autor no direito norte-americano, sendo um teste aplicável, mormente, a situações lacunosas em que não se têm normas específicas, constituindo na verdade uma cláusula geral a ser interpretada pelos tribunais complementada por especificações positivas, constantes das seções 108 e seguintes do titulo 17 do US Code e por diplomas como o Digital Millenium Copyright Act de 1998 e demais diretrizes (guidelines). No sistema brasileiro, baseado na tradição européia de droit d’auteur, as limitações ao direito autoral são previstas em rol de condutas que parte considerável da doutrina entende ser taxativo. Ou seja, caso a conduta do agente não se coadune com as permissões expressamente previstas em lei, o uso da obra não será admitido. Observa-se desta forma grande diferença em relação ao sistema norte-americano de previsão do fair use por meio do qual são estabelecidos critérios a partir dos quais se afere se tal uso viola ou não direitos autorais de acordo com análise do caso concreto.21 Como ressalta José de Oliveira Ascensão: A todos interessa este confronto, nomeadamente pelo contributo muito importante que o fair use, não obstante a diversidade do sistema de direito em que se integra, pode trazer ao aperfeiçoamento do nosso sistema. A posição de partida é muito superior, porque permite manter vivo o corpo do Direito Autoral, satisfazendo simultaneamente os objectivos culturais e outros que estão indelevelmente na sua origem.22 Demonstrando ser mais maleável que o sistema brasileiro, adaptando-se com maior facilidade aos desafios emergentes23, o fair use não deixa de ser alvo 19 CARBONI, Guilherme (org.). Direitos Autorais e Internet – Propostas Legislativas Para Fomentar o Desenvolvimento e o Acesso ao Conhecimento. In: Série Pensando o Direito no 3/2009. Brasília. 2009. p. 80. 20 PEREIRA, Alexandre Libório Dias. Direitos de Autor e Liberdade de Informação. Coimbra: Almedina, 2008. p. 302. 21 YANKWICH, Leon R. “What is Fair Use?”. The University of Chicago Law Review, Vol. 22, No. 1 (Autumn, 1954), pp. 213-214. 22 ASCENSÃO, José de Oliveira. O fair use no direito autoral. Cit., p. 83. 23 Ibid. p. 95-96. 18
de críticas. Trataremos agora das críticas e avaliaremos a aplicabilidade deste instituto ao contexto brasileiro.
4. Inaplicabilidade do “fair use” ao contexto brasileiro A despeito da lei brasileira de direitos autorais prever hipóteses de limitação dos direitos de autor, tais situações configuram-se insuficientes para abarcar todas as condutas sociais em que o aproveitamento de obras alheias deve ser tolerado. Embora muitas destas condutas sejam consideradas socialmente aceitas estão, a rigor, ferindo o disposto na lei de direitos autorais. Esta situação gera um desequilíbrio e cria um verdadeiro abismo entre os ditames legais e as práticas sociais em virtude da ineficácia da lei. Na tentativa de explicitar e defender a necessidade de um balanço justo entre os interesses do titular dos direitos autorais e os interesses dos usuários da obra, busca-se equilibrar o bem obtido por meio do lucro privado e o obtido pelo acesso ao conhecimento por parte da coletividade. As exceções e limitações aos direitos autorais possuem um papel central na busca por este equilíbrio. Uma das linhas de argumentação a favor da aplicação da limitação norteamericana do fair use ao contexto nacional, sustenta que o artigo 46 da Lei de Direitos Autorais deveria estabelecer, destacadamente em seu caput, princípios gerais determinantes de situações de fair use, e não o fazer dentro da descrição de cada situação específica como hoje ocorre, resultando em dúvidas quanto à sua aplicação e pouca maleabilidade.24 Recomenda-se por vezes a estrutura do fair use, entendendo-se que não se deve limitar as situações de uso legítimo a uma lista rígida, sendo mais apropriado prever os princípios aplicáveis, permitindo supostamente uma melhor definição do que vem a ser um uso justo, gerando maior segurança e acesso ao usuário da obra. Não obstante, apesar de haver uma melhor capacidade do fair use para contrabalancear o monopólio do direito autoral, condicionando a infração ao uso que se faz da cópia, devemos considerar as fortes críticas direcionadas a este instituto para avaliarmos se a sua aplicação no âmbito interno seria ou não adequada. Sendo considerado por parte da doutrina como um conceito cinzento e fluido, o fair use é criticado nos Estados Unidos pelo fato de sua maleabilidade extremada dar ensejo a decisões absurdas fruto de diferentes pesos atribuídos pelos criadores da jurisprudência a cada um dos fatores nos casos concretos. A deficiência da regra do fair use em criar um conjunto de valores coerente é criticada por William Fisher em seu artigo intitulado “Reconstructing the fair
24 PEREIRA, Alexandre Libório Dias. Op. cit., p. 305-307. 19
use doctrine”25, no qual sustenta que a doutrina do fair use passa por uma má fase, provocada pela mudança de entendimento da Suprema Corte Americana com relação ao instituto, ao deixar-se guiar por uma lista não-exaustiva de “fatores” muitas vezes ambíguos e vagos com capacidade de gerar os mais diversos resultados. Fisher demonstra também ao longo do artigo, uma forte preocupação com a insegurança que o novo entendimento gera aos usuários quanto a seus direitos legais. Por razões como estas, Fisher à semelhança de outros doutrinadores, propõe uma reconstrução da doutrina do fair use, com o objetivo de salvar a principal limitação do sistema autoral norte-americano desta fase crítica e desafiadora.26 No ano de 2008, Barton Beebe, professor da Benjamin N. Cardozo School of Law, publicou um interessante artigo no qual apresenta um estudo empírico sobre o fair use fazendo um ousado levantamento e posterior análise de todos os julgados federais norte-americanos que se utilizaram substancialmente do fair use desde a positivação do instituto até o ano de 2005. O estudo evidencia quais fatores são levados em consideração pelos tribunais para a análise de um uso justo, verificando ainda como interagem os fatores na prática e que peso se atribui a cada fator. O artigo traz também evidências empíricas de inserção de novos fatores pelos tribunais, alertando para a freqüência com que as cortes se utilizam de fatores individuais para se chegar a um resultado desejado, ignorando muitas vezes a doutrina do fair use, negligenciando os quatro fatores que compõem a essência do teste e os casos paradigmáticos da Suprema Corte que deveriam servir-lhes de orientação. A despeito do caráter não-exaustivo dos fatores enumerados no §107 do Copyright Act, entende-se que os fatores positivados devem constar da análise do caso concreto, embora não exclusivamente. Beebe considera a doutrina do fair use ao mesmo tempo, a mais enigmática e a mais importante doutrina do sistema americano de copyright. Trata-se, para o autor, de uma limitação amorfa, vaga e imprevisível verificando-se na prática que o teste do fair use não é utilizado como uma fórmula, tornando fértil o terreno para decisões discrepantes, colocando em xeque até mesmo a importância dos leading cases em matéria de fair use.27 Exemplos disto são os julgados divergentes envolvendo 25 William W. Fisher III. “Reconstructing the fair use doctrine”, in Harvard Law Review no 101 (jun/88); pp. 1.668-1.795. 26 Ibid. 27 BEEBE, Barton. Op. cit., p. 549-624. 20
paródias e cópias privadas na íntegra. Este entendimento demonstra a incapacidade do fair use em gerar hipóteses de incidência razoavelmente previsíveis, distanciando- se e rompendo com a concepção original da “regra dos três passos” que através do fator “em certos casos especiais” veda as hipóteses de limitações amplas e genéricas que não sejam capazes de gerar hipóteses dotadas de um mínimo de previsibilidade. O fundamento desta vedação é evitar a insegurança jurídica gerada por este tipo de limitação. Michael W. Carroll em seu artigo “Fixing Fair Use” comenta a existência de um uníssono nas considerações de especialistas do direito e usuários de obras ao concordarem que o fair use é tão difícil de ser compreendido que falha no papel de guia efetivo para nortear usos justos. O escopo do fair use é incerto o suficiente para dissuadir grande parte dos usuários de fazerem uso de obras alheias, primeiro porque as potenciais sanções são minimamente intimidadoras e segundo porque cabe ao próprio acusado provar que o uso fora “justo”. O preâmbulo da Seção 10728 identifica tipos de usos que poderão ser considerados justos tais como críticas, pesquisas e comentários. Estas condutas descritas poderiam servir para clarificar o escopo do fair use estabelecendo condutas exaustivas que caracterizassem limitações e fossem presumivelmente justas, de modo a gerar hipóteses de incidência minimamente previsíveis. Contudo, Carroll aponta que as cortes rejeitaram esta possibilidade, entendendo que o rol é meramente ilustrativo e as condutas não gozam de presunção alguma. Os quatro fatores centrais tampouco garantem uma maior segurança, sendo avaliados das mais diversas formas nos tribunais norteamericanos.29 O juiz norte-americano Pierre Nelson Leval descreve de forma sucinta o problema:30 Judges do not share a consensus on the meaning of fair use. Earlier decisions provide little basis for predicting later ones. Reversals and divided courts are commonplace. Confusion has not been confined to judges. Writers, historians, publishers, and their legal advisers can only guess and pray as to how courts will resolve copyright disputes.
28 Vide: http://www.copyright.gov/title17/92chap1.html#107. Acesso em 03.03.15 29 CARROLL, Michael W. “Fixing Fair Use”, in North Carolina Law Review vol. 85, (apr/07), p. 1087-1154. 30 LEVAL, Pierre N. Toward a Fair Use Standard, 103 HARV. L. REV. 1105, 1106–07 (1990). Tradução livre do autor: “Juízes não compartilham de um consenso sobre o signifi cado do fair use. Decisões anteriores fornecem poucas bases para prever decisões futuras. Anulações de sentença e cortes divididas são situações comuns. A confusão não está restrita aos juízes. Escritores, historiadores, editores, e seus advogados podem apenas adivinhar e rezar a respeito de como as cortes irão resolver disputas envolvendo direitos autorais.” 21
Além da problemática envolvendo a falta de clareza e os fatores que compõem o instituto do fair use, há que se mencionar outro ponto considerado negativo, principalmente no que tange à possibilidade de incorporação deste conceito ao sistema brasileiro de limitações. Trata-se do fato do conceito de fair use estar alicerçado em uma análise patrimonialista, girando em torno da ideia de adequação aos interesses econômicos do titular do direito autoral. O fair use é geralmente caracterizado quando a permissão de uso fornece mais benefícios ao autor do que se este o restringisse. A ideia de benefício inclui desde lucrar por meio de negociações de permissões de uso até o estímulo à criação intelectual. Tomemos como exemplo a crítica de um livro: esta prática é largamente considerada um uso justo, não somente por aumentar a vendagem da obra original, como também por constituir na prática, uma publicidade merecedora de mais crédito por parte dos leitores, por não ter sido veiculada pelo editor ou por aqueles que têm um interesse econômico direto na vendagem da obra.31 O condicionamento da caracterização do fair use ao fornecimento de benefícios ao autor evidencia o caráter estritamente patrimonialista do instituto. Todos os quatro fatores do fair use são direcionados para avaliar o impacto econômico gerado pelo uso. O primeiro fator determina se o uso possui natureza comercial; o quarto fator determina o potencial impacto econômico do uso no mercado da obra original e no valor da obra em si. O segundo fator foca a natureza da obra, determinando o grau de criatividade contido na obra original para contrastar com o grau de criatividade contido no uso feito a partir dela (elemento transformativo) e, para alguns, o ineditismo; o terceiro fator, por fim, foca na quantidade e qualidade da porção utilizada em comparação com o todo da obra. Embora devam ser analisados conjuntamente, observa-se na prática que o primeiro e o quarto fatores são praticamente determinantes para a caracterização ou afastamento do fair use. A natureza patrimonialista desta doutrina é consequência da derivação direta do conceito de copyright, cujos efeitos são sentidos até os dias de hoje. O direito de cópia ainda é tido como a essência do copyright determinando o escopo tanto do monopólio do direito de cópia quanto do próprio fair use. O forte vínculo com a noção de “direito de cópia” dificulta uma interpretação do fair use que ultrapasse a análise puramente econômica e particularmente a filosofia norte-americana de copyright law que traduz-se na proteção dos direitos econômicos do titular do direito de cópia, perante o mercado econômico.32 Esta natureza evidencia o distanciamento existente entre a tradição do copyright e a tradição droit d’auteur a partir da qual foi erguido o sistema brasileiro de limitações. Ao direcionar os seus elementos para uma apreciação dos efeitos econômicos que o uso da obra causa ao autor/ titular dos direitos autorais, o fair use é considerado como um instituto “econocêntrico”. A adoção de uma doutrina de natureza puramente “econocêntrica”, superficializaria o tratamento brasileiro dispensado às questões autorais. É harmonioso com o 31 POSNER, Richard A. “When is Parody Fair Use”, in The Journal of Legal Studies, vol. 21, n. 1 (jan/92), p. 67-78. 32 PATTERSON, L. Ray. Understanding Fair Use. Law and Contemporary Problems, Vol. 55, No. 2, Copyright and Legislation: The Kastenmeier Years (Spring, 1992), pp. 249-266. 22
nosso sistema compreender que os interesses dos criadores não devem ofuscar o núcleo essencial de outros valores fundamentais que gravitam na órbita da constelação constitucional.33 Ao se analisar a origem da doutrina do fair use através do caso paradigmático, Folsom v. Marsh, percebe-se nitidamente o contorno econocêntrico do instituto. O juiz Story, responsável por julgar o caso, apontou de maneira implacável o propósito e a natureza do fair use, afastando interpretações ampliativas desta doutrina logo na sua gênese34: The entirety of the copyright is the property of the author; and it is no defense, that another person has appropriated a part, and not the whole, of any property. Neither does it necessarily depend upon the quantity taken, whether it is an infringement of the copyright or not. It is often affected by other considerations, the value of the materials taken, and the importance of it to the sale of the original work. (...) In short, we must often, in deciding questions of this sort, look to the nature and objects of the selections made, the quantity and value of the materials used, and the degree in which the use may prejudice the sale, or diminish the profits, or supersede the objects, of the original work. Desta forma, restando demonstrada a fraqueza deste conceito evidenciada por frequentes e substanciais críticas potencializadas pelo fato de que nosso mecanismo de isenções não se escora na mesma tradição que o fair use, seria recomendável procurar soluções compatíveis com nosso ordenamento, sendo indesejável a incorporação de um instituto alienígena que apresenta defeitos em seu próprio sistema, com potencial ainda de desequilibrar a harmonia do nosso sistema interno de limitações.
5. Conclusão Os reflexos de uma regulação fundada em uma visão romantizada do autor são percebidos ainda hoje, provocando ao longo dos tempos, uma desarmonia cada vez maior entre a tutela do direito individual de exploração da obra intelectual e a tutela do interesse coletivo, garantida por meio do domínio público e do sistema de exceções e limitações. Em primeiro lugar, vale ressaltar que o excesso de proteção nem sempre é benéfico ao autor, favorecendo um modelo de negócios centrado no lucro dos intermediários. Além disso, o direito do autor ao produto da sua criatividade deve ser sopesado à luz da função social
33 PEREIRA, Alexandre Libório Dias. Op. cit., p. 310. 34 Tradução livre do autor: “A totalidade do direito autoral/copyright é a propriedade do autor; e não é defesa nenhuma afi rmar que outra pessoa se apropriou apenas de uma parte, e não do todo, de qualquer propriedade. Também não depende necessariamente da quantidade utilizada, tratando-se de uma violação de direito autoral ou não. É frequentemente afetado por outras considerações como o valor dos materiais tomados, e a importância dos mesmos para a venda da obra original. (...) Em resumo, nós devemos frequentemente, para decidir questões desse tipo, olhar para a natureza e para as fi nalidades das seleções realizadas, a quantidade e o valor dos materiais usados, e o grau em que o uso pode prejudicar as vendas, ou diminuir os lucros, ou substituir as fi nalidades do trabalho original.” 23
do direito autoral, com o direito da população à disseminação do conhecimento. O objetivo principal da busca pelo equilíbrio entre os interesses expostos é evitar que o direito de propriedade intelectual ofusque de forma desproporcional e desarrazoada os direitos individuais e sociais previstos na Constituição federal, como educação, cultura e liberdade de expressão. O presente momento, representado pelos avanços da era digital e pela necessidade de reforma da lei de direitos autorais, é oportuno para o debate, cabendo à sociedade, seus representantes e aos aplicadores do direito, especificamente, avaliar a melhor forma de se equilibrar os interesses em jogo, buscando os modelos que melhor atendam às necessidades do país e que assegurem da forma mais adequada e equilibrada possível, os direitos fundamentais. Neste contexto, conforme se demonstrou, a incorporação do sistema de fair use norte-americano não deve ser encarado como uma possível solução. Diversas análises tem demonstrado na prática o fato deste sistema agravar a insegurança jurídica dos usuários além de ser um instituto econocêntrico, distanciando-se de nossa tradição por levar em conta somente o impacto econômico do uso realizado, não atentando de forma suficiente para sua função social de concretização de direitos constitucionais.
REFERÊNCIAS ASCENSÃO, José Oliveira. O Fair Use no Direito Autoral. Direito da Sociedade da Informação, vol. IV. Coimbra: Coimbra Editora, 2003. p. 89106. BEEBE, Barton. “An Empirical Study Of The U.S. Copyright Fair Use Opinions, 1978-2005”, in University of Pennsylvania Law Review vol. 156, no 03 (jan/08), p. 549-624. CARBONI, Guilherme. O Direito de Autor e seus Desafios: Os Conflitos com a Liberdade de Expressão, o Direito de Acesso ao Conhecimento, à Informação e à Cultura e o Direito ao Desenvolvimento Tecnológico. In: REIS, Renata et al. Propriedade Intelectual: agricultura, software, direito de autor, medicamentos: interfaces e desafios. 1a edição. Rio de Janeiro: ABIA, 2007. p. 59-123. Carroll, Michael W. “Fixing Fair Use”, in North Carolina Law Review vol. 85, (apr/07), p. 1087-1154. FISHER III, William W. FISHER, William W. “Reconstructing the fair use doctrine”, in Harvard Law Review no 101 (jun/88), p. 1.668-1.795. 24
LEVAL, Pierre N. Toward a Fair Use Standard. Harvard Law Review, Vol. 103, No. 5 (Mar., 1990), p. 1105-1136. MIZUKAMI, Pedro. Função Social da Propriedade Intelectual: Compartilhamento de arquivos e Direitos Autorais na CF/88. Tese (Mestrado). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007. 537p. PATTERSON, L. Ray. Understanding Fair Use. Law and Contemporary Problems, Vol. 55, No. 2, Copyright and Legislation: The Kastenmeier Years (Spring, 1992), p. 249-266. POSNER, Richard A. “When is Parody Fair Use”, in The Journal of Legal Studies, vol. 21, n. 1 (jan/92), p. 67-78. SOUZA, Allan Rocha de. A função social dos direitos autorais: uma interpretação civil-constitucional dos limites da proteção jurídica. 1a edição. Campos dos Goytacazes: Faculdade de Direito de Campos, 2006. 339p. YANKWICH, Leon R. What is Fair Use?. The University of Chicago Law Review, Vol. 22, No. 1 (Autumn, 1954), p. 203-215.
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O FAIR USE COMO LIMITAÇÃO AOS DIREITOS AUTORAIS NO BRASIL - PRECEDENTE DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Por Carlos
Edson Strasburg Junior
Advogado Sênior de Pinheiro Neto Advogados, Graduado e Mestre em Direito Civil pela USP, Master of Laws (LL.M.) pela UC Berkeley, Especialista em Law & Technology pelo Berkeley Center for Law & Technology.
Resumo: O Artigo faz uma análise da crescente aplicação do instituto do fair use no direito autoral brasileiro, especialmente em vista de decisão recente do Superior Tribunal de Justiça. O Artigo também discute a importância da adoção do instituto no Brasil como forma de conferir flexibilidade à Lei no 9.610/98, mantendo-a atualizada às novas demandas do século XXI. Palavras-chave: Direitos Autorais – Limitações – Fair Use Nos últimos anos a Lei nº 9.610/98 (“Lei de Direitos Autorais”) vem sendo alvo de críticas por alguns setores da sociedade, por ser excessivamente protetiva ao Autor, o que dificultaria o acesso da população à cultura e, no entendimento de alguns, contribuiria para a perpetuação da situação de exclusão cultural e atraso tecnológico no Brasil. A versão original do anteprojeto de reforma da Lei de Direitos Autorais elaborado pelo Ministério da Cultura (“MinC”), submetido à consulta pública no segundo semestre de 2010, refletia essa preocupação. Na oportunidade, o Governo Federal divulgou cartilha1 com dados que davam a exata noção de alguns dos excessos da Lei de Direitos Autorais no Brasil, dentre os quais destacamos: a) pesquisa da Consumers International, realizada em 2010, qualificando o Brasil como 27º país que mais facilita o acesso ao conhecimento em suas leis de direitos autorais, entre 34º países pesquisados; e b) pesquisa da OMPI, realizada em 2008 mostrando que “num universo de 149 países, apenas 21 não permitem que museus, bibliotecas e cinematecas façam cópias de preservação e conservação dos seus acervos. O Brasil é um deles, ao lado de países da África como Burkina Faso, Burundi, Líbia, Namíbia, do Oriente como Iraque, Kwait e Yemen; na América Central e Sul como Haiti, Costa Rica, Argentina e Chile”. Ressalte-se que o Chile alterou a sua Lei para permitir a cópia para fins de preservação após a pesquisa.
1 https://seminariostematicos.files.wordpress.com/2011/04/cartilha-direito-autoral.pdf, Acessado em 30.12.2015 27
Como sabemos, o anteprojeto foi fustigado por críticas, muitas das quais legítimas, haja vista algumas disposições excessivamente intervencionistas na relação privada2, bem como injustificáveis limitações aos direitos autorais de maneira a privilegiar grupos organizados de pressão3. Por essa razão, o anteprojeto jamais vingou. Quando Ana de Hollanda assumiu o MinC, em substituição ao Ministro Juca Ferreira, sua notória afinidade profissional e familiar com a defesa dos interesses dos autores levou a uma significativa alteração da proposta de revisão da Lei de Direito Autoral apresentada à Câmara em 7.2.2012 e, até o momento, sem qualquer previsão de aprovação (Projeto de Lei nº 3133/2012). A divergência de interesses existentes na sociedade e no seio do próprio Governo acabou por evidenciar a necessidade de “oxigenação” da lei através de uma evolução na interpretação dos comandos legais de acordo com a dinâmica moderna da sociedade. Uma lei engessada não consegue acompanhar as novas tecnologias e expectativas da sociedade. Ao atingir a sua maioridade, alguns paradigmas rígidos adotados na interpretação da Lei de Direitos Autorais precisam ser relativizados. Como sabemos, os direitos autorais no Brasil seguem a doutrina francesa do droit d’auteur que tem uma abordagem centrada na proteção ao direito de autor, sendo as limitações a esse direito uma verdadeira exceção no sistema. PAUL GOLDSTEIN, renomado Professor da Stanford University, afirma que o droit d’auteur “santifica” os direitos de autor, mencionado exemplos de proteção a direitos morais de autor que, sob a ótica do copyright, são exagerados4. O copyright, de origem anglo-saxônica, tem uma abordagem mais utilitarista, onde a proteção autoral sempre tem em vista a sua função cultural e econômica. Nos países que adotam o copyright, a lista fechada de limitações aos direitos autorais, adotada pelos seguidores da doutrina do droit d’auteur, é substituída pela doutrina do fair use, ou “uso justo”, utilizada como argumento
2 Como a obrigatoriedade de registro das cessões de direitos autorais perante os Cartórios de Títulos e Documentos ou mesmo a previsão de instituição de órgão responsável pela política de direito autoral, com competência, entre outras coisas, para “estimular a difusão do direito autoral”. 3 Dentre os quais destacamos o intenso lobby por parte das igrejas evangélicas para isentá-las do pagamento pela execução pública de obras musicais. 4 Copyright’s highway, from Gutenberg to the Celestial Jukebox, Stanford University Press, ed. revista, 2003, p. 136. 28
de defesa em ações judiciais envolvendo violação a direitos autorais. A doutrina foi primeiramente reconhecida nos Estados Unidos através de uma série de precedentes judiciais iniciados em 1841 com o caso Folsom v. Marsh, 9F. Cas. 342 (CCD Mass 1841)5. Posteriormente, a doutrina acabou codificada pelo Congresso Americano (17 U.S. Code §107)6. Nos Estados Unidos, para caracterização do fair use, o magistrado deve levar em consideração (i) a finalidade e características do uso; (ii) a natureza da obra protegida; (iii) a proporção e importância da reprodução em relação à obra como um tudo; e (iv) o efeito do uso da nova obra sobre o mercado potencial e valor de mercado da obra protegida. A jurisprudência acabou por dar uma maior importância ao último item, sempre procurando identificar se a nova obra suplantaria/substituiria o uso da obra reproduzida. O fair use foi incluído na Convenção de Berna através da revisão de Paris, ocorrida em 1971. Ao regulamentar as exceções ao direito de reprodução, a convenção facultou os países membros estabelecer hipóteses em que a reprodução de obras protegidas por direito de autor seria permitida, contanto que tal reprodução não afetasse a exploração normal da obra nem causasse prejuízo injustificado aos interesses legítimos do autor7. No Brasil, a Convenção de Berna foi internalizada pelo Decreto nº 75.699/75. A Lei de Direitos Autorais inovou ao adotar um sistema misto ao tratar das hipóteses de limitação ao direito autoral. Enquanto o artigo 666 do revogado Código Civil de 1916 e a Lei nº 5.988/73 estabeleciam hipóteses fechadas de limitação, o artigo 46 da Lei de Direitos Autorais passou a prever, além das hipóteses fechadas, uma regra geral de fair use (“Não constitui ofensa a direitos 5 Nesse caso, a Corte reconheceu a violação dos direitos autorais dos Autores sobre a obra “The Writtings of George Washington” composta por 12 volumes de documentos ofi ciais e pessoais do Presidente Norte-Americano. Os Réus na ação publicaram obra copiando 353 páginas da obra dos autores. Embora tenha julgado procedente a ação, a Corte ponderou que “In cases of copyright, ... the identity of the two works in substance, and the question of piracy, often depend upon a nice balance of the comparative use made in one of the materials of the other; the nature, extent, and value of the materials thus used; the objects of each work; and the degree to which each writer may be fairly presumed to have resorted to the same common sources of information, or to have exercised the same common diligence in the selection and arrangement of materials”. (Robert Merges, Peter S. Menel and Mark A. Lemley, Intellectual Property in the New Technological Age, Wolters Kluwer, Sixth Edition, p. 609). O exercício proposto pela Corte na ocasião é, em sua essência, aquele realizado até os dias de hoje pelas Cortes dos Estados Unidos e demais países que adotam a doutrina do “fair use”. 6 Assim prevê o 17 U.S. Code §107: “Notwithstanding the provisions of sections 106 and 106A, the fair use of a copyrighted work, including such use by reproduction in copies or phonorecords or by any other means specifi ed by that section, for purposes such as criticism, comment, news reporting, teaching (including multiple copies for classroom use), scholarship, or research, is not an infringement of copyright. In determining whether the use made of a work in any particular case is a fair use the factors to be considered shall include— (1) the purpose and character of the use, including whether such use is of a commercial nature or is for nonprofi t educational purposes; (2) the nature of the copyrighted work; (3) the amount and substantiality of the portion used in relation to the copyrighted work as a whole; and (4) the effect of the use upon the potential market for or value of the copyrighted work. The fact that a work is unpublished shall not itself bar a fi nding of fair use if such fi nding is made upon consideration of all the above factors. 7 “ARTIGO 9 1) Os autores de obras literárias e artísticas protegidas pela presente Convenção gozam do direito exclusivo de autorizar a reprodução destas obras, de qualquer modo ou sob qualquer forma que seja. 2) Às legislações dos países da União reserva-se a faculdade de permitir a reprodução das referidas obras em certos casos especiais, contanto que tal reprodução não afete a exploração normal da obra nem cause prejuízo injustifi cado aos interesses legítimos do autor. 3) Qualquer gravação sonora ou visual é considerada uma reprodução no sentido da presente Convenção.” 29
autorais (...) a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando em artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores”). Curiosamente, essa importante inovação foi solenemente ignorada por parte significativa da doutrina de direito autoral no Brasil, contrariada com a adoção de instituto estranho à nossa tradição continental. JOSÉ CARLOS COSTA NETTO qualificou como “radical mudança no regime de utilização, por obra nova, de obra preexistente” a redação do artigo 46, inciso VIII, da Lei de Direitos Autorais8. O apego às raízes do droit d’auteur no Brasil levou a uma espécie de letargia no reconhecimento e aplicação da regra do fair use no direito pátrio. Muitos doutrinadores ignoraram o dispositivo, enquanto outros o criticaram, sob o argumento de que o sistema com limitações fechadas em vigor até então garantiria uma maior segurança jurídica e não seria tão restritivo quanto apregoado. Embora prevista na Lei de Direitos Autorais9, a “regra dos três passos” sempre foi ofuscada pela doutrina e jurisprudência, que privilegiaram uma interpretação restritiva do direito autoral, condicionando todo e qualquer uso de obra à prévia autorização do titular do direito autoral. Em detalhada análise sobre a atualização da Lei de Direitos Autorais, a Professora SILMARA CHINELLATO defendeu a simples ampliação do rol de limitações previsto no artigo 46 da Lei de Direitos Autorais, sem que o fair use fosse adotado no Brasil10. A lenta evolução da jurisprudência reflete a dificuldade dos operadores do direito em aceitar a inovação introduzida na Lei de Direitos Autorais. Todavia, algumas decisões recentes demonstram estar em curso uma verdadeira consolidação jurisprudencial do instituto do fair use no Brasil. Dois recentes julgados do Superior Tribunal de Justiça ambos de lavra do Ministro Luis Felipe Salomão, ilustram bem a tendência de aceitação do instituto no direito brasileiro. Em 7.5.2013, a 4ª Turma negou provimento a recurso da Editora Abril contra acórdão do TJSP que julgou parcialmente procedente ação de indenização proposta pelo Sistema Globo de Edições Musicais Ltda., na qualidade de titular dos direitos autorais patrimoniais sobre a obra lítero-musical Dancing Days, composta por Nelson Motta e Rubens de Queiroz Barra (Resp. nº 1.217.567/SP). 8 Direito autoral no Brasil, 2. Ed., São Paulo, FTD, 2008, pg. 185. 9 Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais: (...) VIII - a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores. 10 Chinellato, Silmara Juny de Abrey, Copyright Law in Brazilian Constitution and its repercussions in ordinary laws, Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, v. 15, nº 30, jul./dez.2012, p. 27. 30
A revista Playboy utilizou trecho de letra da música (“abra suas asas, Solte suas feras. Entre nesta festa.”) na ilustração de ensaio fotográfico na edição de fevereiro de 1999. Segundo o Autor, em razão do uso não autorizado da obra, teria perdido contrato de licenciamento da obra em campanha publicitária. A Turma concluiu não se aplicar ao caso concreto a regra do fair use prevista no artigo 46, inciso VIII, da Lei de Direitos Autorais, pois o uso não autorizado causaria prejuízo injustificado aos interesses dos Autores da obra Dancing Days especialmente porque o uso “tem caráter de completude e não de acessoriedade”11. Embora não tenha aplicado o fair use, a Turma reconheceu a sua existência e teceu considerações sobre a interpretação da regra. Já em 6.10.2015, ao julgar o Recurso Especial nº. 1.343.961/RJ, o Ministro Salomão proferiu decisão paradigmática com relação ao reconhecimento e aplicação do fair use no Brasil, em que a artista teve a sua obra intitulada “Rupestre” entregue em consignação para exposição e venda em galeria de arte. Durante o período de exposição, a obra foi retratada em filme publicitário de empresa de telefonia. A galeria de arte, a empresa de telefonia e a produtora da campanha foram processadas pela artista sob o argumento de que teriam se apropriado da obra, “sonegando-lhe todos os Direitos Autorais”. A ação foi julgada parcialmente procedente em primeira instância e monocraticamente reformada em grau de apelação, uma vez constatado pelo relator tratar-se de umas das hipóteses de limitações previstas no artigo 46, VIII, da Lei de Direitos Autorais. A Câmara manteve a decisão monocrática ao julgar o agravo regimental da Autora12. O recurso especial, fundamentado, entre outros argumentos, na inaplicabilidade das limitações previstas no artigo 46, inciso VIII, da Lei de Direitos Autorais por se tratar de filme publicitário com destinação comercial, não foi provido 11 Recurso Especial. Direito Autoral. Uso de trecho da letra da obra musical Dancing Days sem autorização do detentor dos direitos autorais em publicação da revista Playboy. Limites impostos ao direito autoral. Indenização. 1. A reprodução de pequenos trechos de obras preexistentes apenas não constitui ofensa aos direitos autorais quando a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova, não prejudique a exploração normal daquela reproduzida nem cause prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores (art. 46, VIII, da Lei n. 9.610/1998). 2. A exploração comercial da obra e os meios em que ela ocorrerá é direito exclusivo do autor, como regra. A transcrição de trecho musical em periódico de forma não autorizada não caracteriza permissivo legal (fair use) que excepcione o direito de exploração exclusiva pelo seu titular. 3. O caso dos autos não se enquadra nas normas permissivas estabelecidas pela Lei n. 9.610/1998, tendo em vista que o refrão musical inserido no ensaio fotográfico e de cunho erótico – de forma indevida -, tem caráter de completude e não de acessoriedade; e os titulares dos direitos patrimoniais da obra vinham explorando-a comercialmente em segmento mercadológico diverso. 4. Recurso Especial a que se nega provimento. (STJ. Resp. nº 1.217.567/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. em 7.5.2013). 12 AGRAVO INOMINADO CONTRA DECISÃO MONOCRÁTICA DO RELATOR QUE DEU PARCIAL PROVIMENTO AO RECURSO DOS AGRAVADOS. DIREITO AUTORAL. USO NÃO AUTORIZADO DE PINTURA EM CAMPANHA PUBLICITÁRIA. VIOLAÇÃO DI DIREITO AUTORAL. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. IMPOSIÇÃO. PARCIAL PROCEDÊNCIA. APELOS DE TODAS AS PARTES. CARACTERIZADO USO LIVRE DA OBRA. PREVISÃO LEGAL. AUSÊNCIA DO DEVER INDENIZATÓRIO. PROVIMENTO DOS APELOS DAS RÉS. PREJUDICADO O AUTORAL. A toda evidência, o direito de autor de obra intelectual encontra proteção em nosso ordenamento jurídico pátrio na Lei n0 9.610/98. Tal regime traz, contudo, limitações aos direitos autorais, conforme se depreende do seu artigo 46. Nesta esteira, o inciso VIII permite o uso livre de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores. É o que ocorre na espécie. Ausência de prática de ilícito que afasta o dever de indenizar. Sentença que merece reforma. Entendimento deste E. Tribunal acerca do tema. Dou provimento aos recursos das rés, na forma do artigo 557, §10-A, do CPC, para, reformando a sentença, julgar improcedentes os pedidos da demanda principal, bem como para julgar Improcedente o pedido contido na demanda regressiva. Prejudicado o apelo autoral. Ausência de argumento novo que justifique a revisão do julgado. Nego provimento ao recurso. (TJRJ, Apelação nº 002291968.2006.8.19.0001, Rel. Des. Cleber Ghelfenstein, 14ª Câmara Cível, j. em 22.9.2010). 31
pelo Superior Tribunal de Justiça. O Turma reconheceu não ser o direito de autor absoluto, haja vista encontrar limites em direitos igualmente relevantes, havendo uma contraposição entre o fomento à produção intelectual através da proteção dos direitos dos autores e do outro o desenvolvimento intelectual e cultural da sociedade. O interesse público que fundamenta a proteção ao direito de autor também justifica a imposição de limitações ao direito, “a fim de viabilizar o cumprimento de sua função social, tendo em vista o papel eminentemente cultural que toda obra possui, capaz de contribuir com a evolução social e o progresso humano”. Dessa forma, foi afastado o argumento de que a natureza comercial da reprodução serviria para afastar a aplicação da limitação prevista no artigo 46, inciso VIII da Lei de Direitos Autorais. O acórdão estabelece importante balizamento com relação à interpretação da expressão “pequenos trechos” para a aplicação do dispositivo legal. Restou reconhecido que “pequenos trechos” são “aqueles que possuem caráter acessório em relação ao todo que é exposto”, sendo mais importante a qualidade do que a quantidade do que se reproduz. Confira-se: “O primeiro dos critérios é o que diz respeito ao tamanho da reprodução da obra que se permite reproduzir sem autorização. Assim é que somente pequenos trechos de obras existentes poderão ser reproduzidos legalmente. A locução pequenos trechos, como não poderia ser diferente, pareceu aos operadores da norma um tanto quanto subjetiva, a ponto de retirá-la qualquer utilidade prática. Por esse motivo, logo a doutrina cuidou de dar objetividade à expressão, revelando seu real significado: pequenos trechos são aqueles que possuem caráter acessório em relação ao todo que é exposto. Aqui, menos importa, na verdade, o tamanho, a quantidade do que se reproduz, e mais a qualidade do que se expõe.No caso da reprodução de pequeno trecho, é clara a intenção do legislador quanto à dimensão do texto a ser reproduzido: é pequeno em termos quantitativos, todavia, o fundamental é o aspecto qualitativo, uma vez que só é livre quando não se tornar o objeto central da obra na qual será inserido (para esta verificação, usase o seguinte teste: se retirado o pequeno trecho reproduzido, a obra deve permanecer inteligível). (ASCENÇÃO, José de Oliveira, Op. cit. p.)”. De fato, a intenção do legislador, como dito acima, quanto ao dimensionamento da reprodução não autorizada pelo autor, permitida pelo ordenamento, era o de fixar a natureza de acessoriedade da obra reproduzida. Destarte, o legislador, quando permitiu a reprodução, pretendeu estabelecer que a obra reproduzida não poderia ser o centro 32
das atenções quando comparada á obra nova no bojo da qual seria posta. Sua natureza acessória deve ser evidente a ponto de não prejudicar, não desfigurar a obra nova, caso seja dela retirada.” (STJ, Resp. nº1.343.961/RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. em 6.10.2015).
Cada vez mais os Tribunais Estaduais têm aplicado o fair use para julgar os conflitos envolvendo direitos autorais no Brasil, como demonstra recente acórdão de Relatoria do Desembargador Airton Pinheiro de Castro, do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, de 15 de dezembro de 2015, que reconheceu não caracterizar violação de direitos autorais o uso de fotografia cuja cessão havia sido autorizada para composição de capa de revista, em adesivo promocional colado a veículo da empresa, “em meio a outras tantas sobrepostas”13. Desde a entrada em vigor da Lei de Direitos Autorais, os Tribunais têm julgado e aplicado esparsamente a regra do fair use. A novidade a justificar a elaboração desse artigo é a consolidação do instituto, através da sistemática aplicação pelos Tribunais Estaduais e pelo seu reconhecimento, com o estabelecimento de critérios para a sua aplicação, pelo Superior Tribunal de Justiça, o que facilitará o trabalho de interpretação da norma. Os operadores do direito que trabalham para agências de publicidade e empresas com intensa produção criativa sabem da importância da aplicação do fair use para viabilizar obras que não se enquadram nas hipóteses fechadas de limitações aos direitos autorais previstas na Lei, mas que, por outro lado, não representam qualquer prejuízo ao titular do obra reproduzida, sendo o precedente do STJ um ótimo exemplo. A consolidação do instituto do fair use no Brasil trará segurança às atividades criativas que, por sua própria natureza, estão sujeitas a maiores conflitos entre os usos justos e violadores das obras de terceiros. Vivemos um período único, em que o conhecimento acumulado pela humanidade cresce exponencialmente, tendo a dinâmica da produção intelectual evoluído significativamente desde a entrada em vigor da Lei de Direitos Autorais. Não faz qualquer sentido manter a produção intelectual engessada a limites estritos, estabelecidos pelo legislador no final do século passado, em detrimento à produção intelectual no Brasil em pleno século XXI. Nesse contexto, deve ser louvada a evolução jurisprudencial na aplicação do artigo 46, inciso VIII, da Lei de Direitos Autorais.
13 Apelação n. 0049858-35.2011.8.26.0577, 10ª Câmara de Direito Privado do TJSP. 33
A DOUTRINA DO “FAIR USE” NOS EUA
Por Carlos
Eduardo Neves de Carvalho
Formado em Administração de Empresas pela FEA-USP e em Direito pela PUC-SP com pós-graduação (LL.M) em Franklin Pierce Law Center. Sócio do escritório especializado em direito autoral Crivelli e Carvalho Advogados Associados.
1. Introdução A doutrina do “fair use” (uso leal) foi judicialmente estabelecida nas cortes dos Estados Unidos como defesa à violação dos direitos autorais a qual permite a utilização livre e gratuita de uma obra intelectual independente da prévia autorização do detentor dos direitos autorais. O “fair use” foi inicialmente articulado em 1841 no caso Folson v. Marsh1. Neste caso, a RÉ reproduziu sem a devida autorização, cartas do presidente George Washington para produzir sua biografia. Baseado nos fatos, o juiz Story decidiu que houve violação de direitos autorais com os seguintes argumentos: “Em resumo, nós devemos analisar a natureza e os trechos da seleção feita, a quantidade e o valor econômico do material copiado, e o patamar no qual o uso pode prejudicar a venda, ou diminuir o lucro, ou ainda exceder os objetivos da obra original2 …” Entretanto, esta doutrina foi incorporada em lei somente em 1976 no artigo 107 da Lei Federal Americana de Direitos Autorais (1976 U.S Copyright Act). A lei não define estritamente o que é “fair use” mas fornece os preâmbulos nos quais ela pode ser aplicada3. Segundo o Copyright Act, o sistema do “fair use” permite que alguém legalmente utilize livre e gratuitamente a obra protegida de outro com finalidade de crítica, comentário, noticiar fatos e atualidades, ensino (incluindo cópias múltiplas destinadas ao uso em classe), instrução ou investigação.
1 Vide Folson v. Marsh, 9 F. Cas. 342 (C.C.D.Msss. 1.841) (No. 4901). 2 Vide Folson v. Marsh, 9 F. Cas. 342 3 Vide § 107 of the 1.976 U.S. Copyright Act. § 107. Limitations on exclusive rights: Fair Use Notwithstanding the provisions of sections 106 and 106A, the fair use of a copyrighted work, including such use by reproduction in copies or phonorecords or by any other means specified by that section, for purposes such as criticism, comment, news reporting, teaching (including multiple copies for classroom use), scholarship, or research, is not an infringement of copyright 35
2. Aplicação da Doutrina do “Fair Use” pelos Tribunais Norte Americanos: os Quatro Fatores Ao decidir a respeito da aplicação do “fair use”, a corte americana tem decidido caso a caso baseando-se sempre em quatro fatores que estão presentes no artigo 107 do Copyright Act4. Estes fatores são sempre analisados de maneira conjunta e nunca isoladamente.
2.1 Propósito e caráter do uso não autorizado Este fator enfatiza a distinção entre uso comercial ou não comercial com fins educacionais. A distinção entre uso comercial e não comercial foi judicialmente pacificada no caso Sony Corp. v. Universal City Studios, Inc5. Neste caso, pessoas que adquiriram videocassete da marca Betamax na década de 80 utilizavam a tecla time-shifting do aparelho para gravar filmes e programas de televisão. A Suprema Corte Americana decidiu que se tratava de uso não comercial porque o uso era privativo e doméstico. As pessoas tinham a intenção apenas de gravar os programas para assistir em outro horário e não tinham interesse em criar uma biblioteca de fitas para vender a terceiros. Segundo o caso Association of American Medical College v. Mikaelian6, o uso comercial é aquele que gera lucro podendo ou não ter finalidade educacional, noticiar fatos, ou ter qualquer dos propósitos previstos no artigo 107 do Copyright Act. Em Mikaelian, a RÉ copiou questões da prova de admissão do exame nacional de medicina para usá-las em apostilas em seu cursinho. A Associação entrou com uma ação contra Mikaelian e a corte decidiu que, apesar de tratarse de uma atividade educacional, houve um uso comercial com o intuito de lucro já que o preço do cursinho era de $ 485,00. Em resumo, usuários não devem lucrar com a reprodução de uma obra intelectual sem pagar ao detentor dos direitos autorais desta obra. Por outro lado,
4 § 107. In determining whether the use made of a work in any particular case is a fair use the factors to be considered shall include: 1) the purpose and character of the use, including whether such use is of a commercial nature or is for nonprofi t educational purposes; 2) the nature of the copyrighted work; 3) the amount and substantiality of the portion used in relation to the copyrighted work as a whole; and 4) The effect of the use upon the potential market for or value of the copyrighted work. The fact that a work is unpublished shall not itself bar a fi nding of fair use if made upon consideration of all the above factors. 5 Vide Sony Corp. of America v. Universal City Studios, Inc., 464 U.S. 417, 451 (1.984) (‘If the intended use is for commercial gain, that meaningful likelihood of future harm may be presumed”). 6 Vide Association of Am. Med. College v. Mikaelian, 571 F. Supp. 144 (E.D. Pa. 1.983. 36
o uso não autorizado de uma obra por uma instituição sem fins lucrativos é um indicativo de fair use7. Ademais, ao se tratar deste primeiro fator, a corte também tem verificado o propósito da utilização da obra intelectual. Por exemplo, o uso de má fé ocorre quando alguém explora uma obra sem tentar obter uma autorização do detentor dos direitos intelectuais desta obra e também não cita a sua autoria no material utilizado8.
2.2 Natureza da Obra Intelectual Este fator tem como finalidade respaldar a sobreposição do interesse público diante do interesse privado na utilização de algumas obras intelectuais. O objetivo principal do direito autoral nos EUA é a disseminação de informação ao público geral. Por isso, o “fair use” privilegia mais utilização de obras intelectuais que contenham informações como trabalhos científicos, históricos, etc; em relação a obras voltadas ao mundo do entretenimento. Por exemplo, este fator permite que alguém, sem a devida autorização do autor, se utilize de um livro histórico ou enciclopédia mas não autoriza o uso de um vídeo de rock9. Similarmente, se uma obra intelectual não está disponível ao público ou por estar em edição esgotada ou pela dificuldade ao seu acesso, o sistema do “fair use” permite a livre utilização desta obra. Entretanto, o “fair use” não pode ser aplicado a obras voltadas a reprodução em massa como obras didáticas e materiais escolares10. No caso Harper &. Row v. Nations, ao se tratar de obras não publicadas, o direito de publicação do titular dos direitos autorais sobrepõe-se. Apesar do The Nations utilizar apenas 300 palavras do manuscrito do ex presidente Gerald Ford que contém 200.000 palavras, a corte rejeitou a tese do “fair use” em função do manuscrito não ter sido publicado11. Em 1.992, o Congresso Americano emendou sua Lei de Direitos Autorais determinando que mesmo em se tratando de obra não publicada, a corte deverá analisar todos os fatores12.
7 Vide Harper v. Row, Publishers, Inc. v. Nation Enters., 471 U.S. 539 (1.985). 8 Vide Markus v. Rowley, 695 F. 2d 1171 (9th Cir. 1983). 9 Vide Sony Corp. of America v. Universal City Studios, Inc. 10 Vide H.R. Rep. No. 94-1.476, 94th Cong., 2d Sess. 69, 71 (1.976). Vide também Association of Am. Med. College v. Mikaelian 11 Vide Harper v. Row, Publishers, Inc. v. Nation Enters. 12 102 Pub. L. No. 492; 106 Stat. 3145 (1.942). 37
2.3 Quantidade reproduzida sem autorização da obra intelectual protegida Para exemplificar melhor este fator, podemos fazer uma comparação com o direito civil e penal: Será que minha legítima defesa foi suficiente para evitar uma agressão ou eu utilizei uma força descomunal13? Similarmente, será que a quantidade reproduzida sem autorização de uma obra intelectual foi mais que necessário para atingir o propósito do sistema do “fair use”?. Um crítico literário, por exemplo, não precisa reproduzir duas páginas de um livro se em dois parágrafos for o suficiente para ele fazer sua crítica14. Mesmo se a reprodução for de pequenos trechos, ela pode exceder o propósito do “fair use”. Em Harper & Row, apesar de ser reproduzido apenas 300 palavras de um manuscrito de 200.000 palavras, a corte rejeitou o “fair use” porque estas palavras reproduzidas eram a parte principal da obra. “Fair use” tem sido normalmente rejeitado quando uma obra inteira é copiada, mesmo para uso privativo. Este fator deve ser analisado em junção com o quarto fator15.
2.4 O efeito do uso não autorizado no mercado potencial da obra protegida e seu valor econômico No caso Sony Corp. v. Universal City Studios, Inc., 1.984, a Suprema Corte Americana considerou este fator como o mais importante dos quatro fatores. Se o mercado de obras intelectuais é prejudicado pela reprodução indevida por terceiros, os incentivos e a vontade de criar novas obras serão minimizados pois os autores não estarão sendo remunerados por suas criações16. A utilização indevida deverá afetar o mercado potencial da obra protegida e seu valor econômico. O dano ao mercado potencial pode ser provado, por exemplo, com dados concretos de uma pesquisa de mercado ou perda de um contrato com um eventual cliente/fornecedor17. Para a aplicação do sistema do “fair use”, deve-se sempre analisar caso a caso e nunca tomar como base um fator isolado. Por exemplo, no caso Enciclopaedia Britannica v. Crooks, a corte considerou que o uso não comercial com fins educacionais da RÉ prejudicava o mercado
13 Vide Understanding Copyright Law, pg 438. 14 For a discussion of substantial similarity in proving copyright infringement, see LEAFFER, Marshall Understanding Copyright Law, pgs 483, Third Edition, 1.999. 15 Vide Understanding Copyright Law, pg 440, 441. 16 Vide Sony Corp. of America v. Universal City Studios, Inc. 17 Vide Understanding Copyright Law, pg 440. 38
da autora. Neste caso, a RÉ copiou vários programas educativos da televisão e distribuiu em diversas escolas18. Entretanto, conforme vimos no caso do Betamax, apesar das pessoas poderem efetuar uma cópia integral de um filme, a corte considerou “fair use” pois a intenção era apenas o uso doméstico e privado sem a reprodução indevida e a distribuição de exemplares a terceiros19.
3. Fotocópias – Photocopying O caso precedente foi William & Wilkins v. United States, no qual a corte considerou que a fotocópia integral de um artigo de um jornal de medicina e sua distribuição pelo Instituto Nacional de Medicina constituiu-se “fair use” pois o interesse público em informações voltadas à saúde sobrepõe-se ao possível dano ao mercado potencial do jornal20. Entretanto, no caso Princetown University Press v. Michigan Document Services. Em 1996, a corte concluiu que providenciar fotocópias de livros a alunos não é “fair use”21. Na maior parte dos casos, a justiça tem decidido que a reprodução não autorizada deve ser apenas de pequenos trechos da obra e com fins educacionais.
4. Bibliotecas Photocopying
e
Serviços
de
Arquivo
-
Library
O artigo 108 da Lei Americana permite fotocópias de livros em bibliotecas apenas para fins educacionais. Não é permitido a bibliotecas distribuir múltiplas cópias de um mesmo material22. Ademais, este artigo também permite que bibliotecas e serviços de arquivos realizem, sem autorização do autor, reproduções das obras que integram a sua coleção para sua preservação e seguridade.
18 Vide Enciclopaedia Britannica v. Crooks, 542 F. Supp. At 1179. 19 Vide Sony Corp. of America v. Universal City Studios, Inc. 20 Vide William & Wilkins v. United States, 487 F. 2d 1345 (1973), aff d by an equally divided Court, 420 U.S. 376 (1975). 21 Vide Princetown University Press v. Michigan Document Services, 99 F. 3d 1381 (6th Cir. 1996). 22 Vide § 108 of the 1.976 U.S. Copyright Act. § 108. Limitations on Exclusive Rights. (a) Notwithstanding the provisions of section 106, it is not an infringement of copyright for a library or archives, or any of its employees acting within the scope of their employment, to reproduce no more than one copy or phonorecord of a work, or to distribute such copy or phonorecord, under the conditions specified by this section, if – (1) the reproduction or distribution is made without any purpose of direct or indirect commercial advantage; (2) the collections of the library or archives are (i) open to the public, or (ii) available not only to researches affiliated with the library or archives or with the institution of which it is a part, but also to other persons doing research in a specialized field; and (3) the reproduction or distribution of the work includes a notice of copyright. 39
5. Cópias Múltiplas de um Mesmo Material para Fins Didáticos - Jurisprudência Em Wihtol v. Crow23, a justiça decidiu que cópias múltiplas de um mesmo material não é permitido pelo sistema do “fair use” mesmo se for com fins educacionais. A livre reprodução de obras para fins educacionais sempre resultará prejudicial aos interesses dos autores dada a sua amplitude. Neste caso, um professor do colegial distribuiu quarenta e oito cópias da letra de uma música a seus estudantes. Apesar de se tratar de uso educacional sem intuito de lucro, a corte rejeitou a defesa pelo “fair use” proposta pelo autor.
6. Entendimento do Congresso Americano para Cópias de Obras Didáticas – “Agreement on Guidelines for Classroom Copying in Non-For-Profit Educational Institutions” Para tentar solucionar este problema de cópias múltiplas em instituições de ensino, o Congresso Americano reuniu profissionais do meio acadêmico e autores e elaborou um parecer delimitando os mínimos critérios para reproduções de obras não autorizadas com a finalidade de uso educacional24. As orientações são aplicadas a instituições educacionais sem fins lucrativos. As cópias múltiplas de um mesmo material devem atender a quatro critérios: a) brevidade (pequenos trechos) – pode ser a cópia de um artigo que tenha menos de 2.500 palavras ou 10% de um livro. b) espontaneidade – a decisão de utilizar o trabalho e o momento de seu uso é tão importante que não haveria tempo para contatar o titular dos direitos da obra reproduzida. c) efeito cumulativo – as cópias devem ser utilizadas somente em um curso numa mesma escola. d) créditos autorais para o autor e detentor destes direitos. Se a utilização da obra sobrepõe-se a estes fatores, a justiça deve decidir a questão pela doutrina do “fair use”. O primeiro caso decidido na justiça com base neste parecer do Congresso foi Marcus v. Rowley25. Neste caso, a RÉ copiou onze páginas de um livro de culinária sobre doces que continha vinte e quatro páginas e utilizou em seus cursos de culinária. A corte, além de rejeitar a doutrina do “fair use”, considerou que a RÉ violou todos os fatores do parecer do Congresso. A cópia não autorizada
23 Wihtol v. Crow, 309 F. 2d 777 (8th Cir. 1962). 24 Vide H.R. Rep. No. 94-1476, 94th Cong., 2d Sess. 68-70 (1.976), (Agreement on Guidelines for Classroom Copying in Non-For -Profit Educational Institutions). 25 Vide Marcus v. Rowley, 695 F.2d 1171 (9th Cir. 1983). 40
excedeu a brevidade (11 pgs sobre um total de 24 pgs), espontaneidade (a RÉ teve tempo suficiente para pedir uma autorização ao autor), efeito cumulativo (utilizou o livro em vários cursos) e não deu os créditos autorais devidos ao autor.
7. Remuneração por Cópia Privada Nos EUA como em vários países da Europa, existe a possibilidade de remuneração pela reprodução não autorizada de uma cópia privada. Na maior parte destes países, quem são obrigados a pagar os direitos autorais são os fabricantes ou importadores de equipamentos e de materiais que permitem a reprodução das obras devendo este valor ser repassado aos detentores de direitos autorais. Os usuários ou pessoas em geral que obtém as cópias para uso pessoal não são obrigadas a pagar26. Nos USA, o Copyright Clearance Center é uma instituição sem fins lucrativos fundada em 1978 que tem como finalidade servir de intermediária entre escritores e usuários. A instituição, mediante o pagamento de uma taxa, autoriza a fotocópia de uma obra e repassa o valor arrecadado aos detentores de direitos autorais que tiveram suas obras reproduzidas. O Copyright Clearance Center recolhe as taxas de licença de duas maneiras. Primeiro, o Transactional Reporting System, trabalha em âmbito individual e depende de um pedido feito pelo interessado ao Clearance Center. A segunda maneira é através do Annual Autorization Service na qual um modelo de preenchimento fica na máquina de xerox e um modelo estatístico estima a taxa devida toda vez que uma reprodução for feita. Tendo por base um modelo estatístico, a taxa anual de licença é baseada na quantidade de cópias feitas por um determinado segmento da indústria e pela média cobrada pelas editoras detentoras dos direitos autorais27.
26 Vide, LIPSZYC, Delia, Derecho de Autor y Derechos Conexos, pg. 243, Editora UNESCO, 2.001. 27 Vide Vide Understanding Copyright Law, pg 449. 41
8. Reverse Engineering of Computer Software “Reverse engeneering” é um método para se obter informações técnicas de um produto disponível no mercado no qual se analisa de que forma o produto foi feito e como ele funciona. Este método pode ser aplicado em programas de computador. Primeiramente, para ter acesso a idéias incorporadas no programa, um programador deve traduzir o código binário presente no programa para uma linguagem legível humana. Com isso, ele descobre como o software funciona. O método de tradução do software é chamado de “disassembly or decompilation”. No caso Sega Enters Ltd. V. Accolate28, a Corte Americana de Apelações do Nono Circuito considerou que o método de “disassembly or decompilation” de um programa de computador para produzir outro programa de tecnologia compatível é “fair use”. Neste caso, a RÉ Accolate, uma empresa que desenvolvia cartuchos de videogame, comprou um cartucho Sega, decodificou-o pelo método de “reverse engeneering” e produziu um novo jogo que podia ser utilizado em aparelhos Sega. A corte considerou que a RÉ Accolate infringiu os direitos autorais da Autora Sega ao copiar o jogo entretanto, ela considerou que o processo de “disassembly or decompilation” constitui “fair use” pois este era o caminho necessário para se ter acesso a idéias e elementos funcionais presentes no código de um programa de computador. Na aplicação dos fatores da doutrina do “fair use”, somente o terceiro fator, quantidade reproduzida sem autorização da obra intelectual protegida, pesou a favor da empresa Sega29. O primeiro fator, propósito e caráter do uso não autorizado e o quarto fator, efeito no mercado potencial da obra protegida favoreceram a RÉ. O videogame produzido pela RÉ não afetou o mercado da obra da AUTORA. Além do mais, a Corte acrescentou a tentativa de a AUTORA monopolizar o mercado de videogames30. Concluindo, para que seja aplicada a doutrina do “fair use” para “reverse engeneering”, o método de “disassembly or decompilation” deve ser o único caminho para se decoficar um programa de computador e ter acesso a seus dados funcionais. Como as idéias e métodos não são passíveis de proteção por direitos au28 977 F. 2d 1510 (9th Cir. 1.993); see also a case base don a similar fact situation, Atari Games Corp. v. Nintendo of Am., 975 F. 2d 832, 842 (Fed. Cir. 1992) (fi nding that decompilation of a computer program to produce a compatible game cartridge might be fair use, but that defendant’s program was “substantially similar” to plaintiff’s). 29 Sega, 977 F. 2d at 1527 (citing Sony for the proposition that even copying the whole work did not preclude a fi nding of a fair use). 30 Id. at 1523-24. 42
torais, nada impede que alguém decodifique um programa para entender o seu funcionamento e com base nesses dados funcionais, elabore um novo programa de computador com tecnologia compatível com a do programa decodificado.
9. Parody Paródia é a imitação de um trecho de uma obra intelectual podendo ser, por exemplo, obra literária ou musical, para finalidade humorística ou satírica. A paródia é uma crítica ou comentário que expõe à mediocridade, uma obra intelectual para a sociedade, forçando-nos a examinar esta obra do ponto de vista cômico31. Ao satirizar o trabalho do autor, a paródia muitas vezes expõe este trabalho intelectual ao ridículo e isto pode ocasionar uma grande tensão entre o autor e o parodista. Para não se expor ao ridículo é que a probabilidade do autor licenciar sua obra para paródia é pequena. O grande dilema na aplicação do sistema de “fair use” para obras parodiadas é saber a quantidade que podemos utilizar da obra original. Para isso, devemos levar em consideração que a paródia não se trata simplesmente de uma reprodução da obra intelectual e sim, sua transformação, sendo uma obra utilizada como forma de crítica ou comentário, conforme enumerado no preâmbulo do artigo 107 da Lei Federal Americana de Direitos Autorais32. Devemos ser cautelosos na utilização da obra original a ser parodiada para não desrespeitar a integridade e a honra do autor.
9.1 A Relação da Paródia com os Quatro Fatores do Sistema “Fair Use” Os quatro fatores do “fair use” são aplicados na análise de uma paródia e os mais importantes são o terceiro fator (quantidade reproduzida sem autorização da obra intelectual protegida) e o quarto fator (efeito no mercado potencial da obra protegida).
O leading case referente a paródias é o caso Campbell v. Acuff-Rose Music, Inc33. Neste caso, a Suprema Corte Americana assegurou que uma obra parodiada com finalidade comercial pode ser qualificada no sistema de “fair use”. Para decidir esta questão, a Corte deve examinar a paródia como um todo no qual, o caráter transformativo da obra intelectual é mais importante do que seu propósito comercial. 31 Vide Understanding Copyright Law, pg 452. The term “satiric” is often used as synonymously with “parody”. 32 Vide § 107 of the 1.976 U.S. Copyright Act. 33 Vide Campbell v. Acuff-Rose Music, Inc. 114 S. Ct. 1.164 (1.994). 43
Neste caso, o grupo musical Acuff-Rose detinha os direitos autorais patrimoniais da canção “Oh, Pretty Woman”, de autoria de Roy Orbison que a compôs em 1964. O grupo de rap 2 Live Crew, escreveu e gravou uma satírica versão desta canção também a denominando de “Pretty Woman” e, em 1989, requereu uma licença de uso a Acuff-Rose que fora recusada. Entretanto, o grupo de rap lançou a satírica versão da canção utilizando-se do mesmo ritmo musical da canção original, repetindo-o por mais de oito vezes em sua canção, substituindo apenas por suas palavras34.
A Sexta Corte Distrital Americana decidiu que o grupo de rap 2 Live Crew infringiu os direitos autorais de Acuff-Rose aplicando o princípio jurisprudencial estabelecido no caso Sony, no qual toda utilização não autorizada de uma obra intelectual com finalidade comercial é presumidamente injusta e tem um efeito prejudicial no mercado consumidor. A corte rejeitou a defesa pelo sistema de “fair use”.
9.2 Quanto de uma Obra Original pode ser utilizada em uma Obra Parodiada35 Ao analisar a validade da tese de defesa pelo sistema de “fair use”, devese analisar o quanto de uma obra original pode ser utilizado em uma obra parodiada. Esta questão é fundamental porque as melhores paródias copiam uma grande quantidade da obra original para terem um grande efeito humorístico. No caso Acuff-Rose, a Corte afirmou que a quantidade necessária para transformar uma obra original dependerá da justificativa do parodista e de sua capacidade de persuasão o que será variável de acordo com o propósito e o caráter de utilização da obra parodiada. A maior parte das decisões americanas afirma que os parodistas não podem copiar indiscriminadamente as obras originais de outrem sem sua devida autorização. O princípio legal aplicado é que os parodistas devem apropriar-se apenas de uma quantidade mínima necessária da obra original para evocar o objeto de sua sátira. Este princípio, chamado de “conjure up” foi reafirmado no caso Walt Disney v. Air Pirates36.
9.3 Paródia e o Quarto Fator: Efeito no Mercado Consumidor Para que seja aplicável o quarto fator do sistema de “fair use”, a obra parodiada não pode afetar o valor econômico e o mercado da obra original. Para se determinar o efeito do mercado consumidor, não se analisa somente o impacto da paródia como mecanismo de crítica mas também, o efeito 34 Vide Understanding Copyright Law, pg 453 e 454. 35 Vide Understanding Copyright Law, pg 454. How Much Can the Parody takes from the Original? The issue arises because the best parodies must take extensively from the original to create the humorous effect. 36 Vide Walt Disney v. Air Pirates, 581 F. 2d 751 (9th Cir. 1.978). 44
econômico de seu uso em satisfazer a demanda pelo público da obra original. A questão principal para se determinar a aplicação da tese do “fair use” é verificar se a paródia satisfaz a demanda da obra original, ou seja, se os consumidores estão mais aptos a adquirir uma obra parodiada ao invés da original37. Caso a resposta seja afirmativa, a tese do “Fair Use” não poderá ser aplicada pois o mercado consumidor da obra original seria afetado pela obra parodiada. Tanto a legislação brasileira quanto a americana dispõe que a obra parodiada não pode ser uma cópia integral da obra original devendo-se respeitar a integridade e a honra do autor, que não pode ser ridicularizado38.
10. Conclusão: Parâmetro para a Aplicação do “Fair Use” nos E.U.A. A doutrina do “fair use” (uso leal) foi judicialmente criada nas Cortes dos Estados Unidos como defesa à violação dos direitos autorais. Ela é aplicada quando a infração dos direitos autorais já ocorreu isto é, alguém, sem a devida autorização do autor, efetuou a reprodução de sua obra intelectual. A parte infratora sofre uma ação judicial e como tese de defesa, alega que se trata de um caso de “fair use” podendo reproduzir livre e gratuitamente a obra protegida pois utilizou para umas das finalidades permitidas por lei, ou seja, para crítica, comentário, notificação de fatos e atualidades, ensino (incluindo cópias múltiplas destinadas ao uso em classe), instrução ou investigação. O Tribunal, ao decidir sobre a questão, analisa conjuntamente quatro fatores: a) Propósito e Caráter do Uso não Autorizado - enfatiza a distinção entre uso comercial ou não comercial com fins educacionais. b) Natureza da Obra Intelectual - tem como finalidade que o interesse público se sobreponha ao interesse privado na utilização de algumas obras intelectuais especialmente para aquelas de difícil acesso (como obras esgotadas) e que não irão prejudicar o mercado do autor. Somente deverão ser utilizadas obras já publicadas pelos autores. c) Quantidade Reproduzida sem Autorização da Obra Intelectual Protegida No caso de uma obra literária, um pequeno trecho poderia ser o suficiente para se efetuar um estudo ou uma critica. No caso de uma obra audiovisual ou musical, um pequeno trecho não é 37 Vide Understanding Copyright Law, pg 455 e 456. The real issue for the fair use determination is whether the parody fulfi lls the demand for the original, that is, whether consumers are likely to purchase the parody rather than the original because it serves the same purpose as the original. 38 Vide art.47 da Lei Brasileira de Direitos Autorais, Lei 9.610/98. Art. São livres as paráfrases e paródias que não forem verdadeiras reproduções da obra originária nem lhe implicarem descrédito. 45
suficiente para alguém usufruir desta obra. Como poderíamos gravar apenas um trecho de um filme para assistirmos em outro horário? Devemos lembrar que este uso deve ser de apenas um exemplar e sempre privativo e doméstico nunca com o intuito de lucro. d) O Efeito do Uso não Autorizado no Mercado Potencial da Obra Protegida e seu Valor Econômico. A utilização indevida deverá afetar o mercado potencial da obra protegida e seu valor econômico. O dano ao mercado potencial pode ser provado, por exemplo, com dados concretos de uma pesquisa de mercado ou perda de um contrato com um eventual cliente/fornecedor. Para a aplicação do sistema do “fair use”, deve-se sempre analisar caso a caso e nunca tomar como base um fator isolado. Com relação a fotocópias, na maior parte dos casos, a jurisprudência tem decidido que a reprodução não autorizada deve ser apenas de pequenos trechos da obra e com fins educacionais. Para tentar solucionar o problema de cópias feitas em escolas e faculdades, o Governo Americano, juntamente com a sociedade, elaborou um parecer que estabelece quatro critérios a serem seguidos por instituições e professores. (Agreement on Guidelines for Classroom Copying in Non-For-Profit Educational Institutions) a) brevidade - pequenos trechos b) espontaneidade - urgência na utilização da obra c) efeito cumulativo - as cópias devem ser utilizadas somente em um curso numa mesma escola. d) créditos autorais para o autor e detentor destes direitos Caso a utilização da obra sobreponha a estes fatores, a justiça deve decidir a questão pela doutrina do “fair use”. Nos EUA, como em vários países da Europa, existe a possibilidade de remuneração pela reprodução não autorizada de uma cópia privada. Nos EUA, o Copyright Clearance Center é uma instituição sem fins lucrativos fundada em 1978 que tem como finalidade servir de intermediária entre escritores e usuários. A Instituição, mediante o pagamento de uma taxa, autoriza a fotocópia de uma obra e repassa o valor arrecadado aos detentores de direitos autorais que tiveram suas obras reproduzidas. O método de “reverse engeneering” é outro exemplo de “fair use” desde que a decodificação de um programa seja o único caminho para se ter acesso a seus dados funcionais e que seu produto derivado não afete o mercado potencial e valor econômico do produto originário.
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Como as idéias e métodos não são passíveis de proteção por direitos autorais, nada impede que alguém decodifique um programa para entender o seu funcionamento e, com base nesses dados funcionais, elabore um novo programa de computador com tecnologia compatível com a do programa decodificado. A paródia também é um exemplo de livre utilização, entretanto, a obra parodiada não poderá ser uma cópia integral da obra original não podendo afetar seu mercado potencial e valor econômico. Devemos ser cautelosos na utilização da obra original a ser parodiada para não desrespeitar a integridade e a honra do autor. Os países civilistas não adotam o conceito norte americano do “fair use” como tese de defesa à violação dos direitos autorais. Nestes países, as limitações e exceções quanto ao uso e exploração de uma obra intelectual estão elencados na própria legislação porque a limitação é uma exceção a regra geral. Na Lei Brasileira de Direitos Autorais, Lei n° 9.610/98, o rol das obras que independem de prévia autorização do autor para seu uso são taxadas no Capítulo IV, Das Limitações aos Direitos Autorais, em seus arts. 46, 47 e 48. O fato de o sistema legal norte-americano ser primordialmente jurisprudencial e não atrelado a leis ou regulamentos jurídicos (common law doctrine39), faz com que seus conceitos legais sejam mais dinâmicos de que em países civilistas. A evolução da sociedade e de seus meios de comunicação faz com que surjam novos mecanismos de exploração e utilização de obras intelectuais e em um sistema jurisprudencial, as Cortes podem adaptar novos conceitos doutrinários do “fair use” para rapidamente acompanhar esta evolução. Nos países civilistas, a evolução de conceitos legais pode ser mais lenta devido à necessidade de alterações e emendas nas legislações vigentes.
39 O princípio do Stare Decisis refere-se a precedentes judiciais o qual estabelece que as Cortes devem obedecer e seguir decisões judiciais anteriores quando uma mesma questão litigiosa é levantada em juízo. Também conhecido como princípio do Common Law, o qual um juiz decide uma questão litigiosa baseada em precedentes judiciais e não em leis ou regulamentos jurídicos. Este princípio está presente nas legislações dos países anglo-saxões. 47
AS LIMITAÇÕES, O FAIR USE E A GUINADA UTILITARISTA DO DIREITO AUTORAL BRASILEIRO
Por Cláudio
Lins de Vasconcelos
Advogado. Doutor pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), mestre pela University of Notre Dame e bacharel pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Entre outras posições, foi consultor do Banco Mundial, em Washington; advogado de Tozzini, Freire, Teixeira e Silva, em São Paulo; e assessor adjunto de assuntos internacionais do Ministério da Justiça, em Brasília. Entre 2002 e 2011, dirigiu o departamento jurídico da Fundação Roberto Marinho, no Rio de Janeiro. É professor visitante dos cursos de graduação e pós-graduação stricto sensu em direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e professor convidado do mestrado em propriedade industrial do Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI e da pós-graduação lato sensu em propriedade intelectual da PUC-RJ, além de coordenar a Comissão de Direitos Autorais e da Personalidade da Associação Brasileira da Propriedade Intelectual – ABPI, entre outras atividades de ensino e pesquisa. É autor de diversas palestras/artigos ministrados/publicados no Brasil e no exterior e do livro “Mídia e Propriedade Intelectual: A Crônica de um Modelo em Transformação”, editado pela Lumen Juris.
1. Introdução Na ordem constitucional brasileira, e mesmo na ordem jurídica internacional, ao contrário do que reza um dos mitos mais repetidos do mundo jurídico, há, sim, direitos absolutos.1 Tome-se aqui emprestado um exemplo de difícil contestação, oferecido por Carlos Ayres Britto, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal: o brasileiro nato tem o direito constitucional de não ser extraditado e nada parece autorizar qualquer espécie de ponderação em sentido contrário.2 Não importa o quão sanguinário tenha sido o crime praticado no exterior, quão repulsivas tenham sido suas motivações ou quão relevantes sejam as relações diplomáticas com o Estado requerente. Se o réu é brasileiro nato, não há hipótese legal para sua extradição.3 1 Absolutos dentro da ordem jurídica estabelecida, claro. Modificada essa ordem, ou a fonte de onde emana o poder de efetivamente estabelecer o direito, a criação ou revogação de qualquer conteúdo normativo torna-se teoricamente possível. (N. A.). 2 BRITTO, Carlos Ayres. A liberdade de expressão e as obras biográficas. Palestra ministrada no seminário Justiça e Comunicação Social. Mangaratiba, Rio de Janeiro, 6-9 de outubro de 2011. (Anotações do autor). Para outras manifestações do Ministro Ayres Britto no mesmo sentido, cf., p. ex.: BUCCI, Eugênio. Liberdade de imprensa, direito absoluto. Observatório da Imprensa, edição 585, 15.4.2010. Disponível em: <http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/liberdade-de-imprensa-direito-absoluto>. Acesso em: 22 dez. 2011. 3 O Brasil é signatário do Estatuto de Roma, adotado em 1998 e internalizado em 2002, que criou o Tribunal Penal Internacional (TPI). O tratado, em seu artigo 89, prevê que “o Tribunal poderá dirigir um pedido de detenção e entrega de uma pessoa, instruído com os documentos comprovativos referidos no artigo 91, a qualquer Estado em cujo território essa pessoa se possa encontrar, e solicitar a cooperação desse Estado na detenção e entrega da pessoa em causa”, não fazendo qualquer ressalva quanto à nacionalidade do preso. Nos primeiros anos de vigência do tratado, houve certo debate sobre a constitucionalidade do ato de entrega um brasileiro nato ao TPI, considerando a proibição à extradição de natos. A grande maioria da doutrina se posicionou a favor da tese de que a “entrega” constitui instituto jurídico distinto da “extradição”. A “entrega” coloca o preso à disposição de uma jurisdição internacional, da qual o Brasil é parte, para ser julgado por um crime do qual a sociedade brasileira, como toda a humanidade, é vítima. E ainda assim o faz em caráter subsidiário (quando não é possível punir o preso em sua própria jurisdição). 49
Transpondo essa mesma lógica para o direito internacional público, perceberemos que nenhum Estado, por mais convicto de sua soberania que esteja, teria a audácia de contestar abertamente a existência de uma proibição universal e absoluta à utilização de trabalho escravo.4 O direito de não ser escravizado, portanto, é absoluto, e sua estrita observância se impõe a todos os Estados, sem qualquer exceção, na paz ou na guerra. É uma norma imperativa de direito internacional, ou jus cogens, definida pela Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados – talvez sua mais relevante fonte normativa –,5 como aquela sobre a qual nenhuma derrogação é possível.6 Absoluta, por definição. Esse não é, contudo, o caso dos direitos de propriedade, em geral, e nem dos direitos de propriedade intelectual, em particular. Nem na esfera industrial, nem na autoral. Direitos de propriedade intelectual são fundamentais, o que é reconhecido pelo ordenamento doméstico7 e pelo direito internacional.8 Mas isso não significa que não sejam sempre limitados, de uma forma ou de outra, no mínimo quanto ao seu prazo de duração. E desde pelo menos a gênese das con-
Já a extradição coloca o preso à disposição de uma jurisdição estrangeira, da qual o Brasil não faz parte, para ser julgado por um crime que não fez vítima no país (caso contrário, o Judiciário local seria competente para julgar o crime, sendo impossível a extradição). Sobre o TPI e o direito constitucional internacional aplicado aos direitos humanos, cf. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 11ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 232-237. 4 Pode-se aqui ponderar que condições sub-humanas de trabalho, por vezes análogas às de escravos, persistem de forma velada em diversos países e que o uso do trabalho forçado como pena, ainda que alternativa à privação da liberdade, é relativamente comum. Mas o uso de trabalho forçado como direito prima facie contra determinadas pessoas, em especial contra certos grupos étnicos – o que talvez defi na “escravidão” –, é prática incontestavelmente banida da ordem jurídica internacional (N. A.). 5 CONVENÇÃO DE VIENA SOBRE O DIREITO DOS TRATADOS, adotada em 26 de maio de 1969, em vigor desde 27 de janeiro de 1980 (doravante, Convenção de Viena). A Convenção de Viena prevê, em seu art. 4o, sua própria irretroatividade, mas no mesmo artigo reconhece a existência de regras no corpo da Convenção que já eram parte do direito internacional e às quais os Estados membros já estavam sujeitos antes da Convenção. Por isso, a maioria dos internacionalistas não hesitaria em aplicar seus princípios, e algumas de suas provisões, mesmo a tratados fi rmados anteriormente à sua adoção e mesmo que as circunstâncias envolvam Estados não signatários. Cf., e. g., HENKIN; PUGH; SCHACHTER; SMITH. International Law: Cases and Materials. 3. ed. St. Paul, MN: West Publishing, 1993, p. 416-417 (“The [Vienna] Convention is regarded as in large part (but not entirely) declaratory of existing law, and on that basis it has been invoked and applied by tribunal and by states prior to its entry into force and in regard to non-parties as well as parties […] It is perhaps more signifi cant that states tend to refer to all of the provisions of the Convention as an authoritative source of law, thus gradually transforming its innovative features into customary law through such application”). Cf., ainda: Convenção de Viena, art. 4: “Sem prejuízo da aplicação de quaisquer regras enunciadas na presente Convenção a que os tratados estariam sujeitos em virtude do Direito Internacional, independentemente da Convenção, esta somente se aplicará aos tratados concluídos por Estados após sua entrada em vigor em relação a esses Estados”. 6 CONVENÇÃO DE VIENA, art. 53: “É nulo um tratado que, no momento de sua conclusão, confl ite com uma norma imperativa de Direito Internacional geral. Para os fi ns da presente Convenção, uma norma imperativa de Direito Internacional geral é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modifi cada por norma ulterior de Direito Internacional geral da mesma natureza”. 7 CONSTITUIÇÃO FEDERAL, art. 5o, inciso XXVII: “[A]os autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fi xar”. CF, art. 5o, inciso XXIX: “[A] lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País”. 8 PACTO INTERNACIONAL SOBRE OS DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS (adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 16 de dezembro de 1966), art. 15, 1 (c): “Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem a todos o direito [...] de [se] benefi ciar da proteção dos interesses morais e materiais que decorrem de toda a produção científi ca, literária ou artística de que cada um é autor”. Analisando especifi camente esse dispositivo, o Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, órgão colegiado máximo das Nações Unidas nessa esfera do Direito Internacional dos Direitos Humanos, reafi rmou a jusfundamentalidade dos princípios básicos do direito de autor. Cf.: COMMITTEE ON ECONOMIC, SOCIAL AND CULTURAL RIGHTS. General Comment no 17 – The right of everyone to benefi t from the protection of the moral and material interests resulting from any scientifi c, literary or artistic production of which he or she is the author (article 15, paragraph 1 (c), of the Covenant). E/C.12/GC/17, de 12 de janeiro de 2006. Disponível em: <http://www2.ohchr.org/english/bodies/cescr/comments.htm.> Acesso em: 22 dez. 2011. “The right of everyone to benefi t from the protection of the moral and material interests resulting from any scientifi c, literary or artistic production of which he or she is the author is a human right, which derives from the inherent dignity and worth of all persons.” 50
venções de Paris9 e Berna,10 instrumentos fundadores do sistema internacional de proteção à propriedade intelectual como o conhecemos, os limites impostos aos direitos exclusivos se guiam essencialmente pelo interesse público,11 princípio abstrato que no âmbito autoral se traduz na complicada busca pelo livre desenvolvimento e fruição das artes, da cultura e da ciência dentro de uma lógica economicamente sustentável.
2. Limitações e Fair Use: A Raiz da Diferença As chamadas “limitações” aos direitos autorais – hipóteses em que uma determinada obra artística ou literária, ainda no prazo de proteção legal, pode ser livremente utilizada, sem a anuência prévia de seu autor ou titular – representam um locus privilegiado do interesse público dentro da esfera regulatória de um direito eminentemente privado, que é a propriedade intelectual. Relevante notar, contudo, que as duas principais tradições jurídicas ocidentais – a romano-germânica, também chamada de continental -europeia ou civilista (civil law), e a anglo-saxônica (common law) – tratam essas hipóteses de uso livre de forma distinta. Até porque possuem diferentes visões filosóficas a respeito do próprio conceito de propriedade intelectual e de suas justificativas éticas profundas, que envolvem algumas questões de ordem moral e outras puramente pragmáticas. E para compreendermos a diferença essencial entre elas, e as razões que nos levam a crer que o sistema brasileiro se aproxima a passos largos da essência anglo-saxônica, faz-se necessária uma breve revisão dos pressupostos teóricos das duas tradições autoralistas.
9 CONVENÇÃO DE PARIS PARA A PROTEÇÃO DA PROPRIEDADE INDUSTRIAL (adotada em 20 de março de 1883; emendada em 2 de outubro de 1979). 10 CONVENÇÃO DE BERNA PARA PROTEÇÃO DE TRABALHOS ARTÍSTICOS E LITERÁRIOS (adotada em 9 de setembro de 1886; emendada em 28 de setembro de 1979). 11 RICKETSON, S. Wipo study on limitations and exceptions of copyright and related rights in the digital environment. Estudo preparado para a 9ª Sessão do Comitê Permanente de Direitos Autorais e Conexos da OMPI – SCCR/9/7 (Genebra, 23 a 27 de junho de 2003), p. 3. (“It has long been recognized that restrictions or limitations upon authors, and related rights may be justifi ed in particular cases. Thus, at the outset of the negotiations that led to the formation of the Berne Convention in 1884, the distinguished Swiss delegate Numa Droz stated that it should be remembered that ‘limits to absolute protection are rightly set by the public interest”). 51
As justificativas de ordem moral para o direito de autor se fazem especialmente presentes entre seguidores da tradição civilista do droit d’auteur, caso da maior parte dos países da Europa continental e suas ex-colônias, entre as quais o Brasil. Nesses sistemas, não soaria estranha a afirmação de que os autores possuem um vínculo personalíssimo com o fruto de sua criação intelectual, que lhes “pertence” como projeção (o “ser-aí”) de sua própria liberdade (will) individual, na linha da teoria da personalidade de Hegel.12 Talvez seja possível, portanto, atribuir-lhes um “direito natural”13 pelo menos ao reconhecimento público de sua autoria e, nos limites de sua honra, à integridade intelectual dessa criação. O recurso a Hegel certamente bastaria para justificar a noção de “pertencimento” entre autor e obra, mas talvez não fosse suficiente para justificar sua “propriedade”, no sentido de “direito exclusivo” que lhe dá o liberalismo clássico.14 Ainda assim, notam-se resquícios da moral jusnaturalista na base que sustenta também os direitos patrimoniais do autor, pois em sua origem o direito autoral foi igualmente influenciado pela noção lockeana15 da propriedade como “justa remuneração” do trabalho humano.16 Em sua gênese moderna, portanto, a propriedade intelectual do autor se reveste de certo ar “sagrado” que, embora mais diretamente relacionado com a tradição do droit d’auteur,17 não pode ser totalmente dissociado da sacralização 12 Cf.: HUGHES, Justin. The philosophy of intellectual property. 77 Georgetown Law Journal 287 (1988), p. 2. Disponível em: <http:// www.justinhughes.net/docs/a-ip01.pdf.> Acesso em: 22 dez. 2011 (“’[P]ersonality theory’ [...] describes property as an expression of the self. This theory [...] is relatively foreign to Anglo-Saxon jurisprudence. Instead, its origins lie in continental philosophy, especially the work of Georg Wilhelm Friedrich Hegel”). Para a teoria original de Hegel, cf.: HEGEL, G. W. F. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997. Em especial p. 39-69. Uma versão eletrônica do texto está disponível em: <http://www.ufsm.br/gpforma/1senafe/biblioteca/Principiosda.pdf>. Acesso em: 22 dez. 2011. 13 Na definição de Hugo Grócio (apud Bittar e Almeida), o direito natural é “o mandamento da reta razão que indica a lealdade moral ou a necessidade moral inerente a uma ação qualquer, mediante o acordo ou o desacordo desta com a natureza racional” (BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis. Curso de filosofia do direito. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 262). 14 HUGHES, Justin. The philosophy of intellectual property. Op. cit. p. 29 (“To the classical liberal, true freedom is a freedom from external restraint. For Hegel, freedom is increasingly realized as the individual unites with and is expressed through a higher objective order: a unity which, to the classic liberal, is tantamount to drowning the individual in the larger ‘geist’ of social groups”). 15 Craig Dallon ensina que o pensamento de John Locke influenciou diretamente a adoção do chamado “Estatuto da Rainha Ana”, promulgado na Inglaterra em 1710 e considerado pela maioria da doutrina internacional como a primeira lei de direitos autorais do mundo. Segundo Dallon, “locke opposed perpetual copyrights as both harmful and unreasonable, remarking: ‘of [t]his I am sure, it is very absurd and ridiculous that any one now living should pretend to have a property in, or a power to dispose of any copy or writings of authors who lived before printing press was known or used in Europe’. Locke also advocated limited duration copyrights for works of modern authors, and suggested that ‘it may be reasonable to limit their property to a certain number of years after the death of the author, or the first printing of the book, as, suppose, fifty or seventy years” (DALLON, Craig. The problem with congress and copyright law: forgetting the past and ignoring the public interest. Santa Clara Law Review, v. 44, 2004). Sobre o pioneirismo regulatório do Estatuto da Rainha Ana, cf., entre outros: MOORE, Adam D. Intellectual property and information control: philosophical foundations and contemporary issues. New Brunswick: Transactions Publishers, 2006. p. 12. Pelo calendário britânico vigente à época (o ano começava no mês de março), o Estatuto teria sido promulgado em 1709. Em 1750, com a mudança do início do ano-calendário britânico para janeiro, a data de promulgação do Estatuto foi atualizada para 1710, o que explica a existência de referências díspares na doutrina. Cf.: PATTERSON, Lyman R. Copyright in historical perspective. Nashville: Vanderbilt University Press, 1968, p. 3, no 3. 16 Cf.: HUGHES, Justin. The philosophy of intellectual property. Op. cit. p. 6-7 (“The general outline of Locke’s property theory is familiar to generations of students. In Chapter V of the Second Treatise of Government, Locke begins the discussion by describing a state of nature in which goods are held in common through a grant from God. God grants this bounty to humanity for its enjoyment but these goods cannot be enjoyed in their natural state. The labor adds value to the goods, if in no other way than by allowing them to be enjoyed by a human being.”). Para o texto original de Locke, cf.: LOCKE, John. Segundo tratado sobre governo civil: ensaio sobre a origem, os limites e os fins verdadeiros do governo civil. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 97-112. Uma versão eletrônica do texto original está disponível em: <http://www.xr.pro.br/IF/LOCKE-Segundo_Tratado_Sobre_O_Governo.pdf>. Acesso em: 22 dez. 2011. 17 Cf.: VILLALBA, Carlos A.; LIPZIC, Delia. El derecho de autor en la Argentina. Buenos Aires: La Ley, 2001. p. 3. Apud ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva. Obras privadas, benefícios coletivos: a dimensão pública do direito autoral na sociedade da informação. 387 fls. Tese (Doutorado) – UNISINOS, São Leopoldo, p. 84, nota 215. Disponível em: <http://bdtd.unisinos.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=246.> Acesso 52
mais ampla do direito de propriedade como um todo, essencial à moral liberal-iluminista. Em sua essência, a legitimidade moral do direito de propriedade, especialmente como proposta por John Locke, está na base dos principais sistemas jurídicos contemporâneos, tanto nos países do civil law quanto do common law, na medida em que está também na base do próprio sistema econômico capitalista.18 No âmbito específico dos direitos imateriais, contudo, pode-se dizer que essa noção de jusfundamentalidade encontrou mais guarida entre os civilistas. Até porque o sistema continental-europeu é historicamente mais apegado a noções deontológicas, como a de “justiça retributiva” – princípio arcaico19 modernizado no século XVIII por Immanuel Kant20 e plenamente incorporado pelo normativismo de Hans Kelsen (ele próprio um pensador neokantiano21 e ainda hoje uma referência filosófica central dos ordenamentos do civil law).22 O pragmatismo econômico, por outro lado, foi mais influente na formação do direito autoral dos países filiados à tradição anglo-saxônica do common
em: 20 dez. /2012 (“Es célebre la frase ‘La más sagrada, la más personal de todas las propiedades’ con que La Chapelier calificó al derecho de autor en el informe al que siguió al decreto 13-19 de enero de 1791 que consagró a favor de los autores el derecho de representación pública sobre sus obras y que fue reiterada por Lakanal en el informe que precedió al decreto 19-24 de julio de 1793 que reconoció a los creadores el derecho de reproducción de sus obras”). A tese de Adolfo foi publicada sob a forma de livro. Cf.: ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva. Obras privadas, benefícios coletivos: a dimensão pública do direito autoral na sociedade da informação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008. 18 Opositor da dinastia Stuart, Locke retornou do exílio na Holanda ao final da Revolução Gloriosa e, entre 1689 e 1690, publicou suas principais obras: Cartas sobre a tolerância, Ensaio sobre o entendimento humano, e os dois Tratados sobre o governo civil, para muitos a base filosófica do liberalismo moderno. Cf.: MELLO, Leonel Itaussu Almeida. John Locke e o individualismo liberal. In: WEFFORT, Francisco (Org.). Os clássicos da política. São Paulo: Ática, 1995. p. 81-110. Cf., ainda: HONDERICH, Ted (Ed.). The Oxford companion to philosophy. New York: Oxford University Press, 1995. p. 723 (“One specific form of property is private property. This form, associated with John Locke’s political philosophy and with capitalism, assigns to owners the rights to use what they own in any way they choose so long as they respect the moral or natural rights of others”). 19 Cf.: CÓDIGO DE HAMMURABI (c. 1750 a. C.), leis 196 e 200. (“Se alguém arranca o olho a um outro, se lhe deverá arrancar o olho. Se alguém parte os dentes de um outro, de igual condição, deverá ter partidos os seus dentes”). Cf., ainda: LEVÍTICO 24:16-24:21 (“E aquele que blasfemar o nome do Senhor, certamente morrerá; toda a congregação certamente o apedrejará; assim o estrangeiro como o natural, blasfemando o nome do SENHOR, será morto. E quem matar a alguém certamente morrerá. Mas quem matar um animal, o restituirá, vida por vida. Quando também alguém desfigurar o seu próximo, como ele fez, assim lhe será feito: Quebradura por quebradura, olho por olho, dente por dente; como ele tiver desfigurado a algum homem, assim se lhe fará. Quem, pois, matar um animal, restitui-lo-á, mas quem matar um homem será morto”). Cf., no mesmo sentido: DEUTERONÔMIO 19:16-19:21 e ÊXODO 21:22-21:27. 20 Em Kant, o direito é a tutela institucional de uma “lei universal de liberdade”, única válida a priori, independentemente da experiência. Essa espécie de “espaço comum” hipotético não pode ser violada pelo arbítrio de um indivíduo ou grupo de indivíduos. Uma vez violada, cabe ao Estado impor a sanção correspondente, segundo a lei, como ato de afirmação da liberdade geral. Assim Kant enunciou o imperativo categórico que reflete, na visão do filósofo, a racionalidade humana universal: “age só segundo máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. São Paulo: Martin Claret, 2005. p. 51). Muitos teóricos identificam principalmente no pensamento de Kant a origem filosófica moderna da noção da justiça em sua faceta retributiva. Eduardo Rezende de Melo cita, por exemplo: ROXIN, Claus. Sentido e limites da pena estatal. Problemas fundamentais de direito penal. Lisboa: Veja, 1986. p. 15 ss; HASSEMER, Winfried. Fundamentos del derecho penal. Barcelona: Bosch, 1984. p. 348 ss; CATTANEO, Mario A. Pena. Diritto e dignità umana. Saggio sulla filosofia del diritto penale. Torino: G. Giappichelli editore, 1990. Cf.: MELO, Eduardo Rezende. Justiça restaurativa e seus desafios histórico-culturais: um ensaio crítico sobre os fundamentos ético-filosóficos da justiça restaurativa em contraposição à justiça retributiva. In: SLAKMON, C.; VITTO, R. de; GOMES PINTO, R. (Org.). Justiça restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, 2005. 21 Cf.: REALE, Miguel. Filosofia do direito. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 458. (“Sendo um neokantiano ligado à Escola de Cohen, o princípio fundamental de Kelsen é a distinção a que tantas vezes nos temos referido, entre ser e dever ser, que, a princípio, se apresenta com caráter irredutível e quase que ‘entitativo”) (Grifos no original). 22 Em sua clássica proposição da norma jurídica como um juízo hipotético condicional, Hans Kelsen ensina que, dada a não prestação (hipótese de incidência), deve ser sanção (consequência jurídica), dessa forma relacionando a pena a um fundamento pretérito. Objetivos futuros – sejam políticos, econômicos ou sociais – não fazem parte do enunciado. Como destaca Alexandre Picolli: “A representação lógica do juízo hipotético condicional é por Kelsen concentrada na seguinte fórmula: ‘Se A é, B deve ser’. A primeira parte do juízo lógico (‘Se A é’) recebe a denominação de condição, hipótese legal, hipótese de incidência, suporte fático ou preceito. A segunda parte (‘B deve ser’) é chamada consequência jurídica. A hipótese legal consiste num fato ou conduta, comissivo ou omissivo, livre, obrigado ou proibido, que tem como consequência a sua validação ou uma sanção” (PICCOLI, Alexandre. Norma jurídica e proposição jurídica: estudo diferenciativo. Espumoso: Alexandre Picolli Editor, 2008. p. 12). 53
law, onde o instituto é conhecido como copyright, a exemplo dos Estados Unidos da América e do Reino Unido (muito embora o pragmatismo econômico esteja presente, até certo ponto, na racionalidade de todos os sistemas autorais contemporâneos). Por essa ótica, a justificativa central para a existência do direito autoral está na convicção de que a garantia de direitos exclusivos de exploração econômica é a forma mais eficiente até aqui encontrada para remunerar e, com isso, incentivar investimentos na criação e produção de obras literárias ou artísticas no futuro. Na ausência desse incentivo – caracterizado por uma espécie de “monopólio”23 temporário em sentido lato –, artistas, intelectuais e todos que decidissem investir profissionalmente no processo criativo desses atores dependeriam de subsídios ou favores para continuar no mercado, alternativas que a teoria econômica clássica tende a considerar menos eficientes no longo prazo.24 Isso poderia reduzir, no futuro, as oportunidades de livre expressão (free speech), cuja defesa é, em última instância, a própria razão de ser do copyright. Indo ainda mais fundo nas considerações de ordem prática, presume-se que expor criadores e produtores de conteúdo intelectual à concorrência dos que não arcaram com os custos e riscos do investimento inicial ameaçaria a sustentabilidade de uma série de indústrias que, ao longo do século XX, assumiram um papel estratégico na economia mundial, em especial para os grandes exportadores de capital intelectual. A racionalidade do copyright reconhece que, no curto prazo, a concessão de direitos exclusivos de exploração gera o que os economistas chamam de “ineficiências”, resultado lógico da escassez artificial por eles imposta. Acredita, contudo, que tais ineficiências são mais que compensadas no longo prazo
23 Muitos autores discordam da aplicação do termo monopólio, ainda que em sentido aproximado, para definir os efeitos econômicos gerados pelos direitos de PI. A favor dessa terminologia, desde que aplicada de forma sui generis, fora da acepção que tem no direito da concorrência, Landes e Posner assim se manifestaram: “Information is a scarce good, just like land. Both are commodified – that is, made excludable property – in order to create incentives to alleviate their scarcity. Talk of patent and copyright ‘monopolies’ is conventional; we have used this terminology ourselves in this book. The usage is harmless as long as it is understood to be different from how the same word is used in antitrust analysis” (LANDES, William M.; POSNER, Richard A. The economic structure of intellectual property law. Boston: Harvard University Press, 2003. p. 374. (Grifos nossos)). Já Keith Maskus se manifesta no sentido contrário: “Intellectual property rights define the extent to which their owners may exclude others from activities that infringe or damage the property. Thus, IPRs set out and protect the boundaries of legal means of competition among firms seeking to exploit the value of creative assets. Efforts to extend the rights beyond these boundaries are denied, in principle. In this context, it is more fruitful to conceive of IPRs as rules regulating the terms of static and dynamic competition, rather than mechanisms for creating legal monopolies, which is the standard economic conception. While IPRs do create market power, the impact on competition varies as widely across products, technologies, and countries as it does across the scope of protection” (MASKUS, Keith. The international regulation… Op. cit. p. 2. (Grifos nossos)). 24 Cf.: VASCONCELOS, Cláudio L. Mídia e propriedade intelectual: a crônica de um modelo em transformação. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 19-20. 54
pelos ganhos advindos do contínuo desenvolvimento cultural da sociedade em geral. Nota-se, portanto, uma relação de troca (quid pro quo) entre o Estado outorgante e os criadores outorgados, que forma a essência da doutrina utilitarista do direito da propriedade intelectual, inspirada principalmente no pensamento de Jeremy Bentham e John Stuart Mill25 (pensamento este que, apesar das duras críticas que Bentham fazia ao common law inglês, influenciou profundamente o direito econômico anglo-saxão, particularmente o norte-americano).26 Em suma, pode-se dizer que a principal diferença entre as justificativas filosóficas que estão na base dos sistemas droit d’auteur e copyright está no foco temporal de cada uma. Na tradição civilista, o direito autoral existe por causa da realização de um trabalho no passado, no qual o autor imprimiu sua personalidade, merecendo por isso ser honrado e remunerado. Entre utilitaristas, por outro lado, qualquer direito, inclusive o autoral, só se justifica por sua capacidade de contribuir para o “bem-estar comum”.27 O direito exclusivo é um meio para 25 William Fisher cita Landes e Posner para descrever a proposição básica da doutrina utilitarista da PI, tendo Bentham e Stuart Mill como base doutrinária: “A good example of scholarship in this vein is William Landes’ and Richard Posner’s essay on copyright law. The distinctive characteristics of most intellectual products, Landes and Posner argue, are that they are easily replicated and that enjoyment of them by one person does not prevent enjoyment of them by other persons. Those characteristics in combination create a danger that the creators of such products will be unable to recoup their ‘costs of expression’ (the time and effort devoted to writing or composing and the costs of negotiating with publishers or record companies), because they will be undercut by copyists who bear only the low ‘costs of production’ (the costs of manufacturing and distributing books or CDs) and thus can offer consumers identical products at very low prices. Awareness of that danger will deter creators from making socially valuable intellectual products in the first instance. We can avoid this economically inefficient outcome by allocating to the creators (for limited times) the exclusive right to make copies of their creations. The creators of works that consumers find valuable – i.e., for which there are not, in the opinion of consumers, equally attractive substitutes – will be empowered thereby to charge prices for access to those works substantially greater than they could in a competitive market. All of the various alternative ways in which creators might be empowered to recover their costs, Landes and Posner contend, are, for one reason or another, more wasteful of social resources. This utilitarian rationale, they argue, should be -- and, for the most part, has been – used to shape specific doctrines within the field” (FISHER, William W. Theories of intellectual property. New Essays in the Legal and Political Theory of Property. Cambridge: University Press, 2001. p. 2. Disponível em: <http://cyber.law.harvard.edu/people/tfisher/ iptheory.pdf>. Acesso em: 22 dez. 2011. Cf.: LANDES, William; POSNER, Richard. An economic analysis of copyright. Law. Journal of Legal Studies, 18, 1989. p. 325. 26 Cf., p. ex.: PARISI, Francesco. Positive, normative and functional schools in law and economics. European Journal of Law and Economics, 18, p. 259–272, 2004. Como já tivemos a ocasião de observar em trabalho anterior, existe uma estreita relação entre a Análise Econômica do Direito (Law and Economics), movimento contemporâneo que tem no pensamento de Bentham e Mill uma de suas principais raízes, e o direito anglo-saxão da propriedade intelectual, hoje sem dúvida a principal referência normativa do direito internacional da propriedade intelectual. Cf.: VASCONCELOS, Cláudio Lins de. Mídia e propriedade intelectual... Op. cit. p. 124. 27 A noção de “bem-estar” é essencial à proposição ética do utilitarismo, que a define, de forma simplificada, como “a maior felicidade possível para o maior número possível de pessoas”. Bentham, inspirado no pensamento do francês Helvetius, identificou o prazer ao “bem”, sendo seu oposto, a dor, o mal. E com base no princípio da utilidade – presente, de forma menos sistemática, já em Locke e Hume – propôs que moralmente correto é tudo aquilo que maximiza o prazer (“bem”) e minimiza a dor (“mal”), o que, se for realizado por todos, levará à “felicidade”, bem maior e objetivo supremo de todo o sistema político, inclusive do direito. A proposição hedonista de Bentham foi submetida a todo tipo de crítica, inclusive entre seus sucessores na escola do utilitarismo, mas esse conceito básico – o “prazer” como bem supremo – não era exatamente uma novidade. Já estava presente em Epicuro (341-270 a. C.), por exemplo, mas entre os antigos essa busca pela felicidade se colocava mais como uma meta pessoal, enquanto em Bentham ela se torna um objetivo de Estado. De qualquer forma, a noção contemporânea do utilitarismo tende a se basear mais na doutrina de John Stuart Mill (filho do também filósofo James Mill, contemporâneo e amigo de Bentham), que refinou bastante a proposição do mestre. Mais importante para nossa análise, no entanto, é o fato de que Bentham jogou para o futuro o fundamento ético da política e, por consequência, do próprio direito. Antes dele, as justificativas teóricas do direito em geral recorriam à prevalência de algum dever (sagrado ou natural) sem origem identificada ou comprovável, mas ainda assim válido a priori. O próprio Bentham as nomeou “deontológicas” (deontologia: estudo do dever). A teoria kantiana, por exemplo, é deontológica, pois seu imperativo categórico não é apreensível pela experiência. Assim como a de William Blackstone, talvez o jurista inglês mais importante de sua época, e um dos fundadores do common law moderno, a quem Bentham também criticava, com base nas mesmas premissas. Todos os pensadores que sucederam Bentham na defesa do conceito de que o direito se legitima por sua função são, de certa forma, herdeiros de sua ideia básica. (N. A.). Sobre a influência de Helvetius sobre Bentham, cf.: MILL, John Stuart. Bentham. London and Westminster Review (agosto de 1838, rev. em 1859). Dissertations and discussion, v. 1. Disponível em: <http://socserv2. socsci.mcmaster.ca/~econ/ugcm/3ll3/bentham/bentham>. Acesso em: 28 dez. 2011. Sobre as influências primordiais de Hume, cf.: FOSL, Peter S. Doubt and divinity: cicero’s influence on hume’s religious skepticism. Hume Studies, v. XX, no 1 (abril de 1994) p. 103-120. Disponível em: <http://www.humesociety.org/hs/issues/v20n1/fosl/fosl-v20n1.pdf>. Acesso em: 28 dez. 2011. Sobre o conceito de felicidade em Epicuro, cf.: WARBURTON, Nigel. Uma breve história da filosofia. 2. ed. Porto Alegre: L&PM, 2012. p. 22-28. 55
se atingir, no futuro, um fim socialmente desejável (útil),28 que é o aumento das oportunidades de expressão e aprendizado. Longe de serem meras divagações, essas características filosóficas deixaram profundas marcas no direito autoral vigente em cada um desses sistemas. Influenciados na origem pelas doutrinas jusnaturalistas da personalidade e do trabalho, os países do droit d’auteur separaram os elementos morais dos patrimoniais, tornaram os primeiros inalienáveis e equipararam os últimos a um “direito real” de exploração condicionada. Já os do copyright, influenciados pela doutrina da utilidade, compreendem o instituto do direito autoral como um instrumento de política econômica, cultural ou social e, como regra geral, reconhecem apenas seu elemento material.29 Mas talvez seja no campo das limitações que a diferença entre as duas escolas se mostra mais clara. Nos sistemas civilistas, a fundamentação deontológica supõe que o direito exclusivo “nasce” com o trabalho criativo e, assim sendo, a regra geral é a proteção, sendo as limitações exceções à regra. Por isso, as hipóteses de limitação aos direitos exclusivos do autor são normalmente interpretadas, na tradição do droit d’auteur, como uma lista fechada (numerus clausus) ou substancialmente fechada, além da qual pouca ou nenhuma extensão hermenêutica é permitida, enquanto nos países do copyright ocorre precisamente o inverso. Terminologicamente, o Copyright Act dos EUA se refere ao fair use como uma “limitação” (limitation),30 mas existe uma diferença fundamental entre os limites impostos por esse instituto e os impostos pelas “limitações” do droit d’auteur. O direito do autor, no common law contemporâneo, não é um dever da sociedade para com o autor, válido a priori, mas uma proposição funcional do Estado, válida por suas consequências previsíveis. O copyright em si é uma exceção 28 Sobre o utilitarismo, em geral, cf.: HONDERICH, Ted (Ed.). The Oxford companion to philosophy. Op. cit. p. 890-893. Em trabalho anterior, tivemos a oportunidade de contrastar o kantismo e o utilitarismo. Cf.: VASCONCELOS, Cláudio Lins de. Sobre feitiços e feiticeiros: a “cruzada da retaliação” no comércio internacional. Revista Eletrônica do Instituto Brasileiro de Propriedade Intelectual – IBPI, no 3, p. 89. Disponível em: <http://www.klsc.com.br/pdf/REVELnumero3.pdf>. Acesso em: 22 dez. 2011 (“O utilitarismo se funda no princípio iluminista do bem-estar máximo. Transposta para o mundo do direito, a teoria utilitarista defende que a norma jurídica deve ser utilizada para atingir o bem-estar comum. A sanção é, portanto, o complemento que torna a norma mais ‘efi ciente’, o que deve ser compreendido em termos paretianos, indicando uma situação que benefi cia ao menos uma pessoa sem com isso prejudicar qualquer outra pessoa. Alerte-se para o fato de que, contrariamente ao que muitos críticos da doutrina utilitarista apontam, não se trata de buscar uma ‘média’ positiva entre ‘benefi ciados’ e ‘prejudicados’, mas de buscar um resultado em que o conjunto nada perde; apenas ganha. Note-se que entre as doutrinas kantiana e utilitarista há um importante ponto de confl uência fi losófi ca: o bem comum passa pela ausência de perdas individuais relevantes. A diferença é que, em Kant, o foco está no passado, em um dever (portanto, ‘dívida’) moral original que se revela por meio de uma razão pura inatingível, talvez divina, mas certamente metafísica (porque inapreensível pela experiência); em Bentham/Mill, o foco está no futuro, em um destino moralmente virtuoso – o ‘bem-estar’ – que também interessa à metafísica, porque atrelado à (ou a uma) moral, com a diferença de ser teoricamente atingível pela experiência. Este é um ponto-chave na bipartição fi losófi ca entre as tradições do [direito da propriedade intelectual no] common-law, mais utilitarista, e [no] civil law, mais normativista. Ambas são, no entanto, marcadamente humanistas e igualmente modernas”). 29 Cf. RIGAMONTI, Cyrill P. Deconstructing moral rights. Harvard International Law Journal, v. 47, no 2 (Verão de 2006), p. 354. Disponível em: < http://www.harvardilj.org/print/58 >. Acesso em: 22 dez. 2011. (“[I]t had been a canon of comparative copyright scholarship that the most signifi cant difference between Anglo-American and Continental European copyright law was their respective attitudes toward moral rights. The inclusion of moral rights in statutory copyright law was generally understood to be the defi ning feature of the Continental copyright tradition, while the lack of statutory moral rights protection was considered to be a crucial component of the Anglo-American copyright tradition. This dichotomy had been celebrated and cultivated since World War II on both sides of the Atlantic to the point where the statutory protection of moral rights or the lack thereof had become an integral part of each legal system’s identity, essentially dividing the world of copyright into two fundamentally different ideal types, one that includes moral rights, and another that excludes moral rights. The common law courts were fully aware of this dichotomy, and while they recognized the existence of the concept of moral rights in civil law countries, they uniformly rejected its applicability in their own jurisdictions.”) 30 UNITED STATES COPYRIGHT ACT (17 U.C.C.A., 1976), § 107. 56
talhada para confirmar, no longo prazo, a regra geral do free speech. É comum entre os anglo-saxões, especialmente nos EUA, referir-se ao fair use como um “porto seguro” (safe harbor) onde o direito exclusivo não se aplica. É, antes de tudo, uma tese de defesa que pode ser alegada em um número indefinido de situações concretas.31 Por isso, o fair use não se apresenta como uma lista fechada de hipóteses, mas como um conjunto de parâmetros hermenêuticos, cujas linhas gerais foram incorporadas ao direito escrito (statutory law) norte-americano em meados da década de 1970, mas que têm origem na jurisprudência das cortes (case law) e são quase tão antigos quanto o próprio instituto jurídico do copyright.32
3. Sistema Brasileiro: Consequências Práticas
Das
Causas
Naturais
às
O direito civil brasileiro é profundamente influenciado pelo pensamento continental-europeu, sendo o Brasil classificado, no âmbito maior do direito comparado, entre os países de tradição civilista,33 muito embora a influência das escolas de pensamento deontológicas, típicas dessa tradição jurídica, já tenha sido maior em outros momentos. No âmbito específico do direito autoral, contudo, a filiação ao civil law sempre foi muito clara, o que não quer dizer que direitos autorais não possam ser ponderados frente a outros direitos fundamentais, como a liberdade de expressão (incluindo a liberdade de imprensa), a livre participação na vida cultural, entre outros. Contudo – e em que pese a existência de respeitáveis opiniões em contrário34 –, quer nos parecer que tal ponderação não se confunde com uma autorização constitucional para a interpretação extensiva das limitações aos direitos autorais listadas no art. 46 da Lei de Direitos Autorais35 ou 31 Cf.: LUCCHI, Nicola. Intellectual property rights in digital media: a comparative analysis of legal protection, technological measures, and new business models under EU and U.S. law. Buffalo Law Review, v. 53, no 4, Fall 2005, p. 122, nota 93 (“Fair use is not an affi rmative right but a sort of defense. It is essentially a safety valve operating in the absence of licensing that can be structured in different ways but that is recognized by all modern copyright systems. While common law countries generally recognize a general defense, civil law countries generally provide a strict list of exceptions, even though at present there are no pure systems that adhere strictly to any of the above models. In the U.S. system there is a strong relation between fair use and free speech.”) 32 LEVAL, Pierre N. Toward a Fair Use Standard. 103, Harvard Law Review, 1105, 1989-1990, p. 1105 (“Not long after the creation of the copyright by the Statute of Anne of 1709, courts recognized that certain instances of unauthorized reproduction of copyrighted material, fi rst described as ‘fair abridgment’, later ‘fair use,’ would not infringe the author’s rights. In the United States, the doctrine was received and eventually incorporated into the Copyright Act of 1976, which provides that ‘the fair use of a copyrighted work [...] is not an infringement of copyright’.”) 33 Cf., p. ex., OEA. O ordenamento jurídico brasileiro. Disponível em: <http://www.oas.org/juridico/mla/pt/bra/pt_bra-int-des-ordrjur. html>. Acesso em: 12 jan. 2013. (“O ordenamento jurídico brasileiro é baseado na tradição romano-germânica, isto é, civilista.”) 34 No Brasil, discordâncias acerca do caráter exaustivo ou exemplifi cativo das limitações aos direitos do autor são cada vez mais comuns, tanto na doutrina quanto na jurisprudência. A tradição civilista pura, no entanto, trata as limitações como hipóteses em numerus clausus. Entre os que acreditam que impor limitações em numerus clausus viola o princípio constitucional da função social da propriedade está Guilherme Carboni, para quem “[a]s limitações aos direitos autorais traçadas pela Lei 9.610/98 não são sufi cientes para resolver os confl itos entre o direito individual do autor e o interesse público à livre utilização de obras intelectuais. A previsão numerus clausus dessas limitações contraria a função social do direito de autor”. Cf.: CARBONI, Guilherme. Aspectos gerais da teoria da função social do direito de autor. Estudos em homenagem ao professor Carlos Fernando Mathias, no prelo. Disponível em: <http://www.gcarboni.com.br/pdf/G6.pdf>. Acesso em: 22 dez. 2011. O autor cita, corroborando sua posição: ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito intelectual, exclusivo e liberdade. Revista da ABPI – Associação Brasileira da Propriedade Intelectual, no 59, jul./ago. 2002, p. 48. 35 Lei no 9.610, de 19 de fevereiro de 1998 (altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências). Muitos autores preferem a denominação “Lei de Direito Autoral”, nomenclatura que chegou a ser adotada pelo próprio Ministério da Cultura. Embora essa área do direito seja famosa pelas divergências terminológicas, quer nos parecer que a expressão direito autoral se refere mais propriamente à disciplina jurídica homônima, apesar de também se referir a cada um dos direitos específi cos garantidos pela lei aos autores, intérpretes e outros titulares a título de “direitos de autor” e os que lhes são “conexos”. Por causa dessa dubiedade, a nomenclatura “Lei de Direito Autoral” pode gerar 57
para a afirmação correlata de que suas hipóteses sejam meramente exemplificativas. Circunstâncias de uso não expressamente previstas entre as limitações aos direitos do autor podem até ser interpretadas pelo Judiciário como justificáveis em face de uma ponderação principiológica de natureza constitucional. Mas isso não implica, necessariamente, na extensão ou restrição a qualquer dispositivo ou categoria de dispositivos em particular, pois qualquer dispositivo legal poderia ser objeto de interferência semelhante. Trata-se, em outras palavras, de uma relação horizontal entre direitos do mesmo nível. O copyright, em contraste, existe em função de sua finalidade social.36 Na célebre definição do Justice O’Connor, trata-se de um “privilégio limitado”, pelo qual se pode atingir “um objetivo público relevante”, com os propósitos fundamentais de “motivar a atividade criativa de autores [...] pela provisão de uma recompensa especial” e permitir livre acesso aos “produtos de seu gênio”, após expirado o prazo de proteção.37 Sua legitimidade está nos resultados esperados ou, mais precisamente, na “utilidade esperada” (expected utility) do direito. No espaço hipotético onde o direito exclusivo não incide, o uso livre é um direito prima facie, sendo por isso “razoável” (fair), na medida em que confirma – e não subverte – a racionalidade do sistema, que é a busca pela máxima “eficiência” na fruição dos recursos disponíveis. Tradições são referências ancestrais com inegável impacto sobre convenções sociais, entre as quais o direito, mas não são imunes – nada é – ao espírito de seu tempo. E embora aspectos geográficos sejam em regra essenciais à sua caracterização, a influência das tradições tende, naturalmente, a ultrapassar fronteiras. Na atualidade, pode-se dizer que não existem sistemas autorais exclusivamente vinculados à racionalidade de uma ou outra tradição. Os EUA, por exemplo, como aqui já se disse, seguem a tradição do copyright, de viés utilitarista, o que em princípio excluiria o elemento moral do direito autoral. Mas, contrariando a tradição anglo-saxônica, o Visual Artists Rights Act de 199038 conferiu expressamente aos autores de obras enquadradas no conceito de “artes visuais”39 – e a impressão (equivocada) de que é possível que uma disciplina caiba no escopo de uma lei, embora o texto legal, em si, seja apenas um elemento constitutivo (talvez o mais importante, mas não o único) da disciplina. O objeto de estudo do direito autoral, ou de qualquer disciplina jurídica, não se esgota, ou mesmo se guia, prima facie, pelo texto de uma lei, por mais relevante que seja. Seria como chamar a Constituição Federal de “Lei de Direito Constitucional”. (N. A.) 36 Cf. declaração de Abraham Kaminstein (ex-Register of Copyrights, cargo máximo do órgão ofi cial norte-americano para a administração de direitos autorais) em audiência perante a Subcomissão de Patentes, Marcas e Direitos Autorais do Congresso, realizada em 1965, reproduzida em Madeleine Schachter e Joel Kurtzberg. Law of the Internet speech. 3. ed. Durham,: Carolina Academic Press, 2008. p. 732. (“The basic purpose of copyright is the public interest, to make sure that the wellsprings of creation do not dry up through lack of incentive, and to provide an alternative to the evils of an authorship dependent upon private or public patronage. As the founders of this country were wise enough to see, the most important elements of any civilization include its independent creators – its authors, composers and artists – who create as a matter of personal initiative and spontaneous expression rather than a result of patronage or subsidy. A strong, practical copyright is the only assurance we have this creative activity will continue.”) 37 SONY CORP. v. UNIVERSAL CITY STUDIOS. 464 U.S. 417 (1984). Opinião (Opinion) de Justice O’Connor. Apud BARRET, Margreth. Intellectual property cases and materials. St. Paul: West, 2007. p. 619. (“[This] limited grant is a means by which an important public purpose may be achieved. It is intended to motivate the creative activity of authors and inventors by the provision of a special reward, and to allow the public access to the products of their genius after the limited period of exclusive control has expired.”) 38 VISUAL ARTISTS RIGHTS ACT OF 1990 (“VARA”), §§ 601–10, 17 U.S.C. §§ 101, 106A, 107, 113, 301, 411, 412, 506 (1990). 39 VARA, § 21: “A ‘work of visual art’ is — (1) a painting, drawing, print, or sculpture, existing in a single copy, in a limited edition of 200 copies or fewer that are signed and consecutively numbered by the author, or, in the case of a sculpture, in multiple cast, carved, or fabricated sculptures of 200 or fewer that are consecutively numbered by the author and bear the signature or other identifying mark of the author; or (2) a still pho58
apenas a estes – os direitos de atribuição e integridade,40 que são essencialmente direitos morais. Para muitos, essa guinada foi resultado direto da adesão (tardia, mas bem-vinda) do país à Convenção de Berna, ocorrida um ano antes.41 Mas vento que sopra lá sopra cá, e não é difícil perceber no direito civil brasileiro uma crescente presença de recursos normativos típicos do common law, como é o caso das chamadas “cláusulas gerais”, que deixam basicamente para a jurisprudência a definição do exato conteúdo normativo de conceitos essenciais como o de “boa-fé subjetiva” ou “onerosidade excessiva”.42 Outro ponto de aproximação do sistema brasileiro em relação à tradição anglo-saxônica é a introdução de mecanismos processuais explicitamente consuetudinários na rotina judiciária, como a súmula vinculante, que na verdade apenas refletem uma mudança de postura cultural, onde a opinião das cortes assume papel cada vez mais relevante como fonte do direito. E quanto mais se sobe na hierarquia do ordenamento, mais se percebe a profundidade desse movimento, como indica a presença de dispositivos francamente consequencialistas, para não dizer utilitaristas, na própria Constituição Federal. O art. 5o, inciso XXIII, da Carta Magna, por exemplo, reza que “[a] propriedade atenderá a sua função social”. A instrumentalização do direito – ou seja, sua utilização para atingir um fim socialmente desejável – é a proposição filosófica básica do utilitarismo e não encontra qualquer guarida na doutrina retributiva de Kant43 nem no normativismo kelseniano dela derivado.44 A funcionalização do tographic image produced for exhibition purposes only, existing in a single copy that is signed by the author, or in a limited edition of 200 copies or fewer that are signed and consecutively numbered by the author.” 40 VARA, § 106A: “(a) Rights of Attribution and Integrity.– Subject to section 107 and independent of the exclusive rights provided in section 106, the author of a work of visual art – (1) shall have the right – (A) to claim authorship of that work, and (B) to prevent the use of his or her name as the author of any work of visual art which he or she did not create; (2) shall have the right to prevent the use of his or her name as the author of the work of visual art in the event of a distortion, mutilation, or other modifi cation of the work which would be prejudicial to his or her honor or reputation; and (3) subject to the limitations set forth in section 113(d), shall have the right – (A) to prevent any intentional distortion, mutilation, or other modifi cation of that work which would be prejudicial to his or her honor or reputation, and any intentional distortion, mutilation, or modifi cation of that work is a violation of that right, and (B) to prevent any destruction of a work of recognized stature, and any intentional or grossly negligent destruction of that work is a violation of that right. (b) Scope and Exercise of Rights. – Only the author of a work of visual art has the rights conferred by subsection (a) in that work, whether or not the author is the copyright owner. The authors of a joint work of visual art are coowners of the rights conferred by subsection (a) in that work.” 41 Diferentemente do que ocorreu com sua “irmã” da área industrial, a Convenção de Paris, a Convenção de Berna nasceu quase que exclusivamente sob a doutrina civilista, embora o escopo da proteção ali prevista seja perfeitamente compatível em termos práticos com o instituto do copyright. Ainda assim, EUA e Reino Unido levaram um século para ratifi car a Convenção de Berna. Entre as razões “ofi ciais” estava a alegação de que o instituto dos direitos morais, expressamente previsto na Convenção, era incompatível com a doutrina autoralista anglo-saxônica. Cf.: CONVENÇÃO DE BERNA. Op. cit. art. 6 (bis). (N. A.) 42 Cf.: DIDIER Jr., Fredie. Cláusulas gerais processuais. Revista de Processo, v. 187, 69-83, 2010, p. 73-74. “A relação entre cláusula geral e o precedente judicial é bastante íntima. Já se advertiu, a propósito, que a utilização da técnica das cláusulas gerais aproximou o sistema do civil law do sistema do common law. Esta relação revela-se, sobretudo, em dois aspectos. Primeiramente, a cláusula geral reforça o papel da jurisprudência na criação de normas gerais: a reiteração da aplicação de uma mesma ratio decidendi dá especifi cidade ao conteúdo normativo de uma cláusula geral, sem, contudo, esvaziá-la; assim ocorre, por exemplo, quando se entende que tal conduta típica é ou não exigida pelo princípio da boa-fé. Além disso, a cláusula geral funciona como elemento de conexão, permitindo ao juiz fundamentar a sua decisão em casos precedentemente julgados.” 43 Cf.: MELO, Eduardo Rezende. Justiça restaurativa... Op. cit. p. 55-56. (“Quando vemos que Kant defende, para o caso da dissolução da sociedade civil por todos os seus membros, que a pena haveria de ser imposta e cumprida ao último criminoso para que cada qual recebesse o que merece por seus atos e o povo não se torne cúmplice desta violação pública da justiça, entendemos então que, para além do rigor e coerência interna de seu sistema, em jogo está uma relação precisa com o tempo, em que as questões do presente que sobrelevam são basicamente aquelas decorrentes de uma situação passada, ante a qual há de se fazer um acertamento de contas. Fecha-se, com isso, toda consideração a aspectos outros do presente e, sobretudo, do porvir.”) 44 Muito embora tal funcionalização já tenha sido abertamente defendida por pensadores de origem normativista como Norberto Bobbio. Cf.: 59
direito, por qualquer forma ou com qualquer conteúdo, o atrela necessariamente a um objetivo (futuro). E não há como negar que o direito brasileiro, em especial o constitucional, está cada vez mais funcionalista, portanto consequencialista. Onde há função, há utilidade esperada. Apenas imprópria ou figurativamente seria possível se falar em “função” deontológica, assim como em “dever” consequencialista. No mínimo, há que se reconhecer que todos os consequencialistas, independentemente das (muitas) nuances filosóficas que os diferenciam, dividem a mesma raiz utilitarista,45 embora muitos prefiram não ser chamados assim. Repita-se: não há, certamente, sistema jurídico na contemporaneidade inspirado exclusivamente neste ou naquele tronco da filosofia moral, o que não nos impede de reconhecer que seus princípios podem se aproximar ou se afastar de uma ou outra linha teórica. Se foi claramente consequencialista ao conferir “função social” à propriedade em geral, o constituinte foi bem menos explícito no que tange ao direito autoral, especificamente. Embora não se possa excluir a propriedade intelectual do alcance dos princípios relacionados com a propriedade em geral, tampouco se pode dizer que os direitos autorais, na ordem constitucional brasileira, existem para a consecução de qualquer objetivo específico além da remuneração do autor ou de quem tenha adquirido seus direitos patrimoniais, na forma da lei. No limite, os direitos reservados pela Constituição Federal aos autores estão no mesmo nível dos demais direitos fundamentais, diferentemente do que ocorre na ordem constitucional norte-americana, por exemplo, onde tais direitos estão desde sempre subordinados à função de “promover o progresso da ciência e das artes aplicadas”.46 E também não será na ordem infraconstitucional que o observador encontrará qualquer vestígio funcionalista no direito autoral pátrio. Em consonância com a tradição civilista do droit d’auteur, a Lei de Direitos Autorais brasileira não relaciona os direitos exclusivos a qualquer objetivo específico, seja econômico, político ou social. Daí a importância de se refletir sobre a mudança estrutural proposta pelo Anteprojeto de Reforma da Lei no 9.610/98, preparado pelo Ministério da Cultura, enviado em 2012 à Casa Civil da Presidência da República e ainda hoje aguardando o encaminhamento ao Congresso Nacional. O texto, cuja versão final não foi divulgada, é resultado de uma série de encontros intitulada “Fórum Nacional de Direito Autoral”, realizada entre 2007 e 2009, origem das versões submetidas a duas consultas públicas entre os
BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Barueri: Manole, 2007. 45 Não há consenso entre estudiosos sobre se há e qual seria a fronteira entre consequencialismo e utilitarismo. Ambos têm como moralmente correto aquilo que gera o bem maior. Consequencialistas divergem profundamente sobre o que vem a ser “bem” e a quem cabe tal definição, mas concordam que é um destino, mais que uma origem, diferentemente do que defendem as teorias deontológicas. (N. A.) 46 CONSTITUIÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA (promulgada em 17.9.1787), seção 8, cláusula 1: “The Congress shall have Power To […] promote the Progress of Science and useful Arts, by securing for limited Times to Authors and Inventors the exclusive Right to their respective Writings and Discoveries.” 60
anos de 2010 e 2011. O discurso oficial apontava para a necessidade de se “modernizar” a legislação autoral em face da revolução tecnológica provocada pela digitalização de praticamente todos os processos de criação, produção e distribuição de conteúdo em escala economicamente relevante. Um pouco menos decididamente, defendia a correção do que considerava como distorções econômicas no mercado de bens simbólicos, não tendo sido raro que certos titulares fossem acusados, explícita ou veladamente, de “abuso de direito”. Os alvos preferenciais da crítica oficial pareciam ser: (a) os herdeiros de artistas mortos; (b) as entidades de gestão coletiva de direitos, muito particularmente o Escritório Central de Arrecadação de Direitos – ECAD;47 e (c) a indústria de mídia em geral. Em suma, os propositores da reforma autoral alegavam que o texto vigente estaria historicamente superado, sendo incapaz de assegurar que os direitos autorais por ela regulados cumprissem sua função social, como direitos de propriedade que também são. Em outras palavras, o Anteprojeto pretendia estabelecer um novo equilíbrio entre os direitos privados do titular da obra protegida e os direitos difusos de acesso à cultura e à informação, objetivo este que já se encontra positivado no âmbito do direito internacional, mais especificamente no art. 7o do Acordo TRIPS da Organização Mundial do Comércio,48 devidamente internalizado pelo ordenamento brasileiro. A proposta do governo, até onde se sabe, não modifica as características mais visíveis dos direitos autorais, como seu campo de incidência material ou o prazo de validade dos direitos exclusivos, mas introduz um caráter expressamente funcionalista ao direito autoral brasileiro, o que ainda não se havia tentado no contexto do direito positivo. Essa guinada filosófica – que, como vimos, é mais profunda do que possa à primeira vista parecer – se expressa logo no parágrafo único que a última versão pública do Anteprojeto acrescenta ao art. 1o da Lei no 9.610/98, onde se lê: A interpretação e a aplicação desta Lei atenderão às finalidades de estimular a criação intelectual e a diversidade cultural e garantir a liberdade de expressão e orientar-se-ão
47 Nota de atualização: dentre os objetivos gerais do Anteprojeto, o único que parece ter de fato avançado desde então foi a regulação das entidades de gestão coletiva de direitos. Em 2012, o ECAD foi objeto de uma Comissão Parlamentar de Inquérito no Senado, que concluiu pela existência de uma série de irregularidades e contribuiu para o desfecho do processo administrativo que à época já tramitava no Conselho Administrativo de Defesa Econômica, que ao final condenou a entidade pela formação de cartel. A CPI também recomendou mudanças legislativas que foram efetivamente implementadas por meio da Lei 12.853, que alterou a Lei de Direitos Autorais em praticamente todos os aspectos relevantes relacionados com a matéria. Para o Relatório final da CPI, cf. BRASIL. Senado Federal. Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar supostas irregularidades praticadas pelo Escritório Central de Arrecadação e Distribuição - ECAD (Requerimento nº 547, de 2011 – SF). Exarado em abril de 2012. Disponível em http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=106951. Acesso em 5/2/2017. Para o processo no CADE, cf. BRASIL. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Processo 08012.003745/2010-83. 48 ACORDO SOBRE ASPECTOS DE DIREITOS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL RELACIONADOS AO COMÉRCIO (Anexo 1C do Acordo de Marrakesh estabelecendo a Organização Mundial do Comércio, adotado em 15 de abril de 1994, vigente desde 1o de janeiro de 1995) – Acordo TRIPS, art. 7o: “A proteção e a aplicação de normas de proteção dos direitos de propriedade intelectual devem contribuir para a promoção da inovação tecnológica e para a transferência e difusão de tecnologia, em benefício mútuo de produtores e usuários de conhecimento tecnológico e de uma forma conducente ao bem-estar social econômico e a um equilíbrio entre direitos e obrigações.” 61
pelos ditames constitucionais de proteção aos direitos autorais em equilíbrio com os demais direitos fundamentais e os direitos sociais.49 (Grifos nossos) E reitera seu viés funcionalizante em outro dispositivo inédito, o parágrafo único do art. 28, que reza: O objeto fundamental da proteção desta lei, do ponto de vista econômico, é a garantia das vantagens patrimoniais resultantes da exploração das obras literárias, artísticas ou científicas em harmonia com os princípios Constitucionais da atividade econômica.50 (Grifos nossos) Note-se que o texto confere “finalidades” e um “objeto fundamental” à proteção autoral em sua esfera econômica, que é a “garantia das vantagens patrimoniais resultantes da exploração das obras”. Ao mesmo tempo, relativiza (ou mesmo afasta) a jusfundamentalidade de seu componente patrimonial ao equipará-lo aos “princípios constitucionais da atividade econômica”, que não constam entre as “garantias fundamentais”, diferentemente do dispositivo constitucional que trata dos direitos autorais.51 Como já diagnosticado pela Associação Brasileira da Propriedade Intelectual – APBI, [e]sses dois elementos – a explícita relativização do direito autoral em face de outros direitos; e sua subordinação a um objetivo maior de Estado – aproximam como nunca o direito autoral brasileiro da doutrina utilitarista da propriedade intelectual, filosoficamente relacionada à tradição anglo-saxã [...]”.52 Em outras palavras, o Anteprojeto deixa claro que o bem jurídico tutelado pelo direito autoral, ao menos no que tange a seus aspectos patrimoniais, não é o trabalho nem a obra intelectual em si, mas sua utilidade econômica futura.
Mais importante, contudo, é notar que o Anteprojeto não apenas insere
49 ANTEPROJETO DE REFORMA DA LEI DE DIREITO AUTORAL, art. 1o, parágrafo único. Disponível em: <http://www.cultura.gov.br/ consultadireitoautoral/consulta/>. Acesso em: 22 dez. 2011. 50 ANTEPROJETO DE REFORMA DA LEI DE DIREITO AUTORAL, art. 28, parágrafo único. Disponível em: <http://www.cultura.gov.br/ consultadireitoautoral/consulta/>. Acesso em: 22 dez. 2011. 51 Descartada nos países do common law, a questão da jusfundamentalidade dos direitos patrimoniais de autor é bem menos clara nos países civilistas. Analisando especificamente a situação brasileira, Denis Barbosa atribui a uma inadequação classificativa a presença de direitos patrimoniais de autor entre os direitos fundamentais relacionados pela Constituição Federal. Cita, na mesma linha, José Afonso da Silva, para quem “o dispositivo que [...] define [a PI] está entre os direitos individuais, sem razão plausível para isso, pois evidentemente não tem natureza de direito fundamental do homem. Caberia entre as normas da ordem econômica” (BARBOSA, Denis B. Propriedade intelectual: a aplicação do acordo TRIPs. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 26). Quer nos parecer que a verdadeira questão está na medida. Como ocorre com o direito de propriedade em si, os direitos de PI, tanto nos aspectos morais quanto patrimoniais, são direitos fundamentais enquanto princípio, mas não necessariamente com este ou aquele escopo, conforme opinião do Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas (General Comment no 17. Op. cit.), aqui já citada. (N. A.) 52 RESOLUÇÃO DA ABPI no 80 – O Anteprojeto de Lei que altera a Lei 9.610/98 e seus impactos nas indústrias de criação, produção e distribuição de conteúdo intelectual, p. 2. Disponível em: <http://www.abpi.org.br/biblioteca.asp?idioma=Portugu%EAs&secao=Biblioteca&subsecao=Resolu%E7%F5es%20da%20ABPI&assunto=Rela%E7%E3o%20completa>. Acesso em: 22 dez. 2011. A referida Resolução teve por base um Relatório produzido pela Comissão de Direitos Autorais e da Personalidade e pelo Comitê Empresarial da ABPI, cuja produção foi coordenada pelo autor do presente artigo. (N. A.) 62
automaticamente o direito de propriedade intelectual do autor no contexto mais amplo da função social da propriedade em geral como, na verdade, dá conteúdo a essa função social, que consistiria em: (a) estimular a criação intelectual e a diversidade cultural; e (b) garantir a liberdade de expressão. Aceitando-se a premissa de que os direitos autorais podem (ou talvez devam) ter uma função, tais objetivos nos parecem inatacáveis, mas seria perfeitamente razoável questionar por que foram estes os únicos a merecer menção expressa na lei. Assegurar uma remuneração digna ao trabalhador intelectual, fortalecer a indústria de conteúdo nacional ou ampliar a presença do produto cultural brasileiro no mercado internacional de bens simbólicos seriam objetivos relevantes o bastante? Quem, afinal, escolhe o que entra ou não na lista? Indo mais fundo, seria a lei ordinária um instrumento apropriado para dar conteúdo a um princípio constitucional tão abstrato como “função social”? Não seria tecnicamente necessário explicitar a mudança de paradigma do direito autoral brasileiro – de deontológico para utilitário – na própria Constituição, como ocorre, por exemplo, nos EUA (e, na ordem constitucional brasileira, com a propriedade industrial),53 para somente então detalhar, no âmbito infraconstitucional, que “função” seria essa? Mais adiante, seguindo em seu movimento de aproximação do common law – e mantendo o foco sobre as consequências da utilização –, o Anteprojeto amplia de oito para 21 as hipóteses de limitação listadas no art. 46 e agrega, no § 2o, uma espécie de cláusula geral de indisfarçável inspiração consuetudinária: O Poder Judiciário, em casos análogos aos incisos deste artigo, ao conhecer que não há ofensa aos direitos autorais, observará cumulativamente as seguintes condições: I – que a utilização não tenha finalidade comercial nem intuito de lucro direto ou indireto; II – que a utilização não concorra com a exploração comercial da obra; III – que a utilização não prejudique injustificadamente os interesses do autor. Essa inspiração era ainda mais evidente na cláusula geral proposta pela primeira versão do Anteprojeto,54 que foi sensivelmente atenuada após a primeira consulta pública, talvez para caber no escopo da chamada Regra dos Três Passos de Berna.55 Ainda assim, isso significa que mesmo usos não expressamente previstos na lista de limitações poderiam, pelo Anteprojeto, ser considerados lícitos pelo Judiciário, desde que o uso analisado seja análogo aos expressa53 Constituição Federal, art. 5o, inciso XXIX: “[A] lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País” (Grifos nossos). 54 Cf.: ANTEPROJETO DE REFORMA DA LEI DE DIREITO AUTORAL (Primeira Versão), art. 46, parágrafo único: “Além dos casos previstos expressamente neste artigo, também não constitui ofensa aos direitos autorais a reprodução, distribuição e comunicação ao público de obras protegidas, dispensando-se, inclusive, a prévia e expressa autorização do titular e a necessidade de remuneração por parte de quem as utiliza, quando essa utilização for: I – para fins educacionais, didáticos, informativos, de pesquisa ou para uso como recurso criativo; e II – feita na medida justificada para o fim a se atingir, sem prejudicar a exploração normal da obra utilizada e nem causar prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores.” 55 CONVENÇÃO DE BERNA, art. 9.2: “Às legislações dos países da União reserva-se a faculdade de permitir a reprodução das referidas obras em certos casos especiais, contanto que tal reprodução não afete a exploração normal da obra nem cause prejuízo injustificado aos interesses legítimos do autor.” 63
mente previstos. Trata-se, portanto, de um conceito muito próximo ao fair use, perfeitamente adequado ao realismo jurídico anglo-saxão, onde a construção jurisprudencial está no topo da hierarquia normativa. O direito no common law é, por definição, fortemente influenciado pela inteligência das cortes (case law) e, embora exista uma complexa relação hierárquica entre os diversos precedentes, a aderência dos magistrados ao case law é um pressuposto do próprio sistema, o que favorece a criação de posicionamentos paradigmáticos que condicionam e dão objetividade às cláusulas gerais.56 Na tradição formalista romano-germânica, à qual se afiliam não apenas as leis brasileiras, mas os tribunais que as aplicam, o peso dos precedentes judiciais é, em geral, significativamente menor. Do ponto de vista dos setores da economia nacional que integram a cadeia produtiva dos bens simbólicos, o ponto central dessa discussão é saber se a “americanização” do direito autoral brasileiro será capaz de gerar o que, em última análise, qualquer indústria espera: segurança jurídica. A presença de cláusulas gerais e conceitos abertos, como “onerosidade excessiva” ou “acontecimentos extraordinários e imprevisíveis”,57 não é, em si, uma inovação, pois, como já mencionado, estão presentes tanto na Constituição quanto no Código Civil. Mas é importante ressaltar que a densidade jurisprudencial do direito autoral brasileiro é relativamente baixa em comparação a outras esferas do direito civil e que, por mais ilustrados que sejam – e são –, os operadores do direito no Brasil têm, em geral, baixíssima exposição teórica à doutrina autoralista, sendo que a esmagadora maioria sequer estudou a matéria em sua formação básica.
4. Conclusão Nada há de moralmente “errado” com o utilitarismo ou qualquer forma de consequencialismo jurídico, como também não há com as correntes deontológicas em si. Ambas as perspectivas apresentam pontos fortes e fracos. Na deontologia do droit d’auteur, é mais difícil justificar uma busca dinâmica pelo equilíbrio entre os direitos autorais e outros direitos, notadamente os de caráter econômico, pois, por definição, sua validade apriorística não se sujeita à verificação pela experiência. O utilitarismo do copyright tem a vantagem de pressupor esse equilíbrio, mas a análise da relação custo-benefício da proteção intelectual na economia como um todo apresenta tantas variáveis que é preciso estabelecer um consenso a priori que delimite minimamente o que se espera a título de “bem -estar”, decisão sujeita a todo tipo de influência circunstancial. Ao tomar o rumo do consequencialismo, contudo, o legislador precisa compreender que está criando objetivos, e não traduzindo pressupostos, razão pela qual deve considerar com especial atenção os impactos práticos que a mudança proposta poderá vir a ter sobre a criação, produção e distribuição de conteúdo autoral no futuro. No processo político-administrativo que culminou no
56 Sobre as características hermenêuticas do common law e como elas se comparam às do civil law, cf.:MELLO, Patrícia Perrone Campos. Precedentes: o desenvolvimento judicial do direito constitucional contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. 57 Cf.: ANTEPROJETO DE REFORMA DA LEI DE DIREITO AUTORAL, art. 4o, § 2o: “Nos contratos de execução continuada ou diferida, qualquer uma das partes poderá pleitear sua revisão ou resolução, por onerosidade excessiva, quando para a outra parte decorrer extrema vantagem em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis.” 64
anteprojeto de reforma da Lei de Direitos Autorais, o governo não demonstrou grande preocupação com a coleta e análise de dados objetivos capazes de justificar as mudanças propostas, ou mesmo em fornecer detalhes sobre os efeitos macroeconômicos esperados com medidas como, por exemplo, a que dá aos produtores e coautores de obras audiovisuais, inclusive estrangeiros, o direito de arrecadar direitos de exibição pública no Brasil,58 sendo que os produtores e coautores brasileiros não terão o mesmo direito em outros países (inclusive nos EUA, o maior mercado audiovisual do mundo). Em outras palavras, faltam, se não evidências, ao menos dados indicativos de que a aplicação da normativa proposta levará à consecução dos objetivos que o próprio texto legal se impõe.59 Para um texto legal que se propõe explicitamente funcionalista, isso pode ser um problema sério. Em especial quando se sabe que o direito há muito se vale da análise de dados objetivos para avaliar o grau de “eficiência” das leis e demais instrumentos normativos, ou seja, se tais normas são efetivamente capazes de gerar os resultados socioeconômicos esperados. Em todo o mundo, dados coletados de acordo com a metodologia de outras ciências são utilizados para justificar ou rejeitar propostas legislativas e decisões administrativas. Na área ambiental, por exemplo, não se concebe uma medida de caráter normativo que, tendo claras implicações em um dado ecossistema, prescinda de uma análise prévia de impactos, tão detalhada quanto possível. Por isso, antes de mudar as regras gerais para a atividade exploração de petróleo em alto-mar, por exemplo, espera-se que o Estado proceda a uma cuidadosa análise dos riscos ambientais (poluição das águas, diversidade da fauna marinha etc.), humanos (sustentabilidade das atividades de pesca artesanal, mudanças no perfil demográfico das cidades costeiras etc.) e também econômicos (“doença holandesa”,60 redução do fluxo turístico etc.) da medida proposta61. 58 Cf.: ANTEPROJETO DE REFORMA DA LEI DE DIREITO AUTORAL, art. 81, § 3o: “O produtor responsável pela primeira fi xação de obra audiovisual terá o direito a uma remuneração referente a cada exibição pública a que se refere o art. 68”. Cf., ainda, art. 86: “Os direitos autorais, decorrentes da exibição pública de obras audiovisuais e da execução pública de obras musicais [...] serão devidos aos seus titulares pelos responsáveis dos locais ou estabelecimentos [...] que as exibirem, ou pelas empresas que as transmitirem. Parágrafo único. Os proventos pecuniários resultantes de cada exibição pública de obras audiovisuais serão repartidos entre seus autores, artistas intérpretes e produtores, na forma convencionada entre eles ou suas associações.” 59 Em palestra sobre o Anteprojeto de Reforma Autoral, proferida durante o XXXII Congresso Internacional da Propriedade Intelectual (São Paulo, 27 e 28 de agosto de 2012), o advogado Fábio Barboza ressaltou que o Reino Unido promoveu quatro revisões da política geral de propriedade intelectual nos últimos sete anos, com o objetivo de manter a efi ciência econômica do sistema em face das recentes mudanças tecnológicas, com forte base em dados objetivos do mercado relevante em que atuam as indústrias de conteúdo (que os britânicos, em especial, costumam chamar de “indústrias criativas”). O advogado comparou a experiência britânica à brasileira, concluindo que, no Brasil, não há evidências de que o processo se valeu de dados objetivos similares. Cf.: BERENZIN, Ricardo Z. Lei de direito autoral deve garantir segurança jurídica. Consultor Jurídico, 29 de agosto de 2012. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2012-ago-29/lei-direito-autoral-garantir-seguranca-juridica-empresas>. Acesso em: 12 jan. 2013. 60 Na defi nição de Bresser Pereira, a chamada “doença holandesa” é “uma falha de mercado decorrente da existência de recursos naturais baratos e abundantes usados para produzir commodities (e da possível elevação dos preços das mesmas) que são compatíveis com uma taxa de câmbio mais apreciada do que aquela necessária para tornar competitivos os demais bens comercializáveis”. Essa falha de mercado gera condições macroeconômicas, notadamente cambiais, relativamente desfavoráveis às demais atividades econômicas, comprometendo sua competitividade. O resultado é uma concentração excessiva de investimento em um ou algumas indústrias específi cas, tipicamente de commodities, atrasando o desenvolvimento tecnológico do país. Cf.: BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Doença holandesa e sua neutralização: uma abordagem ricardiana. Revista de Economia Política 28 (1), p. 47-71. Versão eletrônica da versão em língua portuguesa está disponível em: <http://www.bresserpereira.org.br/ papers/2007/07.26.Doen%E7aHolandesa.15dezembro.pdf>. Acesso em: 12 jan. 2013. 61 Para um exemplo concreto, ligado à exploração brasileira de petróleo na camada pré-sal, cf., p. ex.:PETROBRAS; ICF Consultoria do Brasil. RIMA – Relatório de Impacto Ambiental: Projetos Integrados de Produção e Escoamento de Petróleo e Gás Natural no Polo Pré-Sal, Bacia de Santos. Rev. 2 (Março de 2011). Disponível em: <http://www.observatoriodopresal.com.br/wp-content/uploads/2011/07/rima_ 2011-PRÉ-SAL-ICF.pdf>. Acesso em: 12 jan. 2013. 65
Claro que, por outro lado, o mesmo proponente deverá considerar os efeitos positivos da medida: como (e o quanto) as novas regras favoreceriam o aumento da arrecadação de tributos, quantos novos empregos diretos e indiretos podem ser razoavelmente esperados, e assim por diante. Adivinhar o futuro é impossível, mas as lições do passado mostram que é melhor tentar prever algo, mesmo errando, do que simplesmente esperar tudo acontecer. Vazamentos de óleo em alto-mar acontecem e por isso os riscos associados devem ser qualificados, controlados e, na medida do possível, quantificados. A mesma lógica serve para os impactos positivos. Ao final, o que se tem é uma análise da relação custo -benefício da medida regulatória proposta, ferramental intimamente relacionado ao movimento conhecido nos países anglo-saxões como Law and Economics (em português, normalmente chamado de Análise Econômica do Direito – AED),62 ainda muito pouco estudado no Brasil. Em suma, pode-se dizer que o processo de reforma da legislação autoral brasileira tem se desenrolado sobre bases quase que exclusivamente retóricas, construídas a partir de uma sucessão de seminários e consultas públicas em que a argumentação subjetiva prevaleceu sobre a análise técnica de dados objetivos a respeito do mercado de criação, produção e distribuição de conteúdo literário e artístico. Tais dados são, de fato, escassos no Brasil, o que não os torna menos necessários ao processo de reforma, em especial quando se adota uma visão consequencialista dos direitos de autor e os que lhes são conexos. Se em outras esferas regulatórias que têm no “futuro” a sua própria razão de existir, como é o caso do direito ambiental, os estudos de impacto tornaram-se uma ferramenta essencial para a tomada de decisões, por que prescindir do mesmo cuidado em relação ao direito autoral? O futuro da produção cultural é pelo menos tão importante quanto o de qualquer bioma, pode-se argumentar. Pelo menos na medida em que se aceitem os pressupostos da racionalidade humanista de onde surgiu o próprio direito da propriedade intelectual como o conhecemos, em todas as suas variantes.
REFERÊNCIAS ABPI. Resolução da ABPI no 80. Disponível em: http://www.abpi.org.br/ biblioteca.asp?idioma =Portugu%EAs&secao=Biblioteca&subsecao=Resolu%E7%F5es%20da%20 62 Cf.: VASCONCELOS, Cláudio Lins de. Mídia e propriedade intelectual... Op. cit. p. 124. (“A AED não é uma disciplina jurídica propriamente dita, mas uma abordagem do Direito a partir de suas características e desdobramentos de natureza econômica. O resultado dessa análise será tipicamente um diagnóstico de efi ciência, ou seja, de como os custos da aplicação legal se comparam aos seus benefícios, tendo por objetivo o cumprimento das fi nalidades socioeconômicas da lei, dentro de uma escala subjetiva de valores [...] [E]ssa análise exercerá em muitos casos função meramente acessória, como na hipótese de uma medida qualquer que, embora inefi ciente do ponto de vista estritamente econômico, será a mais adequada para a consecução de objetivos específi cos. Em outros, contudo, a AED tende a ser fundamental, particularmente nas áreas em que a efi ciência econômica consiste no próprio bem jurídico a ser tutelado. Em sua concepção contemporânea, [...] o [direito internacional da propriedade intelectual] tem como principal preocupação a busca do equilíbrio entre os interesses econômicos de titulares e usuários de bens intelectuais, o que equivale dizer que busca conceitualmente a melhor alocação possível dos recursos destinados tanto à produção quanto ao consumo desses bens. Não por acaso, alguns dos maiores nomes da AED são também referências obrigatórias em matéria de PI”). Em nota de rodapé, no mesmo trabalho, exemplifi camos: “Richard Posner e William Landes talvez sejam os exemplos mais óbvios, mas não os únicos. Nomes como Steven Shavell, Stanley Besen, Carlos Alberto Primo Braga, Harold Demsetz, Paul Goldstein, Wendy Gordon, Michael Katz, Carl Shapiro, Sanford Liebovitz, Edwin Mansfi eld e George Stigler, entre outros, se debruçaram sobre o tema e se tornaram fontes autoritativas tanto no estudo da PI quanto na AED.” 66
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AS EXCEÇÕES E LIMITAÇÕES AOS DIREITOS DO AUTOR E A OBSERVÂNCIA DO REGRA DO TESTE DOS TRÊS PASSOS
Por Maristela
Basso
Advogada, Professora de Direito Internacional da Faculdade de Direito da USP (Largo São Francisco), Doutora em Direito Internacional (Ph.D) e Livre-Docente (Pós-Doutora-Post-Ph.D) em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo. Integra a Lista de Árbitros Brasileiros do Sistema de Solução de Controvérsias do MERCOSUL e a lista de Painelistas especialistas em propriedade intelectual do Sistema de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio OMC. Integra também várias instituições e câmaras arbitrais no Brasil e no exterior, dentre elas a CAM/CCBC, onde também exerceu o cargo de Vice-Presidente. Recentemente recebeu do American Biographical Institute a Golden Medal 2010 For Her Passion, Courage, Commitment, Success, Excellence, Virtue, Spirit. Em 2011 seu nome foi incluído no Who´s Who Legal, publicação internacional, como sendo a: The first of Brazil´s leading practitioners in the field of Patents, Intellectual Property. É Professora/Tutora da Academia da Organização Mundial da Propriedade Intelectual OMPI-WIPO Genebra. É Membro Maior da Inter American Bar Association da The American Society of International Law, do Instituto de Direito Comparado Luso-Brasileiro, da International Law Association. A Professora Maristela Basso tem seu nome como referência no Outstanding Intellectuals of the 21st Centure no Great lives on the 21st Century e no The Cambridge Blue Book. Resumo: Uma reflexão sistemática e normativa das exceções aos direitos de Autor é realizada partindo-se da Convenção da União de Berna, relativa à proteção das obras literárias e artísticas, base dos principais modelos de exceções e limitações aos direitos de Autor, analisando também os demais instrumentos normativos, a exemplo do Acordo TRIPS/OMC. De maneira sucinta, a “regra dos três passos” (three step test) prevê hipóteses relacionadas ao direito de reprodução por terceiros, uma vez que autoriza exceções e limitações aos direitos autorais. Pretende-se discutir a temática a partir dos fundamentos da Doutrina da Interpretação Consistente (Doctrine of Consistente Interpretation) e do princípio do Pacta Sunt Servanda, uma vez que a legislação nacional deve estar em harmonia com o regime internacional de proteção à propriedade intelectual de forma a equilibrar direitos autorais (morais e materiais) e interesse público, consubstanciado no acesso a obras protegidas, possibilitando a tutela de questões relacionadas à educação, pesquisa e acesso à informação. Especial referência é feita à aplicação das exceções e limitações aos direitos de Autor no âmbito da Internet, a partir da interpretação do fair use.
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Palavras-chave: Direito de Autor. “Regra dos Três Passos” (Three Step Test). Exceções e limitações. Direito de reprodução por terceiros. Doutrina da Interpretação Consistente. Internet. Fair Use.
1. Análise comparativa das exceções/limitações aos direitos de Autor: Considerações introdutórias A natureza das exceções aos direitos de Autor deve ser considerada, primeiramente, à luz da Convenção de Berna para a proteção das obras literárias, artísticas e científicas (1886), cujas regras servem hoje de base para todas as exceções aos direitos de propriedade intelectual nos tratados concluídos depois dela e cujos princípios e fundamentos foram revigorados no Acordo OMC/TRIPS. Da mesma forma, a Convenção de Berna é base dos principais modelos de exceções e limitações aos direitos autorais contidos nas legislações domésticas. A norma geral contida na Convenção de Berna, conhecida como a regra do three-step test, guia os legisladores nacionais (e demais intérpretes do Direito) com relação ao direito de “reprodução” por terceiros. Esse teste autoriza exceções/limitações ao direito de Autor e, por conseguinte, o direito de reprodução por terceiros não-autorizados apenas nas seguintes hipóteses: i) em certos casos especiais; ii) que não conflitem com a exploração comercial normal da obra e, iii) não prejudiquem injustificadamente os legítimos interesses do Autor.
2. A relação entre o sistema internacional e o marco legal brasileiro de proteção dos direitos autorais: Aplicação da Doutrina da Interpretação Consistente A Doutrina da Interpretação Consistente (Doctrine of Consistent Interpretation) é uma regra de hermenêutica de normas legais nacionais cuja gênese seja internacional. Segundo esta doutrina,1 quando uma norma local permitir diferentes interpretações, esta deverá ser interpretada em consonância com as obrigações internacionais pertinentes à matéria,2 possibilitando-se uma relação 1 PRINSSEN, Jolande M. Domestic legal effects of EU criminal law: a transfer of EC law doctrines?, p. 7. Artigo apresentado na Conferência “Interface between EU and National Law”, Amsterdã, Universidade de Amsterdã, fevereiro, 2006. Disponível em: <http://www.jur.uva.nl/ interface/object.cfm/objectid=A2F4A779- E278-4FE3-97EE7C5D1701C657/download=true> 2 A Doutrina da Interpretação Consistente foi introduzida, em 1804, pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América em decisão proferida no caso Charming Betsy. O juiz Marshall frisou que “uma lei aprovada pelo Congresso nunca deve ser interpretada de forma a violar o direito das gentes, sempre que for possível”. A Corte Européia de Justiça, no mesmo sentido, dá à legislação comunitária européia (quando esta estiver 76
harmônica do sistema jurídico nacional com o internacional, bem como a realização concreta do princípio do Pacta Sunt Servada3 que, necessariamente, deve ser observado por todos os órgãos estatais, inclusive pelo Poder Judiciário.4 No campo das relações comerciais internacionais, a aplicação da Doutrina da Interpretação Consistente ainda traz a vantagem pragmática de minimizar os riscos do Estado brasileiro vir a ser alvo de litígios internacionais perante o Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) da Organização Mundial do Comércio (OMC) e de retaliações comerciais. O Brasil, na qualidade de País Membro da OMC, assumiu a obrigação de prover (em seu território), aos titulares brasileiros e estrangeiros de direitos autorais, proteção efetiva de acordo com os patamares mínimos de proteção estabelecidos no Acordo ADPIC/TRIPS (Acordo Sobre Aspectos de Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio/Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights), parte integrante do Acordo Constitutivo da Organização Mundial do Comércio (“OMC”), que se encontra em vigor e incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto n. 1.355.5 Os patamares de proteção previstos no Acordo TRIPS, no que concerne à proteção dos direitos autorais, foram construídos sobre a estrutura da Convenção de Berna Relativa à Proteção das Obras Literárias e Artísticas6 (Convenção de Berna), conforme disposto no art. 9º do Acordo TRIPS que dispõe: “Os Membros cumprirão o disposto nos artigos 1 a 21 e no Apêndice da Convenção de Berna (versão de 1971)”.7 Uma vez aprovados e promulgados, respectivamente, pelo Congresso Nacional e Chefe do Poder Executivo, os referidos Acordos internacionais passam a integrar o sistema jurídico brasileiro com o status de lei ordinária, tendo aplicação direta e imediata. Além do Acordo TRIPS e da Convenção de Berna, o regime jurídico brasileiro de proteção dos direitos autorais é ainda composto pela Lei n. 9.610, de 19 de fevereiro de 1998 (Lei de Direitos Autorais – LDA), a qual regulamenta, em âmbito doméstico, a Convenção de Berna e a Seção 1 da Parte II do Acordo TRIPS e a sujeita a mais de uma interpretação), tanto quanto possível, uma interpretação que seja consistente com os acordos internacionais de que seja parte a Comunidade Européia (Commission v. Federal Republic of Germany, C-61/94, 1996). A Suprema Corte da Suíça, em 1968, em Frigero v. EVED, também decidiu que a norma nacional deve ser aplicada e interpretada de acordo com as obrigações internacionais pertinentes, sempre que houver dúvidas sobre a interpretação que deva ser dada às normas locais. ABBOT, Frederick; COTTIER,Thomas; GURRY, Francis. The international intellectual property system: commentary and materials: part one. The Hague-Boston: Kluwer Law International, 1999. p. 558-560. 3 A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados determina, em seu art. 26, o conteúdo do princípio do Pacta Sunt Servanda: “Todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa fé”. 4 Id. Ibid., p. 560-561. 5 Decreto n. 1.355, de 30 de dezembro de 1994, que promulga a Ata Final que incorpora os Resultados da Rodada Uruguai de Negociações Comerciais Multilaterais do GATT. 6 O Decreto n. 75.699, de 6 de maio de 1975, promulga a Convenção da União de Berna, versão revista em Paris a 24 de julho de 1971. 7 Art. 9o do Acordo TRIPS da OMC. 77
Constituição Federal (art. 5º, XXVII). O regime jurídico brasileiro de proteção dos direitos autorais é composto por dispositivos legais de gênese internacional, notadamente, a Convenção de Berna e o Acordo TRIPS da OMC, bem como por dispositivos de origem nacional - a Constituição Federal do Brasil e a chamada Lei de Direitos Autorais - LDA. Com o objetivo de que a aplicação da LDA não infrinja os direitos dos titulares de direitos autorais decorrentes dos tratados internacionais, preservando-se, pois, o equilíbrio sistêmico que visa ao estabelecimento de um regime que proteja, de um lado, os interesses materiais e morais dos titulares dos direitos autorais (com vistas a fomentar a produção intelectual e científica) e, do outro, os interesses do público de acesso a obras protegidas, o operador/intérprete do Direito deve, em conformidade com a Doutrina da interpretação Consistente, interpretar, observar e aplicar os dispositivos da LDA e da Constituição Federal, em consonância com o estabelecido nos tratados internacionais. Sob esta ótica, a Convenção de Berna e o Acordo TRIPS da OMC são os cânones de interpretação e aplicação das limitações aos direitos autorais arroladas no art. 46 e seguintes da LDA. Ou seja, as limitações previstas na LDA devem se conformar aos patamares mínimos de proteção dos direitos autorais fixados pela Convenção de Berna e Acordo TRIPS.
3. O equilíbrio sistêmico dos sistemas nacional e internacional de proteção dos direitos autorais: Os direitos exclusivos dos autores e a regra do Teste dos Três Passos (Three-step test) A Convenção de Berna, concluída em 1886 e revisada em algumas outras ocasiões,8 fundou o sistema internacional de proteção dos direitos autorais. O propósito deste sistema é a proteção, e maneira tanto quanto possível, eficaz e uniforme dos direitos dos autores9 sobre suas respectivas obras literárias e artísticas,10 promovendo, pois, a inovação por intermédio do bloqueio de atividades de apropriação de obras protegidas. O Sistema de Berna foi profundamente influenciado pela doutrina francesa do droit d’auteur que, por sua vez, tem como fundamentos básicos a doutrina do Direito Natural. A proteção prevista nos instrumentos internacionais visa à proteção das obras contra atos de apropriação direta (reprodução textual e literal, por exemplo, de uma obra literária, comunicação ao público de obra protegida) e indireta11 (adaptação, arranjos e outras transformações da obra original – art. 12, da Con8 A respeito da Convenção de Berna para a proteção das obras literárias e artísticas de 1886, vide de BASSO, Maristela. O direito internacional da propriedade intelectual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2000. p. 90 e ss. 9 A LDA define Autor como “(...) a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica” (art. 11 da LDA) 10 Preâmbulo da Convenção de Berna, Revisão de Paris, 1971. 11 LADAS, Stephen P. The international protection of literary and artístic property. New York: The Macmillan Company, 1938. v. 1, p. 566570. No mesmo sentido ver CORNISH, William; LLEWELYN, David. Intellectual property: patents, copyright, trade marks and allied rights. 5. ed. London: Sweet & Maxwell, 2003. p. 420 e 422. 78
venção de Berna). Historicamente, o cerne da tutela dos interesses dos titulares de direitos autorais é o direito exclusivo de reprodução, mas não se restringe a ele, abrangendo também os direitos de tradução, adaptação e modificações gerais, dentre outros. A LDA, em seu Título III, Capítulo III, reflete a lógica do sistema internacional de resguardar os interesses econômicos dos titulares de direitos autorais contra apropriação direta e indireta de suas obras. Neste Capítulo, a LDA regula os direitos patrimoniais dos autores e, conseqüentemente, as prerrogativas investidas nos titulares de direitos autorais em relação às suas obras, possibilitando-lhes extrair benefícios financeiros por seus esforços e divulgação de seus trabalhos ao público. A fim de aclarar com exemplos legais concretos o que ora se afirma, reproduzimos alguns dispositivos da LDA que corporificam o referido princípio geral de proteção contra apropriação direta e indireta de obras protegidas: “Art. 28. Cabe ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica”. “Art. 29. Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como:12 I - a reprodução parcial13 ou integral14 (a cópia de um ou vários exemplares de uma obra literária, artística ou científica ou de um fonograma, de qualquer forma tangível, incluindo qualquer armazenamento permanente ou temporário por meios eletrônicos ou qualquer outro meio de fixação que venha a ser desenvolvido (...) VIII - a utilização, direta ou indireta, da obra literária, artística ou científica (...); IX - a inclusão em base de dados, o armazenamento em computador, a microfilmagem e as demais formas de arquivamento do gênero; X - quaisquer outras modalidades de utilização existentes ou que venham a ser inventadas15.”
12 Os poderes investidos pela LDA nos autores são meramente exemplificativos. 13 Foi acordado, durante as negociações de Estocolmo, a inserção na Convenção de Berna de um dispositivo que reconhece o direito de reprodução investido nos autores. Sobre a definição do que cabe dentro do direito de reprodução, o Comitê Negocial reconheceu que o direito de reprodução abrange tanto a reprodução parcial quanto integral de obras protegidas. Svante Bergström, Report on the Work of Main Committee I (Substantive Provisions of Berne Convention: Articles 1 to 20). “Records of the Intellectual Property Conference of Stockholm”, June 11 to July 14, 1967, Volume II, p. 291. 14 Art. 9.1 da Convenção de Berna, Revisão de 1971 : “Os autores de obras literárias e artísticas protegidas pela presente Convenção gozam do direito exclusivo de autorizar a reprodução destas obras, de qualquer modo ou sob qualquer forma que seja”. A LDA, já flexibilizada para abarcar situações infratoras aos direitos autorais no âmbito virtual, define “reprodução” como “a cópia de um ou vários exemplares de uma obra literária, artística ou científica ou de um fonograma, de qualquer forma tangível, incluindo qualquer armazenamento permanente ou temporário por meios eletrônicos ou qualquer outro meio de fixação que venha a ser desenvolvido” (art. 5o, VI). Logo, reprodução não mais se limita à reprodução tangível de obras protegidas; o armazenamento, mesmo que permanente, de obras protegidas em meios eletrônicos caracteriza também uma reprodução para fins legais. 15 Na atualidade do direito nacional e internacional, são reservados aos titulares de direitos autorais, com exclusividade, todos os atos de reprodução de um trabalho, tanto direta quanto indiretamente, de qualquer maneira ou forma, incluindo o armazenamento digital; qualquer digitalização de uma obra protegida, upload ou download de obras de um servidor para outro, cópias incidentais criadas no curso do uso de um computador. 79
“Art. 33. Ninguém pode reproduzir obra que não pertença ao domínio público, a pretexto de anotá-la, comentá-la ou melhorála, sem permissão do autor”. (Grifamos) Ademais, o sistema internacional de proteção dos direitos autorais visa também alcançar um equilíbrio entre os interesses privados (dos autores e empresas cujas atividades dependem destes direitos) e públicos de acesso às obras protegidas. Neste sentido, a Convenção de Berna e o Acordo TRIPS autorizam seus Estados-partes a estabelecerem limitações aos direitos patrimoniais dos autores com vistas à promoção de determinadas políticas públicas. A norma geral do Teste dos Três Passos (three-step test), que regula e norteia as limitações aos direitos exclusivos dos autores, foi introduzida na Convenção de Berna, em 1967, durante a revisão de Estocolmo, estando atualmente prevista no art. 9.2 da Convenção de Berna (revisão de Paris) e no art. 13 do Acordo TRIPS da OMC, conforme se lê: “Art. 9.2 da Convenção de Berna 2) Às legislações dos países da União reserva-se a faculdade de permitir a reprodução das referidas obras em certos casos especiais, contanto que tal reprodução não afete a exploração normal da obra nem cause prejuízo injustificado aos interesses legítimos do autor”. “Art. 13 do Acordo TRIPS da OMC Os Membros restringirão as limitações ou exceções aos direitos exclusivos a determinados casos especiais, que não conflitem com a exploração normal da obra e não prejudiquem injustificavelmente os interesses legítimos do titular do direito”. (Grifamos) Até a adoção da regra do Teste dos Três Passos, os Estados-partes da Convenção de Berna adotavam um sem número de limitações aos direitos autorais que, não raramente, esvaziavam os direitos patrimoniais dos titulares de direitos autorais. Um dos objetivos das negociações de Estocolmo foi o de estabelecer uma regra geral que fosse cumprida por toda e qualquer limitação aos direitos autorais, ou seja, os Estados- partes da Convenção de Berna manteriam a discricionariedade para estabelecer exceções aos direitos autorais, entretanto, estas necessariamente deveriam preencher as condições fixadas pelo art. 9.2 da Convenção de Berna. O exame dos anais das negociações de Estocolmo esclarece que o fundamento do Teste dos Três Passos é o de impedir que as obras reproduzidas sob os auspícios das limitações aos direitos autorais entrem em competição, direta ou indireta, com a obra introduzida no mercado diretamente ou com o consentimento do titular de direitos autorais.16 A questão que se insurge é qual seria a razão da transposição/repetição do “Teste dos Três Passos” da Convenção de Berna para o Acordo TRIPS da OMC? Neste sentido, GUIBAULT, Lucie. Discussion paper on the question of exceptions to and limitations on copyright and neighbouring rights in the digital era. “Council of Europe”, outubro de 1998. Disponível em: <http://www.ivir.nl/publications/guibault/final-report.html#note75>. 16 UNCTAD – ICTSD. Resource Book on TRIPS and Development. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. p. 192. 80
No âmbito de Berna, o “Teste dos Três Passos” é aplicável apenas às limitações ao direito de reprodução. O Acordo TRIPS, por sua vez, expande o escopo de aplicação do “Teste dos Três Passos” para todas as limitações aos direitos exclusivos dos titulares de direitos autorais, ou seja, mesmo as limitações explicitamente arroladas na Convenção de Berna – as chamadas exceções jure conventionium – deverão ser avaliadas pelo “Teste dos Três Passos” antes de serem observadas no caso concreto. Conseqüentemente, todas as limitações aos direitos patrimoniais dos titulares de direitos autorais arrolados no Título III, Capítulo III da LDA deverão passar pelo crivo do Teste dos Três Passos antes de sua aplicação. Daí porque, o Brasil, na condição de signatário tanto da Convenção de Berna quanto do Acordo TRIPS, deve pautar a aplicação das limitações (exceções) aos direitos autorais previstas na LDA ao Teste dos Três Passos. Corroborando tal interpretação, podemos identificar o conteúdo do Teste dos Três Passos de modo claro no art. 46, VIII da LDA que dispõe: a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova17 e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores. (Grifamos) A regra do Teste dos Três Passos reflete a necessidade de se manter o equilíbrio entre os direitos dos autores e o interesse do grande público, isto é, interesses relacionados à educação, pesquisa e acesso à informação.18 À luz da Doutrina da Interpretação Consistente, o Teste dos Três Passos é a diretriz que deve ser empregada pelo operador/intérprete/aplicador da LDA para a definição do escopo das limitações e sua aplicação, no caso concreto, a fim de não se causar um prejuízo injustificado aos interesses legítimos dos autores e empresas cujas atuações sejam intimamente dependentes dos direitos autorais e, por último, mas não menos importante, para não se infringir obrigações internacionais assumidas pelo Brasil cujo desrespeito pode sujeitá-lo a retaliações comerciais no âmbito do Sistema da Organização Mundial do Comércio. Neste sentido é o entendimento da OMC, conforme relatório do Painel no caso United States — Section 110(5) of US Copyright Act (DS 160). Detêmo-nos, ainda que em passos largos, na decisão do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC.
17 “A reprodução de pequenos trechos de obras preexistentes, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova” constitui alegadamente um caso especial, nos termos da Convenção de Berna e Acordo TRIPS. 18 GUIBAULT, Lucie. op. cit 81
3.1. Organização Mundial do Comércio e a regra do Teste dos Três Passos – Padrão para a avaliação das limitações/exceções aos direitos dos autores Em 26 de janeiro de 1999, imediatamente após a aprovação pelo Congresso norte-americano da lei Fairness in Music Licensing Act que emenda o US Copyright Act (Lei de Direitos Autorais dos EUA), a Comunidade Européia19 iniciou o processo de consultas com os EUA com a finalidade de discutir a legalidade da referida legislação em face do Acordo TRIPS, notadamente, em relação ao Teste dos Três Passos (art. 13 – referido acima).Pela falta de acordo entre as partes, a Comunidade Européia solicitou à OMC a instauração de Painel especial cuja função foi a de analisar, especificamente, se as exceções aos direitos exclusivos dos autores, previstas na seção 110 (5), alíneas A e B do US Copyright Act, emendada em 1998, estavam em consonância com o art. 13 do Acordo TRIPS. As disposições americanas autorizavam, respectivamente: (i) pequenas empresas locais a transmitirem publicamente, por meio de aparelhos de televisão e rádios, programas, vídeos, musicais, músicas, enfim obras de entretenimento para seus clientes, sem o recolhimento de taxas (“homestyle exception”); (ii) a condução das mesmas atividades por “certas empresas de pequeno porte” (“business exception”). Em junho de 2000, a OMC publicou relatório20 avaliando a demanda proposta pela Comunidade Européia contra os Estados Unidos, baseada na infração do art. 13 do Acordo TRIPS pela seção 110(5) do US Copyright Act. O painel considerou que o Teste dos Três Passos é a norma padrão para avaliação da legalidade das limitações aos direitos autorais fixadas pelos Estados-membros da OMC. Desta forma, considerou infração ao art. 13 do Acordo TRIPS a limitação “business exception”, que eximia do pagamento de taxas de licenciamento os atos de transmissão de obras protegidas em um número relevante de estabelecimentos comerciais. A limitação “homestyle exception”, por sua vez, ao eximir apenas uma parcela comercialmente insignificante de estabelecimentos comerciais, foi considerada legítima.
19 Na linguagem da Organização Mundial do Comércio, a União Européia é designada como Comunidade Européia. 20 O relatório do caso DS 160 está disponível em: <http://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/cases_e/ ds160_e.htm>. 82
Um dos aspectos mais interessantes do relatório do Painel é o reconhecimento de que toda e qualquer exceção/limitação aos direitos autorais para ser legal, no âmbito do sistema internacional de comércio, deverá sempre passar pelo crivo do Teste dos Três Passos, incluindo-se mesmo aquelas exceções previstas textualmente na Convenção de Berna.21 Tendo em vista que esta foi a primeira vez que a regra do Teste dos Três Passos foi avaliada por uma autoridade intergovernamental (OMC), desde o seu estabelecimento em 1967 pela revisão à Convenção de Berna, entendemos que deve ser seguida a interpretação dada pela Organização Mundial do Comércio, no que concerne às limitações/exceções aos direitos autorais.
4. Aplicação das exceções/limitações aos direitos de Autor no âmbito da Internet O US Digital Millenium Copyrigth Act (1998) introduziu uma camada completamente diferente de direitos: direito de acesso. O quê este novo direito implica de mudança na aplicação das exceções aos direitos de autor? O que se entende por justo manuseio da obra de outrem e acesso à obra? Se for possível, desde já, admitir uma premissa fundamental de raciocínio, o fair use reflete um conjunto apropriado de critérios para determinar o equilíbrio entre os direitos dos titulares e as necessidades e interesses do usuário. O fair use é uma limitação aos direitos do Autor, isto é, um teste para determinar se o uso do material protegido por tais direitos, enquanto não-autorizado pelo titular, constitua ou-não ato de violação. O unfair use ou uso não justificado, portanto, é aquele que fere os direitos protegidos pelo direito de Autor. Implica todo uso que não preenche os estágios do three- step test, isto é: (i) não se caracteriza como uso especial/excepcional; (ii) interfere na exploração comercial normal da obra e (iii) causa prejuízo injustificado aos interesses legítimos do titular do direito. Em outras palavras, qualquer uso que venha a reduzir, comprovada e consideravelmente, os benefícios financeiros que o titular do direito poderia “razoavelmente” obter sob circunstâncias comerciais normais seria, então, “injusto”, sem autorização. Certamente, aqui é fundamental verificar o modo pelo qual podem ser mensuradas a “irrazoabilidade” (considerando-se o “prejuízo injustificado”) e a “ingerência” sobre a exploração comercial normal da obra. A questão que se levanta não deve ser apenas se o usuário ganhou “valor” por ter deixado de remunerar o titular do direito pelo uso feito, mas se o usuário teria obtido o material desejado por meio de uma transação comercial qualquer. Não há dúvida de que o Autor tem direito sobre qualquer uso significativo do ponto de vista comercial - uso que normalmente seria objeto de uma transação comercial.
21 OLIVER, Jo. Copyright in the WTO: the panel decision on the three-step test. Nova York: Columbia Journal of Law & the Arts, 2002. 83
Em síntese: A abordagem aqui sugerida tem a vantagem de ser compatível com os tratados internacionais vigentes sobre a matéria de direitos de Autor e com os direitos domésticos que podem ser considerados na vanguarda das questões relacionadas ao direito de Autor e o uso da obra para fins transformativos. Toda vez que um dos steps da regra dos três passos for infringido, não se dirigindo o uso da obra para fins de interesse público,22 estaremos diante de violação aos direitos fundamentais dos autores de auferirem benefícios a partir de seus trabalhos, consoante o disposto no art. 5º, incisos XVII23 e XXIX24, da Constituição Federal, de 1988. São Paulo, dezembro de 2007.
REFERÊNCIAS ABBOT, Frederick; COTTIER, Thomas; GURRY, Francis. The international intellectual property system: commentary and materials: part one. The Hague-Boston: Kluwer Law International, 1999. BASSO, Maristela. O direito internacional da propriedade intelectual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora: 2000. BERGSTÖM, Svante. Report on the Work of Main Committee I (Substantive Provisions of Berne Convention: Articles 1 to 20). In: RECORDS OF THE INTELLECTUAL PROPERTY CONFERENCE OF STOCKHOLM, 1967, June 11 to July 14, 1967. v. 2, p. 291. CORNISH, William, LLEWELYN, David. Intellectual property: patents, copyright, trade marks and allied rights. 5. ed. London: Sweet & Maxwell, 2003. GUIBAULT, Lucie. Discussion paper on the question of exceptions to and limitations on copyright and neighbouring rights in the digital era. In: Council of Europe, 1998, Strasbourg. Disponível em: <http://www.ivir.nl/ publications/guibault/final-report.html#note75>. LADAS, Stephen P. The international protection of literary and artístic 22 Hipóteses que não visam à informação ao consumidor (objetivo político/de interesse público). Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais: I. A reprodução: a) na imprensa diária ou periódica, de notícias ou de artigo informativo, publicado em diários ou periódicos, com a menção do nome do autor, se assinado, e da publicação de onde foram transcritos....”. 23 “Aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras...”. 24 “A lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade de marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos...”. 84
property. New York: The Macmillan Company, 1938. v. 1. OLIVER, Jo. Copyright in the WTO: The Panel Decision on the Three-Step Test. Nova York: Columbia Journal of Law & the Arts, 2002. PRINSSEN, Jolande M. Domestic legal effects of EU criminal law: a transfer of EC law doctrines?In: Conferência “Interface between EU and National Law”, 2006, Amsterdã: Universidade de Amsterdã. Disponível em: <http:// www.jur.uva.nl/interface/object.cfm/objectid=A2F4A779-E278-4FE397EE7C5D1701C657/download=true>. UNCTAD – ICTSD. Resource Book on TRIPS and Development. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.
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LIBERDADE DE EXPRESÃO E DIREITO AUTORAL COMO FUNDAMENTOS DA CULTURA
Por Sérgio
Vieira Branco Júnior
Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro. Professor da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas Ibmec. Professor de direito civil e de propriedade intelectual da graduação e da pós-graduação da FGV Direito Rio (20062013). Procurador-Chefe do ITI- Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (20052006). Coordenador de desenvolvimento acadêmico do programa de pós-graduação da FGV Direito Rio (2005). Advogado associado ao escritório Barbosa, Müssnich & Aragão (1999-2005). Autor dos livros “Direitos Autorais na Internet e o Uso de Obras Alheias”, “O Domínio Público no Direito Autoral Brasileiro - Uma Obra em Domínio Público” e “O que é Creative Commons - Novos Modelos de Direito Autoral em um Mundo Mais Criativo”, entre outras obras. Especialista em propriedade intelectual pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro ? PUC-Rio. Pós-graduado em cinema documentário pela FGV. Graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Advogado no Rio de Janeiro.
1. “O Rio Nu” foi uma revista pioneira no Brasil. Criada em 1898, quando o Rio de Janeiro era ainda capital da república, celebrizou-se pelo seu caráter erótico, voltado para o público masculino. Com ilustrações voluptuosas, versos de duplos sentidos e contos libidinosos, a publicação foi um grande sucesso até o encerramento de suas atividades, em 1916. Seu pioneirismo não se deve, contudo, apenas à lascívia de suas páginas em um momento em que a sociedade brasileira era francamente mais conservadora. O dado mais surpreendente a respeito da publicação talvez seja, na verdade, o modo como seu conteúdo era produzido. Segundo Mary Del Priore, eram os leitores, “no lugar de jornalistas, [que] abasteciam a revista de ‘causos’ recheados de passagens provocantes e títulos que seguiam a mesma linha”1. Também ficavam a cargo dos leitores os concursos de perguntas e respostas formuladas em até oito versos, cabendo ao público elaborar as perguntas em um exemplar e enviar as respostas para divulgação no exemplar seguinte. Além disso, histórias passadas em zonas de prostituição eram redigidas por sua suposta clientela e publicadas na revista. Segundo a autora, não havia jornalistas, e por isso o editor anunciava: “[o] Rio Nu não tem repórter algum nas zonas para dar ou não dar notas nesta seção; todo aquele que se apresentar como tal é um intrujão e deve ser tratado como merece”2. 1 Exemplos de títulos apontados pela autora: “A Mulher de Fogo”, “Faz Tudo...”, “A Pulga”, “Roçando”, “O Consolador”. DEL PRIORE, Mary. Histórias Íntimas - Sexualidade e Erotismo na História do Brasil. São Paulo: ed. Planete, 2011; p. 96. 2 DEL PRIORE, Mary. Histórias Íntimas - Sexualidade e Erotismo na História do Brasil. São Paulo: ed. Planeta, 2011; p. 97. 87
Como se percebe, “O Rio Nu” é um ancestral das publicações colaborativas3. Décadas antes do surgimento da Wikipedia ou do Overmundo, o jornalismo hedonista da belle époque brasileira já anteviu a força da criação coletiva e deu ao leitor um protagonismo que só a cultura digital, um século depois, seria capaz de consolidar. Naturalmente, a ingerência de um editor limitava a atuação do público. Só seria impresso e distribuído aquilo que o corpo editorial da revista entendesse cabível. Essa foi uma das principais características das obras artísticas e da mídia até o final do século XX: sua comunicação em mão única (de um para muitos), assegurada pela dificuldade de acesso aos meios de produção e de distribuição da produção cultural. Havia, portanto, um eixo de decisão, alguém que tinha o poder de terminar o que e quando seria publicado. Uma curadoria, podemos chamar, industrial. Afinal, até o surgimento da internet, um século após a estreia de “O Rio Nu”, apenas quem tivesse elevadas somas de dinheiro teria acesso a condições técnicas adequadas para publicar livros, produzir filmes, gravar músicas. Com o advento do mundo digital, entretanto, foram superados os dois maiores artifícios criados pela indústria cultural até aquele momento e que garantiam sua exclusividade na produção e distribuição de informação e de bens culturais: o obstáculo financeiro, que já mencionamos, e o controle de exemplares. De fato, a indústria cultual foi construída tendo por base um pilar extremamente instável, ainda que essa instabilidade fosse, por décadas, invisível: a ideia de escassez. Durante todo o século XX, época em que floresceram as grandes editoras, gravadoras e produtoras, não se vendiam textos, músicas ou filmes. Vendiam-se exemplares de livros, LPs e CDs, fitas de vídeo e DVDs. Pode parecer que não há diferença na prática, mas a diferença é essencial. Quando a estrutura econômica de um negócio depende de seu suporte físico, quem controla a produção do suporte físico controla o acesso à obra – e pode cobrar por ele. Se uma editora publica mil exemplares de determinado título, a milésima primeira pessoa que tentar comprá-lo não o encontrará disponível e terá que esperar até que a editora (que detém a exclusividade da produção de novos exemplares) decida reimprimir a obra. A revolução digital dos anos 1990 libertou a cultura de seu suporte. Textos, músicas, fotografias e filmes passaram a circular livremente na internet, em pen drives, celulares e em demais suportes tecnológicos. Essa mudança obrigou a indústria cultural a repensar seus modelos de negócio - nada que já não tivesse acontecido algumas vezes antes. Por exemplo, quando foi inventada a imprensa, no século XV. 3 O conteúdo da revista “O Rio Nu” pode ser acessado em http://hemerotecadigital.bn.br/o-rio-nu/706736 88
Apesar das profecias apocalípticas de que a internet poderia causar o fim da produção cultural no mundo, o que se vê, cerca de trinta anos depois de seu surgimento, é exatamente o oposto: uma profusão sem precedente de obras sendo criadas por todas as classes sociais, em todos os formatos, gêneros e suportes, muitas vezes com acesso livre, sem imposição de fronteiras ou número de exemplares. A consequência, nesse caso, é evidente. Os direitos autorais, que até os anos 1990 interessavam apenas aos detentores dos meios de produção cultural (como editoras e gravadoras), passaram a desempenhar um papel central no mundo contemporâneo. Na sociedade em que todos criam, copiam, remixam e distribuem obras intelectuais, passamos a viver um momento sem precedentes em que a democratização do acesso à cultura impõe também o compartilhamento de direito e deveres previstos pela lei brasileira de direitos autorais (lei 9.610/98, doravante “LDA”).
2. Em novembro de 2010, o governo do Estado do Rio de Janeiro comandou a invasão do Morro do Alemão para lá instalar uma UPP - Unidade de Polícia Pacificadora. A ação da polícia foi acompanhada ao vivo pela mídia tradicional, que se empenhou em conferir à ocupação da comunidade detalhes cinematográficos. No entanto, foi um jovem de (então) 17 anos que conseguiu imprimir ao momento um olhar verdadeiramente próximo aos eventos. Morador do Morro do Adeus, Rene Silva usou a rede social Twitter para fazer uma cobertura em tempo real do cerco e da tomada do Morro do Alemão pela polícia. Na época, o perfil @vozdacomunidade (que conta também com a participação de Igor Santos e de Jackson Alves, ainda mais jovens do que Rene) passou de 180 seguidores para mais de 20 mil, em apenas 24 horas4. Seus tuítes ganharam impulso especialmente depois que a autora de novelas Glória Perez e Hugo Gloss, personagem do Twitter, retuitaram posts de Rene. O sucesso foi a consagração de um trabalho que Rene vinha desenvolvendo desde os onze anos. O jornal, que começara como uma publicação escolar de 100 exemplares, já havia elevado essa marca para 5.000 mesmo antes da ocupação. Após novembro de 2010, Rene foi convidado a participar de diversos eventos para contar sua experiência. Deu palestra na Campus Party, em São Paulo, foi a Nova Iorque conversar com jovens comunicadores do Harlem e acabou entrevistado por Regina Casé em seu programa “Esquenta”5. Mais recentemente, o Brasil se viu tomado por uma série de manifestações públicas a que se deu o nome de Jornadas de Junho ou Manifestações dos 20 Centavos. Em síntese, foram protestos que ocorreram em centenas de cida4 Hoje o perfi l conta com mais de 320 mil seguidores. 5 Disponível em http://oglobo.globo.com/rio/a-voz-jovem-conectada-da-comunidade-do-complexo-do-alemao-8365592 89
des brasileiras, ao longo dos meses de junho e julho de 2013, tendo como algumas de suas causas o aumento de tarifas de transportes públicos, a má qualidade de serviços públicos e o gasto excessivo com a Copa do Mundo de futebol e os jogos olímpicos. Durante dias seguidos, a grande imprensa se empenhou em cobrir os protestos com a maior proximidade possível, mas foi constante alvo de ataques, inclusive físicos. Um dos argumentos era que canais dedicados 24 horas à informação não transmitiram qualquer cena ao vivo de um dos maiores protestos em São Paulo, preferindo tratar, no mesmo dia, de protestos ocorridos na Turquia6. Nesse cenário, acabou por ganhar espaço o grupo conhecido como Mídia Ninja (Ninja significa “Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação”). Realizando transmissões ao vivo via streaming, usando câmeras de celular e equipamento improvisado, a Mídia Ninja denunciou abusos por parte da Polícia Militar e alguns de seus integrantes acabaram presos. No dia 18 de junho de 2013, transmitiram a chegada da Tropa de Choque para conter um grupo pequeno que se reunia para marchar em direção à Avenida Paulista. Conta Bruno Torturra, um dos idealizadores da Mídia Ninja7: Não foi a primeira transmissão ao vivo da Mídia Ninja. E nem de longe a primeira de Carioca. Ele era o principal responsável por colocar a PósTv no ar todos os dias. Não imagino alguém que tenha acompanhado e produzido mais horas de streaming no Brasil. Mas foi a primeira vez que transmitimos a ação da polícia contra manifestantes. E não só isso: éramos os únicos jornalistas em tempo real cobrindo os desdobramentos dos protestos em São Paulo. Menos de 24 horas depois do enorme levante. Depois dos protestos, Bruno Torturra e Pablo Capilé, dois dos principais nomes na Mídia Ninja, foram convidados a participar de um dos mais prestigiados programas de entrevistas no Brasil, o Roda Viva8. Os exemplos da Voz da Comunidade e da Mídia Ninja são eloquentes. Sabemos que a Constituição Federal garante, em seu art. 5°9, a liberdade de expressão. Contudo, sabemos também, o grande desafio não é garantir a previsão legal dos direitos, mas sim sua eficácia social. Daí a importância da tecnologia, que torna viável a expressão pelos integrantes da periferia10. Evoluímos para um mundo em que a comunicação não 6 Disponível em http://www.cartacapital.com.br/blogs/midiatico/protestos-em-sp-sao-ignorados-por-canais-de-noticia-a-cabo-7034. html 7 Olho da Rua. Revista Piauí, n. 87, p. 28. 8 A íntegra da entrevista se encontra em https://www.youtube.com/watch?v=kmvgDn-lpNQ 9 Constituição Federal, art. 5°: IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; (...) IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; (...) 10 Não se usa aqui “periferia” com significado apenas geográfico ou socioeconômico. Trata-se também de periferia cultural, marginal, cujos 90
existe mais no sentido de um para muitos - mas sim de muitos para muitos. Não estamos mais sujeitos à interpretação centralizadora dos fatos, fornecida por quem há tanto tempo detém o controle dos meios (tradicionais) de comunicação. Jornalismo amador, feito por jovens munidos apenas de celulares e, ainda assim, atingindo milhares de pessoas seria algo inconcebível mesmo pelos mais liberais editores de “O Rio Nu”. Mas é a potencialidade do tempo presente11. A importância da tecnologia para assegurar maior amplitude ao direito constitucional da liberdade de expressão não se limita à atuação jornalística. Também as criações estéticas (músicas, obras audiovisuais, textos) foram profundamente influenciadas pela apropriação da tecnologia pelas periferias globais. Um último exemplo merece ser citado. No final de 2013 e no início de 2014, algumas cidades do Brasil testemunharam um fenômeno que ganhou as páginas dos jornais. Centenas ou milhares de jovens, em sua maioria moradores das periferias, marcavam encontros por meio de redes sociais para fazer visitas coordenadas a shopping centers. A esses encontros foi dado o nome de rolezinho. No Rio de Janeiro, um rolezinho marcado para acontecer no dia 19 de janeiro (com a confirmação no Facebook de participação de 9 mil pessoas) levou a direção do Shopping Leblon, um dos mais sofisticados da cidade, a optar por não abrir suas portas. Os rolezinhos foram amplamente discutidos pela imprensa e por intelectuais que se dividiam entre condenar os eventos ou dar apoio a eles. E para quem achava estar diante de mais uma controvertida novidade, fruto de um ano particularmente profícuo em controvérsias, o Youtube permitiu acesso amplo a “Hiato”12, um interessante curta-metragem documentário de 2008. “Hiato” mostra a ocupação, em 2000, do shopping Rio Sul, no Rio de Janeiro, em um episódio que pode ser considerado um precursor dos rolezinhos. Contando com o depoimento de participantes da visita, foram usadas imagens captadas por eles próprios, o que só foi possível por causa da tecnologia disponível já à época. Apesar das qualidades inegáveis do curta documentário, seu sucesso na rede foi certamente impulsionado pelo calor dos eventos do início de 2014. Hoje, “Hiato” conta com mais de 160 mil visualizações no Youtube.
agentes se encontram fora dos meios tradicionais (e consagrados) de comunicação. 11 Não que a situação seja ideal. O Brasil ainda tem um número bastante elevado de ataques à liberdade de expressão. Segundo matéria do website Consultor Jurídico, um relatório produzido pela ONG Artigo 19 aponta que, no ano passado, comunicadores em geral e defensores de direitos humanos foram alvo de 45 violações graves contra a liberdade de expressão no país. Disponível em http://www.conjur.com.br/2014-mai-02/ brasil-registrou-45-ataques-liberdade-expressao-2013 12 https://www.youtube.com/watch?v=UHJmUPeDYdg 91
3. De acordo com relatório da Ancine - Agência Nacional de Cinema13, em 2015 foram lançados no Brasil 129 longas-metragens brasileiros. Desse total, apenas 44 filmes tiveram público superior a 10.000 espectadores. Com o número de visualizações de “Hiato” convertido em espectadores, o vídeo teria ficado com uma honrosa 15a posição. Esse raciocínio é simplista, sabemos. Não se pode comparar os acessos do Youtube com os espectadores pagantes de filmes exibidos nos cinemas. Ainda mais porque “Hiato” é um curta de aproximadamente 20 minutos, enquanto a lista da Ancine contempla apenas os filmes de formato longo. Mesmo assim, uma lição é incontornável: as redes construídas na internet satisfazem a demanda de acesso que os meios de comunicação tradicionais não são capazes de suprir. Vejamos um outro exemplo de 2015. O filme “Cativas – Presas Pelo Coração” aparece no relatório da Ancine com público de 1.999 pessoas. Mas o upload do filme no Youtube já gerou quase 16.000 acessos, cerca de 8 vezes o total de espectadores nos cinemas. Estamos evidentemente diante de um problema de distribuição. Se é certo que nem todo filme tem fôlego para ser blockbuster, por outro lado seu público potencial é muito maior do que fazem crer as minguadas salas cinematográficas em que costumam estrear. Daí a importância de canais alternativos que só a tecnologia pode oferecer. Há anos alguns projetos vêm desempenhando papel fundamental na tentativa de suprir a vacância de espaços para distribuição e acesso da produção audiovisual alternativa. O Festival Visões Periféricas é um dos melhores exemplos desse gênero de iniciativa14. Em 2016, o festival chegou a sua décima edição, dedicada a promover a produção de vídeos independentes. Com propósito semelhante, a Mostra do Filme Livre acontece há 15 anos no Centro Cultural do Banco do Brasil. A mostra apresenta centenas de filmes nacionais de todos os formatos, gêneros e durações.
13 Disponível em http://oca.ancine.gov.br/sites/default/files/cinema/pdf/anuario_2015.pdf 14 http://imaginariodigital.org.br/visoes-perifericas 92
Ainda que louváveis e fundamentais para a discussão do audiovisual, festivais e mostras são paliativos sazonais, que desafogam o mercado e permitem acesso às obras selecionadas por tempo limitado. A busca por soluções precisa também ser tão diversificada quanto a produção cultural carioca. Há cerca de quatro anos, foi criado no Rio de Janeiro o Canal Cultural O Cubo, rede independente de distribuição de vídeos licenciados em Creative Commons15. Seu objetivo é exatamente se valer da tecnologia disponível para distribuir obras audiovisuais que não teriam inserção no mercado formal de distribuição. Apesar de trabalharem em grande parte com curtas-metragens, seus idealizadores consideram muito bem sucedida sua experiência com a produção e distribuição de um longa. “Eu Te Amo Renato”, filme de Fabiano Cafure, foi concebido para ser o primeiro longa-metragem distribuído diretamente na internet, sem exibição comercial nos cinemas16. Consideradas suas duas principais plataformas de distribuição, Youtube e Vimeo, a obra conta com mais de 580.000 acessos17. De modo a diversificar ainda mais os mecanismos de acesso, o Instituto Kreatori, responsável pelo canal O Cubo, contou com o patrocínio do Centro Cultural da Justiça Federal para promover o Festival O Cubo de Cinema, evento presencial que existe desde 2014.
4. Encontrar novos rumos para dar vazão aos produtos culturais nem sempre significa estar a salvo de problemas. O caso de Stephanie Lenz se tornou paradigmático18. A dona de casa norte-americana gravou seu filho Holden, então com um ano e meio de idade, dançando graciosamente ao som da música “Let’s Go Crazy”, do Prince. O vídeo de 30 segundos foi parar no Youtube e Stephanie foi processada pela Universal, detentora dos direitos autorais da música, e ameaçada a pagar 150 mil dólares de indenização por uso não autorizado da obra musical. Apesar de a internet já existir comercialmente há cerca de 25 anos, a indústria cultural tradicional, que aprendeu a se sustentar economicamente com base na escassez de cópias e em seu poder econômico, subitamente se viu sem rumo, rodeada de incertezas. Isso acabou, na maioria das vezes, acarretando um recrudescimento das regras de mercado, na tentativa de se simular em meio digital os princípios vigentes para o mundo físico. Durante a produção de “Eu Te Amo Renato”, seus produtores se viram às voltas com discussão ainda mais complexa do que os mecanismos de distribuição da obra, uma vez concluída.
15 Sobre as licenças públicas Creative Commons, ver “O Que é Creative Commons?”, disponível em http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/ handle/10438/11461 16 Como foi o caso de “Cafuné”, de Bruno Vianna, lançado em 2006 nos cinemas e, no mesmo dia, na internet. 17 Contabilizados, contudo, todos os links disponíveis na internet, o filme já tem mais de um milhão de visualizações. 18 O caso foi discutido por Lawrence Lessig em sua obra Remix. LESSIG, Lawrence. Remix. New York: The Penguin Press, 2008. 93
A história do filme presta uma homenagem a Renato Russo. Tendo por pano de fundo uma cidade do interior fluminense nos anos 1990, o romance adolescente busca inspiração nas canções do músico brasiliense, morto em 1996. De modo a dar veracidade ao enredo, inserir trechos das canções de Renato Russo seria uma necessidade estética. Mas será que a LDA permite o uso de músicas sem autorização? No momento em que uma pessoa escreve um conto, compõe uma música ou grava um vídeo, nascem para seu autor dois feixes de direitos autorais, que se complementam: os direitos morais e os direitos patrimoniais. Os primeiros, direitos não econômicos e que, por isso, não podem ser transferidos a terceiros, vinculam a pessoa do autor à obra criada. O mais significativo dos direitos morais é justamente o direito de paternidade. Isso significa que todo autor tem direito de ter seu nome vinculado à obra por ele criada, mesmo depois de morto. Já os direitos patrimoniais são aqueles que dizem respeito à exploração econômica da criação intelectual. Nos termos do art. 29 da LDA, depende de prévia e expressa autorização do autor (a rigor, do titular do direito patrimonial, já que este pode ser transferido a terceiro) praticamente qualquer uso que se pretenda fazer de sua obra. Assim, a publicação de um texto, o uso de uma canção na trilha sonora de um filme ou a divulgação de um vídeo no Youtube dependem sempre da autorização inequívoca daquele que tiver o poder para autorizar tal uso (originariamente, essa autorização competirá sempre ao autor). É fundamental observarmos que apesar dos termos restritivos da LDA, existe previsão legal (na mesma lei, a propósito) para se autorizar o uso de obra alheia ainda que sem autorização. São as chamadas limitações aos direitos autorais. O que a LDA pretende, com a previsão de limitações e exceções, é possibilitar, dentro de determinados parâmetros, o uso de obras de terceiros sem que haja necessidade da autorização prévia e expressa. No entanto, na maioria dos casos, as limitações e exceções são insuficientes para garantir acesso ao conhecimento e difusão da cultura. Na verdade, a LDA vem sendo apontada, consistentemente, como uma das piores leis de direitos autorais do mundo19. Organismos internacionais criticam o fato de as obras protegidas não poderem, na maioria dos casos, ser usadas com fins didáticos. Além disso, as obras protegidas não podem, em interpretação mais conservadora da lei, ser copiadas integralmente de um dispositivo para outro (de um LP para um CD, por exemplo) nem mesmo para o caso de preservação da obra. Além disso, e entre muitos outros exemplos que poderíamos citar, a lei não permite expressamente o uso de obras protegidas por direitos autorais em atividades educacionais (exceto a execução musical e encenação de peças de teatro em estabelecimento de ensino).
19 Por exemplo: http://www.consumersinternational.org/news-and-media/news/2011/04/brazil,-egypt-and-uk-among-worst-copyright-regimes-in-the-world/ 94
Vejamos o que prevê o art. 46 da LDA a respeito do uso de obras de terceiros em obras próprias: Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais: […] III - a citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra; […] VIII - a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores. Ora, quando a lei afirma que “não constitui ofensa aos direitos autorais” significa que tal uso encontra-se permitido ao usuário da obra. No que diz respeito à utilização de obras alheias em obras audiovisuais, podemos analisar sobretudo os dois incisos acima transcritos. O inciso III garante o chamado direito de citação. Tal direito confere ao usuário a possibilidade de, em obra própria, mencionar trecho de obra alheia. Quem estuda Direito sabe que os livros jurídicos são repletos de citações de terceiros. É muito comum um autor, ao tratar de determinado assunto, valer-se de trechos de obras de terceiros para lhe servir de respaldo ou de contraponto. Autores de textos jurídicos sempre buscam terceiros cujas obras vão servir para reforçar suas ideias ou para contrapô-las. Mesmo este texto contém notas de rodapé onde se podem ler referências a outros autores. Isso não é plágio, isso é direito de citação, garantido pela LDA. Certamente, em muitas outras carreiras (senão em todas) é extremamente comum haver citações a obras alheias em trabalhos científicos. Assim deve se dar com livros que tratam de cinema, de engenharia, de comunicação ou de medicina. No entanto, não apenas em livros técnicos o direito de citação é encontrado. É extremamente comum haver, em livros de literatura, epígrafes que transcrevem textos de obras alheias. Além disso, diversos são os manuais que se dedicam à análise literária por meio da transcrição de trechos de obras de terceiros, valendo-se do direito de citação20. O direito de citação em livros não é contestado pelo mercado. Dificilmente, alguém será contrário à prática desse direito. É importante percebermos que a LDA não veda o uso comercial da obra nova, aquela que se vale da citação de obras alheias.
20 Ver, entre outros, Para Ler como um Escritor – Um Guia para quem Gosta de Livros e para quem Quer Escrevê-los, de Francine Prose. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. 95
O inciso VIII, por sua vez, autoriza o uso de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou mesmo da obra integral, se se tratar de obra de artes plásticas. Desde que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova (ou seja, no nosso exemplo, que usar a música não seja o objetivo principal do filme), que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida (música é normalmente explorada pela venda do suporte – CD por exemplo – ou mesmo pelo acesso à faixa gravada, como pelo iTunes ou, ainda, pelo ingresso em shows) nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores (que precisam ser analisados em cada caso)21. O que parece evidente na teoria pode encontrar bastante resistência na prática. Recentemente, foi julgado no Rio de Janeiro um dos casos mais relevantes relacionados à produção audiovisual e à limitação de direitos autorais. O cineasta Nelson Hoineff dirigiu, em 2009, o documentário “Alô, Alô, Terezinha” em homenagem ao falecido apresentador de televisão Abelardo Barbosa, também conhecido como Chacrinha. Quem teve a oportunidade de assistir aos lendários programas do Chacrinha nos anos 1970 e 1980 sabe ser impossível fazer um filme sobre ele sem que haja citações aos números musicais, sua principal atração. Nelson Hoineff decidiu se valer da limitação constante do art. 46, VIII, da LDA, uma vez que o contato com as gravadoras titulares de direitos autorais sobre as obras musicais se mostrou infrutífero. Apesar de ele entender que poderia usar as músicas sem pagar nada (pois a lei autorizava), as editoras musicais demandavam um valor tão alto pelo licenciamento das músicas que consumiria boa parte do orçamento do longa-metragem. Uma vez usados pequenos trechos de músicas, cumprindo – no seu entender – os requisitos da previsão legal, Hoineff teve o uso das músicas contestado pelas editoras musicais, que o ameaçaram com demandas judiciais. O fato é curioso. Não há notícias de pedido, até hoje, de pagamento pela liberação do uso de um parágrafo de texto para citação em outro livro. Por qual motivo, sendo a lei uma só, aplicável a qualquer mídia ou obra intelectual, deveria ser interpretada diferentemente quando estamos diante de obras audiovisuais ou musicais? Hoineff optou por uma estratégia legal habilidosa: por meio de uma ação declaratória, pediu ao juiz que determinasse que o uso das músicas “Gente Humilde” e “Bastidores”, ambas de Chico Buarque, em seu filme estava de acordo com o previsto em lei. O primeiro juiz a julgar decidiu contrariamente a Nelson. Alegou que a obra audiovisual tinha fins lucrativos, o que tornaria inviável o uso não remunerado da obra.
21 Eliane Abrão, por exemplo, comenta que “se o autor ou titular entender prejudicial aos seus legítimos interesses terá que prová-los (o uso de pequenos trechos difi cilmente prejudica a exploração normal da obra)”. ABRÃO, Eliane Y. Direitos de Autor e Direitos Conexos. São Paulo: Editora do Brasil, 2002; p. 152. 96
Veja-se o que diz a lei, contudo. Não existe, nem no inciso III, nem no inciso VIII, qualquer vedação ao fim comercial. Quando a lei tem por objetivo impedir a exploração comercial da obra que se vale de outra, alheia, a lei prevê a proibição expressamente22. Apreciando recurso do diretor, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro entendeu que Hoineff estava correto. Apesar de a LDA não mensurar o que vem a ser “pequeno trecho”, entendeu-se que o uso das músicas nos documentários cumpria com o requisito legal, e que a exploração econômica do filme longametragem não seria um obstáculo ao uso de pequenos trechos das músicas sem prévia e expressa autorização. A decisão é muito importante. No mar de incerteza a que os produtores culturais são submetidos, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro indicou um norte. Apesar de essa decisão não ser vinculante (ou seja, outros juízes não precisam necessariamente segui-la), é possível apontá-la como um bom precedente. Com a explosão de meios de produzir obras culturais e novos canais de distribuição, é fundamental que as garantias legais sejam respeitadas para que todo o potencial criativo tenha meios seguros de se expressar.
5.
O que testemunhamos hoje é uma nova maneira de fazer cultura, quase sempre valendo-se das possibilidades dos meios digitais. A internet permite a todos que se expressem em diversas mídias e plataformas, tornando autores quem quer que esteja conectado à rede. Somos todos fotógrafos, escritores, músicos, cineastas. Como lembra Hermano Vianna, talvez esses novos artistas não façam Arte com “A” maiúsculo, mas se a finalidade da vida (citando Freud) “é ‘a busca da felicidade’, (...) hoje há mais gente feliz, ‘brincando’ de ser artista, como faziam seus antepassados em outras brincadeiras que ficaram conhecidas como folclore e onde, geralmente, não havia diferença entre quem estava no palco e na plateia”23.
22 Por exemplo, determina o art. 46 da LDA: Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais: (...) II - a reprodução, em um só exemplar de pequenos trechos, para uso privado do copista, desde que feita por este, sem intuito de lucro; (...) VI - a representação teatral e a execução musical, quando realizadas no recesso familiar ou, para fi ns exclusivamente didáticos, nos estabelecimentos de ensino, não havendo em qualquer caso intuito de lucro; (...) 23 Disponível em http://hermanovianna.wordpress.com/ 97
Claro que nem todo mundo pensa assim. Andrew Keen, um polemista contrário à cultura de massa proporcionada pela internet se opõe tanto ao jornalismo colaborativo quanto à nova produção artística que se encontra por todo lado na internet. Em seu livro, “O Culto do Amador” (que tem o pretensioso subtítulo “como blogs, MySpace, Youtube e a pirataria digital estão destruindo nossa economia, nossa cultura e valores”), aponta os seguinte argumentos24: Lemann, da The New York Times, salienta que “a sociedade cria estruturas de autoridade para produzir e distribuir conhecimento, informação e opinião. Para quê? Para que saibamos que podemos confiar naquilo que lemos. Quando um artigo se apresenta sob a bandeira de um jornal respeitado, sabemos que foi examinado por uma equipe de editores tarimbados e com anos de aprendizado, confiado a um repórter qualificado, pesquisado, verificado, editado, revisto e apoiado por uma organização de notícias fidedigna que dá testemunho de sua veracidade e precisão. Se esses filtros desaparecem, nós, o público geral, ficamos diante da tarefa impossível de esquadrinhar e avaliar um mar interminável de conjecturas confusas de amadores. O argumento é parcialmente equivocado. Todo mundo se lembra do escândalo, ocorrido em 1994, que ficou conhecido como Escola Base, no qual professores de uma escola infantil foram acusados de pedofilia e tiveram sua vida arruinada por sucessivas e intermináveis matérias jornalísticas que vieram a se mostrar falsas. Existem também vários exemplos de livros didáticos com erros grosseiros, apesar de publicados por editoras tradicionais, escritos por especialistas25. Aliás, em um estudo hoje já antigo, e em sentido oposto àquilo que se poderia imaginar, a Revista Nature apontava que a Wikipedia, construída colaborativamente, era tão precisa quanto a Enciclopédia Britannica26. O aspecto em que se mostra necessário dar razão a Andrew Keen é que um intermediário é indispensável para orientar o leitor no meio de tantas possibilidades acessíveis na rede. Ocorre que, hoje, esse intermediário não é mais aquele que tradicionalmente produzia a notícia e a divulgava. Rene Silva e Mídia Ninja estão aí para desafiar todo o sistema informacional detido pelos grandes conglomerados de comunicação. O intermediário verdadeiramente importante é aquele que goza de credibilidade, quer seja um jornalista, quer seja um amador. E para desespero de autores reacionários como Keen, muitas vezes o intermediário mais confiável hoje em dia é exatamente alguém longe dos grandes meios de comunicação. Quanto à produção cultural, destacamos um dos inúmeros trechos que poderiam expor a tese do autor americano27:
24 KEEN, Andrew. O Culto do Amador: como blogs, MySpace, Youtube e a pirataria digital estão destruindo nossa economia, nossa cultura e valores. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009; p. 54 25 Exemplos de erros encontrados em livros de Biologia, apontados pelo CRM da Paraíba: http://www.crmpb.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=20991:&catid=3 26 Disponível em http://www.nature.com/nature/journal/v438/n7070/full/438900a.html 27 KEEN, Andrew. O Culto do Amador: como blogs, MySpace, Youtube e a pirataria digital estão destruindo nossa economia, nossa cultura e valores. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009; pp. 59-60. 98
Sendo eu mesmo um fã de música profundamente desprovido de musicalidade, certamente não consigo imaginar Johan Sebastian Bach lançando uma versão tosca de seus Concertos para Brandenburgo para ser remixada ou recombinada por seu público. Ou Mozart deixando seus ouvintes reescreverem suas óperas e seus concertos. Você consegue imaginar Bob Dylan lançando um Blood on the Tracks interativo que pudesse ser rearranjado para soar do seu jeito? E como todas essas remixagens e combinações terminam no Youtube, como tem ocorrido com a maior parte delas ultimamente, somo nós que temos de enfrentar a tarefa de assistir de cabo a rabo esses milhões de esforços para descobrir aqueles raros que valem a pena. Bom mesmo que essas remixagens acabem na internet. Assim, podemos ouvir o trabalho do carioca João Brasil, reinventando a 5ª Sinfonia de Beethoven em mash up com a Batucada Dalai Lata, resultando na 5ª Batucada28. João Brasil é um dos maiores talentos brasileiros na arte de combinar músicas, tendo desenvolvido projetos interessantíssimos como 365 mash ups29, em que Dorival Caymmi, Gilberto Gil, Tom Jobim, The Beatles e Miles Davis, entre muitos outros, são remixados a Rita Lee, Village People, Banda Calypso e até a vinheta do Fantástico. Diante do argumento elitista e impreciso de Andrew Keen (como garantir que Mozart, um produto do século XVIII, poderia ser tão restritivo hoje com suas obras?), a melhor resposta é apenas uma: apesar de canônico, ninguém é obrigado a gostar de Beethoven, ou de gostar mais de Beethoven em sua versão original. A despeito de tanta criatividade, vivemos também tempos de incerteza. O direito autoral é um ramo razoavelmente recente dentro da ciência jurídica. Forjado entre os séculos XVIII e XIX, consolidou-se no século XX, valendo-se de modelos de negócio que dependiam da materialidade do suporte (como livros em papel, fitas de VHS e fitas K7, entre outros). Com o advento da internet e da cultura digital, as certezas foram abaladas, os intermediários tornaram-se muitas vezes dispensáveis e agora a indústria cultural precisa se reinventar para sobreviver. Não é a primeira vez que isso acontece e provavelmente também não será a última. A parte boa dessa história é que os direitos autorais passaram a ser debatidos por toda a sociedade, já que o tema agora interessa a todos. Nos últimos anos, inúmeras foram as obras publicadas por professores dedicados a repensar a matéria sem se prender a dogmas e sem reproduzir o discurso que hoje repercute anacrônico e inadequado aos tempos em que vivemos. Se ainda não sabemos como o futuro vai ser, temos alguns indícios de como não vai ser: certamente as caríssimas formas de produção e de circulação de bens culturais que hoje ainda sobrevivem não serão maioria no futuro. Uma das grandes revoluções recentes é a possibilidade de usar a tecnologia para financiar projetos culturais. Longe das complicadas e burocráticas leis de incentivo à cultura, os sites de crowdfunding vêm se consolidando como 28 https://soundcloud.com/joaobrasil/5th-batucada-jo-o-brasil 29 http://365mashups.wordpress.com 99
uma alternativa viável para dar vida a projetos que dependem de algum tipo de investimento. Sites como Queremos30, Catarse31 e Benfeitoria32 são os similares nacionais ao grande sucesso norte-americano Kickstarter33, que só em 2013 ajudou a viabilizar projetos no valor total de 480 milhões de dólares, em quase 20 mil projetos financiados. A tecnologia promete incluir cada vez mais seres humanos na produção cultural. Pessoas contando suas próprias histórias, comungando aquilo que faz sentido em suas vidas. Se por um lado os índices de audiência das novelas da Globo são consistentemente mais exíguos34, por outro lado os potenciais espectadores de outrora estão dedicados a produzir e distribuir sua própria arte, com os assuntos mais variados, desde videogames (como o Arthur Protásio, que mantém o canal Ludo Bardo35) até arte de vanguarda preocupada com o espaço urbano (como o Coletivo Opavivará36). É a tecnologia que concretiza, mais do que nunca, o direito constitucional à liberdade de expressão. E é a tecnologia que coloca os direitos autorais no centro do mundo cultural em que vivemos. Por isso é tão importante o debate de uma lei de direitos autorais mais flexível, que permita o uso mais equilibrado de obras protegidas, como aquele destinado a fins didáticos ou para obras derivadas. Somente assim o direito autoral estará adequado para cumprir sua função social, promotora de um mundo mais criativo, que é seu destino no tempo presente.
30 http://www.queremos.com.br/ 31 http://catarse.me/pt 32 http://benfeitoria.com/ 33 https://www.kickstarter.com/ 34 Por exemplo: http://acritica.uol.com.br/buzz/manaus-amazonas-amazonia-Rede-Globo-enfrenta-crise-audiencia-baixa-novela-Em_ Familia-berlinda-Manoel_Carlos_0_1128487153.html 35 https://www.youtube.com/user/VagrantBard 36 http://www.opavivara.com.br 100
CRIAÇÃO DE MÚSICA ELETRÔNICA TEM REGRAS CONTRA VIOLAÇÕES DE DIREITOS AUTORAIS
Por Guilherme
Carboni
Doutor e Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Possui PósDoutorado pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, financiado pela FAPESP. É professor da pós-graduação em Direito na FGV-SP (GVLaw). Foi consultor da UNESCO para assuntos relativos a direitos autorais e bibliotecas digitais e coordenador da Comissão de Direitos Autorais da ABPI. É autor de livros e artigos na área da Propriedade Intelectual e advogado em São Paulo. As possibilidades da tecnologia digital nos processos de criação de música eletrônica muitas vezes esbarram em questões de direitos autorais. A nossa legislação de direito autoral (Lei 9.610/98) ainda tem um perfil “analógico”, pois muitos dos recursos das tecnologias digitais utilizados nos processos criativos não são por ela reconhecidos, especialmente com relação ao uso de músicas de outras pessoas, tão comum nos dias de hoje. Além do trabalho de pesquisa musical, os DJs se valem da técnica da mixagem em suas apresentações. Mixar significa misturar, mesclar a música que está tocando com a música que será tocada a seguir da forma mais suave e imperceptível possível, como se fossem uma única música. O processo de mixagem envolve a sincronização do tempo (BPM) e, em alguns casos, a adequação da harmonia da música anterior à da música seguinte. Com as possibilidades da discotecagem digital, além da mixagem, é possível utilizar efeitos, bem como recortar, modificar e introduzir trechos de outras músicas, samples e instrumentos virtuais nas músicas que estão sendo tocadas ao vivo. Todos esses recursos alteram a música que está sendo tocada com relação à forma como foi gravada. O remix é uma nova roupagem que se dá à música, por meio da modificação de aspectos do seu arranjo, como, por exemplo, a retirada de alguns instrumentos, a introdução de outros e a repetição ou remoção de determinado trecho. Já o mashup é a criação de uma nova música formada pela junção de outras. Uma regra fundamental do direito autoral é a de que a utilização de qualquer obra, seja na sua forma original ou com modificações, depende de expressa autorização do autor. No caso da fixação da música em suporte (gravação) ou no processo de sincronização em outra obra (como no audiovisual ou em games, por exemplo), essa regra é conhecida como direito de reprodução.
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Por se tratar de uma apresentação ao vivo (que não envolve a fixação, gravação ou sincronização das músicas que estão sendo tocadas), a utilização dos recursos à disposição do DJ durante sua execução, bem como a realização de remixes e mashups ao vivo, não depende de autorização dos titulares de direitos autorais das músicas executadas. Trata-se, aqui, da mesma liberdade que tem um cantor ou banda de fazer a versão que quiser de uma música de outra pessoa durante uma apresentação ao vivo. Portanto, não há necessidade de autorização para o DJ executar suas músicas ao vivo, ainda que tais músicas sejam alteradas durante a sua execução com a utilização dos recursos técnicos de que ele hoje dispõe. No que se refere à gravação de remixes e mashups por produtores de música eletrônica, independentemente do fato de eles virem ou não a ser comercializados, a situação é diferente daquela dos DJs que os executam ao vivo. Isso porque a gravação envolve a reprodução da música em um determinado suporte, seja ele físico ou digital. Portanto, a autorização dos detentores dos direitos autorais sobre as músicas que serviram de base para os remixes e mashups é de fundamental importância para evitar problemas. Caso os remixes e mashups venham a ser gravados sem autorização, seus criadores poderão sofrer ações judiciais por parte dos detentores dos direitos autorais sobre as músicas neles utilizadas. Uma questão importante diz respeito à utilização de trechos de outras músicas na produção de música eletrônica. Nessa situação, aplica-se a regra geral, já mencionada, de que a autorização é necessária para qualquer utilização de obras de terceiros. Entretanto, a Lei 9.610/98 estabelece algumas limitações aos direitos autorais, que são as hipóteses em que o uso de uma obra é livre, sem necessidade de autorização dos seus titulares. Uma dessas hipóteses é a “reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza”, desde que “a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores” (art. 46, inciso VIII). Isso significa que a lei permite a reprodução de pequenos trechos de músicas na elaboração de uma música nova. A questão é saber o que se entende por “pequeno trecho”, uma vez que a lei não traz essa explicação, cabendo interpretá-la com base no bom senso. Obviamente, a reprodução de cinquenta por cento de uma obra não caracterizaria um “pequeno trecho”. Apesar de a quantificação não ser a melhor forma de interpretar a extensão desse conceito, uma reprodução de, por exemplo, cinco por cento da obra poderia ser caracterizada como “pequeno trecho”, se não vier a causar prejuízo aos detentores dos direitos autorais sobre as músicas reproduzidas. 104
Dessa forma, é importante saber o tamanho da obra reproduzida para que se possa verificar se a reprodução pode ou não ser caracterizada como “pequeno trecho”, de forma a ser utilizada sem necessidade de autorização. Se a música tem três minutos, é bastante plausível o entendimento de que a utilização de alguns segundos dessa música caracterizaria um “pequeno trecho” nos termos da lei. Paralelamente ao direito de reprodução, há o direito de execução pública, que garante aos titulares dos direitos autorais o recebimento pela música executada em locais de frequência coletiva, desde que filiados a uma associação de gestão coletiva musical. Segundo a Lei 9.610/98, os pagamentos são devidos pelos estabelecimentos em que a música é executada e são recolhidos pelo ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), para repasse aos titulares de direitos autorais por intermédio das associações às quais estão filiados. No caso da música eletrônica, é importante verificar a autoria das músicas tocadas em clubes e casas noturnas para saber se há ou não necessidade de pagamento ao ECAD. Se as músicas são de autoria do próprio DJ (que as gravou previamente para sua apresentação ou fez sua performance improvisando e criando as músicas ao vivo, por meio do processo conhecido como live PA), não há que se falar em recolhimento de direitos autorais dos clubes e casas noturnas pelo ECAD. Por outro lado, é devido o recolhimento por parte do ECAD, se o DJ executa músicas que não são de sua autoria e desde que tais músicas tenham sido previamente gravadas e lançadas no mercado sob um ISRC (International Standard Recording Code ou Código Internacional de Normatização de Gravações), que é um código-padrão internacional de gravação e funciona como um identificador básico das gravações fonográficas, obtido por meio de solicitação à associação à qual o titular dos direitos autorais é filiado. Devido às variáveis nos processos de criação e execução de música eletrônica, a questão do recolhimento pela execução pública por parte do ECAD ainda é bastante discutível, sendo necessário um aprofundamento do debate em torno do assunto para que não haja dúvidas sobre os possíveis caminhos relativos à execução pública de música eletrônica. É também importante que todos estejam atentos à dinâmica dos processos criativos de música eletrônica, para que não haja violação de direitos autorais de outras pessoas na criação de uma música nova.
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JURISPRUDÃ&#x160;NCIA NACIONAL
Textos literários e científicos “APELAÇÃO. DIREITO AUTORAL. ALEGADO EXCESSO DE CITAÇÕES DESAUTORIZADAS A OBRA DE TERCEIRO. CARÁTER COMPROVADAMENTE ACESSÓRIO: LICITUDE. LEI 9.610/98. INTELIGÊNCIA. VIOLAÇÃO DE DIREITO AUTORAL: INOCORRÊNCIA. CIVIL. CONSTITUCIONAL. BIOGRAFIA NÃO AUTORIZADA: JOÃO GUIMARÃES ROSA. LICEIDADE. BALIZAS DOUTRINÁRIAS. DANOS À IMAGEM DO BIOGRAFADO: MANIFESTA INEXISTÊNCIA. PECULIARIDADE À LATERE: VIDA PRIVADA INTOCADA. VAZIA INTENÇÃO DE CALAR MERAS OPINIÕES, SEQUER DIFAMATÓRIAS, COM O NÍTIDO FIM DE MONOPOLIZÁ-LAS. LIBERDADES DE EXPRESSÃO E DE PENSAMENTO. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. I) DIREITO AUTORAL. DANOS PATRIMONIAIS. SUPOSTO EXCESSO DE CITAÇÕES LEGÍTIMAS A OBRA DA FILHA DE GUIMARÃES ROSA. INOCORRÊNCIA. Conquanto dependa de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como a reprodução parcial ou integral (art. 29, I, Lei 9.610/98), é certo que não constitui ofensa aos direitos autorais a citação em livros de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra (art. 46, III), bem como a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores (art. 46, VIII), hipóteses que bem contemplam o caso dos autos. Laudo pericial categórico em atestar o nítido cunho acessório e, portanto, lícito das citações realizadas, ao assinalar que a obra de Alaor Barbosa, Sinfonia Minas Gerais, se sustenta e é útil ao conhecimento da vida do biografado e também como obra literária mesmo sem as referências à obra de Vilma Guimarães Rosa. II) DIREITO CIVIL-CONSTITUCIONAL. DANOS MORAIS. BIOGRAFIA NÃO AUTORIZADA. ABALO À IMAGEM DO BIOGRAFADO. FLAGRANTE INEXISTÊNCIA. O candente debate nacional acerca das biografias não autorizadas, que, na atual conjuntura, se projeta assim sobre o plano legiferante como sobre o âmbito jurisdicional de controle de constitucionalidade de normas, não abrange, propriamente, o peculiar caso dos autos, em que, além de a obra chegar a ser criticada pelo excessivo cunho laudatório à pessoa de João Guimarães Rosa, sequer desce a aspectos delicados, polêmicos, com ênfase na vida pessoal e íntima do biografado, o que, a rigor, constitui a maior dificuldade em matéria de ponderação entre as liberdades de expressão e de pensamento e a proteção à imagem e intimidade do biografado. III) Espécie em que a irresignação da herdeira do renomado escritor, ao lado da editora com a qual tem contrato de edição, se limita ao teor de parcas e meras opiniões externadas pelo biógrafo a respeito da vida literária sequer pessoal do biografado, não combatendo nem mesmo a veracidade de qualquer fato veiculado na obra impugnada. Percepção pessoal
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do escritor cuja exteriorização, a toda evidência, não pode ser tolhida, máxime por não encerrar a imputação de nenhum fato inverídico ou potencialmente desonroso ao objeto de sua obra. IV) Pretensão que não esconde a real tese advogada, com fincas na faceta interpretativa mais claramente inconstitucional do art. 20 do Código Civil: a necessidade de autorização prévia para se abordar todo e qualquer aspecto a respeito da vida de alguém, independentemente até do teor da abordagem. Desejo de pura e simples filtragem preliminar de conteúdo que, claramente, não se coaduna com as liberdades de expressão e de pensamento constitucionalmente asseguradas, constituindo indisfarçável censura privada. V) Há incongruência lógica, teleológica, dogmática e sistemática entre as liberdades de expressão e de pensamento e a escolha de fatos a serem admitidos em obras biográficas. A ponderação prévia e in abstract entre o direito fundamental à informação e as liberdades de expressão e de pensamento, de um lado, e, de outro, a proteção à imagem, honra, privacidade e intimidade do biografado não pode importar em sacrifício das primeiras, sob pena de se consagrar censura privada e a extinção do gênero biografia. Doutrina contemporânea. VI) De mais a mais, a proteção à imagem deve ser ponderada com outros interesses constitucionalmente tutelados, especialmente em face do direito de amplo acesso à informação e da liberdade de imprensa. Em caso de colisão, levar-se-á em conta a notoriedade do retratado e dos fatos abordados, bem como a veracidade destes e, ainda, as características de sua utilização (comercial, informativa e biográfica), privilegiando-se medidas que não restrinjam a divulgação de informações (enunciado 279, CJF), critérios unissonamente conducentes ao descabimento da proibição da veiculação da biografia ora vergastada. VII) Demanda, portanto, destacada do próprio lugar-comum dos casos envolvendo a matéria, por revelar altíssimo grau de censura a obra literária; afinal, enquanto a discussão, em tema de biografias não autorizadas, tende a gravitar em torno das garantias constitucionais que tutelam a intimidade e a vida privada do biografado, estas, in casu, permaneceram de todo incólumes. RECURSO DESPROVIDO.” (TJRJ, Apelação Cível n.º 0180270-36.2008.8.19.0001, Relatora Desembargadora ELISABETE FILIZZOLA, Julgamento em 08.10.2014) “APELAÇÃO CÍVEL. Alegação de violação de direitos autorais da obra da poetisa Cecília Meireles, de que o autor é detentor de 2/3. Sentença de improcedência. Irresignação do autor. Descabimento. Reprodução de pequenos trechos de poemas, em agenda do ano de 2008. Aplicação do art. 46, III e VIII, da Lei 9.610/98. Ausência de ilicitude. Honorários advocatícios fixados segundo os parâmetros legais. Improcedência mantida. Aplicação do art. 252, do RITJSP. Recurso não provido.” (TJSP, Apelação nº 0172736-98.2012.8.26.0100, Relator Desembargador Walter Barone, Julgado em 12.02.2016) “AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. Preliminar de cerceamento de defesa afastada. Infração a direito autoral. Reprodução de trechos de obra intelectual da autora pela ré em seu website sem autorização ou referência de autoria. Configuração de plágio. Lesão ao direito da personalidade da autora que decorre dos próprios fatos narrados. Indenização fixada em R$10.000,00 que não comporta alteração. Danos materiais não demonstrados. Ré que não obteve locupletamento ilícito ou prejudicou a prática da atividade 108
profissional a autora, uma vez que, apesar de serem ambas psicólogas, atuam em cidades distintas e afastadas uma da outra. Publicação de nota de retratação, nos termos do artigo 108, incisos II e III da Lei 9.610/98. Distribuição recíproca dos ônus da sucumbência. Sentença mantida em parte. Recursos parcialmente providos.” (TJSP, Apelação n.º 0007740-25.2013.8.26.0011, Relatora Desembargadora Mary Grun, Julgado em 25.11.2015) “DIREITO AUTORAL. Frase copiada de entrevista da televisão e utilizada em matéria publicada na internet. Plágio. Inadmissibilidade. Transcrição de pequeno trecho, com menção da autoria. Direito de citação. Possibilidade .Inteligência do artigo 46, VIII da Lei 9.610/98. Preservação dos direitos autorais e morais da demandante. Sentença de improcedência, mantida. Recurso improvido.” (TJSP, Apelação n° 9157027-78.2009.8.26.0000, Relator Desembargador Fábio Podestá, Julgado em 17.04.2013) “PROVA. JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE. NECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA. NÃO EVIDENCIADA CERCEAMENTO DE DEFESA INOCORRÊNCIA PRELIMINAR DE NULIDADE AFASTADA. RESPONSABILIDADE CIVIL. INDENIZAÇÃO DANOS MATERIAIS E MORAIS. VIOLAÇÃO DE DIREITO AUTORAL. TRADUÇÃO DO POEMA INGLÊS “INVICTUS”. DIREITO DE EXCLUSIVIDADE DO AUTOR NÃO CONFIGURADO. HIPÓTESE, ADEMAIS, EM QUE REPRODUZIDO SOMENTE UM PEQUENO TRECHO DA OBRA NA REVISTA VEICULADA PELA REQUERIDA. INCIDÊNCIA DO ART. 46, VIII, DA LEI Nº 9.610/98. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. REITERAÇÃO DOS TERMOS DA DECISÃO PELO RELATOR. ADMISSIBILIDADE SUFICIENTE E ADEQUADA FUNDAMENTAÇÃO. PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS. INCIDÊNCIA DO ARTIGO 252 DO REGIMENTO INTERNO DO TJSP. SENTENÇA MANTIDA RECURSO DESPROVIDO.” (TJSP, APELAÇÃO CÍVEL nº 0001174-93.2009.8.26.0595, Relator Desembargador Elliot Akel, Julgado em 05.11.2013) “APELAÇÃO CÍVEL. Ação ordinária de indenização para reparação de danos patrimoniais e danos morais. Autores que são herdeiros do acervo literário de Monteiro Lobato e alegam violação dos direitos autorais devido a utilização pela ré em sua revista de trecho da obra “O Saci”, bem como de imagem do autor e de figura do personagem sem a prévia autorização. Ré que diz não existe violação, pois a matéria publicada faz referência ao escritor, associando o trecho citado à sua obra, sendo que a figura do saci é assinada por Monteiro Lobato e a fotografia do escritor também tem legenda em seu nome. Impossibilidade de configuração de indenização devido à ausência de prejuízo .Sentença mantida. Recurso desprovido.” (TJSP, Apelação nº 9129817-52.2009.8.26.0000, Relator Desembargador José Carlos Ferreira Alves, Julgado em 04.06.2013)
Obras de artes plásticas “RECURSO ESPECIAL. DIREITO AUTORAL. TELA QUE COMPÔS CENÁRIO DE FILME PUBLICITÁRIO. ALEGAÇÃO DE EXPOSIÇÃO NÃO CONSENTIDA. LIMITAÇÕES AO DIREITO. ART. 46 DA LEI N. 9.610/1998. PERMISSÃO DE EXPOSI109
ÇÃO DE PEQUENOS TRECHOS DA OBRA. CARÁTER ACESSÓRIO. INEXISTÊNCIA DE PREJUÍZO INJUSTIFICADO AO AUTOR. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA. 1. Não há violação ao artigo 535, II, do CPC, pois embora rejeitados os embargos de declaração, a matéria em exame foi devidamente enfrentada pelo Tribunal de origem, que emitiu pronunciamento de forma fundamentada, ainda que em sentido contrário à pretensão da recorrente. 2. São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, compreendendo entre elas as obras fotográficas; as obras de desenho, pintura, gravura, escultura, litografia e arte cinética; as ilustrações, cartas geográficas e outras obras da mesma natureza. 3. De acordo com o artigo 28 da Lei de Direitos Autorais, como regra geral, cabe ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra artística, direito que decorre do art. 5º da Constituição Federal de 1988. 4. Seguindo esse raciocínio, a lei atribui ao autor competência para decidir o destino de sua obra, cabendo a ele autorizar ou proibir a utilização por terceiros ou a determinação de condicionantes para o uso, como, por exemplo, a estipulação de determinada contraprestação pela utilização. 5. No entanto, não se pode perder de vista que toda legislação sobre direito autoral tem como propósito o equilíbrio entre interesses igualmente relevantes: de um lado, o fomento da produção intelectual e científica, por meio da proteção eficaz e uniforme dos direitos materiais e morais dos autores e de outro lado, o desenvolvimento intelectual e cultural da sociedade, alcançado a partir do acesso às obras protegidas, constatação que justifica a imposição de limitações aos direitos autorais. 6. O art. 46 da Lei n. 9.610/1998 estabelece limitação aos direitos autorais nos seguintes termos: não constitui ofensa aos direitos autorais (...) a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores. 7. No que diz respeito a pequenos trechos, ou seja, quanto ao dimensionamento da reprodução não autorizada pelo autor, permitida pelo ordenamento, a intenção do legislador, quando da fixação da limitação, era o de fixar a natureza de acessoriedade da obra reproduzida, a ponto de não prejudicar, não desfigurar a obra nova, caso seja dela retirada. 8. Outro critério traçado pela norma a ser preenchido, para que seja possível a reprodução da obra sem autorização do criador, é a inexistência de prejuízos injustificados ao autor. 9. No caso dos autos, percebe-se que o prejuízo alegado pela autora não advém da exposição da obra, em si, no filme publicitário promovido por uma das rés, mas, na verdade, de descumprimento de um contrato firmado com outra ré, galeria de arte, tendo em vista o fato de a obra mencionada na contenda ter sido também objeto de consignação e ter sido dada à obra destinação alegadamente não pactuada. 10. No entanto, diante da insuficiência de informações detalhadas acerca das condições em que fora entregue à comercialização a obra de arte de autoria da recorrente, impossível a verificação se, de fato, era devida a contraprestação pela exposição da obra no filme publicitário. 11. Recurso especial não provido.” (STJ, REsp 1343961 / RJ, Relator Ministro Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Julgado em 06.10.2015) “DIREITOS AUTORAIS. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. REPRODUÇÃO GRÁFICA DE 110
OBRA PLÁSTICA SEM AUTORIZAÇÃO. DANO MATERIAL NÃO CONFIGURADO. EXCLUDENTE DO ART. 46, VIII DA LEI 9.610/98. ATRIBUIÇÃO DE AUTORIA EQUIVOCADA. DANO MORAL CONFIGURADO. DESNECESSIDADE DA PROVA DO PREJUÍZO OU DA APURAÇÃO DE CULPA NOS CASOS ASSIM INDICADOS PELA LEI 9.610/98. O direito do autor possui natureza dúplice, sendo protegido tanto em sua natureza patrimonial, passível de transmissão, quanto em sua natureza moral, irrenunciável e intransmissível. Não constitui ofensa aos direitos autorais a reprodução, em quaisquer obras, (...) de obra integral de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores - art. 49, VIII da Lei 9.610/98. Inexiste descaracterização da obra original em “”arte gráfica”” que reproduz, em fotos, partes da escultura que é integralmente retratada na capa do folheto. Ausência de prejuízo para o autor. A não atribuição da autoria ao verdadeiro criador, implica em violação do direito moral do autor, nos termos do art. 24, II, da Lei 9.610/98, cuja consequência é determinada pelo art. 108 do mesmo diploma legal, que prevê, em seu “”caput”” a responsabilização por danos morais. Lesão moral que prescinde da verificação de prejuízo concreto ou culpa do agente, por ser intrínseca à violação do direito de autoria. Valor da indenização de danos morais fixado em patamar reduzido, em virtude das peculiaridades do caso concreto, em que houve pequeno erro da requerida decorrente da similitude das obras e dos nomes do autor e seu avô. Recurso parcialmente provido.” (TJMG, Apelação Cível n.º 1.0223.08.246890-9/001, Relatora Desembargadora Heloisa Combat, Data de Julgamento em 12.01.2010) “DIREITO AUTORAL. REPRODUÇÃO NÃO AUTORIZADA DE OBRA DE ARTE PLÁSTICA. DANOS MATERIAIS E MORAIS À AUTORA. DEVER DE INDENIZAR. DANOS MORAIS MAJORADOS. 1. A Lei 9.610/1998, em seu artigo 29, exige a autorização prévia e expressa do autor para a utilização de sua obra, assim como o artigo 33 da mesma Lei firma que: “Ninguém pode reproduzir obra que não pertença ao domínio público, a pretexto de anotá-la, comentá-la ou melhorá-la, sem permissão do autor”. 2. No caso em tela, o réu, em momento algum demonstrou ter obtido tal autorização da autora ou de quem quer que fosse, configurado-se, assim, a reprodução não-autorizada da obra de arte, ou seja, a contrafação, o que dá ensejo à indenização em favor da requerente por violação de seus direitos morais e materiais de autora. 3. Não se trata, aqui, de obra de domínio público (Lei 9.610/1998, arts. 41 e 45), uma vez que, ainda que a mensagem cristã seja ampla e mundialmente difundida, o Jesus Cristo sorrindo, conforme concebido pela requerente trata-se de expressão de seu imo mais profundo e apresenta-se como obra autêntica da sensibilidade e da criatividade individuais da autora, pelo que não se pode afirmar seja “similar” a outras pinturas, segundo pretende fazer crer o réu. 4. Não socorre ao réu a excludente do inciso VIII do artigo 46 da LDA, segundo a qual, não constitui ofensa aos direitos autorais “a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida, nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores”, porque o dispositivo está direcionado à utilização didática das obras e não a casos de seu emprego comercial, como se verifica 111
aqui. 5. O dano material por parte da requerente é patente, uma vez que obra de sua autoria foi utilizada comercialmente e, portanto, com claro fito de lucro pelo réu, sem sua autorização prévia e sem que lhe fosse remunerada a reprodução. 6. A condenação tanto por dano moral quanto por dano material não configura bis in idem, uma vez que as responsabilidades de indenizar nascem de direitos distintos, conforme se depreende da própria Lei 9.610/1998, que expressamente distingue os Direitos Morais do Autor (Título III, Capítulo II) dos Direitos Patrimoniais do Autor (Título III, Capítulo III). Mais: enquanto a condenação à indenização por danos materiais advém da utilização e fruição, pelo réu, da obra artística de autoria da requerente, sem sua autorização (arts. 28 e 29, inc. I), a seu turno, a indenização pelos danos morais surge especificamente da violação ao direito da autora de ter seu nome, pseudônimo ou sinal convencional indicado ou anunciado na utilização de sua obra (art. 24, inc. II), sendo oportuno destacar que a indenização por danos morais vem explicitamente prevista no artigo 108 da LDA. 7. O direito moral de autora violado merece reparação mais significativa do que a arbitrada pelo digno magistrado a quo. A condição financeira do réu - pessoa jurídica - ainda que, pelos dados constantes dos autos, não permita condenações vultosas, não pode conduzir à não reparação integral do dano moral causado à requerente (cf. art. 5.º, inc. X, Constituição Federal). RECURSO 1 DESPROVIDO. RECURSO 2 PARCIALMENTE PROVIDO.” (TJPR, Processo n.º 345756-5, Relator Desembargador Eugenio Achille Grandinetti, Julgado em 06.07.2006) “Ação de indenização. Reprodução parcial de obra artística da autora em campanha publicitária de divulgação dos produtos da ré. Violação dos direitos autorais da autora. Inocorrência. Intuito da ré de auferir proveito econômico com a obra da autora Inexistência. Recurso improvido. A reprodução da obra de arte da autora na campanha publicitária de divulgação dos produtos da ré não acarretou violação dos direitos autorais, pois foi apenas parcial, inexistindo intuito da ré de auferir proveito econômico com o quadro em questão.” (TJSP, Apelação nº 0146851-04.2006.8.26.0000, Relator Desembargador Jesus Lofrano, Julgado em 31.05.2011) “Direito autoral. Ação indenizatória, com fundamento em reprodução desautorizada de imagem de obra artística. Improcedência. Inconformismo. Desacolhimento. Violação a direito do autor não caracterizada. Limitação aos direitos autorais, conforme exceção prevista no art. 46, VIII, da Lei 9.610/98. Ilustração de texto literário, com imagem de uma das obras do insigne artista plástico Victor Brecheret, com intuito cultural, sem fins lucrativos, na divulgação da vida e da obra do artista. Sentença mantida. Recurso desprovido.” (TJSP, APELAÇÃO CÍVEL COM REVISÃO n° 537.692-4/2-00, Relator Desembargador GRAVA BRAZIL, Julgado em 25.08.2009) “VOTO DO RELATOR EMENTA – DIREITO AUTORAL – OBRIGAÇÃO DE FAZER C.C. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – Publicação online, em site/revista eletrônica, da ré, de trecho de entrevista concedida ao autor, pelo jogador Garrincha – Decreto de improcedência – Publicação online que, na verdade, se resumiu a trechos de áudio da sobredita entrevista (com publicação, na íntegra, de forma autorizada e remunerada, pela via impressa) – Finalidade de mera divul112
gação da entrevista, publicada, na íntegra, pela versão impressa - Artigo 46, VIII, da Lei 9.610/98 que, ademais, permite a reprodução de trechos de obra, quando esta não for o objetivo principal da obra nova (hipótese dos autos) – Alegação de interferência em ineditismo que também não se sustenta (entrevista que já havia sido publicada em outro veículo, no Japão) - Ato ilícito inexistente – Ausente nexo causal a amparar a pretensão reparatória – Honorária advocatícia – Ausência de condenação implica no arbitramento de acordo com o disposto no § 4º (e não 3º) do artigo 20 do CPC então vigente – Sentença reformada apenas para este fim – Recurso parcialmente provido.” (TJSP, APELAÇÃO CÍVEL nº 1128118-80.2014.8.26.0100)
Obra lítero-musical “RECURSO ESPECIAL. DIREITO AUTORAL. USO DE TRECHO DA LETRA DA OBRA MUSICAL DANCIN DAYS SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS EM PUBLICAÇÃO DA REVISTA PLAYBOY. LIMITES IMPOSTOS AO DIREITO AUTORAL. INDENIZAÇÃO. 1. A reprodução de pequenos trechos de obras preexistentes apenas não constitui ofensa aos direitos autorais quando a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova, não prejudique a exploração normal daquela reproduzida nem cause prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores (art. 46, VIII, da Lei n. 9.610/1998). 2. A exploração comercial da obra e os meios em que ela ocorrerá é direito exclusivo do autor, como regra. A transcrição de trecho musical em periódico de forma não autorizada não caracteriza permissivo legal (fair use) que excepcione o direito de exploração exclusiva pelo seu titular. 3. O caso dos autos não se enquadra nas normas permissivas estabelecidas pela Lei n. 9.610/1998, tendo em vista que o refrão musical inserido no ensaio fotográfico e de cunho erótico - de forma indevida -, tem caráter de completude e não de acessoriedade; e os titulares dos direitos patrimoniais da obra vinham explorando-a comercialmente em segmento mercadológico diverso. 4. Recurso especial a que se nega provimento.” (STJ, REsp 1217567 / SP, Relator Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Julgado em 07/05/2013) “DIREITOS AUTORAIS. REPRODUÇÃO DE PEQUENO TRECHO MUSICAL EM PROGRAMA HUMORÍSTICO. AUSÊNCIA DE DANO MORAL. Apelação da sentença que julgou improcedente o pedido de indenização por danos morais decorrentes do uso não autorizado de música religiosa em programa humorístico de televisão. A Lei nº 9.610/98, que consolida a legislação sobre direitos autorais, garante ao autor, em seus artigos 28 e 29, o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor de sua obra literária, artística ou científica, cuja utilização por outrem depende de sua prévia e expressa autorização. Entretanto, como exceção à regra geral, a mesma Lei estabelece expressamente em seu art. 46, VIII, que não constitui ofensa aos direitos autorais a reprodução de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores. Caso concreto que se encaixa perfeitamente na exceção legal, vez que o fragmento da música do autor dura apenas dez segundos e não prejudica
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a exploração normal da obra reproduzida. Ausência de violação a qualquer dos atributos da personalidade do autor. Inexistência de dano moral a ser indenizado. Sentença correta. Recurso desprovido, nos termos do voto do desembargador relator.” (TJRJ, Apelação Cível n.º 0321294-47.2011.8.19.0001, Relator Desembargador RICARDO RODRIGUES CARDOZO, Julgado em 26.11.2013) “DIREITO AUTORAL. EXECUÇÃO PUBLICA DE OBRAS MUSICAIS. REPRODUÇÃO NAO AUTORIZADA DE TRECHOS SELECIONADOS. LEI N. 9610, DE 1998. APLICABILIDADE. APELAÇÕES CÍVEIS. DIREITO AUTORAL. APLICAÇÃO DO INCISO VIII DO ART. 46 DA LEI Nº 9610/98. UTILIZAÇÃO DE PEQUENOS TRECHOS DAS MÚSICAS “BASTIDORES” E “GENTE HUMILDE”, NO DOCUMENTÁRIO “ALÔ, ALÔ TEREZINHA!”. REFORMA DA SENTENÇA. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. Não há dúvidas acerca da importância do comunicador para o contexto artístico nacional, assim como não se discute a grande valia do próprio documentário, que, como toda obra desta espécie, tem o compromisso de retratar fielmente o tema abordado. Nota-se que, in casu, tem aplicação o inciso VIII do art. 46 da Lei nº 9.9610/98, que se amolda perfeitamente a situação descrita, notadamente em razão da reprodução dos pequenos trechos das músicas, no documentário, terem por objetivo retratar exatamente os programas apresentados pelo grande Abelardo Barbosa, um dos apresentadores mais importantes da televisão brasileira entre as décadas de 50 e 80, e sua importante colaboração para a televisão e a cultura popular do país. APELAÇÃO DA AUTORA A QUE SE DÁ PROVIMENTO. RECURSO DA RÉ A QUE SE NEGA PROVIMENTO.” (TJRJ, Apelação Cível n.º 0352238-03.2009.8.19.0001, Relator Desembargador FERNANDO FERNANDY FERNANDES, Julgado em 03.08.2011) “APELAÇÃO CÍVEL. MEDIDA CAUTELAR E AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS. Autoras pleiteiam indenização em razão da utilização indevida das suas obras musicais. Perícia que conclui pela utilização de 24% da obra Bonanza, 74% da obra The Pink Panther Theme e, afirma inexistir utilização da obra On Broadway. Sentença parcialmente procedente, que não reconhece a violação de direito autoral na utilização de 24% da obra preexistente, por consistir em pequeno trecho na forma do art. 46 inciso VIII da lei 9.610/98 e reconhece a violação na utilização de 74%. O percentual de 24% não consiste em pequeno trecho da obra e há evidente prejuízo aos autores na utilização da música Bonanza em trechos da música Pocotó, eis que consistem em estilos de música completamente distintos e atingem públicos completamente diferentes, sendo certo que a autorização não seria concedida para utilização da obra. Violação do direito autoral. Reforma parcial da sentença para reconhecer a violação do direito autoral na utilização da obra Bonanza na música Pocotó, condenar a ré a indenizar de acordo com o percentual de utilização e determinar a apreensão do compact disc “Dj’s Big”, onde está inserida a música. Mantida no mais a sentença.” (TJRJ, Apelação Cível n.º 0009788-89.2003.8.19.0208, Relatora Desembargadora CLAUDIA PIRES, Julgamento em 31.08.2010) “OBRA LITERÁRIA. REPRODUÇÃO FONOGRÁFICA. LEI N. 9610, DE 1998. PEDIDO DE INDENIZAÇÃO. DESCABIMENTO. DIREITO AUTORAL UTILIZAÇÃO POR REPRODUÇÃO FONOGRÁFICA DE TEXTOS DE OBRAS LITERÁRIAS SEM A 114
AUTORIZAÇÃO DO AUTOR DANOS MATERIAIS E MORAIS. “Almanaque da Ilha de Paquetá” acompanhado de CD visando a divulgação, sem rim lucrativo, dos encantos da Ilha de Paquetá, de sua história e de suas lendas. Fatos históricos, lendas e folclore transmitidos pela tradição oral pertencem ao domínio público e, como tal, podem ser reproduzidos. Hipótese em que os fatos e as lendas narrados no Almanaque e no CD o foram de forma diversa da que consta dos livros do autor, além de ter sido respeitado o devido crédito. A teor do disposto no artigo 46, inciso VIII, da Lei nº 9.610, de 1998, não constitui ofensa aos direitos autorais a reprodução de pequenos trechos de obras preexistentes quando a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause prejuízo aos interesses dos autores. Confirmação da sentença que julgou improcedente o pedido de indenização por danos materiais e Morais. Desprovimento do recurso.” (TJRJ, Apelação Cível n.º 0034450-93.2002.8.19.0001, Relatora Desembargadora CASSIA MEDEIROS, Julgamento em 28.10.2003) “AÇÃO DE COBRANÇA CUMULADA COM INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. Pretensão em razão de utilização não autorizada de trechos da música “Casa no Campo” em lançamento de coleção de roupas e também pela ausência de indicação dos autores em todas as citações. Sentença de improcedência. Data da distribuição da ação: 08/10/2009. Valor da causa: R$ 50.000,00. Redistribuído por força da Resolução 643/2014. Apelam os autores sustentando que trechos da obra foram utilizados sem a autorização dos proprietários e a indicação dos criadores em todas as citações. Cabimento. Necessidade de prévia autorização para reprodução ainda que parcial da obra. Inteligência do art. 29, I, da LDA. Letra da música é o mote principal da campanha publicitária para vendagem de roupas. Inaplicabilidade da regra de exceção do art. 46, VIII, da LDA. Obrigação de indenizar por danos materiais a serem apurados em liquidação por arbitramento. Danos morais. Ausência de indicação dos autores em todas as citações da música. Inteligência do art. 24, II e 108, caput, da LDA. A indenização do dano moral deve ser arbitrada por equidade, consideradas as circunstâncias do caso, em valor que sirva a um só tempo, de punição ao lesante e compensação ao lesado, sem que acarrete enriquecimento sem causa. Arbitramento em R$ 10.000,00 em razão da citação ao menos de um dos autores no “site” e em alguns produtos da campanha publicitária. Sentença reformada. Recurso provido.” (TJSP, Apelação nº 0204485-41.2009.8.26.0100, Relator Desembargador James Siano, Julgado em 18.09.2014) “Direito autoral. Emissora de televisão veiculou campanha publicitária que usava composição musical sem autorização. Violação ao direito configurada. Dano moral que ocorre in re ipsa, bastando a demonstração de ausência de autorização Lei exige autorização do autor para quem quer que reproduza sua obra (art. 29, Lei nº 9.610/1998). Trecho relevante da obra reproduzido. Inaplicabilidade do art. 46, inc. VIII, da Lei nº 9.610/1998. Recurso improvido.” (TJSP, Apelação nº 0001247- 47.2006.8.26.0247, Relator Desembargador Luiz Antônio Costa, 20.03.2013) “RESPONSABILIDADE CIVIL. Alegação de uso indevido de obra musical pelas rés por meio de outdoors de trecho de música que teria sido composta pelo 115
autor (Por que Parou? Parou Por que?) Dúvida fundada acerca da originalidade e da autoria da música, inocorrência de ofensa ao direito autoral ou de ilicitude no uso da expressão, porque utilizada sem guardar relação com a música, e porque de domínio público e do gosto popular, com significados e em contextos diversos Inexistência, ademais de prejuízo para o suposto autor da obra musical Sentença mantida.” (TJSP, Apelação nº 9162883-28.2006.8.26.0000, Relator Desembargador João Carlos Saletti, Julgado em 08.11.2011) “VIOLAÇÃO DE DIREITOS AUTORAIS. Indenização por danos morais e materiais. Utilização indevida de obra fonográfica em campanha publicitária de estabelecimento de ensino. Responsabilidade deste pelo fato, sem prejuízo de eventual direito de regresso contra a empresa contratada para criação do vídeo publicitário. Culpa “in eligendo”, bem reconhecida. Desnecessidade do intérprete da obra comprovar estar autorizado pelo compositor. Obrigação de indenizar. Valores fixados de forma proporcional. Correção monetária que deve incidir desde a data da prolação da sentença. Recurso, todavia, provido, para que seja aplicada a Súmula 362 do STJ. AGRAVOS RETIDOS. Apelante reiterou a apreciação de três agravos, todos, voltados, em resumo, a nulidade do processo por cerceamento de defesa. Ausência de qualquer vício processual. Questões que se referem à valoração da prova que foram bem decidas no curso da demanda. Não conhecimento de um agravo por perda do objeto e desprovimento dos demais.” (TJSP, Apelação nº 0127714-36.2006.8.26.0000, Relator Desembargador Teixeira Leite, Julgado em 12.05.2011) “Ação indenizatóría. Direitos autorais. Preliminar afastada. Cerceamento de defesa não caracterizado. Prova produzida para o convencimento do Juízo. Saneador irrecorrido. Preclusão. Inexistência de error in procedendo. Utilização de composições musicais em campanha publicitária’, sem prévia autorização. Inserção com objetivo de fazer paródia utilizando as músicas como fundo. Reprodução de pequenos trechos e por poucos segundos que não caracteriza ofensa a direitos autorais. Aplicabilidade do artigo 46, VIII, da Lei n° 9.610/98. Recurso improvido.” (TJSP, APELAÇÃO CÍVEL COM REVISÃO n° 4 80.378-4/0-00, Relator Desembargador Carlos Stroppa, Julgado em 10.06.2008) “Direito autoral. Obra musical “Copa 94’’. O autor havia concedido autorização para reprodução de sua obra musical para eventos esportivos determinados, e não se pode dizer que a reprodução de trechos nas chamadas desses eventos esportivos, ligados a outros patrocinadores, implicou em violação ao direito autoral do requerente, até porque, há expressa exclusão legal (inciso VIII, do artigo 46, da Lei 9.610/98) dessa violação quando somente se reproduz trecho da obra sem que isso implique em prejuízo injustificado ao autor da obra. Ação improcedente. Provido o recurso da ré, prejudicado o do autor.” (TJSP, Apelação Cível com Revisão n.º 442.381-4, Relator Desembargador Beretta da Silveira, Julgado em 05.09.2006) “Ação indenizatória por violação de direitos autorais. Matéria jornalística esportiva que utilizou frase, que é de uso corriqueiro e popular pelas torcidas, e que faz parte da obra do autor. Reprodução para ilustrar imagem de torcedores que não 116
faz alusão a obra musical do autor. Hipótese que se enquadra na exceção prevista no inc. VIII, do art. 46, da Lei n* 9.610/98. Indenização indevida. Provimento do recurso da ré, prejudicado o do autor.” (TJSP, APELAÇÃO CÍVEL n° 2 96.997-4/9-00, Relator Desembargador Carlos Stroppa, Julgado em 03.02.2005) “DIREITOS AUTORAIS. REPRODUÇÃO DE PEQUENO TRECHO MUSICAL EM PROGRAMA HUMORÍSTICO. AUSÊNCIA DE DANO MORAL. Apelação da sentença que julgou improcedente o pedido de indenização por danos morais decorrentes do uso não autorizado de música religiosa em programa humorístico de televisão. A Lei nº 9.610/98, que consolida a legislação sobre direitos autorais, garante ao autor, em seus artigos 28 e 29, o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor de sua obra literária, artística ou científica, cuja utilização por outrem depende de sua prévia e expressa autorização. Entretanto, como exceção à regra geral, a mesma Lei estabelece expressamente em seu art. 46, VIII, que não constitui ofensa aos direitos autorais a reprodução de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores. Caso concreto que se encaixa perfeitamente na exceção legal, vez que o fragmento da música do autor dura apenas dez segundos e não prejudica a exploração normal da obra reproduzida. Ausência de violação a qualquer dos atributos da personalidade do autor. Inexistência de dano moral a ser indenizado. Sentença correta. Recurso desprovido, nos termos do voto do desembargador relator.” (TJ-RJ - APL: 03513627720118190001 RJ 0351362-77.2011.8.19.0001, Relator: DES. RICARDO RODRIGUES CARDOZO, Data de Julgamento: 26/11/2013, DÉCIMA QUINTA CAMARA CIVEL, Data de Publicação: 17/12/2013 17:40) “DIREITO AUTORAL. Ação proposta pelo ECAD em face de espaço de eventos. Reprodução das músicas por DJ’s que não afasta a obrigação do recolhimento dos direitos autorais. Inaplicável à hipótese a isenção do art. 46, inc. VIII da Lei nº 9.680/96. Remixagem não configura criação de obra genuína. Legitimidade ativa do ECAD para a cobrança dos direitos autorais, mesmo após as alterações promovidas pela Lei nº 12.853/2013 na redação dos arts. 98 e 99 da Lei nº 9.610/1998. Validade da Tabela de Preços estipulada pelo ECAD. Desnecessidade de comprovar a filiação dos titulares das obras. Cálculo do público presente que pode se dar segundo a área utilizada no evento. Precedentes. Multa moratória de 10%. Relação extracontratual. Ausência de previsão da multa na Lei nº 9.610/98. Multa afastada. Honorários advocatícios que devem ser estabelecidos em percentual da condenação. Recursos parcialmente providos.” (TJ-SP - APL: 00014789320148260247 SP 0001478-93.2014.8.26.0247, Relator: Mary Grün, Data de Julgamento: 06/12/2016, 7ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 06/12/2016) “Direito autoral – Ação indenizatória – Improcedência – Inconformismo – Acolhimento em parte – Autora que tem os direitos de edição fonográfica, incluindo sincronização em vídeo (exceto obra cinematográfica), bem como 50% dos direitos autorais patrimoniais, sobre a obra lítero-musical “Sous le ciel de Paris”, 117
no Brasil – Obra cujo trecho foi utilizado sem autorização pelas rés em vídeo sobre a cidade de Paris produzido no Brasil, para exibição em voos comerciais da TAM saindo do país com destino àquela cidade – Violação à Lei n. 9.610/98 – Inaplicabilidade, ao caso, do Código Brasileiro da Aeronáutica, e de qualquer das exceções previstas no art. 46, da lei autoral – Responsabilidade solidária das rés – Indenização que, no caso, deve se medir pelo que teriam pago as rés para obter prévia autorização para utilização de trecho da obra no vídeo em questão, observadas as circunstâncias do caso – Montante apontado pela autora que se mostra razoável, inclusive, à luz de outras contratações similares – Indenização em montante superior que violaria o art. 944, do CC, e configuraria enriquecimento sem causa da autora – Sentença reformada para julgar procedente em parte a demanda – Recurso provido em parte.” (TJ-SP - APL: 00061095120058260100 SP 0006109-51.2005.8.26.0100, Relator: Grava Brazil, Data de Julgamento: 31/08/2016, 8ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 06/09/2016)
Audiovisual “CONSTITUCIONAL E CIVIL. DIREITOS FUNDAMENTAIS. LIMITAÇÕES. HARMONIA COM OUTRAS GARANTIAS E DIREITOS. REPRODUÇÃO DE OBRA AUDIOVISUAL. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO A DIREITO AUTORAL. REPRODUÇÃO DE PEQUENOS TRECHOS. AUSÊNCIA DE EXPLORAÇÃO ANORMAL. DANOS NÃO CONSUBSTANCIADOS. 1. A Constituição Federal de 1988, no artigo 5º, inciso XXVII, elevou a proteção ao direito autoral a patamar de direito fundamental. No entanto, como é cediço, na ordem constitucional pátria, inexistem garantias ou direitos absolutos, que possam ser exercidos a qualquer tempo e sob quaisquer circunstâncias. 2. Os direitos autorais, à luz da perspectiva constitucional, podem ser limitados, desde não conflitem com a exploração normal da obra tampouco ensejem prejuízos aos interesses de seu titular. 3. Consoante o art. 46, inciso VIII, da Lei n. 9610/98, não constitui ofensa aos direitos autorais a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não enseja objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores. 4. Inexiste violação a direito autoral em reprodução, em reportagem jornalística, de pequenos trechos de documentário audiovisual, na qual a parte utilizada não seja objetivo principal da referida reportagem e não tenha causado prejuízo aos interesses do autor da obra. 5. Apelo não provido.” (TJDF, Apelação Cível 20110110764438, Relator Desembargador FLAVIO ROSTIROLA, Julgado em 12/11/2014) “Direito Autoral. Inclusão em vídeo de divulgação da loja Ré de trecho de aulas de artesanato, sem autorização da Autora das aulas gravadas e comercializadas. Finalidade diversa do vídeo de divulgação e ausência de prejuízo à Autora. Violação ao direito autoral não configurado. Ofensa ao direito de imagem reconhecida pela sentença, nesta parte irrecorrída. Recurso desprovido.” (TJSP, Apelação n° 9073710-95.2003.8.26.0000, Relator Desembargador Pedro Baccarat, Julgado em 22.12.2010)
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Fotografia e imagem “DIREITOS AUTORAIS. UTILIZAÇÃO DE IMAGEM. INOCORRÊNCIA DE VIOLAÇÃO AOS DIREITOS DO AUTOR. HONORÁRIOS SUCUMBENCIAIS. ARBITRAMENTO. 1. Consoante o art. 46, VIII, da Lei 9.610/98, não configura ilícito a utilização por terceiros, mesmo que não autorizados, de pequenos trechos de uma obra protegida, desde que isso se dê de uma forma razoável. Em que pese a lei estabeleça e confira ao autor direitos exclusivos, como, entre outros, o de reprodução e o de edição, esses não são absolutos. 2. Os honorários advocatícios devem ser arbitrados com moderação e justeza, de sorte que não se caracterize retribuição ínfima e nem demasiada, sem que se dê azo ao aviltamento da profissão ou ao enriquecimento sem causa. Tratando-se de ação julgada improcedente, deve incidir a regra posta pelo §4º do art. 20 do CPC que informa que nesta hipótese os honorários devem ser fixados consoante apreciação eqüitativa do juiz atendidos o grau de zelo do profissional; o lugar de prestação do serviço; a natureza e importância da causa, o trabalho realizado pelo advogado e o tempo exigido para o seu serviço. Hipótese em que, sopesadas tais circunstâncias, precipuamente o fato de a causa não apresentar maior complexidade, os honorários fixados em R$ 3.000,00 se mostram adequados. APELOS DESPROVIDOS.” (TJRS, Apelação Cível nº 70015560691, Relatora Desembargadora Marilene Bonzanini, Julgado em 06.03.2008) “DIREITO AUTORAL. Fotografia. Cessão autorizada para composição de capa de revista. Subsequente reprodução da capa da revista em questão, em meio a outras tantas sobrepostas, em adesivo promocional colado a veículo da empresa. Hipótese de isenção legal ao uso de obra protegida. Inteligência do art. 46, inciso VIII da Lei nº 9.610/98. Reprodução em si que não encerra o objetivo central da obra nova, servindo apenas de referência ou exemplo. Ausência de prejuízo para a exploração econômica normal da obra reproduzida. Recurso desprovido.” (TJSP, Apelação n.º 0049858-35.2011.8.26.0577, Relator Desembargador AIRTON PINHEIRO DE CASTRO, Julgado em 15.12.2015) “DIREITOS AUTORAIS. Ação indenizatória. Alegação, por parte do autor, de violação de direito autoral por veiculação de foto em determinado site, hospedado pela ré, site esse de entretenimento diário. Foto de ensaio fotográfico de modelo, futura participante de conhecido programa televisivo. Falta de indicação da autoria da fotografia. Inocorrência de violação. Veiculação de mero informativo, com publicação de trecho da obra (apenas 1 das 6 fotos), indicação da fonte (a revista que estampou o ensaio) e disponibilização de link para acesso ao ensaio completo, onde consta a autoria. Reprodução que não caracteriza violação aos direitos autorais, nem constituiu objetivo principal da obra nova. Inteligência do art. 46, I, “a” e VIII da Lei 9.610/98. Informativo, ademais, que serviu de publicidade para o trabalho do autor, em razão do grande número de acessos diários por internautas. Sentença de improcedência mantida. Apelação não provida.” (TJSP, Apelação nº 9188078- 44.2008.8.26.0000, Relator Desembargador João Carlos Saletti, Julgado em 05.02.2013) “EMENTA. Direito autoral. Indenização por danos materiais e morais. Publicação de fotografias de cenas de filme sem autorização do autor. Ausência de violação 119
aos direitos autorais. A utilização de fotos de cenas do filme, para ilustrar crítica jornalística não constituiu ofensa aos direitos autorais do autor. Exegese do art. 46, inc. VIII, da Lei 9.610/98. A reprodução de pequenos trechos de obras preexistente, não constitui ofensa aos direitos autorais, desde que a reprodução em si não seja o objeto principal da obra nova nem cause prejuízo aos interesses dos autores. Apelação improvida.” (TJSP, Apelação nº 9078474- 85.2007.8.26.0000, Relator Desembargador Pedro de Alcântara, Julgado em 14.11.2012) “DIREITOS AUTORAIS. INDENIZAÇÃO. ALEGADA UTILIZAÇÃO INDEVIDA DE OBRA ARTÍSTICA EM LIVRO. AUTORA QUE CONCEDEU AUTORIZAÇÃO PARA UTILIZAÇÃO DE SUA OBRA EM LIVRO, SEM QUALQUER RESSALVA. REPRODUÇÃO EM SI QUE NÃO FOI O OBJETIVO PRINCIPAL DA OBRA NOVA, NÃO PREJUDICOU A EXPLORAÇÃO NORMAL DA OBRA REPRODUZIDA NEM CAUSOU PREJUÍZO INJUSTIFICADO AOS LEGÍTIMOS INTERESSES DA AUTORA. ARTIGO 46, VIII, DA LEI N” 9.610/98. DANOS MORAL E MATERIAL INOCORRENTES NA ESPÉCIE. DIREITOS AUTORAIS. INDENIZAÇÃO. UTILIZAÇÃO INDEVIDA DE IMAGEM EM CALENDÁRIOS. INAPLICABILIDADE DO ARTIGO 46, VIII, DA LEI AT 9.610/98. RÊ QUE AUFERIU VANTAGEM PELA MAIOR FACILIDADE NA COMERCIALIZAÇÃO DO PRODUTO. AUTORIZAÇÃO PARA O USO DA CRIAÇÃO QUE SE DESTINOU APENAS A PRODUÇÃO DO LIVRO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO PARA JULGAR PROCEDENTE EM PARTE A AÇÃO E CONDENAR AS RÊS AO PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO PELA UTILIZAÇÃO NÃO AUTORIZADA DA OBRA DA AUTORA NOS CALENDÁRIOS.” (TJSP, APELAÇÃO CÍVEL n° 24 6.529-4/3-00, Relator Desembargador Elliot Akel, Julgado em 18.02.2003) “APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. DIREITOS AUTORAIS. USO DE FOTOGRAFIA EM TRABALHO CIENTÍFICO. IMPROCEDÊNCIA. IRRESIGNAÇÃO PRELIMINAR. LEGITIMIDADE PASSIVA DOS SÓCIOS. REJEIÇÃO MÉRITO. ART. 46 DA LEI N° 9.610/98. PUBLICAÇÃO DE IMAGENS SEM FINS LUCRATIVOS E DE CARÁTER CIENTÍFICO. CITAÇÃO DO NOME E OBRA DO AUTOR. FONTE DE PESQUISA. NÃO CONFIGURADA OFENSA AOS DIREITOS AUTORAIS. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA. NEGADO PROVIMENTO. De acordo com o art. 46 da lei n° 9.610/98, não constitui ofensa aos direitos autorais a citação de passagens de obra em revistas para fins de estudo, crítica ou polêmica, desde que conste a indicação do nome do autor e de sua obra. Consoante o art. 46, VIII, da Lei 9.610/98, não configura ilícito a utilização por terceiros, mesmo que não autorizados, de pequenos trechos de uma obra protegida, desde que isso se dê de uma forma razoável. Em que pese a lei estabeleça e confira ao autor direitos exclusivos, como, entre outros, o de reprodução e o de edição, esses não são absolutos. Apelação Cível N° 70015560691, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator Marilene Bonzanini Bernardi, Julgado em 06/03/2008 .” (TJPB, Apelação n.º 20020080213511001, Relator Desembargador Saulo Henriques de Sá e Benevides, Julgado em 18.10.2011) “AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. DIREITO AUTORAL. PUBLICAÇÃO DE FOTOGRAFIA EM SITE. AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO. 120
[...]— A Lei no 9.610/98, em seu art. 46, III e VIII, contempla limitações ao direito autoral, dentre elas a utilização de obras artísticas em trabalhos científicos, além da possibilidade de sua utilização, desde que não constituam objeto principal da nova obra e não acarretem prejuízo ao seu autor. — Não há comprovação de danos materiais, tendo em vista a ausência de ilicitude na utilização da foto, nem de danos morais, em virtude da aposição do nome do autor da foto. —Desprovimento do apelo.” (TJPB, Apelação Cível n.º 200.2009.038.334-6/001, Relator Desembargador Marcos Cavalcanti de Albuquerque, Julgado em 23.08.2011) “AÇÃO INDENIZATÓRIA FUNDADA EM VIOLAÇÃO DE DIREITOS AUTORAIS. EXIBIÇÃO DE OBRAS FOTOGRÁFICAS SEM A DEVIDA AUTORIZAÇÃO E CONTRAPRESTAÇÃO FINANCEIRA. DESÍGNIOS DISTINTOS ENTRE A OBRA DO REQUERENTE E A MATÉRIA VEICULADA PELA EMISSORA RÉ. TEMPO DIMINUTO DE EXIBIÇÃO. APLICABILIDADE DO ARTIGO 46, VIII, DA LEI N° 9.610/1998. ILÍCITO NÃO CONFIGURADO. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA RATIFICADA. RECURSO DESPROVIDO.” (TJ-SP - APL: 10483622520148260002 SP 1048362-25.2014.8.26.0002, Relator: Paulo Alcides, Data de Julgamento: 10/02/2017, 28ª Câmara Extraordinária de Direito Privado, Data de Publicação: 10/02/2017)
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