Cadernos de Direito e Cultura do Instituto de Direito, Economia Criativa e Artes Organizadores José Vitor Pereira Neto Matheus Gomes Nunes Nayara dos Santos Juvenal Victor Matos Coordenação Geral Nichollas de Miranda Alem Projeto Gráfico e Diagramação Paulo Zapella Edição Matheus Gomes Nunes Nayara dos Santos Juvenal Autores participantes desta edição Ana Heloíza Vita Pessotto Bruno Ferreira Carlos Magno Diniz Guerra de Andrade Daniele Pereira Canedo Elizabeth Ponte de Freitas Glaucia Villas Bôas Juliano Maurício de Carvalho Lia Calabre Luisa Marques Barreto Luiz Gustavo Santana Campos Rosimeri Carvalho Agradecimentos Agradecemos especialmente aos autores dos artigos desta edição, que gentilmente nos autorizaram a incluir suas publicações na presente publicação. Informações adicionais A publicação é distribuída gratuitamente por meio digital, sendo vedada qualquer forma de comercialização. Esta publicação teve a colaboração de toda equipe do Instituto de Direito, Economia Criativa e Artes. NETO, José Vitor Pereira. NUNES, Matheus Gomes. JUVENAL, Nayara dos Santos. MATOS, Victor (org.). Cadernos de Direito e Cultura. Volume 5: Impactos da Pandemia de Covid-19 no Setor Cultural Brasileiro. São Paulo: Instituto de Direito, Economia Criativa e Artes, 2021. Contato contato@institutodea.com
Os Cadernos de Direito e Cultura foram criados para compilar diversos conteúdos jurídicos sobre um determinado tema e, assim, facilitar e incentivar o seu estudo. Nossa proposta é juntar anotações, reflexões e o melhor de nossa produção teórica e técnica nos temas de convergência entre Direito e Cultura. A maior parte dos textos que compõem a coleção já foram publicados em outras mídias, canais ou revistas. No entanto, acreditamos que a presente seleção destaca publicações que merecem uma atenção especial e contribuem substancialmente para os debates acerca do recorte temático desta edição. O advento da nova conjuntura resultante dessa pandemia, caracterizada pela crise econômica e social, ocasionou impacto significativo no setor cultural e criativo brasileiro, razão pela qual esta quinta edição se propôs a reunir materiais de pesquisa sobre o tema, incluindo os aspectos jurídicos pertinentes ao contexto, tendo em vista a sanção da Lei Aldir Blanc para mitigar os impactos da pandemia na economia da cultura.
APRESENTAÇÃO
A escolha do tema mostrou-se atual, urgente e extremamente importante, vez que, após quase dois anos inseridos neste panorama de crise, são incalculáveis os danos causados à cultura, um setor historicamente negligenciado e de subestimada importância para o desenvolvimento humano, social e econômico. Por isso, trouxemos à tona, através dos artigos, discussões sobre as fragilidades do setor, as novas formas de organização, as políticas emergenciais e as perspectivas de mudança que devem ser tomadas frente à calamidade. Ao final, na segunda parte desta publicação, também incluímos uma seleção da jurisprudência existente sobre o tema. Boa Leitura!
Matheus Gomes Nunes Nayara dos Santos Juvenal
SUMÁRIO POLÍTICAS CULTURAIS EMERGENCIAS NA PANDEMIA COVID-19? DEMANDAS E ESTRATÉGIAS DE ENFRETAMENTO E AS RESPOSTAS DOS PODERES PÚBLICOS
PG 08
LEI ALDIR BLANC DE EMERGÊNCIA E O FIM DO PLANO NACIONAL DE CULTURA (2010-2020)
28
A ARTE E A CULTURA EM TEMPOS DE PANDEMIA: OS VÁRIOS VÍRUS QUE NOS ASSOLAM
38
O SALDO DA PANDEMIA: PERSPECTIVAS DE MUDANÇA PARA OS MUSEUS DE ARTE
54
AUDIOVISUAL NA PANDEMIA: DESAFIOS, ESTRATÉGIAS E CRIATIVIDADE
72
MÚSICA ENFRENTANDO A COVID-19: UMA ANÁLISE DA CENA MUSICAL DO VALE DO PARAÍBA DURANTE A PANDEMIA
90
JURISPRUDÊNCIA
122
Por Daniele
Pereira Canedo
Gestora cultural, capoeirista e professora do Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e do Núcleo de Pós-Graduação em Administração (UFBA). Atua como Coordenadora de Cultura e Universidade na Pró-Reitoria de Extensão da UFRB.
POLÍTICAS CULTURAIS EMERGENCIAS NA PANDEMIA COVID-19? DEMANDAS E ESTRATÉGIAS DE ENFRETAMENTO E AS RESPOSTAS DOS PODERES PÚBLICOS
Carlos Magno Diniz Guerra de Andrade Doutorando em Administração de Empresas (NPGA-UFBA). Mestre em Administração (NPGA-UFBA). Docente do Curso de Bacharelado em Administração da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e pesquisador do Observatório da Economia Criativa da Bahia (OBEC-BA).
Elizabeth Ponte de Freitas Gestora cultural e pesquisadora do Observatório da Economia Criativa da Bahia (OBEC-BA). Autora do projeto “Qualidade para a Cultura” (Quality for Culture). Conselheira de Administração da Associação Brasileira de Organizações Sociais da Cultura – ABRAOSC.
Luiz Gustavo Santana Campos Mestrando no Programa Multidisciplinar de Pós Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Pesquisador do Observatório da Economia Criativa da Bahia (OBEC-BA) e do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (NEPPs - Unesp Franca).
Rosimeri Carvalho Professora titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pesquisadora do Núcleo de Estudos Marcelo Milano Falcão Vieira, pesquisadora do Observatório da Realidade Organizacional – SC.
O presente artigo foi originalmente publicado em 18/03/2021 no periódico eletrônico Políticas Culturais em Revista, v. 14 n. 1, p. 165-191, 2021.
Resumo: A vulnerabilidade da economia criativa, que antecede a crise sanitária de 2020, tem tornado o contexto da pandemia ainda mais impactante para os segmentos artísticos, culturais e criativos. A paralisação das atividades não fez discriminação: afetou formais e informais; empreendimentos criativos de grande e pequeno porte; organizações e artistas que atuam em todas as etapas da cadeia produtiva: na produção, na distribuição e no consumo. Diante do contexto de crise, a atuação dos poderes públicos na elaboração de políticas culturais emergenciais 09
tem sido demandada por agentes do setor. Este artigo apresenta recursos, necessidades e estratégias de enfrentamento apontadas pelos respondentes da pesquisa “Impactos da Covid-19 na Economia Criativa”, propondo reflexões sobre as primeiras respostas dos poderes públicos. Palavras-chave: Economia Criativa. Pandemia. Políticas Culturais. Lei Aldir Blanc. ABSTRACT The vulnerability of the creative economy, which precedes the health crisis of 2020, has made the context of the pandemic even more impactful for the artistic, cultural and creative segments. The interruption of activities affected all kinds of workers and organizations: formal and informal; large and small creative enterprises; organizations and artists that work at all stages of the production chain: production, distribution and consumption. Given the context of crisis, the action of public authorities by elaborating cultural policies has been demanded by the agents of the sector. This paper shows resources, needs, and strategies pointed out by the respondents of the survey “Impacts of Covid-19 on the Creative Economy”, proposing reflections on the first responses of public authorities. Keywords: Creative Economy. Pandemic. Cultural Policies. Aldir Blanc Law.
INTRODUÇÃO Embora muitos acreditem que os segmentos artísticos, culturais e criativos sempre estiveram familiarizados com crises, o desafio trazido pelo novo coronavírus é diferente em muitos aspectos. A pandemia da Covid-19 ameaça a economia cultural e criativa não apenas em sua forma de subsistir, mas sobretudo em sua forma de existir. A coletividade, a presença e o convívio são centrais para grande parte dos bens e serviços culturais. Por esse motivo, as instituições, eventos e programas artísticos foram os primeiros a terem atividades econômicas suspensas e, provavelmente, serão os últimos a voltar a funcionar em sua plena capacidade. De acordo com a Unesco, “a pandemia impactou toda a cadeia de valor criativa — criação, produção, distribuição e acesso — e enfraqueceu consideravelmente o status profissional, social e econômico de artistas e profissionais da cultura”. (UNESCO, 2020, p. 2, tradução nossa) Logo nos primeiros dois meses de isolamento social, os impactos para o setor já foram fortemente sentidos. Artistas, técnicos e profissionais autônomos, bem como organizações de pequeno porte, formam um grupo especialmente vulnerável, com acesso limitado aos mecanismos convencionais de proteção social. (CANEDO et al., 2020a) Esta também é uma crise distinta de outras pela universalidade de seus impactos, atingindo a todos os setores e países, e também pela duração de seus efeitos, que tendem a ser longos e resultantes da combinação de muitos fatores. De acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE):
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Os efeitos da crise nos canais de distribuição e a queda dos investimentos pelo setor afetarão a produção de bens e serviços culturais e sua diversidade nos meses, senão anos, seguintes. No médio prazo, os níveis mais baixos do turismo internacional e nacional, a queda do poder aquisitivo e a redução do financiamento público e privado para as artes e a cultura, especialmente a nível local, poderão ampliar ainda mais essa tendência negativa. Na ausência de estratégias responsivas de apoio público e recuperação, a redução dos setores culturais e criativos terá impacto negativo nas cidades e regiões em termos de emprego e renda, níveis de inovação, bem-estar dos cidadãos e vibração e diversidade das comunidades. (OCDE, 2020, p. 2) As previsões das consequências da Covid-19 na cultura contam com o agravante de que a crise no segmento precede a pandemia. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ( IBGE, 2019), a participação do setor cultural no total das atividades econômicas no Brasil sofreu queda entre 2007 e 2017. A redução foi registrada na participação de empresas e outras organizações (de 8,0% para 6,5%), no pessoal ocupado total (4,2% para 3,7%) e nos assalariados (3,5% para 3,3%). O IBGE também registrou, no período, queda de participação do setor cultural na geração de emprego. A redução foi registrada tanto no número de pessoal ocupado no setor cultural total (de 6,3% para 5,6%), quanto na Indústria de Transformação (de 3,1% para 2,3%), no Comércio (de 5,5% para 4,0%) e nos Serviços não Financeiros (de 9,9% para 8,8%). (IBGE, 2019) Vale destacar que 44% dos ocupados do setor cultural trabalham por conta própria. (IBGE, 2019) Em linhas gerais, esse tipo de atividade econômica se caracteriza por uma atuação por projeto, com reduzido capital de giro, reservas financeiras limitadas e pouca capacidade de planejamento a longo prazo. Portanto, as características de vulnerabilidade da economia criativa tornam o atual cenário ainda mais impactante para profissionais do segmento. Soma-se, a isso, o contexto de instabilidade e decréscimo de investimento das políticas públicas para a cultura no Brasil. Dados do IBGE (2019) indicam que os gastos públicos em cultura perderam importância entre 2011 e 2018, no total (de 0,28% para 0,21%) e nas três esferas do poder. No âmbito federal, a redução 11
foi de 0,08% para 0,07%. As maiores perdas relativas foram registradas no orçamento do Ministério da Cultura e do Fundo Nacional de Cultura. Desde 2015, o orçamento do Ministério da Cultura vinha diminuindo, e a Emenda Constitucional 95, que impõe um limite para os gastos públicos, apontava para um achatamento ainda maior. (BRANT, 2018) Houve também um recuo no incentivo fiscal federal para projetos culturais de 2,3% entre 2011 e 2018. No mesmo período, nos estados, os gastos públicos sofreram redução ainda maior, passando de 0,42% para 0,28% do orçamento. Já nos municípios, a redução foi de 1,12% para 0,79%. (IBGE, 2019) A partir de 2016, no governo Temer, foram realizadas sucessivas reformas administrativas que reduziram a estrutura do Ministério da Cultura, culminando em sua transformação na Secretaria Especial de Cultura, no início do governo Bolsonaro, em 2019. A nova secretaria vivencia um período de instabilidade, com alta rotatividade de gestores e sem quaisquer políticas de repercussão nacional positiva. A isso, somam-se o contingenciamento dos recursos do Fundo Nacional de Cultura e o fato de que as políticas culturais de fomento foram alvo de campanhas difamatórias, com tentativas de criminalização, resultando, inclusive, na instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito. Infelizmente, tal contexto tem repercutido nos âmbitos estadual e municipal, ocasionando no enfraquecimento das estruturas de gestão da cultura. Tais fatores mostram que o futuro do setor, a médio e longo prazo, depende sobremaneira das medidas de auxílio durante a crise e das respostas para mitigar os danos e sua duração. É de extrema importância analisar o quão prontamente e como os governos locais e nacionais reagiram, analisando as medidas executadas nos primeiros meses da crise. Como veremos, os governos responderam com a adoção e com o anúncio de diversas medidas, de amplitude e efetividade variáveis, por vezes insuficientes. Este artigo apresenta e analisa as estratégias de enfrentamento apontadas pelos respondentes da pesquisa Impactos da Covid-19 na Economia Criativa, propondo reflexões sobre o panorama das primeiras iniciativas de políticas públicas para mitigação dos efeitos da crise. O artigo está dividido em três partes, além desta introdução e da conclusão. Primeiro, são apresentados os procedimentos metodológicos adotados pela pesquisa. Em seguida, são discutidos os recursos, as necessidades e as medidas propostas para enfrentamento das consequências da pandemia. Por fim, é traçado um panorama internacional e nacional com as primeiras políticas públicas em resposta à crise, incluindo os processos decisórios da implementação da Lei Aldir Blanc. O objetivo principal é avaliar de que forma tais medidas podem ser consideradas como políticas públicas emergenciais capazes de contribuir para a recuperação da economia cultural e criativa.
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PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS Logo no início da pandemia, o Observatório da Economia Criativa da Bahia (OBEC-BA), grupo de pesquisa interdisciplinar e interinstitucional, entendeu que era urgente criar mecanismos para registrar, monitorar e analisar as consequências da crise nos setores artísticos, culturais e criativos. A pesquisa Impactos da Covid-19 na Economia Criativa (CANEDO et al, 2020a), primeira pesquisa nacional com este formato e propósito, foi desenvolvida em março de 2020 para coletar dados, promover análises e gerar subsídios para os debates e para as políticas públicas de enfrentamento aos efeitos da crise sanitária que tem atingido indivíduos e organizações. As escolhas metodológicas foram discutidas pelo grupo de pesquisadores a partir de um levantamento do estado da arte das investigações nacionais e internacionais sobre os impactos da crise sanitária no setor cultural, logo no início da pandemia. Naquele momento, a maior parte das pesquisas no Brasil procurava mensurar impactos econômicos, com foco na quantidade de eventos cancelados e nas perdas de receita e renda para o setor. A pesquisa do OBEC-BA procurou identificar, a partir das percepções de profissionais e organizações, perfis, impactos, estratégias e relações prévias com mecanismos de financiamento à cultura dos diversos setores que compõem a economia criativa no Brasil. Foram desenvolvidos dois instrumentos para coletar dados de indivíduos e organizações e captar as particularidades de cada tipo de respondente. Com o objetivo de coletar dados de abrangência nacional para oportunizar análises comparativas, os instrumentos foram divulgados em todos os estados da federação a partir de parcerias com órgãos de cultura, universidades, grupos e coletivos culturais. A coleta ocorreu entre os dias 27 de março e 23 de julho, obtendo 2.608 respostas de todos os estados da federação, exceto Rondônia. No final, foram consideradas válidas 1.910 respostas, sendo 1293 de indivíduos e 617 de organizações. A pesquisa apresentou alguns desafios e limitações. Destaca-se a dificuldade de se mensurar um impacto em termos absolutos na economia criativa, conceito guarda-chuva que abriga setores heterogêneos que contêm modelos de negócios díspares e organizações e profissionais com receitas e perdas em escalas muito diversas. Ademais, é preciso ressaltar a histórica carência de dados macro e microeconômicos que sirvam como referência para as análises. Falta consenso quanto aos conceitos e metodologias adotados em estudos oficiais e acadêmicos. Há, ainda, a dificuldade de alguns profissionais e organizações da economia criativa em sistematizar e reportar informações sobre a própria atuação, incluindo dados precisos de receitas e perdas. Faltam registros administrativos, planejamento e previsões e, em alguns casos, também existe receio de revelar estas informações. Por fim, os resultados representam um recorte específico de pessoas com acesso a internet, prática como usuário e respondente de pesquisas online (websurvey) e disponibilidade de tempo para a participação em iniciativas de investigação.
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Apesar das limitações, acredita-se que os resultados são relevantes e podem contribuir para ampliar a discussão acadêmica e pública sobre as políticas culturais. Os resultados da pesquisa foram previamente divulgados em cinco Boletins de Resultados Preliminares e no Relatório Final, todos disponíveis no site do OBEC-BA1. Nas próximas seções, são apresentados os resultados da segunda parte do instrumento, que faz um levantamento da percepção do setor criativo em relação às estratégias de enfrentamento que estão sendo acionadas e as principais necessidades e demandas para recuperação do setor, ilustradas por depoimentos dos respondentes da pesquisa. Na sequência, são apresentados os resultados de uma pesquisa exploratória complementar de acompanhamento das políticas públicas lançadas entre março e outubro de 2020, com vistas a mitigar os resultados da crise sanitária no setor.
FIGURA 1 // Recursos utilizados para lidar com a situação da pandemia
45%
Desenvolvimento de novos projetos / produtos
42% 36%
Revisão de despesas
30% 27%
Equipamentos para trabalho remoto
27% 18%
Negociação de prazos para projetos e serviços
27% 28%
Serviços para trabalho remoto
27% 20%
Investimento em prestação de serviços online
25% 19%
Investimento em divulgação e relacionamento com público
27% 20%
Treinamento/capacitação
RECURSOS, NECESSIDADES E MEDIDAS PARA A SUPERAÇÃO DA CRISE
17% 16%
Análise de mudança do modelo de negócio
19% 12%
Criação de novas formas de receita
18%
0
A questão sobre os principais recursos utilizados para lidar com a pandemia recebeu respostas de 431 organizações e 964 indivíduos. A suspensão das atividades presenciais alterou a rotina de trabalho dos profissionais de quase todos os segmentos da economia criativa, porém os resultados apontam que o setor criativo não ficou paralisado durante a pandemia. Ao contrário, o que se observa é uma busca intensa de adaptação de modelos de negócios e modos de funcionamento ao novo momento para garantir a continuidade das ações – 45,1% dos indivíduos e 42% das organizações mencionaram que estão dedicando tempo ao desenvolvimento de projetos e produtos inéditos. O segundo recurso mais mencionado pelos respondentes foi a revisão de despesas, o que condiz com o cenário de queda brusca de receitas no setor. Ademais, pelo menos 1/5 dos respondentes mencionaram que estão participando de iniciativas de formação e treinamento. Também se destacam, como recursos utilizados, o investimento para a prestação de serviços online e para a divulgação e relacionamento com o público. A avaliação das respostas abertas identificou menções ao uso do tempo longe das atividades presenciais para trabalhar no reposicionamento da imagem pública institucional e de carreiras artísticas; para a criação de campanhas de divulgação e de relacionamento; para reorganização de acervos, materiais, portfólios e até para a organização de processos internos – atividades para as quais muitos não conseguiam dedicar tempo na rotina de trabalho pré-pandemia.
10%
20%
40%
50%
Fonte: CANEDO et al, 2020a, p. 39.
No tocante às necessidades, indicadas por 967 indivíduos e 430 organizações, para além do auxílio financeiro no período durante e pós-pandemia, ações no campo da capacitação, serviços e infraestrutura para a adaptação da atuação no ambiente digital configuram como uma alta demanda dos agentes culturais. Ilustrando essa tendência, 55% dos respondentes, entre indivíduos e organizações, escolheram a opção “Estratégias digitais de relacionamento com público, venda de produtos e prestação de serviços” como uma das principais necessidades para lidar com a situação pandêmica (Figura 2). Outras opções de resposta, como o acesso a equipamentos e serviços para trabalho remoto, indicam esta centralidade do ambiente digital como forma de continuação da atuação profissional no setor cultural. FIGURA 2 // Necessidades para lidar com a situação da pandemia
Estratégias digitais de relacionamento com público, venda de produtos e prestação de serviços
55% 55% 36%
Serviços para trabalho remoto
28% 31%
Equipamentos para trabalho remoto
29% 26%
Linha de crédito
Essa crise me possibilitou estudar, escrever projetos e pensar novos desafios que eu não teria como pensar se estivesse trabalhando todos os dias. Minhas maiores dificuldades hoje são como transformar meu produto artístico em audiovisual ou como começar a vender pela internet, como direcionar de modo que as pessoas se interessem em comprar. (Intérprete e produtora executiva, 25-39 anos, Bahia)
30%
ORGANIZAÇÕES
INDIVÍDUOS
32% 24%
Treinamento Contratação de especialistas 0
23% 7% 13% 10% INDIVÍDUOS
20%
30%
40%
50%
60%
ORGANIZAÇÕES
Fonte: CANEDO et al, 2020a, p. 40.
1 OBEC. Observatório da Economia Criativa da Bahia. Disponível em: https://bit.ly/2XORt7q. Acesso em: 10 set. 2020. 14
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É importante ressaltar que a demanda por capacitação e treinamento para a atuação digital está intimamente atrelada à dificuldade de monetização de serviços e produtos neste novo formato, que é anterior ao contexto da pandemia do novo coronavírus, mas certamente intensifica-se com ele . É o que Chris Anderson (2013) chama de “economia dos bits”, referindo-se ao processo de criação, divulgação e trocas comerciais que ocorre a partir das redes sociais e outros ambientes da internet. Neste tipo de economia, o movimento natural é que usuários e consumidores “passem a consumir itens gratuitos ou a preços bem mais acessíveis do que os bens físicos” (FERREIRA; FISCHER; COVALESKI, 2016, p. 8), justificando a alta demanda de treinamento, por parte dos agentes culturais, que buscaram no digital uma forma de geração de renda para a sobrevivência. Criamos um curso de cerâmica online , alguns dos atuais alunos permaneceram fazendo o curso nesse formato, pouquíssimos novos alunos surgiram nesse formato. Criamos uma loja virtual no Facebook, porém ela não está atraindo compradores. (Empresa limitada, artes visuais, Rio Grande do Sul) Apesar da tentativa de se manterem ativos através da criação e oferta de produtos adaptados aos meios digitais, da realização de cursos e da redução de despesas, profissionais e organizações demonstraram, em uma questão aberta, preocupação em relação à continuidade de suas atividades. Relata-se uma busca constante, e com pouco retorno do poder público, por orientações e protocolos para a reabertura. Também observa-se relatos de procura constante por editais emergenciais e outras formas de fomento, por oportunidades de trabalho alternativos dentro da própria área de atuação ou, até mesmo, a migração completa de área, abandonando a ocupação original – especialmente no setor artístico. Por fim, alguns respondentes mencionaram que estão cogitando, inclusive, o encerramento das atividades, a depender da confirmação de contratos e serviços suspensos. A pesquisa procurou identificar sugestões de medidas e demandas que ajudariam na superação da crise e na recuperação econômica do setor. Foram respostas recebidas por meio de uma questão aberta, com participação de 281 organizações e 608 indivíduos. Parte das respostas remetem a problemas estruturais característicos do setor cultural que antecedem a pandemia. Porém, a maioria dos respondentes indicou sugestões relativas ao enfrentamento da crise atual e suas consequências diretas. Uma vez que foram coletadas a partir de uma questão aberta, fezse necessário um processo de limpeza e categorização das respostas em quatro grupos: (1 ) Sustentabilidade financeira; (2) Fortalecimento da gestão cultural; (3 ) Aprimoramento da atuação profissional em ambiente digital e (4 ) Pesquisa e formação continuada. É importante destacar que, apesar de terem sido categorizadas em grupos, grande parte das medidas sugeridas não são estáticas em um único grupo, assim como há alta correlação e diálogo entre a categorização desenvolvida.
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As medidas de isolamento, impostas para a contenção do aumento de casos da doença, incidiram diretamente no aumento do número de desempregos e na diminuição da renda de grande parte dos profissionais liberais do país. Essa situação reflete-se imediatamente nas demandas dos participantes da pesquisa, que sugeriram, em sua maioria, medidas no escopo da sustentabilidade financeira para a superação da crise. Auxílio emergencial e apoio financeiro para indivíduos e famílias foram as medidas mais citadas pelo universo total de respostas dessa questão. As outras sugestões, as que figuram neste primeiro grande grupo, estão relacionadas com políticas de fomento e financiamento, como editais simplificados e emergenciais, oferta de linhas de crédito especiais, pagamento de editais atrasados e apoio para o desenvolvimento de novos projetos por meio de editais, bolsas e prêmios que possam viabilizar a atuação profissional no período da crise. No recorte das organizações, destacam-se a desoneração tributária, o perdão de dívidas e o subsídio para lidar com o custeio de contas e pagamentos de funcionários, medidas consideradas centrais para a manutenção das organizações. Emergencialmente, a garantia de uma renda mínima para o trabalhador poder comer, enquanto pensa em soluções e novos modelos de negócio. (Produtora e gestora cultural, 50-59 anos, Rio de Janeiro) É interessante notar algumas sugestões pouco usuais entre as políticas culturais implementadas historicamente no Brasil, a exemplo da proposta de compra ou contratação antecipada de bens e serviços culturais. Também ganha destaque a necessidade do poder público de atuar em campanhas de estímulo à ampliação da participação da iniciativa privada e da sociedade civil no financiamento à cultura. O segundo grupo, que congrega boa parte das medidas sugeridas, é referente ao fortalecimento da gestão cultural. São respostas que destacam a necessidade de ampliação e profissionalização das equipes de órgãos culturais, assim como a construção de políticas públicas com atuação emergencial e a longo prazo, em todas as esferas do poder público e de forma articulada. Estas medidas denotam a expectativa da atuação do poder público como consultor técnico e mediador na reorganização e adaptação dos setores, na estruturação da gestão das organizações culturais e na construção de mecanismos inovadores e facilitadores de acesso a recursos públicos. A terceira categoria agrega medidas referentes a ações de aprimoramento da atuação profissional no ambiente digital, centrais não só entre as medidas sugeridas, mas também entre as principais necessidades dos agentes culturais, como visto anteriormente. São demandas relacionadas à dificuldade de transição do ambiente presencial para o digital, tanto referente ao trabalho corporativo, quanto a adaptação de serviços e bens culturais, criativos e artísticos. Estão presentes nesta categoria demandas por aquisição de equipamentos tecnológicos, como notebooks, câmeras e softwares; cursos de capacitação para 17
produção, distribuição e vendas de produtos e serviços culturais na internet; cursos de marketing digital para inserção neste novo ambiente de trabalho, entre outras sugestões. Destaca-se, também, a demanda por apoio do setor público na construção de festivais e eventos que haviam sido planejados para acontecer presencialmente, mas que foram adaptados para o meio digital.
FIGURA 3 // Medidas sugeridas por indivíduos e organizações para superação da pandemia Apoio para pagamento de funcionários
Liberação de recursos de fundos culturais e setoriais
Uma ajuda para adquirir equipamentos para transformar o negócio em digital. Cursos e formação para ensinar a usar a tecnologia a nosso favor. (Mediadora de literatura infantil, oficineira e professora de artes, 40-49 anos, Rio Grande do Sul)
Apoio para a realização de eventos e festivais nas redes sociais
Auxílio emergencial
Manutenção das organizações Editais simplificados e emergenciais Suspensão de contas de custeio Campanhas de estímulo à ampliação da participação da iniciativa privada e da sociedade civil no financiamento à cultura
Bolsas e prêmios para desenvolvimento de projetos
1. SUSTENTABILIDADE FINANCEIRA
Compra ou contratação antecipada de bens, produtos e serviços culturais Desoneração tributária Perdão de dívidas
Linhas de crédito especiais
Ampliação e profissionalização das equipes dos órgãos de cultura
Pagamento de editais atrasados
Campanhas de valorização das artes e da cultura
Fortalecimento institucional dos órgãos públicos de cultura
2. FORTALECIMENTO DA GESTÃO CULTURAL
Estratégias para a monetização das atividades online
Planejamento das políticas públicas
3. APRIMORAMENTO DA ATUAÇÃO PROFISSIONAL EM AMBIENTE DIGITAL
Canais de comunicação
Campanhas de divulgação
Suporte para o desenvolvimento de novos modelos de negócio
Pesquisas de mercado
Suporte para a comercialização e distribuição de produtos pela internet
Suporte para digitalização de acervos
Plataformas de divulgação de bens, produtos e serviços culturais
Aquisição de equipamentos Cursos e capacitações
Cursos e capacitações
Cursos e capacitações
4. PESQUISA E FORMAÇÃO CONTINUADA
Por fim, o último grupo de medidas refere-se a iniciativas que estimulem pesquisa e formação continuada dos profissionais do setor cultural. As medidas classificadas nesta categoria dialogam com as demais, visto que indivíduos e organizações demandam oportunidades de aprimoramento pessoal e profissional para melhorar a sustentabilidade financeira, os modelos organizacionais, a comunicação institucional, o relacionamento com os públicos e a atuação no ambiente digital. A demanda por pesquisa pode ser destacada, uma vez que o cenário instável da pandemia pode promover um olhar atento para os sujeitos e organizações que compõem o setor cultural, pretendendo identificar perfis, fragilidades, pontos fortes e em quais espaços políticas públicas e recursos devem ser priorizados. Editais públicos para projetos a serem realizados a médio prazo. Capacitação gratuita aos agentes culturais nas diferentes áreas da cadeia produtiva da economia da cultura. (Artista visual, professora e gestora cultural, 50-59 anos, Distrito Federal) Para além destes quatro grupos que compõem a categorização das medidas sugeridas, é importante destacar as respostas que indicaram só ver possibilidade de superação da crise a partir da vacina contra a Covid-19 e o fim do cenário pandêmico. Na esteira destes comentários, há ainda aqueles que indicaram que o relaxamento das medidas de isolamento e o retorno às atividades presenciais, mesmo sem vacina, seria a principal medida sugerida. Parte destas respostas estão relacionadas com indivíduos e organizações que informaram atuar exclusivamente de forma presencial e, portanto, não terem alternativa de atividade econômica em outros moldes.
Pesquisas sobre públicos
Pesquisa de mercado
Fonte: CANEDO et al, 2020a, p. 45.
POLÍTICAS CULTURAIS COMO RESPOSTAS DOS PODERES PÚBLICOS Apesar das particularidades do setor cultural em cada país, a crise no setor cultural e criativo é global e, por isso, observar o que tem sido feito em diferentes contextos é fundamental para a construção de soluções locais e regionais. Sem ter a pretensão de esgotar as diversas análises possíveis, esta seção apresenta um amplo panorama de medidas de enfrentamento da crise que foram realizadas em diferentes países e estados brasileiros. A partir de levantamentos realizados pela Rede EUNIC (Institutos Nacionais de Cultura da União Europeia, 2020) e pela OEI (Organização dos Estados Iberoamericanos)2 é possível observar algumas tendências. A flexibilização dos instrumentos de fomento, adotada por estados brasileiros, foram também algumas das ações iniciais em diversos países, seja através de tramitações aceleradas de leis e decretos, seja na simplificação dos processos de repasse e premiação de projetos e instituições. Prêmios, chamadas e fomento à produção cultural online também foram lançados em alguns países. No entanto, as melhores abordagens no cenário internacional foram aquelas que olharam para as particularidades e diferentes necessidades dentro da diversidade da economia criativa. Itália e Alemanha adotaram vouchers para compensar perdas com cancelamentos de eventos e bilheteria; a Áustria, além disso, ofereceu ao setor do audiovisual uma doação não reembolsável de até 75% dos custos de filmagens interrompidas por causa da Covid-19. Alemanha e Inglaterra, por exemplo, combinaram instrumentos pensados para diferentes segmentos e seus desafios, desde fundos garantidores de crédito até pacotes de ajuda para trabalhadores independentes e microempresas, bem como o oferecimento de auxílios específicos a organizadores de eventos culturais. Em alguns países, como Holanda e Finlândia, governos envolveram também agentes privados para ampliar o financiamento emergencial e/ou estratégico no setor cultural.
2 ORGANIZACIÓN DE ESTADOS IBEROAMERICANOS, 2021. 18
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O Conselho de Artes da Inglaterra (ARTS COUNCIL ENGLAND, 2020) desenvolveu um plano de apoio ao setor em três fases, prevendo não apenas auxílio financeiro, mas outros instrumentos para ajudar as organizações culturais a reabrir, quando for seguro, a adaptar seus modelos de negócios e a continuar a operar em um ambiente social diferente do que existia no período pré-pandemia. Na América do Sul, destacam-se algumas experiências. O Paraguai anunciou uma série de ações, desde emergenciais, como apoio à segurança alimentar de profissionais da cultura, quanto estruturantes, até a criação de uma plataforma virtual de capacitação para que trabalhadores culturais possam desenvolver cursos e/ou oficinas ao vivo, cobrando por isso. A Argentina criou o Fondo Desarrollar (Fundo Desenvolver), uma política pública que visa contribuir especificamente para a sustentabilidade dos espaços culturais. No Brasil, as primeiras respostas dos governos estaduais de apoio à crise no setor cultural surgiram ainda em março, logo após o fechamento de espaços culturais e a suspensão de atividades com público. A partir de um levantamento das ações anunciadas pelos governos estaduais no Brasil nos dois primeiros meses da pandemia (HARDMAN, 2020)3, é possível classificar algumas linhas de ação, em diferentes graus de inovação e extensão. As primeiras ações adotadas por diversos estados dizem respeito as medidas administrativas, como prorrogação dos prazos de prestação de conta e de execução dos projetos culturais financiados e antecipação de pagamentos de parcelas de termos de cooperação ou prêmios/editais. Bahia, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul são exemplos de estados que anunciaram estes tipos de medidas. Com a migração dos eventos e experiências culturais para o ambiente digital, proliferaram-se editais emergenciais para promoção de festivais online e/ou fomento direto a artistas e produtores para a criação de apresentações na internet e redes sociais. Como exemplos, podemos citar os estados de Alagoas, Amazonas, Bahia, Espírito Santo, Maranhão, Mato Grosso, Piauí, Rio de Janeiro e Distrito Federal. Paralelamente, ocorreram ações de difusão de conteúdos culturais online já existentes, reunidos em plataformas, portais ou divulgados através das redes sociais das secretarias de cultura. O estado de São Paulo criou a plataforma #culturaemcasa (www.culturaemcasa.com.br) e o estado do Amazonas criou uma programação com aulas virtuais, no Youtube e no Instagram. O estado do Mato Grosso anunciou a contratação de vinte artistas para ministrarem cursos de extensão cultural online nas áreas de teatro, dança, cinema, literatura, música e artes visuais. 3 Análise a partir de levantamento realizado pela pesquisadora, produtora e gestora cultural Luisa Hardman, entre março e maio de 2020. 20
Em caráter emergencial para apoio aos artistas, foram anunciadas algumas iniciativas de arrecadação e distribuição de cestas básicas pelas secretarias de cultura de estados e municípios. As doações tiveram como foco, sobretudo, artesãos, artistas de circo e artistas autônomos, incluindo artistas de rua. Outras ações de caráter mais estruturante para a subsistência dos diferentes setores da economia criativa, a exemplo de créditos para pequenos e médios negócios criativos, foram ofertadas por poucos estados. Os estados do Rio Grande do Sul, São Paulo e Paraná criaram programas de crédito emergencial com simplificação de processos, redução de taxas de juros e ampliação de prazos de carência. Merecem destaque, ainda, inovações na área de fomento e difusão e/ ou em necessidades de setores específicos, como audiovisual. A Secretaria de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul fez ajustes na Lei de Incentivo à Cultura (LIC) para incluir a captação via lei de incentivo estadual para projetos culturais digitais e projetos de patrimônio digitais. (SILVA, 2020) Já o Paraná lançou um edital para licenciar filmes paranaenses, realizados nos últimos 10 anos, para disponibilização ao público na plataforma de streaming do Governo do Estado. (PARANÁ, 2020) Para o setor cultural, além da severa crise, o ano de 2020 ficará marcado como o ano da Lei nº 14.017/2020, conhecida como Lei Aldir Blanc (LAB), regulamentada em agosto, mais de cinco meses após o início da crise sanitária. O processo de elaboração, aprovação e implementação da Lei deverá ser reconhecido como uma conquista histórica, tendo em vista tratar-se de uma política pública elaborada a partir da participação dos poderes legislativo, executivo e judiciário; das três esferas de governo federal, estadual e municipal; com amplo envolvimento da sociedade civil. O modelo de gestão, de algum modo, colocou em prática o antigo desejo do setor de ver o Sistema Nacional de Cultura em funcionamento. A Lei representa a distribuição de um montante de inédito de recursos que poderão contribuir para amenizar os impactos da crise. Estes recursos serão executados a partir de três incisos que prevêem renda emergencial mensal para trabalhadores; subsídio mensal para manutenção de espaços, grupos e coletivos; e a possibilidade de realização de editais, chamadas públicas, prêmios e aquisição de bens e serviços vinculados ao setor cultural. (BRASIL, 2020) Todavia, apenas a distribuição dos recursos não representa garantia de resultados. A extensão do sucesso da implementação da LAB depende de alguns fatores como: visão estratégica dos gestores no uso dos recursos; ampla participação social e colaboração na construção das medidas; realismo quanto à gravidade e duração da crise; e consciência das peculiaridades e da importância da cultura. 21
Infelizmente, como já mencionado, a pandemia afetou a economia criativa e as políticas culturais em um período de extrema fragilidade institucional dos órgãos de cultura e no final de um mandato na esfera municipal. Em um contexto ideal, a efetividade da Lei seria beneficiada pela continuidade da implementação dos sistemas de cultura nos entes federados, notadamente nos municípios, que contariam, assim, com uma estrutura de lei, plano, fundo e conselho de cultura para auxiliar na elaboração de editais. A estruturação do sistema colabora, em diversos aspectos, desde a preparação da área para a agilização dos processos necessários à distribuição dos recursos, até a garantia da diversidade de participantes. (COSTA, 2014) Os sistemas estaduais e municipais de cultura também agilizariam esta distribuição se seus sistemas de informação estivessem desenvolvidos e atualizados, pois muito se tem acentuado a importância destes sistemas para a construção, implementação e avaliação de políticas públicas. (DURAND, 2008) Destaca-se que a carência de sistemas de informações e indicadores culturais atualizados e em operação dificultou o processo de implementação da LAB, tendo em vista a necessidade dos estados e municípios de realizarem cadastros dos agentes culturais. Distintos processos para a implementação da LAB foram desenvolvidos nos estados e municípios da federação a partir dos desafios e especificidades de cada localidade. Na Bahia, para mencionar um exemplo, o processo decisório para a implementação da Lei Aldir Blanc pelo governo estadual foi executado pela Secretaria de Cultura. A preparação para aplicação dos recursos emergenciais se iniciou ainda no mês de julho, antes mesmo da Lei ser aprovada e sancionada pelo Congresso Nacional e pela Presidência da República, respectivamente. Para a definição quanto ao modo de aplicação dos recursos e dos setores a serem contemplados, foram realizadas as seguintes ações (Figura 4): FIGURA 4 // Fluxo de preparação para a implementação da Lei Aldir Blanc na Bahia LAB LEI 14.017/2020
ESTADO DA BAHIA (SECULT)
OPERACIONALIZAÇÃO - MODELAGEM
NÚCLEOS
CADASTRO CULTURAL
CONSELHO ESTADUAL DE CULTURA
DECRETO 10.464/2020
RENDA EMERGENCIAL (60%)
EDITAIS, PRÊMIOS, ETC (40%)
PARTICIPAÇÃO SOCIAL
(1) Criação de uma estrutura organizacional no âmbito do estado da Bahia, composto por: a. Núcleo Interinstitucional para Implementação da Lei Emergência Cultural Aldir Blanc no Estado da Bahia; b. Núcleo de Cooperação aos Territórios e Municípios; c. Núcleo de Dirigentes da Cultura; (2) Cadastro cultural, em parceria com a Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte (SETRE), com o objetivo de criar o banco de dados de Trabalhadores da Cultura, servindo de base para acesso ao auxílio emergencial da Lei Aldir Blanc; (3) Reuniões do Conselho Estadual de Cultura – CEC, entre os meses de julho e setembro, resultando na criação de comissões para análise das demandas dos setores, expectativas de regulamentação e implementação da Lei; (4) Reuniões virtuais em julho com representantes da sociedade civil e de coletivos de artistas, com o objetivo de discutir as demandas da comunidade cultural dos seguintes setores: música, dança, teatro, circo, artes visuais, audiovisual e literatura, além dos pontos de cultura; (5) Ações de (BAHIA, 2020, p. 17). Dos R$ 110.761.683,10 disponibilizados, o Plano de Aplicação de Recursos (SECULT/BA, 2020, p. 1) prevê a destinação de R$ 60 milhões (54%) para a renda emergencial (Inciso I), enquanto os 46% restantes (50,8 milhões) foram destinados ao setor cultural por meio de editais para chamadas públicas, prêmios, aquisição de bens e serviços vinculados ao setor (Inciso III). O Inciso II, que prevê subsídio mensal para organizações culturais, ficou sob a responsabilidade das prefeituras municipais.
CONCLUSÕES Os recursos, as necessidades e as medidas sugeridas pelos indivíduos e organizações, ainda que extremamente plurais, indicam caminhos convergentes no que concerne às demandas prioritárias para o setor cultural. Muitas delas colocam os órgãos de cultura no âmbito federal, estadual e municipal como ator central para a elaboração e execução de políticas que auxiliem os profissionais do setor neste momento excepcional. Tais resultados, portanto, podem fornecer subsídios para políticas públicas e investimentos que necessitariam ser priorizados para auxiliar o setor no enfrentamento da crise e seus impactos. A partir dos casos citados, pode-se afirmar que países e regiões que apoiaram, de maneira mais tempestiva e efetiva, o setor cultural, têm alguns elementos em comum: (1) políticas culturais estruturadas e investimentos baseados em dados e pesquisas; (2) investimento financeiro massivo (muitas vezes em articulação com fundações e agentes privados); (3) iniciativas diversificadas para os diferentes segmentos do setor e seus desafios; (4) flexibilização e simplificação de processos; e (5) visão a médio e longo prazo. Evidentemente, há também o investimento financeiro, mas quanto mais a crise se prolonga, mais notório é o fato de que a existência e o repasse de recursos não são o bastante.
Fonte: Elaboração própria (2020).
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A Lei Aldir Blanc ficará marcada como uma importante movimentação política de reação aos impactos da pandemia causados ao setor cultural. Embora ainda seja cedo para avaliar os seus resultados, o processo de implementação da lei por estados e municípios evidenciou que a adoção de instrumentos tradicionais da gestão pública prejudicou, intensamente, a celeridade do processo e o consequente repasse de verba para os indivíduos e organizações necessitados . No limite, tratase de uma lei emergencial que, em grande parte dos estados da federação, não teve seus recursos empenhados a partir de instrumentos que dialogassem com o contexto excepcional de urgência das respostas e com a diversidade de caminhos possíveis. Importante ressaltar que, dada a enormidade e ineditismo dessa crise global, todas as ações e iniciativas, sejam de governos, entes privados ou da sociedade civil organizada, são necessárias para aplacar os impactos nos diversos elos e agentes do setor cultural e criativo. O tamanho da crise exige a união de esforços, mas exige também estratégia e inovação, sobretudo do poder público, que tem um papel central não apenas como fomentador, mas como regulador e incentivador de soluções a curto, médio e longo prazo. Toda crise amplifica ameaças, mas também poderia representar a possibilidade de encontrar e adotar novas soluções para antigos problemas. Caminhando para o fim do ano de 2020, acompanhamos a lenta tramitação de processos para a liberação dos recursos da Lei Aldir Blanc em estados e municípios e observamos que a disponibilidade de recursos não resultou em inovações reais nas políticas públicas brasileiras. A desarticulação e a situação de fragilidade institucional e estrutural do setor cultural no Brasil, que, como vimos, precedia a pandemia, fizeram com que o Estado brasileiro, ao contrário de outros países, fosse incapaz de implementar políticas emergenciais tempestivas e mais eficazes, compatíveis com a magnitude do desafio trazido pela pandemia de Covid-19. Espera-se que as reflexões apresentadas no artigo possam contribuir para o fortalecimento das pesquisas no campo da cultura e para o enriquecimento do debate público sobre políticas culturais. A construção de políticas públicas, baseadas em dados e evidências, ainda é uma prática incipiente no campo da cultura e da economia criativa. As universidades e os centros de pesquisa podem, e devem, ter um papel ativo no levantamento desses dados, na análise de informações quantitativas e qualitativas e na geração de conhecimentos sobre a economia criativa. 24
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Por Luisa
LEI ALDIR BLANC DE EMERGÊNCIA E O FIM DO PLANO NACIONAL DE CULTURA (2010-2020)
Marques Barreto
Luisa Barreto é jornalista, mestre e doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Escreve de forma independente sobre trabalho imaterial, renda básica universal, economia criativa e crise do trabalho e, como colaboradora, para a Rede Brasileira de Renda Básica (RBRB), veículos de mídia e organizações de livros no Brasil. Foi tradutora do alemão para o português na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e professora no curso de pós-graduação Técnica Klauss Vianna (PUC-SP, 2014-2018) e no SENAC (2013). Desde 2017 vive e trabalha em Berlim, onde criou, em 2021, a rasura., agência que oferece serviços de tradução e de mentoria para desenvolvimento de projetos artísticos e acadêmicos e a IntropiC_, plataforma de criação em artes performativas, junto com o performer, coreógrafo e educador Peti Costa.
INTRODUÇÃO Durante a pandemia de Covid-19, a crise instaurada no setor cultural1 nos últimos anos, principalmente desde o fechamento do Ministério da Cultura, se tornou ainda mais visível. As políticas culturais, no Brasil, se restrigem há anos aos editais e prêmios regulamentados pela Lei Federal de Incentivo à Cultura (Lei Rouanet) e pelas leis estaduais e municipais. O último projeto de estímulo a cultura, o Plano Nacional de Cultura (IPEA, 2013), que previa não só o aumento dos gastos no setor, mas a ampliação de sua esfera de atuação na economia através da promoção da diversidade e dos processos de gestão e participação social nas políticas culturais está prestes a perder validade. Até o momento, não se sabe como será conduzido, se será substituído ou extinto. Com a pandemia, a mobilização do setor fez coro aos pedidos por renda emergencial, organizados desde o início das medidas de isolamento social pela sociedade civil e pelas frentes parlamentares que negociaram uma renda básica de emergência para a população em geral. A fragilidade do setor cultural, um dos mais afetados pela crise de saúde pública, foi ainda mais exposta: sua forte dependência dos eventos presenciais, condição de instabilidade, pois pressupõe que o artista tenha sempre algo a apresentar e vender. O caráter de sua produção, em si, que não segue a lógica de produtividade típica de outros setores, como por exemplo, o chamado setor criativo, ainda é algo pouco discutido do ponto 1 O termo “setor cultural” será usado neste artigo em seu sentido geral e amplo, conforme o Marco para estatísticas culturais da UNESCO (2009), pois o objetivo é discorrer sobre a Lei Aldir Blanc no contexto atual das políticas públicas de cultura no Brasil. Isto posto, procuraremos problematizar brevemente que o campo cultural, dado a sua amplitude, foi segmentado em setores heterogêneos e bastante desiguais do ponto de vista do mercado e da empregabilidade. Logo „setor cultural“ não retrata um setor coeso e estruturado, embora o conceito e os mapeamentos de indústrias criativas procurem fazer isto. 29
de vista das políticas públicas. Além disso, as estatísticas de aumento do PIB nos últimos anos no setor cultural caem no breu dos números. Não se faz uma distinção clara entre os arranjos produtivos com base em métodos de pesquisa qualitativos, restando apenas a vaga constatação de que em comparação ao setor “X”, o “setor cultural” representou 7,7% (FGV, 2020). A Lei nº 14.017 (BRASIL, 2020) é uma resposta a alguns destes problemas, em caráter de emergência, mas nem de longe é a solução para a precarização do setor. A Lei Aldir Blanc de Emergência Cultural ou Lei Aldir Blanc de Apoio à Cultura, homenagem ao compositor, letrista e cronista, Aldir Blanc, morto em razão da pandemia de Covid-19, em 4 de maio de 2020, leva o nome do autor, dada a repercussão de sua morte nas redes sociais por diversas figuras públicas brasileiras. A Lei dispõe “sobre ações emergenciais destinadas ao setor cultural a serem adotadas durante o estado de calamidade pública” (BRASIL, 2020) e definiu o aporte de três bilhões de reais aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios. A renda emergencial consiste em subsídio mensal pago às pessoas físicas, micro e pequenas empresas do setor cultural, cooperativas, instituições e organizações culturais comunitárias que tiveram as suas atividades interrompidas em função das medidas de isolamento social. Além do subsídio mensal, 20% dos recursos disponibilizados foram destinados à abertura de editais, prêmios e chamadas públicas para fomento de atividades relacionadas a economia criativa e economia solidária.
Crise generalizada A Lei Aldir Blanc mostrou o quanto o setor cultural precisa de métodos mais democráticos de redistribuição de recursos, que sejam capazes de acolher pessoas físicas com faixas de renda e de produção variados, assim como mecanismos de apoio, suporte e manutenção de espaços culturais. O regime de salário intermitente, modelo utilizado na França, que regulamenta o trabalho artístico-cultural e os contratos de curta duração, garantindo um seguro-desemprego nas fases em que não há trabalho certo, chegou a ser discutido no Brasil, em pesquisas acadêmicas ligadas ao campo das ciências sociais e da filosofia, com forte influência da obra de Maurizio Lazzarato, mas menos discutido no campo das políticas públicas. Para Lazzarato, 30
As lutas dos professores da rede pública de educação e dos intermitentes do espetáculo, que tiveram lugar em 2003, bem como as lutas dos pesquisadores que se seguiram, no verão de 2004, não são apenas novas modalidades de luta salarial. Não se constituem somente a partir de um vínculo de subordinação (salarial e jurídico) a um patrão, seja privado ou público (seguindo a oposição clássica empregado/empregador), mas questionam a própria natureza da criação e da realização dos bens comuns (a cultura, a educação, a pesquisa) e a função co-produtiva dos públicos e usuários de tais bens (alunos, espectadores, doentes, consumidores) que participam de sua produção. Coloca-se, assim, em questão o problema dos dispositivos institucionais e tecnológicos necessários à criação e à distribuição da riqueza (comum), de seu financiamento e do direito de acesso da subjetividade qualquer a essa nova cooperação (LAZZARATO, 2006, p. 142-143). A intermitência, como o grande paradigma do trabalho em geral, se tornou um problema de redistribuição de renda que extrapola, e muito, os limites da problemática no setor cultural. A própria segmentação e distribuição das “rendas de emergência” expôs a generalidade do conceito de intermitência para outras esferas. A carta aberta escrita não só por intermitentes do espetáculo, mas pelos “intermitentes do emprego”, dirigida ao presidente Emmanuel Macron, mostra isso: Se você [presidente] não sabe de quem estamos falando, tratase de todos os temporários, extras, trabalhadores temporários, trabalhadores sazonais que trabalham em hotéis, restaurantes, serviço, pessoal de manutenção... A lista é longa daqueles que também estão empregados com contratos curtos, que também são incertos de seu futuro, que também estão mais do que todos com pressa. Todos aqueles que você deixou passar, como sempre, em silêncio (LA REVUE DU SPECTACLE, 2020). Algo similar aconteceu no Brasil com o Breque dos Apps, paralização dos entregadores ligados a empresas como Uber, Ifood e Rappi, pedindo por melhores condições de trabalho. É cada vez mais urgente reconhecer a relação entra essas coisas, a forma como o trabalho no setor cultural se assemelha a precarização do trabalho, em geral, principalmente o chamado trabalho imaterial e agora os chamados trabalhos essenciais, como o dos entregadores, caixas de supermercado e enfermeiros. O que têm, portanto, em comum, o enfermeiro, o entregador e o artista de palco é o que a economia não tem sido capaz de responder. Ou seja, ao lado da economia da abundância (RIFKIN, 2015), em que o compartilhamento à custo quase zero, a democratização do acesso a palestras, cursos, aulas de yoga, aulas de dança e uma infinidade de novos conteúdos gerados durante a pandemia, mostram e reinforçam o descompasso entre produção e remuneração. O mundo readaptado ao virtual mostrou que o trabalho, mesmo o do setor cultural, 31
pode se reinventar no meio digital à custos cada vez mais baixos, ou seja, sem regulamentação, o trabalho no setor cultural tende a ser cada vez mais precário.
Economia Criativa no Brasil e o Plano Nacional de Cultura A trajetória das políticas públicas culturais nos últimos dez anos no Brasil tem sido tremendamente inconstante. Com avanços e rupturas bruscas, ampliações e reduções do conceito de cultura e um amalgamado ainda bastante indefinido sobre a relação entre cultura, criatividade, desenvolvimento urbano e territorial. Há aproximadamente dez anos que se tenta juntar, no Brasil, assim como vem ocorrendo em diversos países do mundo, o setor criativo ao cultural, como se se tratassem, em primeiro lugar, de formas de produção semelhantes e, em segundo, como se participassem das estatísticas que mostram aumento no PIB, da mesma maneira. No final dos anos 1990, as políticas culturais se voltaram para o conceito de Economia Criativa, na época, o resultado de um conjunto de pesquisas e mapeamentos econômicos sobre o peso que tinham na formação do PIB nacional, as chamadas indústrias criativas. O primeiro estudo, neste sentido, foi publicado pelo governo da Austrália e o segundo, que ficou mais conhecido, pela Inglaterra. Tanto o mapeamento australiano, Creative Nation (APO, 1994), como o britânico Mapping the Creative Industries (GOV.UK, 1998), lançaram as bases para a formulação de políticas culturais no século XXI, marcadas por um reconhecimento do papel estratégico da criatividade no desenvolvimento econômico, e da cultura, em grande parte na sua associação e vínculo com outras indústrias. No Brasil, foi criada em 2011, a Secretaria da Economia Criativa (SEC) que, alinhada aos mapeamentos internacionais produzidos na Austrália e na Inglaterra, lançou o Plano da Secretaria da Economia Criativa (BRASIL, 2011). O Plano reordenou os setores criativos e culturais segundo o Marco para Estatísticas Culturais2 (UNESCO, 1986), que serve de base para o desenvolvimento de metodologias de pesquisa na área cultural. Os setores criativos foram categorizados em: setores nucleares3, relacionados (turismo, esportes e lazer) e patrimônio imaterial (expressões e tradições orais, rituais, línguas e práticas sociais). O diferencial brasileiro, naquela época, era o de que a Economia Criativa estava entrelaçada em quatro princípios norteadores: diversidade cultural, inclusão social, inovação e sustentabilidade. A articulação com outros ministérios, agências de fomento e parceiros institucionais previa a expansão dos setores culturais na direção dos setores criativos e não o contrário, pois os primeiros eram vistos como nucleares. Além disso, ações como a criação de
2 The Framework for Cultural Statistics (FCS). 3 Patrimônio natural e cultural; espetáculos e celebrações; artes visuais e artesanato; livros e periódicos; design e serviços criativos; audiovisual e mídias interativas (BRASIL, 2011, p. 27). 32
marcos regulatórios na área de tecnologia, infraestrutura urbana, o Marco Civil da Internet e alterações na legislação trabalhista faziam parte do plano definido em 2011 (BRASIL; 2011, p. 51-70). A análise econômica, em 2010, mostrava que a participação dos setores criativos no PIB era de R$ 104,37 bilhões (2,84% do PIB) e superava “subsetores tradicionais de atividade econômica (IBGE) como a indústria extrativa (R$ 78,77 bilhões) e a produção e distribuição de eletricidade, gás, água, esgoto e limpeza urbana (R$ 103,24 bilhões)” (BRASIL, 2011, p. 30).
Economia Criativa Hoje Atualmente, a mais recente avaliação sobre o estado da arte da economia criativa brasileira encontra-se no Relatório sobre os Impactos Econômicos da Covid-19. A Economia Criativa é descrita como aquela que compreende um conjunto de atividades “cuja matéria-prima é a criatividade e o capital intelectual na produção de bens e serviços” (FGV, 2020). O documento segue o sistema de classificação criado pela Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (FIRJAN), usado na formulação do Mapeamento da Indústria Criativa no Brasil, de 2019. O reordenamento do setor no Brasil foi organizado em quatro macro-categorias: 1. Consumo (publicidade e marketing, arquitetura, design e moda); 2. Cultura (expressões culturais, patrimônio e artes, música e artes cênicas); 3. Mídias (editorial e audiovisual); 4. Tecnologia (pesquisa e desenvolvimento, biotecnologia, tecnologias da informação e da comunicação). No próprio documento, no entanto, o conceito de economia criativa é considerado muito amplo: “há uma diversidade de atividades englobadas no conceito de Economia Criativa que dificulta a compreensão e extensão real desse segmento na economia” (FGV, 2020, p. 3). Segundo dados da Firjan, em 2017, a Economia Criativa foi responsável por 2,6% do PIB do Brasil, tendo criado 837.206 empregos formais, cerca de 1,8% da mão-de-obra nacional. Não se faz, no entanto, uma distinção clara de quais são os setores responsáveis pela criação destes empregos formais e muito menos, qual a participação dos setores criativos nucleares, como eram chamados no Plano da Secretaria da Economia Criativa. O setor cultural que, na primeira fase da SEC (2011 a 2014) era considerado o núcleo do setor criativo, foi perdendo força em relação a “setores estratégicos” mais lucrativos, como no caso do vínculo entre cultura e turismo, fortemente impulsionado pela Economia Criativa. Embora a nova versão do sistema de classificação dos setores culturais (UNESCO, 2009) faça uma distinção entre ocupação e setor cultural, sendo ocupação cultural uma atividade de “expressão artística” (UNESCO, 2009, p. 40) e de criação de bens culturais e serviços, geralmente protegidos por direitos autorais, essas ocupações que, não necessariamente estão incluídas em algum mercado, acabam se perdendo dentro da noção ampla e geral de „setor“. A própria definição de setor - onde incluem-se tanto técnicos de som quanto 33
um compositor de músicas, um escritor ou arquiteto -, pressupõe uma certa divisão artificial do trabalho no campo cultural. O conceito de economia criativa visa fixar essas divisões e ao fazer isso, exclui do foco das políticas os setores menos lucrativos e mais dependentes de apoio em geral e, portanto, da renda emergencial. Nesta perspectiva, os produtos culturais passam a ser uma busca de entretenimento, por meio de séries, filmes, programas nas redes sociais, lives, contudo, isto não significa um crescimento do setor, pois as cadeias produtivas dos produtos culturais acessados nas mídias acabam excluindo muitos artistas e toda equipe de apoio e suporte aos espetáculos, shows, técnicos dos espaços culturais, entre outros tantos […]. Assim, mesmo havendo grandes avanços em relação ao acesso às culturas e as artes, este cenário pandêmico não garantiu geração de renda e de trabalho para os profissionais das culturas e das artes (CORÁ, 2020). O relatório da FGV mostra que setores como o de software de games “encontram espaço para expansão” e que “uma parte considerável das atividades do setor não conseguem adaptar seus modelos de negócios a um contexto completamente digital, nestes casos o encerramento das atividades é a única opção” (FGV, 2020, p. 2). Isto nos leva a concluir que foi a associação entre o sentido tradicional de cultura, relacionado às artes do corpo e do espetáculo, às tradições, preservação de patrimônio, manifestações culturais e à literatura, que perdeu força, com o advento e aplicação do conceito de Economia Criativa no Brasil (BARRETO, 2016). O que se prioriza são as atividades que participam em um mercado já estabilizado, ainda com chances de emprego formal, notadamente os campos do consumo, mídias e tecnologia. Segundo relatório da FGV, como solução temporária durante a crise sanitária, a abertura de editais foi considerada a principal ação para a retomada das atividades no setor cultural e, em segundo lugar, a ampliação do fomento por parte de empresas estatais, parceiras do setor. Por fim, a renegociação dos prazos para pagamento de empréstimos e créditos, foi considerada uma das ações mais importantes tomadas pelo governo, uma vez que, em momentos de crise, o setor não conta com capital de giro suficiente (FGV, 2020).
A Extinção do Ministério da Cultura e o Surgimento da Secretaria da Cultura do Turismo O corte brusco nas políticas culturais desde 2018, levado pelos desdobramentos políticos no Brasil, desde o impeachment da presidente Dilma Roussef, em 2016, o Ministério da Cultura (Minc) sofreu todos os tipos de ataques até culminar em sua extinção. Em 2016, durante o governo provisório de Michel Temer, o Minc foi brevemente extinto, por meio da medida provisória n. 726, de 12 de maio de 2016 e restabelecido em 23 de maio de 2016, pela medida provisória n. 728.
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Em 2019, logo após a entrada de Jair Bolsonaro, na presidência, em 1. de janeiro de 2019, o Minc foi de fato extinto - a primeira medida tomada pelo presidente. Hoje existe a Secretaria Especial da Cultura ligada ao Ministério do Turismo e uma inversão total do papel da cultura em relação aos eixos norteadores do antigo PNC, diversidade cultural, inclusão social, inovação e sustentabilidade. Hoje, a Secretaria Especial da Cultura „assessora o ministro do Turismo na formulação de políticas, programas, projetos e ações que promovam o Turismo por meio da cultura“ (GOV.BR, 2020).
Considerações finais Se tornará comum encontrar o argumento de que, ao mesmo tempo em que o setor cultural foi tremendamente afetado pela pandemia de coronavírus, algo de bom também está acontecendo, os setores estão se readaptando, mesmo aqueles que ainda depend(iam) da presença, do palco e do espaço público. Há uma dose de verdade nisso, mas há também um aspecto a se pensar, de forma específica para o setor cultural, e aqui, insisto, o setor cultural em seu sentido tradicional, afetado já desde a revolução digital pela desmaterialização dos suportes físicos. Os trabalhos na área de música, teatro, dança, foram ficando cada vez mais dependentes das atividades presenciais, mas não só, foram perdendo os parcos recursos disponíveis, os editais, fundamentais nos períodos de criação, ensaio e produção final. E insuficientes no período de intermitência, condição do trabalho no setor cultural. O argumento presente, por exemplo, no documento da FGV, de que a crise levou o setor cultural a experimentar “novos formatos de produção e de entrega de seus produtos e conteúdos ao público final”, continua a avaliar o setor cultural a partir de métricas de produção industrial, sem considerar, fundamentalmente, o seu caráter descontínuo, irregular, sazonal e o seu tempo de criação. Mais uma vez vemos a lógica de pensar no “público final”, como se isto fosse garantia de retorno financeiro. Ou seja, o conceito de economia criativa continua provando ser necessário separar os segmentos de consumo, mídias e tecnologia do setor cultural. Caso contrário, será justificada e sempre validada a lógica de precaridade “intrínseca” ao setor.
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Para além de uma política de editais estamos no momento ideal para debatermos publicamente os novos rumos do Plano Nacional de Cultura atual e a reformulação das políticas culturais, em modelos que assegurem a intermitência do trabalho no setor cultural no Brasil, em associação com mecanismos mais robustos de fomento à cultura e, talvez, de uma renda básica universal (não emergencial).
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CORÁ, Maria Amelia. Reflexões acerca das Culturas e das Artes em Tempo de Pandemia. NAU Social. Disponível em: <https://portalseer.ufba.br/index.php/ nausocial/article/view/38602/23274>. Acesso em 15 nov. 2020. FGV. Relatório sobre os Impactos Econômicos da Covid-19: economia criativa. São Paulo, 2020. Disponível em: <https://fgvprojetos.fgv.br/sites/fgvprojetos.fgv.br/ files/economiacriativa_formatacaosite.pdf>, acesso em 17 de julho de 2020. GOV.BR. Secretaria Especial da Cultura. 2020. Disponível em: <http://cultura. gov.br/secretaria/>. Acesso em 24 nov. 2020. GOV.UK. Department for Digital, Culture, Media & Sport. Creative Industries Mapping Documents 1998. Disponível em: <https://www.gov.uk/government/ publications/creative-industries-mapping-documents-1998>, acesso em 20 de novembro de 2020.
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Por Lia
Calabre
Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisadora e chefe do setor de políticas culturais da Fundação Casa Rui Barbosa (FCRB) entre 2002 e 2019, coordenadora da Cátedra Unesco de Políticas Culturais e Gestão, professora dos Programas de Pós-Graduação: Memória e Acervos (FCRB) e Cultura e Territorialidade (UFF), autora de livros e artigos sobre políticas culturais.
A ARTE E A CULTURA EM TEMPOS DE PANDEMIA: OS VÁRIOS VÍRUS QUE NOS ASSOLAM
Resumo: Este artigo contém algumas reflexões sobre a conjuntura no campo das artes e da cultura no momento que antecede a explosão da pandemia no país, tendo como preocupação a contextualização da problemática das políticas públicas de cultura. Desenvolve, em seguida, uma discussão sobre as urgências impostas pela pandemia do coronavírus e as especificidades do setor cultural, trazendo uma primeira visada do Projeto de Lei nº 1.075 de 2020, que dispõe sobre ações emergenciais destinadas ao setor cultural. Palavras-chave: Políticas Públicas de Cultura. Coronavírus. Projeto de Lei nº 1.075. Emergência Cultural. Arte e Cultura.
ABSTRACT: This article presents some reflections about art and culture environment, as well as the public policies developed for this sector, before the Covid-19 pandemic in Brazil. The research also presents the urgency that this new situation represents to the culture sector, and the article also discuss the federal Bill No. 1,075 of 2020, which is responsible for emergency actions to the culture sector. Keywords: Cultural Public Policies. Coronavirus. Bil nº 1,075 of 2020. Culture Emergency. Art and Culture.
RESUMEN: Este artículo reflexiona sobre la coyuntura en el campo de las artes y de la cultura en la época anterior a la pandemia en Brasil, teniendo como preocupación la contextualización de la problemática de las políticas públicas para la cultura. A continuación, desarrolla un debate sobre las urgencias impuestas por la pandemia del coronavirus y las especificidades del sector cultural, aportando una primera reflexión sobre el proyecto de Ley 1.075 de 2020, que dispone sobre acciones de emergencia dirigidas al sector cultural. Palabras clave: Políticas Públicas de la Cultura. Coronavirus. Proyecto de Ley 1.075. Emergencia Cultural. Arte y Cultura. O presente artigo foi originalmente publicado na Revista Extraprensa, da Universidade de São Paulo, em 21/07/2020. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/extraprensa/ article/view/170903 39
APRESENTAÇÃO
da nossa cultura” e não um “projeto de antagonismo ao Governo Federal” (FESTIVAL…, 2020).
Na atualidade, o Brasil enfrenta alguns vírus que atingiram pesadamente o setor cultural. O primeiro a destacar é o coronavírus, que obrigou a adoção das medidas de isolamento social, acarretando a paralização das atividades artísticas e culturais. Mas ele não é o único. A arte e a cultura do país vêm sofrendo ataques sistemáticos de outros vírus, como o da intolerância, o do autoritarismo, o do obscurantismo, o do conservadorismo, todos propagados no fértil ambiente criado por um grupo que ascendeu ao poder, em especial ao governo federal, na gestão que teve início em 2019. Este artigo contém algumas reflexões sobre a conjuntura no campo das artes e da cultura, no momento que antecede a explosão da pandemia no país, tendo como preocupação a contextualização da problemática das políticas públicas de cultura. Desenvolve, em seguida, uma discussão sobre as urgências impostas pela pandemia do coronavírus e as especificidades do setor cultural, trazendo uma primeira visada do Projeto de Lei (PL) nº 1.075 de 2020, que dispõe sobre ações emergenciais destinadas ao setor cultural (BRASIL, 2020). O país assiste, ainda um pouco atordoado, há mais de um ano, a um processo contínuo e planejado de desmonte das políticas, dos programas e das ações culturais construídas a partir do início dos anos 2000. Tal processo de devastação cultural atinge, inclusive, algumas políticas que tiveram sua origem no século anterior. A crise do coronavírus encontrou um setor cultural repleto de problemas, buscando construir alternativas de sobrevivência, implementando iniciativas de enfrentamento às questões persecutórias, durante um momento de muita perplexidade. Começavam também a ter lugar algumas ações e iniciativas de resistência aos outros vírus, e isso é importante registrar. Em janeiro de 2020, por exemplo, ocorreu em São Paulo o Festival Verão Sem Censura, que acolheu manifestações culturais que por algum tipo de censura haviam sido impedidas de ser realizadas. O Festival tinha como um dos objetivos apoiar e fortalecer “a resistência ao ataque à cultura e aos artistas no Brasil” (FESTIVAL…, 2020), segundo um artigo elaborado pela Secretaria Especial de Comunicação da Prefeitura de São Paulo no dia 20 de dezembro de 2019. Afirmava o Secretário Municipal de Cultura, no mesmo artigo, que essa era uma “medida de valorização 40
A cultura e o poder executivo federal: tempos sombrios O ano de 2020 tem início com o setor cultural lutando tanto contra a diminuição drástica de investimentos federais de aplicação direta pela agora Secretaria Especial da Cultura quanto contra a tentativa de esvaziamento dos recursos que circulavam por meio das leis federais de incentivo – um mecanismo de mercado que foi duramente atacado por muitos dos seguidores do atual governo a partir de um discurso criminalizador do fazer cultural. Começaram a ser elaborados e divulgados, pelo governo e seus seguidores, discursos e notícias que buscavam comprovar a apropriação indébita dos recursos federais com finalidades políticas por artistas e realizadores, ou ainda com objetivos de divulgação de ideologias que corromperiam o imaginário e a imagem do país. Dois apontamentos esclarecedores são importantes de serem aqui feitos. O primeiro é o de que o grupo que alça o governo atualmente teve baixa adesão ao seu projeto da parte dos grupos culturais e artísticos, logo, passa a classificar a área como sob o domínio da “oposição esquerdista”. Em um artigo sobre a atuação político-cultural do atual governo federal, o estudioso Albino Rubim (2020, p. 11) aponta para o fato de que nesse início de século XXI, o campo cultural tem sido agente ativo do processo de luta democrática no país desde 2016, atuando contra o golpe de 2016; contestando a gestão Temer entre 2016-2018; apoiando em 2018 a candidatura presidencial de Lula e, após sua interdição arbitrária, a candidatura de Fernando Haddad; fazendo oposição ao candidato (2019) e depois à gestão Messias Bolsonaro (2019 em diante). O segundo ponto a ressaltar é o de que no caso da principal das leis de incentivo, a Lei Rouanet, já havia sido feita uma série de diagnósticos sobre o conjunto dos problemas de distribuição desigual de recursos existentes, assim como era pública a necessidade de sua substituição ou seu aperfeiçoamento. Essas reflexões críticas ao mecanismo vinham sendo desenvolvidas ao longo da última década e meia e resultaram na elaboração de um PL que prevê a reestruturação do mecanismo de financiamento (tal projeto se encontra em tramitação no Congresso Nacional). Porém, não foram necessariamente os motivos da distribuição desigual de recursos que desencadearam os ataques às leis de incentivo à cultura pelo atual Presidente da República e seus apoiadores e, sim, a posição de resistência democrática apresentada por parte significativa do setor. Recuando um pouco mais no tempo, podemos verificar que na área das artes e da cultura já vivia um processo de agravamento da crise desde o ano de 2016, quando houve a ameaça de extinção do Ministério da Cultura (Minc). Ainda que o Minc tenha sido extinto e imediatamente recriado – resultado dos protestos e mobilização nacional dos grupos artísticos e culturais, terminou 41
sofrendo cortes orçamentários, descontinuidade de ações e esvaziamento da capacidade operacional. Buscando estratégias de sobrevivência e outros modelos de sustentação, o setor cultural, cada vez mais, vinha utilizando as alternativas de fomento locais (dos municípios e estados) além da ampliação de campanhas de financiamento coletivo ou, mesmo, mantendo a sobrevivência através da renda obtida nas bilheterias. Logo, a chegada da pandemia e a suspensão de todas as atividades presenciais afetam o setor, que já estava desprovido de recursos, e no qual a grande maioria dos artistas e produtores se encontravam sem nenhuma reserva financeira. Desde 2019, já vinha se verificando o aumento das dificuldades de manutenção dos projetos de todas as naturezas, podemos falar, inclusive, de crise nos grandes eventos com calendário fixo e várias edições realizadas, como é o caso do festival de cinema do Rio ou da feira literária de Parati. O novo governo bloqueou ou descontinuou inúmeras ações que eram realizadas com recursos próprios do governo federal através de editais e parcerias, com estados e municípios, tanto os do antigo Ministério da Cultura, quanto os da Fundação Nacional de Artes (Funarte) e de outras instituições vinculadas. Recomendou, ainda, que as estatais, como a Petrobrás, deixassem de ser patrocinadoras de eventos e atividades artísticas. Em 7 de fevereiro de 2019, o jornal Folha de São Paulo noticiava que “a direção da Petrobrás estava avaliando romper contratos de patrocínio cultural firmados em governos anteriores”; segundo o governo, o estado teria outras prioridades (ALINHADA…, 2019). O jornal Brasil de Fato, em 21 de fevereiro de 2019 noticia que “para artistas e produtores, revanchismo do governo motivou ataque ao maior programa de incentivo à cultura do país” (MIRANDA, 2019), ainda segundo a reportagem, uma das principais consequências do desmonte do programa ia ser a perda de milhares de postos de trabalho, como exemplo a reportagem cita que, segundo informação de um diretor cinematográfico, a produção de um filme mobiliza uma média de cem postos diretos e duzentos postos indiretos de trabalho. Também estavam suspensas as chamadas para apoio a projetos com recursos do Fundo Nacional de Cultura. Enfim, vinha em curso, antes da pandemia do coronavírus, uma espécie de cruzada contra o dito marxismo cultural que, segundo alguns representantes do atual governo, domina a área artística e cultural e que deveria ser duramente combatida.
literatura, a arte em geral, foram saudadas como canais de escape fundamentais da solidão, como alimento da alma, como alento e esperança de tempos e vidas sãs. Seja através de suportes já consagrados, como os livros impressos, os CD de música, seja através da internet em um volume muito maior, ou ainda nas janelas e varandas das casas, por todo mundo, temos assistido à ampliação do consumo de produtos culturais, da valorização da cultura e do uso do tempo diário com atividades de arte e cultura. Também ocorreu um fenômeno de produção de arte e cultura on-line, presente nas mais diversas redes sociais. Para refletirmos sobre as transformações em curso é importante nos perguntarmos: como era esse fenômeno antes da pandemia? Nesse sentido, um estudo sobre o uso da tecnologia de informação e comunicação no Brasil, publicado em 2018, nos alertava que: No campo da cultura, as novas tecnologias digitais têm afetado a criação, disseminação e fruição de bens culturais, sobretudo por meio da internet, alterando substancialmente mercados já estabelecidos e, em alguns casos, criando novas formas de consumo e circulação de produtos (MARANHÃO, 2019, p. 21). João Leiva e Ricardo Meirelles (TIC CULTUTA, 2018) informam que em 2017, no Brasil, o percentual de usuários da internet chegava a 67% da população1, mas com grandes variações entre graus de instrução, classes sociais e faixas etárias (e certamente da qualidade do acesso à rede). Quando esses 67% de usuários, divididos por faixas de renda, foram questionados sobre o uso mais ativo na internet – compartilhamento de conteúdos, textos, imagens, fotos, vídeos ou músicas criados pelo usuário – tivemos uma variação percentual pequena entre as classes sociais: 35% das classes D e E; 36% da C; 39% da B; e 39% da A. Passando para a divisão etária, os números se encontram um pouco mais concentrados na faixa de 16 a 34 anos. Isso nos aponta para um percentual de interesse similar na internet como canal de divulgação dos próprios trabalhos nas diversas faixas de renda. É um indicador interessante de um uso massivo da tecnologia de informação na busca de uma distribuição da produção mais democrática, porém, não tenhamos a ingenuidade de pensar que esse uso se dá em condições tecnológicas similares.
Albino Rubim (2020, p. 3) afirma que: A gestão Bolsonaro elegeu a cultura como inimiga, em conjunto com a educação, as ciências, as artes, as universidades públicas e os temas relativos às chamadas minorias, em especial às manifestações de gênero, afro-brasileiras, LGBT e dos povos originários. No caso da cultura, o governo se caracteriza pelas agressões às liberdades de criação e de expressão, pela volta da censura; pelo desmonte das instituições culturais; pela demonização da cultura e das artes e pela deliberada intenção de asfixiar financeiramente a cultura. É nesse contexto que com a chegada da pandemia – em meio à proibição das aglomerações, com a imposição do isolamento social –, a música, o teatro, a 42
Em estudos próximos a serem feitos sobre os usos das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), certamente, teremos esses percentuais significativamente alterados. Um sem-número de compartilhamentos de gravações caseiras, de lives, de escritos em geral, de materiais de arquivo, de material comercial disponibilizado de maneira gratuita no Youtube, de produções amadoras e profissionais povoaram e vêm preenchendo a vida dos internautas. Muitos desses encontros virtuais vêm emocionando, permitindo trocas interpessoais (ainda que não presenciais), alimentando a confiança e a esperança de tempos melhores por vir. Poderíamos aqui citar uma série de iniciativas criativas, fantásticas, generosas e voluntárias que tem circulado na
1 Por exemplo, temos 96% de usuários na classe A e 42% nas classes D e, ou 95% entre os que têm nível superior e 54% entre os que têm nível fundamental de ensino (MARANHÃO, 2019, p. 30). 43
rede produzida pelos mais diferentes fazedores de cultura, artistas de várias linguagens. A sociedade civil, os artistas em especial, tem se mobilizado. Porém, como estão sendo as ações da gestão pública de cultura no Brasil diante da pandemia? Como estão as condições de sobrevivência desses trabalhadores da cultura? O que o Estado tem feito a respeito disso? Quem são esses trabalhadores da cultura por trás das antigas e das novas criações. Como sobrevivem, ou não, aos tempos de pandemia? Quais são ou quais deveriam ser as ações do Estado na criação de políticas e programas públicos emergenciais para o setor da cultura? Como estão sendo pensadas as ações de futuro? Há algum planejamento de um processo de transição que permita a esses trabalhadores o retorno gradativo das atividades no fim do isolamento? O Brasil tem recebido fortes críticas de organismos nacionais e internacionais pela falta de planejamento e baixo grau de administração da crise da pandemia em todos os setores. Logo, com a cultura não seria diferente. Há um completo (e propositado?) imobilismo no governo federal! Passados mais de sessenta dias de quarentena, não haviam sido pensados ou direcionados recursos para ações emergenciais na cultura. Isso não significa necessariamente dizer que não há recursos, eles existem na pasta da cultura, são de diversas naturezas e poderiam ser acionados para uma ação emergencial. Nesses quinhentos dias de governo, festejados no dia 15 de maio de 2020, o processo de esvaziamento da área da cultura pode ser avaliado pela instabilidade na chefia da pasta, que já teve quatro titulares e seguia acéfala aguardando o quinto ocupante (Henrique Pires, Ricardo Braga, Roberto Alvim e Regina Duarte). Dentro dos próprios quadros do governo houve um movimento forte de resistência à pessoa da Secretária Especial da Cultura, Regina Duarte – nomeada pelo presidente em março de 2020 (no momento do início da pandemia) e exonerada em maio – em especial, pelos segmentos que se tornaram hegemônicos dentro da área (como terraplanistas, olavistas, negacionistas, os grupos neopentecostais e outros). A nova secretária não foi, de maneira alguma, progressista ou defensora da democracia, é uma eleitora bolsonarista de primeira hora, defensora do governante, mas não parecia disposta a perseguir e patrulhar ideologicamente a área, como desejam certos grupos próximos ao presidente. Nenhuma medida de liberação de recursos foi tomada nesse período, 44
nem estudos de qualquer natureza foram apresentados. O silêncio absoluto da Secretária sobre a crise, no período em que esteve à frente da pasta, resultou em uma grande campanha da área artística nas redes sociais com a pergunta: onde está Regina? Alguém viu Regina Duarte? Sobre recursos existentes a serem liberados, temos como exemplo o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), que acumulou vultosos recursos (em 2018 foram R$ 724 milhões), que estão contingenciados. O FSA não pode ser utilizado para outros fins, ainda que muitos grupos o desejassem e até mesmo tenham tentado. O governo tentou retirar a gestão do FSA da Agência Nacional do Cinema (Ancine) no segundo semestre de 2019, como não obteve êxito enviou ao Congresso um PL que previa um corte de 43% do orçamento do Fundo. A liberação desses recursos, se distribuídos em editais de médio e pequeno portes de maneira emergencial em parceria com estados e municípios, permitiriam a remuneração da ampla cadeia produtiva da produção fílmica (integrada por diretores, atores, técnicos em geral, diversas áreas de criação como a música, entre outros). Há uma demanda das áreas de produção do audiovisual estaduais e municipais que parte desses recursos voltem a ser descentralizados, o que geraria um alívio financeiro fantástico ao setor, mas parece uma ação difícil de se realizar. O projeto de destruição de todos mecanismos de apoio do governo federal à cultura segue firme em curso, é como se não houvesse urgência, fome e desemprego grave na área.
Mobilização do setor cultural e seus desdobramentos Diante do quadro de completa suspensão de todas as atividades artísticas e culturais e da falta de qualquer perspectiva de retorno, parte do setor cultural começou a se mobilizar em busca da garantia do apoio do Estado, nos diversos níveis de governo. Alguns governos estaduais e municipais responderam positivamente, implementando ações variadas, ora de baixo impacto, até iniciativas abrangentes e mais efetivas. Um exemplo de implementação de ações abrangentes e estruturadas é o da Secretaria das Culturas de Niterói. Este é um município fluminense, que foi a antiga capital do Estado do Rio de Janeiro e que tem cerca de 513 mil habitantes2. Com o início da pandemia, Niterói teve 32 unidades culturais fechadas, sejam de gestão da iniciativa privada ou do poder público, e 335 atividades artísticoculturais da Secretaria Municipal das Culturas suspensas. A primeira medida tomada com a decretação do isolamento social e paralização de todas as atividades foi a criação imediata do projeto Arte na Rede, que teve sua primeira apresentação ainda em março (dia 23). No site da Secretaria (O ARTE…, 2020) temos a apresentação da ação: por entender o valor das/os profissionais de cultura e fazedoras/ es de arte de nossa cidade e também do papel da arte/cultura 2 É importante mencionar que o município de Niterói de destacou (nacional e internacionalmente) no conjunto das medidas adotadas no combate à pandemia, desde o isolamento social e o controle de fluxo de não moradores pelo município, até a fiscalização do cumprimento das regras de reabertura das atividades em geral. 45
na sociedade, a SMC/FAN irá fazer uma série de transmissões ao vivo com apresentações artísticas remuneradas e também podcasts. A realização desse projeto é o desdobramento do GT criado pela SMC/ FAN, em acordo com o Conselho Municipal de Políticas Culturais, para dialogar propostas de mitigação dos possíveis impactos no setor cultural e ofertas soluções ao comitê de crise instituído pelo Prefeito Assim que foi decretado o início do isolamento social, a Secretaria das Culturas e a Fundação de Artes de Niterói, em acordo com o Conselho Municipal de Política Cultural de Niterói, criou um Grupo de Trabalho para debater e propor ações, tendo em vista os possíveis impactos que resultariam da pandemia e seus desdobramentos sobre o setor. As ações foram inicialmente pensadas para os meses de março a junho. A primeira iniciativa a ser implementada foi o Edital Arte na Rede (citado anteriormente), que selecionou duzentas propostas, com a remuneração de R$ 1.500,00 para cada uma (cerca de U$ 270,00). A essa iniciativa seguiram-se outras. Entre as características da área cultural brasileira, hoje está a de que muitos artistas, produtores, artesãos etc., estão registrados como Microempresários Individuais (MEI). A Secretaria de Fazenda do Município de Niterói implementou um auxílio de R$ 500,00 mensais aos MEI da região (por três meses), sendo que entre os 9.762 MEI cadastrados para receber o auxílio, 3.950 (45%) tinham a atividade cultural como a principal ou a secundária. A Secretaria também providenciou o adiantamento do pagamento de ações aprovadas que ocorreriam nos próximos meses, assim como o pagamento de 50% do cachê de espetáculos cancelados que seriam realizados nos equipamentos da prefeitura. Os convênios, como os dos Pontos de Cultura, seguiram para homologação, assim como os dos proponentes que foram contemplados no edital de fomento ao audiovisual e do fomento direto da Secretaria. Enfim, verifica-se uma preocupação em garantir o máximo de recursos possíveis para que a área atravesse o período do isolamento de forma menos precária. Também foi incentivada a compra de ingressos de espetáculos futuros, revertendo os valores obtidos em cestas básicas para serem distribuídas entre os artistas em situação de vulnerabilidade social. As mobilizações e demandas direcionadas ao Poder Executivo Federal, inclusive por artistas consagrados, foram ignoradas. Dentro dos quadros do governo federal, foi o Poder Legislativo o que mais prontamente ouviu as solicitações e se mobilizou em socorro da área da cultura. Essa parceria entre os movimentos culturais – seja os de base comunitária, ou os dos diversos setores artísticos – com o Poder Legislativo Federal foi se solidificando desde o início dos anos 2000, na gestão do Ministro Gilberto Gil. As primeiras discussões e iniciativas para a construção do Sistema Nacional de Cultura tiveram início dentro do Legislativo Federal ainda um ano antes da chegada de Gil ao Minc. Porém, foi com o início dos trabalhos da nova equipe ministerial, com as audiências públicas, os fóruns para discussão ampliada, que essa relação mais estreita entre os setores culturais e o Poder Legislativo ganhou impulso, seguindo no sentido de garantir novos níveis de institucionalidade as políticas, programas e ações implementados pelo Minc. 46
Os processos de reconstrução e realização das conferências nacionais, estaduais e municipais de cultura, da criação dos conselhos de políticas culturais e dos sistemas nacional, estaduais e municipais de cultura, foram assentados em um diálogo intenso entre a sociedade e os poderes executivo e legislativo. O desenho elaborado para os sistemas de cultura está assentado em processos de aprovação dos regramentos, em forma de projetos de lei, pelo Poder Legislativo dos respectivos níveis de governo. O Legislativo Federal esteve intensamente envolvido em todo esse processo, desde 2003, inclusive com a realização de inúmeras audiências públicas. O estreitamento dessa relação possibilitou o desenvolvimento de importantes projetos, como o da Lei Cultura Viva, construído pela sociedade civil diretamente com o Poder Legislativo Federal. O setor cultural tem vivencia do um processo de aprendizagem, nos diversos níveis de governo, para a aprovação das legislações específicas de cada um dos elementos que compõem os sistemas de cultura dos seus municípios e estados (Conferências, Conselhos, Sistemas e Fundos). Os representantes do Poder Legislativo (ou ao menos uma parte deles), nessas quase duas décadas de ações intensas, também passaram a ver de maneira distinta o setor cultural e artístico, estando mais sensível para compreender sua enorme complexidade. Muitas das assembleias legislativas e câmaras de deputados passaram a ter uma comissão específica para a cultura em sua estrutura. Em meio à pandemia, quando ficou claro que o Poder Executivo não iria implementar providências de socorro ao setor artístico/cultural, indivíduos, grupos e instituições de representação coletiva do setor começaram a se mobilizar. O Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura, o Fórum de Conselhos Estaduais e Municipais de Cultura, a Rede Nacional de Pontos e Pontões de Cultura, entre outros, iniciaram um intenso diálogo com os parlamentares em busca de soluções, de medidas legais que garantissem um nível mínimo de renda que permitisse a sobrevivência aos tempos de pandemia. Com as mobilizações foram estruturados seis projetos de lei que tratavam de diferentes atores, fazeres e instituições artísticas e culturais. A diversidade, abrangência e complexidade do setor fica claramente demonstrada por meio dos múltiplos projetos. Dada a emergência da aprovação e dificuldade de fazêla para o conjunto dos projetos de lei propostos, houve o esforço de diversos parlamentares, com a relatoria especial da Deputada Jandira Feghali, para a reunião de todos seis no PL nº 1.075 de 20203. Houve uma intensa mobilização nacional, realização de várias webconferências com ampla participação da classe artística e cultural com os diversos parlamentares envolvidos no esforço de sistematização e aprovação do projeto, houve uma ampla escuta social. A negociação da tramitação do projeto na Câmara se fez em regime de urgência e através do colégio de líderes, o que permitiu agilidade na aprovação do PL. O setor artístico-cultural é extremamente diverso e complexo. Há extensas cadeias produtivas no processo de elaboração de produtos culturais.
3 Este artigo foi elaborado exatamente quando o PL acabava de ser aprovado pela Câmara de Deputados e pelo Senado Federal, seguindo para sanção presidencial. 47
Há o envolvimento de inúmeros elementos nas múltiplas atividades culturais comunitárias. Há uma série de produtos culturais de elaboração solitária, assim como aqueles que só podem existir na produção coletiva. Há saberes, experimentações, reconhecimentos, celebrações, que compõem a diversidade do setor. Isso sem deixar de falar nos espaços dedicados às atividades artísticas e culturais, que vão desde os teatros mais estruturados aos pontos de cultura nas comunidades periféricas. A participação intensa da comunidade cultural nos momentos finais dos ajustes do PL permitiu a ele alto grau de abrangência. Já na etapa final de aprovação, a lei foi batizada como: Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc, em homenagem a esse magnífico compositor, poeta, crítico social, músico, mais uma das vítimas do coronavírus no Brasil. A lei dispõe sobre as ações emergenciais que devem ser adotadas durante o estado de calamidade pública, que foi reconhecido pelo governo federal, por decreto, no dia 20 de março de 2020. Ela é registrada como uma iniciativa da Deputada Benedita da Silva, que é Presidente da Comissão de Cultura da Câmara de Deputados4. A relatoria e a sistematização do projeto foram feitas pela Deputada Jandira Feghali, que também integra a Comissão. O PL prevê a descentralização, em parcela única, dos recursos para estados, Distrito Federal e municípios, na seguinte proporção: 50% para os estados e o Distrito Federal e 50% direto para os municípios. Os entes federados terão sessenta dias a partir da liberação dos recursos para efetivar sua destinação. Os recursos não destinados nesse período deverão ser automaticamente revertidos aos Fundos Estaduais de Cultura, na falta de um fundo ativo devem ser destinados ao órgão gestor estadual de cultura. A destinação deverá ser de R$ 3 bilhões, sendo a maior parte dos recursos oriundos do superávit do Fundo Nacional de Cultura apurado em dezembro de 2019, mas também poderão ser utilizados recursos orçamentários de outras fontes. É interessante ressaltar que os recursos são originalmente da área da cultura e deveriam, de alguma maneira, terem sido descentralizados. Isso posto, com ou sem utilização na ação emergencial, ficarão nos estados, ou seja, serão territorializados, aplicados nas localidades. O tempo de operacionalização é curto, sem dúvida que a urgência dos que têm fome justifica a necessidade de rapidez. Mas não se pode deixar de temer pela não execução dos objetivos propostos pelo PL, especialmente se consideramos o histórico de dificuldade de execução que apresenta o Estado em todos os níveis de governo. Logo em seguida à aprovação do Senado Federal, enquanto o projeto aguardava sanção presidencial, grupos da sociedade, gestores e parlamentares se mobilizaram e criaram o Curso de formação: aplicação da Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc, buscando evitar que todo o esforço realizado até agora se perca por burocracias e dificuldades na operacionalidade da mesma. Os recursos devem ser utilizados em ações emergenciais de apoio ao setor cultural por meio de:
4 A Deputada Benedita é autora de um dos projetos que foram reunidos e deram origem ao atual PL. 48
I – renda emergencial mensal aos trabalhadores da cultura; II – subsídios mensais para manutenção de espaços artísticos e culturais, micro e pequenas empresas culturais, cooperativas, instituições e organizações culturais comunitárias que tiveram as suas atividades interrompidas por força das medidas de isolamento social; e III – editais, chamadas públicas, prêmios, aquisição de bens e serviços vinculados ao setor cultural e outros instrumentos voltados à manutenção de agentes, espaços, iniciativas, cursos, produções, desenvolvimento de atividades de economia criativa e economia solidária, produções audiovisuais, manifestações culturais, bem como para a realização de atividades artísticas que possam ser transmitidas pela internet ou disponibilizadas por meios de redes sociais e outras plataformas digitais (BRASIL, 2020) A experiência implementada pelo município de Niterói, anteriormente citada, nos permitiria presumir (ou ter esperanças) que assim que os recursos chegarem aos municípios, eles terão capacidade de proceder a execução das ações. Porém, tememos por essa real chegada dos recursos na ponta, nas mãos da maioria dos que deveriam ser seus beneficiários, tendo em vista o desconhecimento da realidade cultural local e a baixa capacidade operacional por parte das gestões municipais. Os municípios de maior porte e com um sistema municipal de cultura razoavelmente desenvolvidos provavelmente terão mais chances de concessão dos recursos, cumprindo as regras determinadas para sua utilização. A distribuição do montante dos recursos entre as três modalidades ficará a cargo do governo local, sendo que no mínimo 20% dos valores recebidos deverão ser utilizados nas atividades previstas no item III. A renda emergencial prevista no item I segue o valor e as regras destinadas ao conjunto dos trabalhadores pelo governo federal (o valor de R$ 600,00). O PL é de operacionalização razoavelmente simplificada e foi construído sob um “guarda-chuva” significativamente abrangente, compreendendo, no artigo 4º, como trabalhadores da cultura: as pessoas que participam da cadeia produtiva dos segmentos artísticos, incluindo artistas, produtores, técnicos, curadores, oficineiros e professores de escolas de arte. No artigo 8º, são compreendidos como espaços culturais: todos aqueles organizados e mantidos por pessoas, organizações da sociedade civil, empresas culturais, organizações culturais comunitárias, cooperativas com finalidade cultural e instituições culturais, com ou sem fins lucrativos que sejam dedicados a realizar atividades artísticas e culturais (BRASIL, 2020). Para validação das atividades das instituições, o PL arrola um rol de cadastros ao qual a instituição deverá estar inscrita (em um deles ao menos), inclusive cadastros estaduais que existam e não estejam nominalmente citados pelo PL, como é o caso dos mapas culturais que foram construídos por alguns estados e que deveriam estar integrados ao Sistema Nacional de Informações 49
e Indicadores Culturais (SNIIC). Estão excluídos do auxílio espaços culturais vinculados ou criados “pela administração pública de qualquer esfera”, os geridos pelo Sistema S, ou aqueles institutos e instituições criados ou mantidos por grupos de empresas. Para fins de exemplificação, o PL lista alguns exemplos do que deverá ser considerado como espaço cultural que poderá demandar o auxílio emergencial. Temos, por exemplo, desde espaços tradicionais, como escolas de música, circos, museus, centros culturais, galerias de arte e fotografia, até aqueles ligados ao patrimônio imaterial e as culturas populares, como as festas populares (carnaval, festa de São João etc.), feiras de arte e artesanato, pontos de cultura, cineclubes, espaços de povos e comunidades tradicionais. Os benefícios deverão ser retroativos a 1º de junho de 2020, com previsão inicial de três meses de concessão. No caso dos espaços, empresas ou instituições, estes ficam obrigados a garantir como contrapartida, após o reinício das atividades, a realização de atividades gratuitas, preferencialmente em escolas públicas ou espaços públicos. O planejamento das atividades e monitoramento da sua efetivação serão realizados com a cooperação do órgão gestor de cultura local. O PL também prevê a ampliação dos prazos de utilização de recursos das diversas leis de incentivo ou editais públicos por um ano, assim como estende pelo mesmo período o prazo da prestação de contas da aplicação dos recursos recebidos antes da pandemia. Ainda ficam asseguradas pelo decreto a manutenção de serviço essenciais para o funcionamento dos espaços (como água, luz etc.) e a paralização dos débitos tributários, enquanto durar a pandemia.
À guisa de conclusão Podemos dizer que, de uma maneira geral, o governo federal tem sido pouco eficaz (ou negligente) na proposição e efetivação de medidas que minimizem os efeitos da pandemia sobre a classe trabalhadora em geral. A área da cultura, no conjunto das suas complexidades e diversidades, foi completamente abandonada pelo Poder Executivo. Os trabalhadores da cultura e das artes não conseguiram ser incluídos sequer no grupo dos primeiros trabalhadores a receberem o auxílio emergencial de R$ 600,00. Somente o empenho e a mobilização dos integrantes do próprio setor foram capazes de fazer com que alguns dos representantes do Poder Legislativo encampassem a causa da cultura, elaborando os primeiros projetos emergenciais que foram reunidos no PL aprovado. Entretanto não devemos perder de vista que já se passaram mais de sessenta dias do início da decretação do isolamento social na maioria das regiões do país. O projeto seguirá ainda para sanção presidencial e 50
somente aí começarão a ser tomadas as providências para a descentralização dos recursos. O parágrafo 2º do PL prevê que o repasse aos outros entes federativos deverá ocorrer no prazo máximo de quinze dias após sua publicação. Haverá ainda o prazo de operacionalização pelos estados e municípios. A situação nesse momento já é muito grave e o governo se comporta como fosse possível a sobrevivência sem uma renda mínima e que não é grave o fechamento das atividades culturais, retirando qualquer possibilidade de sobrevivência desses trabalhadores. As atividades de cultura e arte estão entre as primeiras que foram suspensas em todo o país. Ainda que alguns estados tenham implementado algumas ações emergenciais para a área, tendo por base o estado do Rio de Janeiro, podemos afirmar que elas estão longe de atender a um percentual significativo do setor. E este setor deverá ser o último a retornar à normalidade em toda a sua cadeia produtiva. Enquanto os trabalhadores da cultura se mobilizam para garantir um mínimo de sustento, o governo bolsonarista segue no desmonte das instituições federais de cultura. Assistimos a esvaziamentos de diversas naturezas. Uma delas é a orçamentária, com cortes, com contingenciamentos, com bloqueios, que terminam por diminuir a já combalida capacidade de execução e cumprimento das atribuições mínimas das instituições. Mas a capacidade de cumprir as atribuições também está sendo esgotada e não só por problemas orçamentários. Ocorre uma rápida diminuição do quadro funcional, assim como a clara desqualificação técnica dos dirigentes e ocupantes de cargos comissionados que o governo tem constantemente nomeado para tais funções. Há ainda o fenômeno da perda da autonomia, que impede que atividades rotineiras sejam realizadas e que projetos, ações e políticas que vinham sendo desenvolvidos sofram com o desmantelamento e a descontinuidade. Alguns estados e municípios vêm se empenhando em garantir níveis mínimos de sobrevivência para o setor cultural, mas também dentro das estruturas dos governos assiste-se à diminuição dos quadros de trabalhadores da área com, por exemplo, a dispensa de funcionários terceirizados dos teatros, centros e espaços culturais geridos pelo poder público. O quadro que se apresenta para o período pós-pandemia é ainda muito nebuloso, pouco se pode nesse momento afirmar sobre como será o “novo estado de normalidade”. A cultura e a arte, que são, por natureza, atividades do encontro e das aglomerações, vivenciam um clima imenso de incerteza: quando efetivamente as pessoas poderão se reunir em grandes quantidades? Quando as tradicionais festas populares vão poder voltar a ocorrer? No caso brasileiro os outros vírus sobre os quais nos referimos no início desse artigo – o da intolerância, do autoritarismo, do obscurantismo, do conservadorismo – também precisam ser combatidos e neutralizados. A arte e a cultura livres e democráticas, que têm 51
o dom de nos manter vivos e sãos, precisarão ser objeto de luta e resistência em um futuro próximo ameaçado pelas sombras e pelo obscurantismo que teimam em nos ameaçar. Em uma conferência em 2009, o professor Edgar Morin nos provocava ao afirmar que: “se a cultura é um feito humano de todas as civilizações é evidente que nunca se pode ver a cultura. A cultura é vista através das culturas diversas”5 (MORIN, 2009, p. 216, tradução nossa). Morin continua a discussão afirmando que a unidade humana é muito importante na cultura, mas essa unidade só pode ser traduzida pela diversidade. Para além da sobrevivência imediata, a pandemia do coronavírus, a sociedade brasileira, e não somente o setor das artes e da cultura, necessita lutar pela garantia, pelo fortalecimento da democracia e da diversidade cultural que nos traduz.
O ARTE na rede vem aí! Secretaria Municipal das Culturas, Niterói, 2020. Disponível em: https://bit.ly/3eeZtp2. Acesso em: 30 maio 2020. RUBIM, Antônio Albino Canelas. Atuação político-cultural da gestão Messias Bolsonaro. Alteridade, Cidade do México, [2020?]. No prelo.
Referências ALINHADA a Bolsonaro, Petrobrás revê patrocínios e deve se afastar da cultura. Folha de S.Paulo, São Paulo, 7 fev. 2019. Disponível em: https://bit.ly/3idBdpt. Acesso em: 29 jun. 2020. BRASIL. Projeto de Lei nº 1.075, de 2020. Dispõe sobre ações emergenciais destinadas ao setor cultural, enquanto as medidas de isolamento ou quarentena estiverem vigentes, de acordo com a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Brasília, DF: Senado Federal, 2020. Disponível em: https://bit.ly/2YI6JDb. Acesso em: 5 jun. 2020. FESTIVAL Verão Sem Censura acolhe manifestações culturais censuradas e oprimidas. Cidade de São Paulo, São Paulo, 20 dez. 2019, 16:26. Disponível em: https://bit.ly/3gcWwWz. Acesso em: 29 jun. 2020. MARANHÃO, Maximiliano Salvadori (coord.). TIC Cultura: Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nos equipamentos culturais brasileiros. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2019. MIRANDA, Eduardo. Desemprego à vista: Bolsonaro dá fim ao Petrobrás Cultural. Jornal Brasil de Fato, Rio de Janeiro, 21 fev. 2019, 10:56. Disponível em: https://bit.ly/31wcJ4T. Acesso em: 29 jun. 2020. MORIN, Edgar. Conferência. In: Seminario Internacional el Sector Cultural Hoy: Oportunidades, Desafios y Respuestas. Cartagena das Indias: Universidade Tecnológica de Bolivar: Ministério da Cultura. 2009.
5 Do original “si la cultura es um hecho humano de todas las civilizaciones es evidente que nunca de puede ver la cultura. Le cultura se ve a través de las culturas diversas”. 52
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Por Gláucia
Villas Bôas
Professora titular da UFRJ e pesquisadora do CNPq. Concluiu seu doutorado em sociologia na Universidade de São Paulo e atua no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia como docente e pesquisadora. Tem artigos e livros publicados nas áreas de Teoria Sociológica e Sociologia da Cultura e da Arte.
O SALDO DA PANDEMIA: PERSPECTIVAS DE MUDANÇA PARA OS MUSEUS DE ARTE THE PANDEMIC’S BALANCE: PERSPECTIVES OF CHANGE FOR ART MUSEUMS
Resumo: O artigo trata de efeitos possíveis da pandemia de Covid-19 sobre os museus de arte. Argumento não ser possível fazer um prognóstico adequado sobre o futuro dos museus em contexto pós-pandêmico, devido à profunda diferenciação existente entre eles, principalmente, no que respeita aos recursos financeiros que possuem. Apesar da dificuldade, com base na correspondência eletrônica que recebi de jornais e museus de arte, suponho que a visibilidade virtual dos museus de arte em sites ou plataformas é, possivelmente, um dos principais efeitos da pandemia da Covid-19 sobre os museus de arte. Esse tipo de visibilidade, certamente, não substitui a visita presencial às exposições nem o suporte financeiro devido ao pagamento das visitas. Mas poderá se tornar um critério para a avaliação da comunicação dos museus com seus públicos. Além disso, destaco a venda de obras de coleções de museus de arte norte-americanos como uma das consequências inquietantes da pandemia. Palavras-chave: Museus de arte; Pandemia; Mudanças; Visibilidade virtual.
ABSTRACT: This article adresses possible effects of Covid-19 pandemic on art museums. I argue that it is not possible to make a proper prognostic of art museum’s future in a post-pandemic context, since there is a deep differenciation between those institutions, mainly concerning the finantial resources they have. In spite of this difficulty, I suppose, based on the eletronic mail I received from art newspapers and art museums, during the pandemic, that the virtual visibility of art museums on sites and platforms may be one of the main effects of Coivd-19 pandemic. Of course this sort of visibility does not replace the experience of presential visit to exibitions neither the finantial support due to the payment of museum visits. But it may turn out to be one criteria for the evaluation of art museums communication with their publics. Moreover, I point out the selling of pieces of north-american art museum’s collections as an example of disturbing pandemic effects on art museums. Keywords: Art museums; Pandemic; Changes; Virtual visibility.
Este artigo foi primeiro publicado na revista O Público e o Privado, vol. 19, n. 38, jan/abr (2021). 55
Introdução Qualquer leitor atento aos anúncios feitos por museus brasileiros e estrangeiros em seus sites, durante a pandemia da Covid-19, deverá ter notado a rapidez com que algumas daquelas instituições responderam ao desafio de ter suas portas fechadas. De modo nunca previsto antes, grandes e pequenos museus, cuja função atende a um dos requisitos únicos da arte – ser exibida ao público –, se viram destituídos de seu ritual mais relevante. O que é a arte sem a presença do público? Como bem se sabe, a ausência do público incide em questões financeiras cruciais para os museus públicos, cujos recursos variam muitas vezes de acordo com o número de seus visitantes, tanto quanto prejudicam os que são sustentados por fundações ou empresas privadas ou os museus que recebem recursos públicos e privados. A questão é de tal monta, que os museus foram das primeiras instituições franqueadas ao público na França, Alemanha e Itália, quando os respectivos governos anunciaram as medidas para o fim gradual do isolamento social devido à pandemia. Relembro, neste texto, algumas notícias a que tive acesso durante os meses de março a outubro de 2020, vividos entre isolamento e reinício gradual do contato social mediante medidas de segurança. Com base nas informações veiculadas por sites de museus e jornais, especialmente os eletrônicos Prêmio Pipa do Rio de Janeiro e o boletim informativo Art Market Eye, divulgado pelo The Art Newspaper, de Nova York, mediante correio eletrônico1, argumento que parte substantiva da arte visual, diferentemente da música e da literatura, está assentada em um sistema poderoso, que inclui grandes empresas, Estados, colecionadores (alguns deles multimilionários), galerias, leiloeiros, mercado de arte e um enorme conjunto de especialistas, historiadores da arte, curadores e outros tantos profissionais. Tal sistema se mostrou agressivo para manter em funcionamento a comunicação com seu público virtual diante das inesperadas medidas de isolamento social provocadas pela pandemia. Essa fatia rica do mundo da arte, contudo, contrasta de modo flagrante com outra, que inclui centros culturais e museus, e cujo funcionamento depende dos parcos recursos de estados da federação, prefeituras ou do governo federal, como ocorre em diversas localidades no Brasil. Sem falar de museus como o Museu da Maré e o Museu da Remoção, localizados na cidade do Rio de Janeiro. Para que se possam considerar os desafios dos museus diante das consequências da pandemia, é preciso relembrar as transformações pelas quais eles passaram nas últimas quatro décadas, sob pena de não se levar em conta conquistas importantes, que, no atual contexto, correm o risco de ser desmanteladas. Houve um aumento notável de museus em diversos países nas 1 Vale chamar a atenção para o fato de que as informações recebidas de museus ou jornais são endereçadas apenas àqueles que, por um motivo ou outro, acataram recebe-las por correio eletrônico. 56
últimas décadas. Estima-se que 80% dessas instituições surgiram nas últimas quatro décadas do século XX, ocorrendo o maior aumento nos anos 1980 (SANTOS, 2004). Dados do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM, 2011), divulgados no livro “Museus em números”, publicado em 2011, apontam o crescimento dessas instituições no Brasil, alcançando naquela data o total de 3.000 museus no país2. Não se trata, entretanto, de mero crescimento quantitativo. No artigo “Museus brasileiros e política cultural”, Myrian Sepúlveda dos Santos (2004) analisa os motivos dessa expansão, referindo-se à célebre mesa-redonda realizada em Santiago do Chile, em 1972, promovida pela Unesco e pelo International Council of Museums (Icom) como um divisor de águas entre uma museologia tradicional voltada para a preservação de coleções e uma nova museologia que considera os museus importante fator de desenvolvimento social. A partir daquele encontro, diz a autora, “as novas práticas desenvolvidas nos museus priorizam o respeito à diversidade cultural, a integração dos museus às diversas realidades locais e a defesa do patrimônio de minorias étnicas e povos carentes” (SANTOS, 2004, p. 58). O boom da preservação da memória em museus vincula-se, ainda, à grande virada da modernidade para a pós-modernidade, segundo Andreas Huyssen (1996, p. 222-255). Na modernidade, o tempo futuro associava-se à mudança, ao novo, ao diferente, ao “outro” nunca visto. O futuro era uma espécie de garantia das esperanças de indivíduos e coletividades. Nas últimas décadas do século XX, entretanto, a conduta e a expectativa orientadas para o futuro como portador do novo, da mudança e do progresso foram objeto de dura crítica. O fracasso das utopias, a recusa de uma narrativa histórica linear e homogeneizante, as consequências devastadoras do progresso técnico cederam lugar a uma nova visão de temporalidade que, ao sublinhar a contingência, o efêmero e passageiro, prioriza a memória, o guardar diferentes fragmentos do tempo passado. A crítica à modernidade, cada vez mais vigorosa e visível, acabou de vez com a concepção de museu enquanto um amontoado de coisas velhas, um local conservador e elitista. Embora acentue a abertura dos museus em tempos de pós-modernidade, Huyssen não deixa de manifestar seu desapreço pela espetacularização, comercialização e consumo massivo da arte que conformam o perfil atual de grandes museus3. Retomemos, porém, o tema deste artigo. Com a leitura do noticiário a que tive acesso durante seis meses da pandemia, pude verificar, mais uma vez, ser impossível generalizar os prognósticos sobre o funcionamento dos museus 2 Na página www.museus.br, 2020, o número de museus no país seria bem mais alto, chegando a 3.800. Não pude, entretanto, verificar a veracidade desse número, que aponta crescimento de cerca de 27% para período de nove anos. 3 Acrescente-se aos motivos apontados para o crescimento dos museus e diversificação de seus acervos, o notável aumento da produção de arte na sociedade contemporânea. Tal aumento se deve, em grande parte, à quebra das fronteiras entre o que é e não é arte, que vem gerando um processo social complexo, definido por Roberta Shapiro (2007) como artificação. A transformação da não arte em arte, em última análise, engendra uma demanda pelo abrigo e manutenção de novos objetos e processos artísticos em museus. 57
no futuro pós-pandêmico. Se as instituições museológicas já eram desiguais com respeito aos recursos que permitiam seu funcionamento regular, às origens de seus acervos, a seus regulamentos próprios e seus objetivos a curto e médio prazos, em futuro pós-pandêmico, tais desigualdades poderão se tornar mais agudas e ocasionar até mesmo o fechamento de instituições. Enquanto a cidade de Wuhan, centro da epidemia na China, reabre um majestoso museu de arte contemporânea em seus arredores, o Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica (CMAHO) vê seus funcionários sendo demitidos. Que sina tem o CMAHO, cuja história singular está pautada por momentos de grande dinamismo e outros de portas fechadas4! O contraste exagerado desse exemplo serve apenas ao propósito de deixar clara a diferenciação entre os museus. Não se pode usar uma medida equivalente para todos eles, localizados no Brasil ou fora do país, sob pena de encobrir sua história e condições de funcionamento, sem as quais não é possível avaliar sua capacidade de enfrentamento das adversidades oriundas da pandemia. O problema das condições diferenciadas de enfrentamento das mudanças anunciadas para um futuro pós-pandêmico não é, entretanto, único. Numa perspectiva sociológica, que preza as relações e interações sociais, há que indagar sobre o público que tem acesso aos sites dos museus. Essa é uma questão pungente que varia de país para país, cidade para cidade, entre pequenas e grandes localidades, classes e camadas sociais, gêneros, raças, graus de escolaridade e níveis de renda. Estamos vendo o quanto o acesso diferenciado aos sites e plataformas afeta e provoca, de modo absurdo, mais desigualdades no sistema educacional brasileiro. Penso nas visitas programadas para crianças e adolescentes aos museus, bruscamente interrompidas devido ao fechamento das escolas e dos museus. Os problemas do sistema educacional, contudo, têm merecido, ao menos, algum debate na esfera pública, o que não ocorre com o sistema cultural, no qual impera o silêncio. Como os museus vêm tratando da comunicação com o público de seus setores voltados para a educação e formação do público jovem? Em que medida, penso ainda, as escolas aqui e acolá que estão mantendo um sistema de aulas virtuais têm contato com os museus (e os museus com elas) para programar as visitas guiadas virtualmente? Recentemente, verifiquei, na cidade do Rio de Janeiro, que professores do ensino médio não tinham conhecimento das visitas virtuais. E, quando o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, MAM-Rio, e o Centro Cultural Banco do Brasil reabriram suas portas, obedecendo às medidas de segurança sanitária, poucos tiveram conhecimento desse fato. Por sua vez, o noticiário da mídia televisiva, escrita e radiofônica não contribuiu para informar o público. O mundo da cultura, incluindo os museus de arte, apareceu para o público brasileiro com destaque apenas nas trocas de servidor/servidora para a pasta da Secretaria Especial da Cultura com o objetivo de denunciar sua falta de preparo para ocupar o cargo e os cortes nos recursos
4 O CMAHO foi criado, em 1996, mediante convênio entre a Prefeitura do Rio de Janeiro e o Projeto Hélio Oiticica, visando abrigar o acervo do artista e programar exibições de sua obra. Em 2009, rompeu-se o acordo entre a Prefeitura, sendo retiradas suas obras do CMAHO. A partir de 2012, as diretoras Luciana Adão e, em seguida, Izabela Pucu lograram reerguer o centro voltado para a arte contemporânea. Mais recentemente, entretanto, a prefeitura vem retirando os parcos recursos do CMAHO, causando danos inestimáveis a seu funcionamento. 58
financeiros. Nas reportagens a que pude assistir, ler ou ouvir, a cultura foi reduzida às precárias condições de vida de artistas, geralmente apontadas por artistas mais conhecidos nos meios midiáticos. Fechamento de teatros por falta de verbas, financiamento escasso para a produção cinematográfica, homenagem a artistas mortos durante a pandemia, celebração de aniversários de artistas famosos tiveram preponderância em alguns momentos do contexto pandêmico. Tanto o PIPA quanto o Art Market Eye anunciaram editais e fizeram campanhas para venda de obras online, além de divulgar notícias sobre artistas, exposições e mercado de arte. Não vi reportagens nem debates sobre a situação dos museus em canais televisivos voltados para a cultura. Com base nessas observações precárias e provisórias, arrisco apresentar, a seguir, algumas questões que, eventualmente, poderão ser colocadas em foco em uma discussão a respeito dos efeitos da pandemia no funcionamento de museus e centros de arte, de modo a contribuir para uma ponderação sobre o futuro dessas instituições.
1. Visibilidade e invisibilidade dos museus de arte no mundo virtual A primeira questão diz respeito à visibilidade e invisibilidade dos museus e centros de arte que, durante a pandemia, passam a depender de sua capacidade de ter um site informativo e atualizado sobre suas atividades. Para tanto, os museus necessitam tanto de recursos financeiros como de pessoal adequado para atualização permanente das informações. Quem percorre na internet os sites de diferentes museus percebe de imediato as possibilidades que eles oferecem de se comunicar virtualmente com seu público, mantendo-o informado e atraindo sua atenção e interesse. Não bastam, porém, a criação e a manutenção de um site; é preciso responder com agilidade aos contatos virtuais do público com a instituição. Isto pode parecer um detalhe sem importância, mas de fato não é. Além dos meios variados de acesso a informações sobre um museu (por e-mail ou no próprio site etc.), a resposta rápida e precisa evidencia a eficiência dos serviços prestados pela instituição, estabelece interação e evita a desistência da procura pelas informações sobre o museu. A Primavera dos Museus, evento programado anualmente pelo IBRAM, teve como tema central de sua 14a edição, em setembro de 2020, “Mundo digital: museus em transformação. A escolha evidencia o quanto a comunicação virtual 59
dos museus com seu público, que vinha aos poucos sendo implementada, fez-se de tal modo urgente com a pandemia, a ponto de se tornar condição sem a qual as medidas e iniciativas tomadas por museus - vinculados a prefeituras, governos estaduais, governo federal, empresas privadas ou, ainda, os que angariam recursos públicos e privados - não alcançam visibilidade. Essa condição exige, antes de mais nada, o conhecimento técnico de ferramentas digitais para a divulgação, por exemplo, de acervos museológicos ou para visitas virtuais aos museus como ação educativa, diferentes das visitas virtuais a exposições para o público em geral. O IBRAM, criado em 2009, remodelou recentemente seu site visando torná-lo acessível na tela de celulares. Os exemplos poderiam se multiplicar. O que importa aqui, contudo, é enfatizar a necessidade premente de equipar as instituições museológicas com meios técnicos e pessoal qualificado para o manuseio e manutenção das ferramentas digitais. Embora os museus vinculados ao IBRAM abriguem acervos diferenciados, voltados ora para a cultura, ora para a ciência, e não apenas para os museus de arte, que constituem o foco deste ensaio, vale à pena observar que, nas recomendações sobre as medidas de segurança interna dos museus para evitar o contágio da Covid-19, o Instituto ressalta tanto a necessidade de engajamento digital como a indispensável ampliação do conteúdo online daquelas instituições: Os museus, espaços de reflexão e apropriação de memória, de bens culturais, que nos fazem olhar para a realidade e para nós mesmos, estão se reinventando. Formas criativas de comunicação foram encontradas, seja através do engajamento digital e da ampliação de conteúdo online, como também da atuação mais próxima junto à sua comunidade, inclusive com apoio a ações sociais e de preservação da vida humana nesta grave emergência sanitária. Ou seja, apesar de seus espaços físicos estarem fechados, os museus estão estreitando ainda mais a comunicação com seus públicos de formas diversas, mantendo suas atividades e preservando seus laços com a comunidade e colaborando para a discussão desse momento complexo, de enfrentamento de novos desafios e formas de viver. Os museus, assim, continuam vivos e fundamentais para a sociedade (Recomendações..., s.d.). Nas orientações do IBRAM, observam-se os dois pontos importantes para uma discussão sobre os museus na atualidade: o uso de ferramentas digitais pelos museus e a diversidade das informações e programação de seus sites. Uma leitura mais atenta do pequeno texto acima aponta, porém, uma característica das mensagens enviadas por museus e inúmeras outras instituições. Destaco o termo “conteúdo” que aparece a torto e a direito em conversas e mensagens virtuais, denominando de forma genérica aquilo que, no caso dos museus, eles podem comunicar ou oferecer a seu público. O “conteúdo” de fato se distingue do sistema digital, mas sua publicação virtual será mais ou menos limitada, bem ou mal formatada de acordo com as ferramentas digitais utilizadas, cujo valor no mercado tem custo variado. Vejamos o exemplo da propaganda abaixo: O que é CMS? 60
CMS é uma sigla em inglês que significa Content Management System ou Sistema de Gestão de Conteúdo. Ou seja, é um sistema online que permite a publicação e o gerenciamento do conteúdo de sites. No entanto, essa é uma definição simplificada. Isso porque a maior parte das plataformas de CMS faz muito mais do que isso. Através dessas plataformas, você consegue criar um site, um blog ou uma loja virtual sem grandes complicações. Além disso, a grande maioria delas possui ferramentas que auxiliam na criação do design e de outras customizações. Antigamente, para que uma empresa pudesse manter um site mais profissional no ar era um suplício que exigia conhecimentos de HTML. Hoje em dia, com o CMS, você não precisa se preocupar com detalhes técnicos, somente com o conteúdo (O que é CMS?, s.d.). Essa digressão apenas acentua a necessidade de refletir sobre os limites da categoria “conteúdo”, tão naturalizada nos meios institucionais e digitais, que pouco se pensa no seu vínculo com os meios técnicos que efetivamente dão “forma” aos “conteúdos” programados. Quando se pondera sobre a visibilidade dos museus de arte no mundo virtual, que, aparentemente, se tornará cada vez mais um critério de avaliação de suas diferenças relativamente à interação com o público, vale a pena levar em conta tanto os detalhes técnicos quanto os simbólicos da comunicação. Finalmente, cabe lembrar, embora não seja esse o cerne das questões expostas, neste artigo, que o empenho pela maior visibilidade dos museus de arte em futuro pós-pandêmico deverá incluir a melhoria das condições dos que neles trabalham, visando acabar com a precarização e os baixos salários e instituir políticas de ação afirmativa. Pesquisa recente mostra de 50% dos trabalhadores no campo da arte não têm contrato de trabalho5. Além disso, as demissões recentes nos museus, durante a pandemia, atingiram em maior escala justamente os setores educativos e os que trabalham com o público.
2. Diversidade da programação online dos museus de arte A segunda questão relevante para pensar as mudanças que afetam os museus em contexto pós-pandêmico se refere, pois, à variedade da programação que pode ser disponibilizada online, tal como visitas guiadas, programação de filmes ou aulas de desenho para o público infantil, debates, textos sobre o acervo etc. Que instituições dispõem de condições materiais e de pessoal para oferecer visitas virtuais, por exemplo? O CCBB disponibilizou a visita online da
5 A esse respeito ver a pesquisa da revista Select (s.d.) e o artigo de Luciara Ribeiro e Rafael Domingo Oliveira (2020) intitulado “A crise e a desigualdade nas artes: um diálogo sobre cotas”. 61
exposição Ivan Serpa: “A expressão do concreto”6, que sofreria, logo no início da pandemia, inestimável descontinuidade caso não fosse tomada a decisão de colocá-la online. Essa foi a primeira visita online que fiz a uma exposição de arte. A apresentação das pinturas, desenhos e objetos de autoria de Serpa, com narração de um de seus curadores, permitiu-me apreciar a obra do autor e aprender sobre sua trajetória. Com o intuito de observar as possibilidades de ampliação da programação online dos museus de arte, evoco o exemplo do Museu de Belas Artes de Houston, no Texas. Criado em 1917 para levar a arte into the everyday life dos cidadãos da cidade texana, o museu cresceu de tal maneira ao longo de um século, que hoje tem sob sua guarda e administração mais de 64.000 obras, conjunto que engloba, segundo o site da instituição, renascimento italiano, impressionismo francês, artes decorativas americanas e europeias, arte africana e pré-colombiana, arte americana, pintura e escultura norte-americanas e europeias que surgiram depois de 1945, arte afroamericana, pintura texana, além de coleções emergentes que contêm arte latino-americana moderna e contemporânea7 e arte asiática. Atualmente o museu conta com dois prédios para suas exposições, o Caroline Wiess Law e o Audrey Jones Beck; duas casas para as coleções de arte decorativas; uma escola de arte; um jardim com esculturas; galpões e prédios para a reserva técnica, conservação e arquivos; e um prédio para sua administração. Saliente-se, no conjunto dessas edificações, a ampliação, projetada por Mies van der Rohe, ao prédio Caroline Wiess Law em 1953, que contrasta com a edificação neoclássica projetada em 1924. Calcula-se que mais de um milhão de pessoas se beneficiam das exposições e programas do museu anualmente. Trata-se de uma instituição sólida, ativa há mais de um século na região norteamericana enriquecida com os dividendos do petróleo. Seu acervo abarca atualmente período de mais de 6.000 anos. O Museum of Fine Arts, localizado na cidade norte-americana de Houston, fechou suas portas em 16 de março de 2020, tendo seu diretor, Gary Tinterow,
6 Hélio Dias Ferreira e Marcus de Lontra Costa foram os curadores da exposição. Hélio M. Dias Ferreira (2004), um estudioso da obra de Ivan Serpa, fez a apresentação da exposição online, percorrendo todas as salas. Tal modalidade de visita virtual me pareceu bem mais eficiente do que aquelas em que o espectador fica “sozinho”, manuseando com setas a sua visita a uma exposição. 7 A Coleção Adolpho Leiner de arte concreta brasileira foi vendida para o museu de Houston e lá encontra-se abrigada desde 2007. 62
declarando em entrevista de 23 de maio o valor das perdas financeiras sofridas, a manutenção dos 600 empregados permanentes, a quebra do contrato com empresas que prestavam serviço ao museu, indenizando, porém, seus empregados e pagando-lhes seguro de saúde durante alguns meses, além de outras medidas para a instalação do MFAH at Home Virtual Experience. Durante o período de portas fechadas até à abertura, com medidas de segurança, o museu enviou por correio eletrônico, quinzenalmente, uma programação diversificada incluindo atividades para adultos, crianças e famílias. Enumero a seguir os tipos de programas que o museu ofereceu online para o público: 1) conversas virtuais com artistas que falavam a respeito de sua carreira e do foco de sua obra; 2) passeios online pelos jardins do museu; 3) visita online a diversas exposições; 4) filmes, em geral com temática relacionada a exposições abertas no mesmo período; 5) programas de atividade de desenho para crianças/ou famílias; 6) programa de atividades de desenho para adultos; 7) atividades voltadas para o bem-estar, como workshops de dança; 8) celebração de datas importantes, como o dia do trabalho e a data da emenda constitucional que permitiu o voto das mulheres. Dessa oferta de programação promovida pelo museu, destaco a exposição Stronger than Covid-19, que resultou de um convênio do museu com escolas secundárias da cidade, cujo objetivo era a curadoria e montagem de uma exposição virtual de trabalhos de alunos e alunas do último ano escolar. Os jovens contribuíram representando em trabalhos artísticos sua experiência na escola durante a pandemia até a data de sua formatura. Nem é preciso dizer que o MFAH não constitui parâmetro a partir do qual se possam avaliar comparativamente as condições diversas dos museus com o intuito de pensar o que acontecerá com essas instituições em futuro póspandêmico. Independentemente, porém, dos recursos milionários que o museu texano recebe de doações e mesmo de instituições do governo norte-americano, quero chamar a atenção, por meio de seu exemplo, para as possibilidades de uma oferta variada de programas online para o público. Acredito que o oferecimento de uma programação diversificada não depende exclusivamente de recursos financeiros, mas, também, de um projeto criativo, modesto ou suntuoso, elaborado pela instituição, visando a um vínculo efetivo com seu público. Vejamos a programação do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro durante a pandemia. A fundação do MAM ocorreu em 1948, no contexto do pósguerra, quando surgiram no Brasil os primeiros grandes espaços expositivos, construídos com arrojados projetos arquitetônicos. Diferentemente do MFAH, o MAM-Rio não recebeu doações bilionárias para “civilizar” os cidadãos e fazer a memória de seus benfeitores (DUNCAN, 1995), mas se ergueu para realizar um arrojado projeto de implantar a modernidade no campo das artes (SANT’ANNA, 2011). Depois de sua fundação, o museu ocupou o último andar do recéminaugurado prédio do Banco Boavista, um dos primeiros projetos de Oscar Niemeyer, situado na Praça Pio XI. Mudou-se em 1952 para o edifício do Ministério da Educação e Cultura, abrigando-se em outro “templo” moderno do Centro da cidade. Em dezembro de 1952, a Câmara dos Vereadores aprovou proposta de 63
doação de terreno de 40 mil metros quadrados para a instituição, à beira da Baía de Guanabara. A transferência para a sede própria se deu, contudo, em 1958, quando foi inaugurado seu Bloco Escola. O Bloco de Exposições (prédio principal) foi inaugurado em 1963. Em 2006 foi concluída a obra do teatro. Os prédios do museu, ladeados pelos jardins projetados por Burle Marx, ocupam um lugar privilegiado do qual se podem ver o Pão de Açúcar, o Corcovado, a Marina da Glória e a igreja do Outeiro da Glória. Atravessando uma passarela de pedestres, o visitante entra no Centro histórico da cidade. O projeto do arquiteto Affonso Eduardo Reidy foi executado por sua esposa, a engenheira Carmem Portinho. Na época, a diretora do MAM, Guiomar Moniz Sodré levou à frente com sucesso o acalentado projeto de erguer um museu moderno e dar-lhe uma sede adequada. Nenhuma dessas duas mulheres, entretanto, é mencionada no site do MAM. O MAM se apresenta como um museu voltado às vanguardas e à experimentação nas artes, cinema e cultura. Seu acervo de cerca de 15 mil obras forma uma das mais importantes coleções de arte moderna e contemporânea da América Latina. O museu realizou inúmeras exposições que marcam até hoje as expressões e linguagens das artes visuais e abrigou múltiplos movimentos artísticos brasileiros [...]O MAM-Rio é uma instituição cultural constituída como uma sociedade civil de interesse público, sem fins lucrativos, apoiada por pessoas físicas e por empresas, que tem atualmente a Petrobras, o Itaú e a Ternium como mantenedores por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura, e o Grupo PetraGold como patrocinador. (MAM, 2020, online)8 De fato, o Museu foi o palco das vanguardas artísticas de meados do século passado e soube enfrentar o incêndio ocorrido em 1978, que destruiu parte de seu acervo e do Bloco de Exposições. Em 1982, foi novamente aberto ao público e na década seguinte recebeu doação da coleção particular de Gilberto Chateaubriand. O acervo do MAM é formado por obras pertencentes a três coleções: a coleção própria do museu, que se destaca por abrigar a maioria das obras de artistas estrangeiros; a coleção Gilberto Chateaubriand, de arte moderna e contemporânea brasileira – cedida ao museu em regime de comodato; e a coleção Joaquim Paiva de fotografias de diferentes gerações e nacionalidades. Também possui importante acervo de documentação, especializado em arte moderna e contemporânea; sua conhecida Cinemateca9 gerencia o maior acervo de documentação de cinema do país, além de um dos maiores acervos de filmes da América Latina. Durante os meses mais agudos de isolamento social, as mensagens que o MAM enviou aos integrantes de seu correio eletrônico foram esparsas - apenas cinco e sem regularidade. A primeira delas enviada em 30 de abril, semanas depois de seu fechamento devido à pandemia da Covid-19, era
uma chamada aberta para a Direção Artística do Museu, cargo que inclui as atividades de curadoria, de preservação das exposições, dos setores de cinema, da educação e documentação, além da colaboração com a Residência Artística Internacional Capacete instalada no museu. Somente em 6 de maio, o MAM anuncia a interrupção de suas atividades: “Estamos com a visitação suspensa, a cinemateca fechada e as equipes em casa há semanas em respeito à quarentena. Mas por que não pensaríamos em respirar arte e produzir conteúdo?” O atraso em informar o fechamento das atividades do museu é tão surpreendente quanto a dúvida em “respirar arte e produzir conteúdo”. A programação online incluía 1) oficina caseira de desenho para crianças; 2) entrevista do Canal Curta Brasil com artista que aguarda a reabertura do museu para inaugurar uma exposição; 3) documentário sobre artistas em isolamento social; 4) leitura de livro em PDF sobre história educativa e eventos do MAM desde sua criação; 5) vídeo sobre aspectos de exposição inaugurada em fevereiro de 2020 intitulada Canção Enigmática. Relação entre arte e som na coleção do MAM; 6) anúncio de que a curadoria da cinemateca estava a programar filmes para apresentar durante a quarentena. Em 11 de maio, o MAM solicita que o usuário preencha um formulário de pesquisa de opinião sobre o museu. O resultado da enquete traria subsídios para orientar as mudanças pretendidas para a instituição. Depois de alguns meses, outra mensagem sob o título “o que faz um museu durante a pandemia”, apresenta programação mais pobre que a mencionada anteriormente: vídeo com artista, informação sobre a participação do museu em grupo de trabalho sobre a conservação do acervo em tempo de pandemia; fotografias da coleção Assis Chateaubriand; informação sobre o centro de conservação da cinemateca. Uma das últimas mensagens do MAM versou sobre a participação online do museu na ArtRio/2020. Se observarmos com acuidade a correspondência enviada pelo MAMRio durante a fase de interrupção das atividades devida ao fechamento do museu em função da pandemia, podemos dizer que sua equipe e direção produziram pouco “conteúdo”, colocando à disposição online “conteúdos” informativos produzidos por outras instituições ou pessoas. Além disso, a falta de regularidade na comunicação com o público é injustificável10. No início de
8 Essa informação foi dirigida aos candidatos à chamada aberta para a direção artística do museu (MAM abre chamada..., 2 maio 2020). 9 Para conhecer a história da Cinemateca do MAM, sua importância na divulgação de filmes de arte e na formação de público cinéfilo, ver Pires (2019). 64
10 O atual diretor do MAM assumiu o cargo no início do ano, em meio a uma crise financeira que levou o museu a vender um quadro de Pollock em 2019, fato que gerou polêmica na mídia. 65
2020, a nova direção do museu anunciou mudanças nos setores administrativos e financeiros da instituição, entre outros. O fato não pode, entretanto, ser atribuído à comunicação precária do museu com o público. A visibilidade e a programação do MAM-Rio, durante a pandemia, não fizeram jus ao patrimônio material e simbólico, conquistado a duras penas pelas diversas equipes, diretores e diretoras da instituição no passado - tampouco a seu público11.
3. O que diz o mercado de arte sobre os museus Em contraste com as notícias que recebi dos museus, o jornal eletrônico The Art Newspaper tematizou, regularmente - durante a quarentena e após a liberação gradual do isolamento social -, o futuro do mercado de arte em contexto pós-pandemia. Uma vez que o funcionamento do rico mercado mundial de arte interfere no gerenciamento dos grandes museus de arte – tanto por parte de colecionadores que desejam dar visibilidade a suas obras, legitimando-as com exposições nessas instituições quanto por conta da oscilação do valor dos acervos com a venda ou compra de obras de arte –, vale apontar alguns dos comentários feitos pelo jornal. Dos comentários críticos do The Art Newspaper sobre a situação do mercado em tempo de pandemia destacam-se três: o primeiro afirma que, embora a pandemia provoque uma recessão global, a arte se mostra surpreendentemente resiliente, ao menos a arte que está no topo. O motivo para essa resistência às adversidades seria a persistente competição entre os poucos compradores mais ricos do mundo em luta por alguns poucos troféus. Apesar da pandemia, o interesse na aquisição de bens tangíveis e “seguros” permanece, garantindo uma situação lucrativa clássica de oferta e demanda. O segundo diz respeito ao fim do clima que envolve as vendas nos leilões. Georgina Adam, editora do The Art Newspaper critica a luxúria excessiva e ostentatória dos leilões de arte, em artigo intitulado What sort of art will we want after the pandemic ends? (ADAM, 4 jun. 2020), afirmando que, ao passar pelas dificuldades próprias deste momento, haverá um arrefecimento da habitual ostentação de vendedores e compradores de arte. Um terceiro comentário publicado no jornal norte-americano lamenta a mercantilização da arte, que mantém obras encaixotadas durante dias, meses e mesmo anos, estocadas em prédios blindados, aguardando que seu preço suba no mercado ou que as taxas sobre o valor da sua venda estejam mais em conta. A pandemia, poderia, eventualmente, fazer retornar os valores estéticos e simbólicos que orientavam o mercado no passado, evitando que a arte se torne meramente um bem de luxo que se compra, estoca e revende (ADAM, 22 out. 2020).
11 Em agosto de 2020, foi nomeada a nova direção artística de museu, selecionada mediante da chamada aberta promovida pelo MAM-Rio. Dela fazem parte Keyna Eleison e Pablo Lafuente, cujo projeto, vencedor do certame, baseia-se na diversidade da cultura e da arte, bem como na transparência. 66
Esse modo de pensar efeitos da pandemia no mercado de arte arrisca uma crítica muito tímida à natureza das transações comerciais de obras milionárias. Não impede, entretanto, que o mencionado jornal se ocupe da venda de obras de arte por parte de diversos museus norte-americanos para angariar fundos, visando evitar o colapso das instituições. Não é segredo que os museus estão passando por uma crise aguda em diversos países, devido a seu fechamento e ao número reduzido de visitantes em sua reabertura. Segundo o The Art Newspaper, no entanto, a venda em grande número de obras “inundaria” o mercado; e quem iria comprar tantas obras? A expectativa dos grandes leiloeiros é que “lotes” e “lotes” de trabalhos de arte venham a ser vendidos pelos museus. Em geral, o mercado ama as obras retiradas de coleções de museus para venda. O fato de proceder de um museu acrescenta um “brilho à validação” da obra, e consequentemente, aumenta seu valor monetário. Mas haverá um excesso dessas obras nos próximos meses, e haverá compradores suficientes para elas? Obras de artistas brancos mortos (que é, invarialvelmente, o caso da maioria dessas obras) exercerão a mesma atração aos compradores? E, finalmente, com um mercado inevitavelmente reduzido, devido à crise, será possível manter os preços? (ADAM, 22 out. 2020). De acordo com notícia divulgada pelo The Washington Post (SMEE, 2020), datada 20 de abril de 2020, a Associação Americana dos Diretores de Museus afrouxou as normas para venda de obras das coleções dos museus, garantindo uma “janela” de dois anos para a venda e permitindo que o dinheiro arrecadado seja usado para despesas diversas, e não apenas, compulsoriamente, conforme a norma da associação, para comprar outras obras com o objetivo de diversificar as coleções. Segundo a matéria do jornal, os diretores de museus que se pronunciaram sobre a venda e, consequente desfalque de suas coleções, alegaram que as medidas tomadas tinham única e exclusivamente o objetivo de cuidar das coleções e “servir aos seus públicos”. Até então, os museus tinham sido desencorajados a vender obras de suas coleções, exceto se a venda tivesse o propósito de adquirir obras para diversificar a coleção, a exemplo do Baltimore Museum of Art que se desfez de muitas obras para adquirir trabalhos de mulheres e artistas de cor (artists of color). Os museus envolvidos na venda de obras insistem sobre a necessidade da venda nas atuais circunstâncias e nas decisões cuidadosas que estão sendo tomadas com relação às transações comerciais com obras de suas coleções (CBS, 2020). Volto ao que mencionei no início deste artigo sobre a flagrante diferenciação entre os museus, fato que impede usar qualquer medida que os nivele. Isso dificulta a tarefa de “pensar o futuro dos museus pós-pandemia”. Outro problema, também anunciado no começo da escrita, refere-se ao abismo entre a suntuosa e rica fatia da arte que circula em um luxuoso mercado mundial e uma fatia da arte muito heterogênea no que se refere ao seu valor de mercado, que pertence a museus diversos, cujos recursos financeiros são variadíssimos. 67
Seria mesmo necessário caracterizá-la melhor, o que não pude fazer nos limites deste artigo. De toda forma, creio ser possível dizer que a visibilidade dos museus em plataformas e sites virtuais, bem como a diversificação de sua programação naqueles suportes técnicos, parece ser um fato a se considerar em prognósticos sobre o futuro daquelas instituições, uma vez que a pandemia acelerou a necessidade de as colocar em contato virtual com seu público. Isso não significa, contudo, invalidar outras formas de comunicação não virtual, em comunidade e escolas, por exemplo. Também não significa esquecer que parcelas da população, no Brasil e em outros países, não têm acesso à internet, e que os museus, dependendo de sua localidade, seu acervo e seus objetivos deveriam cuidar desse problema mais de perto. Sobretudo, a entrada dos museus no mundo das tecnologias digitais não substitui de nenhum modo a visita presencial às exposições – tanto pelo valor da experiência visual e sensível de estar “com” a obra como pelo valor que se paga ao museu, contribuindo para aumentar os recursos financeiros da instituição12. A referência ao rico mercado de arte e à venda de obras das coleções de museus norte-americanos serve aqui como alerta para a simultaneidade de ocorrências distintas relativas aos museus nos contextos pandêmico e pós-pandêmico. Creio que pesquisadores da sociologia da arte e disciplinas próximas, habituados à extremada especialização que suas carreiras exigem, poderiam, talvez, suspender provisoriamente seus projetos mais imediatos, a fim de ponderar sobre a situação atual dos museus e contribuir para colocar o debate sobre essas instituições na esfera pública. Finalmente, penso que o crescimento dos museus nas últimas décadas e a diversificação de seus acervos, voltados agora para a preservação da memória artística de diferentes grupos sociais, cujo valor é inestimável do ponto de vista político e sociológico, são conquistas sociais que merecem, mais do que atenção, uma tomada de posição firme, ações e iniciativas que garantam sua existência e conservação.
Referências ADAM, Georgina. A flood of art? Marketing issues around museum deaccessioning. Art Market by The Art Newspaper. Disponível em: newsletter@ theartnewspaper.com. Acesso em: 22 out. 2020. _____. What sort of art will we want after the pandemic ends? Art Market Eye by The Art Newspaper. Disponível em: newsletter@theartnewspaper.com. Acesso em: 4 jun. 2020. CBS. Museums struggling to survive coronavirus pandemic get go-ahead to sell their art. CBS NEWS, May 23, 2020, 1:35 PM. Disponível em: https:// www.cbsnews.com/news/coronavirus-art-museums-sell-artworks-pandemic. Acesso em: 20 set. 2020. DUCAN, Carol. Civilizing rituals. Inside Public Art Museums. New York: Routledge, 1995. FERREIRA, Hélio M. Dias (org.). Ivan Serpa. Rio de Janeiro: Funarte, 2004. HUYSSEN, Andreas. Memórias do modernismo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996. IBRAM – Instituto Brasileiro de Museus. Museus em números. Brasília: IBRAM, 2011 PIRES, Bianca S. A formação de públicos cinéfilos, circuitos paralelos, museus e festivais internacionais. Tese [Doutorado em sociologia]. Rio de Janeiro: UFRJ, 2019. RIBEIRO, Luciara; OLIVEIRA, Rafael Domingo. A crise e a desigualdade nas artes: um diálogo sobre cotas. Select, ano 9, n. 47, jun./jul./ago. 2020. Disponível em: https://www.select.art.br/a-crise-e-a-desigualdade-racialnas-artes-um-dialogo-sobre-cotas/. Acesso em: 11 out. 2020 SANT’ANNA, Sabrina M. Parracho. Construindo a memória do futuro. Uma análise da Fundacão do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011. SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Museus brasileiros e política cultural. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 19, n. 55, jun.2004, p. 53-73. SHAPIRO, Roberta, O que é artificação? Sociedade e Estado, Brasília, v. 22, n. 1,
12 Ao concluir este artigo, tive a oportunidade de visitar presencialmente a exposição de Ivan Serpa no CCBB. 68
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jan.-abr. 2007, p 135-151. SMEE, Sebastian. This is how bad things are for museums: They now have a green light to sell off their art. The Washington Post, April 30, 2020. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/entertainment/museums/this-is-howbad-things-are-for-museums-they-now-have-a-green-light-to-sell-offtheir-art/2020/04/29/b5492a5e-899e-11ea-8ac1-bfb250876b7a_story. html. Acesso em: 10 set. 2020. Sites e emails MAM abre chamada para Direcão Artística. Email: MAM Rio comunicacao@ mam.rio, 2 maio 2020. MUSEUM of Fine Arts Houston. Disponível em www.mfah.org. Acesso em: 10 ago. 2020. O QUE É CMS? Disponível em: https://www.dinamize.com.br/blog/ plataformas-de-cms. Acesso em: 01 out. 2020. RECOMENDAÇÕES AOS MUSEUS em tempo de Covid-19. Disponível em: www.museus.gov.br. Acesso em 12 set. 2020. SELECT. Disponível em: https://www.select.art.br/pesquisa-selecttrabalhadores-da-arte-2/. Acesso em: 10 ago. 2020.
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Por Ana
AUDIOVISUAL NA PANDEMIA: DESAFIOS, ESTRATÉGIAS E CRIATIVIDADE
Heloiza Vita Pessottoo
Doutoranda em Mídia e Tecnologia pela Faculdade de Arquitetura Artes, Comunicação e Design da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), mestra em Comunicação Midiática e bacharela em Comunicação Social Radialismo, ambos pela Unesp. Tem pesquisas direcionadas à produção audiovisual e à criatividade. Pesquisadora do Laboratório de Estudos em Comunicação, Tecnologia, Educação e Criatividade (Lecotec). Organizadora da coletânea: Mídia, cultura inovativa e economia criativa em tempos pandêmicos (2020). Atua como roteirista, produtora cultural e audiovisual. Idealizadora do aplicativo “a CineastA”, catálogo de obras audiovisuais dirigidas por brasileiras. Membro do Plano Conjunto - Coletivo Audiovisual de Bauru, instituição gestora do Arranjo Produtivo Local de Audiovisual de Bauru. Titular da cadeira do audiovisual no Conselho Municipal de Política Cultural de Bauru (gestão 2021/2023).
Juliano Maurício de Carvalho Livre-docente em Políticas de Comunicação, Mídia e Indústrias Criativas pela Unesp. Pós-doutorado pela Universidade de Sevilha e Universidade Carlos III de Madri. É vice-coordenador do curso de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Mídia e Tecnologia, docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, do curso de Jornalismo e líder do Laboratório de Estudos em Comunicação, Tecnologia, Educação e Criatividade do Departamento de Comunicação Social da Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design da Unesp. Doutor em Comunicação pela Unesp, mestre em Ciência Política pela Unicamp e bacharel em Jornalismo pela PUC-Campinas. Foi conselheiro do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, diretor da Associação Brasileira de Televisão Universitária, coordenador do Grupo de Trabalho de Políticas de Comunicação da Intercom, vice-presidente e diretor de Relações Institucionais do Fórum Nacional de Professores de Jornalismo e diretor de Comunicação da União Latina de Economia Política da Informação, Comunicação e Cultura. Coordenou o mestrado profissional em Televisão Digital e Mídia e Tecnologia da Unesp. Publicou artigos, capítulos de livros e trabalhos em eventos científicos nas áreas de jornalismo e inovação, políticas de comunicação, gestão da informação e criatividade, economia da comunicação e da cultura e organizou as coletâneas: Mídia, cultura inovativa e economia criativa em tempos pandêmicos (2020), Políticas de Comunicação: Instituições, Tecnologia e Regulação (2019), Jornalismo e convergência (2014), Economia política da comunicação: digitalização e sociedade (2013) e O novo rádio: cenários da radiodifusão na era digital (2010).
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Resumo: Este artigo objetiva identificar as estratégias de produção audiovisual desenvolvidas durante o período de distanciamento social, ocasionado pela pandemia de Covid-19, entre março e setembro de 2020. As estratégias foram divididas em cinco tipos com base na forma como a obra foi produzida quanto à participação da equipe na captação/produção de imagens e na edição. São elas: produção individual em isolamento; produção colaborativa com contribuições individuais de forma remota; técnica de animação com trabalho não presencial; colaborativa presencial seguindo os protocolos sanitários de segurança; colaborativa híbrida, com parte da equipe presencial e parte remota. Concluise que a pandemia, enquanto acontecimento histórico global, combinada com os fatores tecnológicos favoráveis e com o nível de flexibilidade do setor audiovisual, é um período propício para a criatividade neste domínio. Refletese sobre a criatividade dessas alternativas e a potencialidade de incorporação dessas estratégias pelo domínio audiovisual, validadas enquanto inovações por agentes legitimados no setor. Palavras-chave: Produção Audiovisual. Criatividade. Inovação. Pandemia. Covid-19. Audiovisual in Pandemic: Challenges, Strategies and Creativity Abstract: This article aims to identify the audiovisual production strategies developed during the period of social distancing, caused by the Covid-19 pandemic, between March and September 2020. The strategies were divided into five types based on the way the work was produced as to the team’s participation in capturing / producing images and editing. They are: individual production in isolation; collaborative production with individual contributions remotely; animation technique with non-presential work; face-to-face collaborative following health safety protocols; hybrid collaborative, with part of the on-site and remote team. It is concluded that the pandemic, as a global historical event, combined with favorable technological factors and the level of flexibility of the audiovisual sector is a propitious period for creativity in this field. It reflects on the creativity of these alternatives and the potential for incorporating these strategies into the audiovisual domain, validated as innovations by legitimate agents in the sector. Keywords: Audiovisual production. Creativity. Innovation. Pandemic. Covid-19.
Introdução O ano de 2020 está marcado pela pandemia de Covid-19, causada pelo coronavírus. Por questão de segurança, agentes de instituições internacionais de saúde e gestores públicos do mundo todo desenvolveram e aplicaram protocolos sanitários. A adoção de medidas de paralisação de determinadas atividades, o distanciamento social e a restrição à circulação ocasionaram aumento de consumo de produtos de entretenimento não presenciais. A porcentagem de usuários que contrataram serviços pagos de vídeo foi de 34%, em 2018, para 43% durante a pandemia (CETIC, 2020). No levantamento Target Group Index
Flash Pandemic1, os entrevistados afirmaram que estão vendo mais vídeos online durante a pandemia; destes, 66% estão assistindo a mais vídeos gratuitos, e 56% a mais vídeos sob demanda pagos do que no período pré-isolamento. Apesar de os conteúdos audiovisuais terem a vantagem de poderem ser consumidos por meio de mídias eletrônicas, o desenvolvimento e a produção deles envolvem diversos profissionais, que podem estar ou não no mesmo ambiente. Este artigo tem como objetivo identificar as estratégias desenvolvidas pelo setor audiovisual para se adaptar à produção em meio ao isolamento social. A investigação é qualitativa, e o mapeamento exploratório. A categorização das estratégias foi desenvolvida por meio das características das produções quanto à participação da equipe na captação/produção de imagens e na edição. O levantamento considerou obras cinematográficas, programas de TV, séries, conteúdos digitais em forma de audiovisual disponibilizados na plataforma de compartilhamento de vídeos Youtube e na mídia social Instagram, produzidos entre março e setembro de 2020. Foram excluídos do levantamento programas jornalísticos. As estratégias serão analisadas segundo as concepções de criatividade e de domínio de Csikszentmihalyi (1996), com a intenção de refletir sobre a natureza criativa das estratégias e seu potencial de adoção pelo domínio do audiovisual no período póspandemia.
Criatividade Csikszentmihalyi (1996, p. 1 e p. 23) afirma que a criatividade não é produto originado da mente de apenas um indivíduo, e sim resultado da interação entre os pensamentos individuais e o contexto sociocultural. Seu modelo dinâmico do processo criativo é um sistema composto de três partes principais: (1) Domínio; (2) Campo; (3) Indivíduo (CSIKSZENTMIHALYI, 2014, p. 51-54). A criatividade é “[...] um processo pelo qual um domínio simbólico na cultura é alterado” (CSIKSZENTMIHALYI, 1996, p. 8) e sempre apresenta como característica o elemento originalidade (CSIKSZENTMIHALYI, 1996, p. 363). A criatividade depende da legitimação dos especialistas do campo do conhecimento de que os produtos e/ou processos criativos fazem parte, para assim poderem ser incluídos no domínio cultural (CSIKSZENTMIHALYI, 1996, p. 27). Amabile (1982) também destaca a importância 1 Disponível em: <https://www.kantaribopemedia.com/mudancas-de-comportamento-e-na-forma-de-consumir-midia-durante-a-quarentena-indicam-novas-tendencias/>.
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do que chamou de “observadores apropriados”, especialistas com familiaridade com o domínio, para a identificação do produto da criatividade. Para a autora, “[...] a criatividade pode ser considerada a qualidade dos produtos ou respostas tidas como criativas pelos observadores apropriados, e também pode ser entendida como o processo pelo qual algo julgado criativo é produzido”2 (AMABILE, 1982, p. 100). Alguns fatores socioculturais podem influenciar a criatividade, como o contexto histórico, o ambiente de trabalho, os recursos, o fácil acesso ao domínio e a flexibilidade do domínio para mudanças (CSIKSZENTMIHALYI, 1996; AMABILE, 1982). Um exemplo é a propulsão criativa que surgiu em Florença durante o Renascimento. Os produtos criativos advindos desse período são resultado da junção do contexto histórico e de uma flexibilidade que permitiu aos artistas criarem obras que ultrapassaram as barreiras antes estabelecidas pelo domínio, além dos recursos financeiros disponíveis (CSIKSZENTMIHALYI, 1996). A criatividade funciona de forma similar à vida: uma tensão entre a tendência conservadora, marcada pelo senso de autopreservação, e o instinto de exploração. Assim, entende-se que “não é possível ser criativo sem conhecer o domínio, mas também não é possível ser criativo sem rejeitar uma parte do padrão (tradição) deste domínio”3 (CSIKSZENTMIHALYI, 1996, p. 90). Por isso, geralmente, a criatividade “[...] envolve cruzar os limites de domínios [...]”4 (CSIKSZENTMIHALYI, 1996, p. 9). A seguir será apresentado como as ideias criativas e as inovações são incorporadas pelo domínio audiovisual, por meio do exemplo do advento da tecnologia do vídeo. Cabe destacar que se entende inovação como a implementação bem-sucedida de ideias criativas de forma útil (AMABILE, 1988, p. 126).
Audiovisual e o vídeo: como o audiovisual incorpora uma inovação O audiovisual tem um histórico de transformação dos modelos de produção, distribuição e consumo de produtos criativos, baseado nas inovações das tecnologias de mídia e telecomunicações (UNCTAD, 2010). Jones, Lorenzen e Sapsed (2015, p. 7) identificam quatro principais fatores de mudança nas Indústrias Criativas (ICs), envolvendo o setor audiovisual: a) a demanda, que pode ser endógena, ou seja, originada de dentro do sistema, 2 Traduzido pelos autores.
ou exógena, de fora dos processos produtivos; b) as políticas públicas; c) a tecnologia; e d) a globalização. O surgimento da tecnologia de vídeo é um marco na história da produção audiovisual. Essa experiência exemplifica bem como o domínio se transforma e como se desdobram os processos de legitimação e desenvolvimento de linguagens e estéticas novas. O advento do vídeo gerou um movimento de reação dos profissionais do cinema, que por conservadorismo e apego à definição, à linguagem cinematográfica já legitimada, viram no novo suporte e na produção de filmes para a televisão uma ameaça ao cinema (BANTES, 2003). Apesar disso, o vídeo ganhou espaço devido a suas vantagens relacionadas com o baixo custo, a acessibilidade aos equipamentos e uma certa autonomia na distribuição (BANTES, 2003). No Brasil, a chegada do vídeo estimulou inúmeras experimentações que deram origem a um tom de anarquia no cinema experimental e ao movimento de cinema marginal dos anos 1970, visto como um caráter de desvio com grande potencial estético. Permitiu que o autor controlasse todas as etapas de produção, processo que influenciou o cinema autoral e hoje influencia também a produção para internet (BANTES, 2003). Nos anos 1990, o vídeo se mostrou uma alternativa aos cineastas que optam pelo suporte, para continuarem produzindo em meio à crise do cinema. Os movimentos que fizeram uso do vídeo em seu período de ascensão buscaram encontrar seu potencial dentro das características próprias da imagem eletrônica, incluindo sua baixa definição e seus ruídos (MOTA apud BANTES, 2003). Para a estruturação da linguagem própria do vídeo no setor audiovisual, foi essencial que artistas consolidados do campo transferissem seu capital estético e social para o novo meio. No Brasil, foram destaques das produções em vídeo os cineastas Glauber Rocha, João Batista de Andrade, Júlio Bressane, especialistas do domínio que legitimaram o uso do suporte. O artista Arthur Omar foi um dos pioneiros no uso do vídeo nas artes. O grupo Olhar Eletrônico (formado pelos videomakers Marcelo Tas, Marcelo Machado, Fernando Meirelles, Paulo Morelli e Renato Barbieri) brincou com as possibilidades do vídeo na TV (BANTES, 2003). Estes se caracterizaram como indivíduos criativos e identificaram no vídeo novas soluções e alternativas que não estavam estabelecidas pela tradição do domínio (CSIKSZENTMIHALYI, 1996, p. 93). Assim, o vídeo foi responsável por flexibilizar a fronteira com o cinema, o que permitiu que um se tornasse potencializador do outro (BANTES, 2003). Em um fluxo semelhante, a internet e a imagem digital também foram e são fatores de transformação do audiovisual.
3 Traduzido pelos autores. 4 Traduzido pelos autores. 76
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Audiovisual e a Pandemia: Panorama situacional O distanciamento social é um fator histórico que já tem impactado o setor audiovisual, e diversas de suas atividades não puderam continuar normalmente, encontrando então diferentes alternativas para manterem seu funcionamento e/ ou receita. Em diversas cidades brasileiras, as salas de exibição de cinema permaneceram fechadas de março até setembro de 2020.5 A paralisação impactou tanto exibidores quanto o mercado de produção. No Brasil, as produções financiadas por políticas públicas adotaram a opção dos drive-ins como forma de cumprir a obrigatoriedade de estrear na “primeira janela de exibição” (cinemas) e como estratégia de marketing. Os produtores buscaram no aluguel e na venda digital de filmes a arrecadação que poderiam ter com as salas de cinema. Outra tomada de decisão estratégica foi a escolha dos filmes a serem lançados, que levou em consideração o público das plataformas de vídeo sob demanda. Ao lançar as obras durante a pandemia, as produções brasileiras evitam a concorrência com o grande número de lançamentos internacionais que deve ocorrer com a reabertura das salas6. Os estúdios de Hollywood, em geral, optaram por aguardar a reabertura dos cinemas para as estreias. A Disney, entretanto, estreou Mulan (2020), um de seus filmes mais esperados do ano, direto no serviço on-line de vídeos e concentrou em si toda a arrecadação, ao invés de dividi-la com os exibidores. A manobra foi arriscada por colocar em xeque um acordo histórico entre os exibidores e os estúdios7. Os serviços de OTTVs (Over The Top TVs) tiveram um crescimento de destaque. A Netflix ganhou mais de 10 milhões de assinantes no segundo trimestre de 2020. A Disney Plus ganhou 4,5 milhões8 de novos clientes durante o período de isolamento, e a Globoplay conquistou 2,5 vezes mais assinantes no primeiro semestre de 2020 do que em 2019. Uma das estratégias da Globoplay foi a disponibilização de suas novelas em seu acervo. A Globo recorreu às reprises de telenovelas e de eventos esportivos marcantes9, como finais de campeonatos de futebol e a Fórmula 1, como forma de suprir a demanda do público10.
5 Na cidade do Rio de Janeiro a reabertura das salas de cinema foi autorizada, com o funcionamento da bomboniere, a partir de 1º de outubro. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/cultura/rio-de-janeiro-reabre-cinemas-em-outubro-veja-protocolos/>. A prefeitura de São Paulo planeja a reabertura das salas de cinema quando a cidade alcançar a fase verde do plano do governo estadual. Disponível em: <https://noticias. r7.com/sao-paulo/prefeitura-de-sp-publica-regras-para-reabrir-cinemas-teatros-e-museus-03102020>. 6 Disponível em: <https://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/2020/08/24/filmes-nacionais-estreiam-em-drive-in-para-cumprir-regra-mas-lucro-vem-do-streaming.ghtml>. 7 Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/09/04/Como-%E2%80%98Mulan%E2%80%99-testa-a-ind%C3%BAstria-do-cinema-na-pandemia>.
Também afetados com os protocolos de segurança, os festivais de cinema foram realizados on-line em plataformas de vídeo, como o YouTube, ou sites e plataformas próprios. O Festival We Are One: A Global Film Festival resultou da união do Festival de Cinema de Tribeca, mais vinte mostras ao redor do globo e o YouTube, onde o festival foi exibido11. No Brasil, diversos festivais adotaram a mesma alternativa. A 15ª edição da Mostra de Cinema de Ouro Preto (CineOP) teve mais de 100 mil acessos vindos de mais de 54 países12. Se por um lado a realização on-line ampliou o acesso aos conteúdos, reduzindo as barreiras físicas para alcançar o domínio, por outro, não foi possível que o público usufruísse da experiência imersiva coletiva característica do cinema. As técnicas e a linguagem do audiovisual foram apropriadas por diversos setores das Indústrias Criativas como alternativa à presencialidade. Um exemplo de destaque no Brasil foram as lives13 musicais exibidas pelo YouTube.
Estratégias da produção audiovisual em meio à pandemia O setor de produção audiovisual, que consiste na etapa de captação e/ ou desenvolvimento das imagens e sons, que pressupõe trabalho colaborativo e tradicionalmente presencial, foi um dos que mais sofreram com a restrição à circulação e à aglomeração de pessoas. Nesse cenário, dos fatores de mudança nas ICs por Jones, Lorenzen e Sapsed (2015, p. 7), é possível observar a existência de uma demanda exógena por conteúdo audiovisual, representada pelo crescimento do consumo pela audiência. A tecnologia é um agente essencial nesta conjuntura, pois é ela que tem possibilitado de diversas formas o desenvolvimento de estratégias de produção em meio ao distanciamento social, e a apropriação tecnológica tem aberto portas para inovações estéticas. O contexto histórico atípico cria diversas tensões e é daí que emergem os problemas e é estimulado o desenvolvimento de novas respostas criativas. A junção da acessibilidade aos meios de produção, da natureza consideravelmente flexível do domínio, das diferentes formas de distribuição, da conjuntura histórica atípica e da globalização torna o momento favorável para o desenvolvimento de ideias criativas. Para compreender as alternativas criativas e as inovações, considera-se a concepção de imagem audiovisual com base nos processos e procedimentos, sem apego ao suporte (BANTES, 2003). Nesta investigação, observaram-se as aplicações de alternativas de produção audiovisual a produtos disponibilizados na TV aberta, na TV paga, nas plataformas de streaming Netflix e Globoplay, e nas mídias sociais YouTube e Instagram.
8 Disponível em: <https://variety.com/2020/tv/news/disney-plus-subscribers-earnings-coronavirus-1234598746/>. 9 Disponível em: <https://globoesporte.globo.com/futebol/noticia/jogos-inesqueciveis-tv-globo-vai-reprisar-grandes-partidas-de-clubes-aos-domingos.ghtml>. 10 Disponível em: <https://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/televisao/globo-confirma-suspensao-de-novelas-poe-reprises-em-todos-horarios-34563>. 78
11 Disponível em:<https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/04/30/Como-festivais-de-cinema-se-articulam-na-pandemia>. 12 Disponível em: <https://www.otempo.com.br/diversao/cinema-festivais-apostam-em-plataformas-online-para-driblar-a-pandemia-1.2382713>. 13 Exibições on-line em tempo real realizadas pela internet normalmente realizadas por mídias sociais e/ou plataformas de vídeo. 79
Tendo em vista que a principal barreira à normalidade das atividades é o distanciamento social, as estratégias foram divididas com base na forma como a obra foi produzida quanto à participação da equipe na captação/produção de imagens. Foram identificados cinco tipos de estratégias que estão sendo adotadas neste período: 1) produção individual em isolamento; 2) produção colaborativa com contribuições individuais de forma remota; 3) utilização da técnica de animação; 4) colaborativa presencial seguindo os protocolos sanitários de segurança; 5) colaborativa híbrida, que consiste na junção da produção individual isolada e colaborativa presencial seguindo os protocolos sanitários de segurança.
barras laterais. A série totaliza mais de 4 milhões de visualizações apenas no YouTube. A opção pelo vídeo na vertical e o alto número de visualizações podem dar indício de dois padrões de consumo: a assistência de vídeos no YouTube por dispositivos móveis e/ou a flexibilização do público quanto ao formato e à qualidade do vídeo.
A estratégia de produção individual em isolamento consiste no vídeo composto pelas imagens captadas pelo ator/artista/produtor que realiza a produção, ou por pessoas que estão em isolamento com ele, e é geralmente feita na casa dos produtores.
A estratégia 2 é a produção colaborativa com contribuições individuais de forma remota. Quanto à equipe, essa estratégia pode ser a captação individual isolada de cada um dos participantes, ator/artista/produtor, ou pode ser a captura de imagens de forma individual isolada pelo participante, mas com uma equipe orientando ou realizando intervenções no processo de forma remota. Quanto à conexão das contribuições, ela pode ser on-line em tempo real, como no formato de videoconferências, ou costuradas por meio da edição posterior das imagens. As lives no Instagram entre dois perfis são exemplo desse modelo de conexão em tempo real.
O programa Greg News (HBO, 2017 - ) tem utilizado essa estratégia. Mesmo nesta conjuntura, os vídeos se mantiveram com qualidade similar ao dos programas gravados em estúdio, pois a captura é realizada com uma estrutura profissional instalada na casa da mãe do apresentador Gregório Duvivier, que pode contar com a ajuda da irmã Theodora, fotógrafa profissional. O programa também continuou com sua equipe de produção e pós-produção, fatores que permitiram a manutenção de seu padrão estético. O humorístico Sinta-se em Casa (Globo, 2020), desenvolvido por Marcelo Adnet, dispensou figurino e grandes estruturas. Na série, o humorista faz crônicas diárias da política brasileira a partir de imitações, caracterizado com acessórios que tem em casa, de onde grava, sua esposa é a responsável por gravar os vídeos com seu celular. A série foi disponibilizada gratuitamente na Globoplay, no YouTube e no perfil do Instagram de Marcelo Adnet. A série de sete vídeos de humor PLANTANANÃ (Porta dos Fundos, 2020), que faz uma paródia dos programas de notícias sobre famosos, realizada por Rafael Infante, utiliza uma captura individual. Disponibilizados em um formato vertical, os vídeos foram exibidos no IGTV do Porta dos Fundos no Instagram. O incomum é terem ido também em formato vertical para o YouTube; assim, se vistos por dispositivos móveis, eles se adequam à tela do celular na horizontal; entretanto, quando acessados de um computador ou smart TV, são apresentadas 80
Essa estratégia foi observada em conteúdos digitais, e as produções tiveram a disponibilização na mídia social Instagram, o que dá indícios do perfil de conteúdo consumido nessa mídia e da receptividade do público do Instagram para esse tipo de produção.
A live de 9 de junho de 2020 do Tiago Iorc no YouTube, em que o cantor está sozinho em seu estúdio caseiro, encaixa-se na estratégia 2, por contar com a colaboração de um diretor responsável, remotamente, pelos cortes entre as duas câmeras. A websérie ficcional Sala de Roteiro14 (O2, 2020), dirigida por Fernando Meirelles, utiliza a produção colaborativa com conexão em tempo real, assim como a série de cinco vídeos Trabalhando em Casa (Porta dos Fundos, 2020), ambas em formato de reunião por videoconferência. Já o vídeo “ROI, YOLLANDA?” (Porta dos Fundos, 2020) usou a estética vertical das videochamadas, tecnologia mais frequente nas ligações pessoais, apresentando novamente o vídeo na vertical, disponibilizado no IGTV e no YouTube. A estratégia foi utilizada também pela peça audiovisual da “Campanha Call” do Instituto Maria da Penha contra violência doméstica durante a pandemia15. Os conteúdos para internet aproveitaram para adotar a linguagem das videoconferências, tão utilizadas como alternativa para o trabalho não presencial, como forma de relatar as relações pessoais e de trabalho durante a pandemia. Na TV aberta, a minissérie ficcional Amor e Sorte (GLOBO, 2020), criada por Jorge Furtado, relata os relacionamentos pessoais durante a quarentena e contou com um elenco de destaque, que incluiu Fernanda Montenegro e Fernanda Torres, Lázaro Ramos e Taís Araújo, Caio Blat e Luisa Arraes, Fabiula Nascimento e Emilio Dantas. Para a produção dos quatro episódios independentes, cada dupla 14 Disponível em: <https://www.youtube.com/channel/UCMIZwG0g_mUeZvYeWOD8gFg/videos>. 15 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=A6CslhHgTrA>. 81
de atores, que estavam dividindo o mesmo teto durante o isolamento, recebeu em suas casas os equipamentos, como uma câmera com captação em definição 4k full frame, e elementos cênicos. As gravações foram orientadas pela equipe em tempo real de forma remota16. A inovação se deu no processo de captação e na opção pela direção e orientação remota dos profissionais, entretanto sem inovações estéticas. No caso do episódio “Gilda e Lúcia”, protagonizado por Fernanda Montenegro e Fernanda Torres, a qualidade técnica e artística da obra foi garantida pela direção e cinegrafia de Andrucha Waddington, cineasta casado com Fernanda Torres, o que faz com que este se encaixe mais na estratégia 1. A experimentação da rede Globo se caracterizou por escolhas pautadas na manutenção da qualidade de imagem. Ao pensar no potencial de incorporação da estratégia remota, é preciso observar que Amor e Sorte consiste em uma minissérie e que a estratégia remota colaborativa é utilizada como forma de relatar contos sobre o isolamento. Ou seja, aparentemente, tratou-se de um procedimento pontual e não assimilado como alternativa futura para grandes produções. Na TV americana, a série de comédia Parks and Recreation (NBC, 20092015), encerrada em 2015, produziu um episódio especial em que a protagonista Leslie Knope está determinada a manter o contato com os amigos durante a quarentena. O episódio é em forma de videoconferência, com a tela divida. Gravado na casa dos atores com seus smartphones, arrecadou dinheiro para o fundo de assistência Feeding America. O produtor afirmou que só realizou o reencontro do elenco pois viu nele a oportunidade de ajudar as pessoas nesse período17. O último episódio da série documental A Máfia dos Tigres (Netflix, 2020) foi realizado de forma remota. Os entrevistados receberam um iPhone, e a entrevista foi feita por videochamada. O episódio é composto pelo corte intercalado das imagens do entrevistado e do entrevistador e por cenas com a tela dividida com as imagens dos dois. A Neflix, a maior player do mercado de streaming, ao realizar uma produção de forma remota e adotar a estética de tela dividida, por exemplo, legitima o uso dessa estética pelo domínio, o que faz com que sua aceitação pelo público seja maior, assim como a adoção pelos produtores. Já na produção cinematográfica, a Netflix convidou diversos diretores a representarem suas visões sobre a quarentena na série antológica de curtas Feito em Casa (Netflix, 2020). Idealizada pelo diretor chileno Pablo Larrain e seu irmão Juan de Dios Larrain, a série é composta de dezessete curtasmetragens realizados com equipamentos caseiros e/ou dispositivos móveis, de forma individual, por uma diversidade de nomes reconhecidos do cinema, como a diretora japonesa Naomi Kawase, a libanesa Nadine Labaki, a cineasta zambiana Rungano Nyoni. Entre os diretores que contribuíram com a série está Paolo Sorrentino, ganhador do Oscar, e indicados ao prêmio como o francês
Ladj Ly, a atriz americana Maggie Gyllenhaal e Rachel Morrison, primeira mulher a ser indicada ao Oscar na categoria Direção de Fotografia. Feito em Casa apresenta diversas narrativas esteticamente experimentais. O filme Antologia da pandemia (2020) reúne curtas-metragens de terror produzidos durante a pandemia. Enquanto obras individuais, os curtas-metragens são produzidos com a estratégia 1, mas enquanto antologia e série, utilizam-se da estratégia 2. O cineasta norte-americano Nick Simon encontrou no modelo remoto de produção a alternativa para o cinema na pandemia. A equipe, formada por filmmakers independentes e atores, desenvolveu o filme The Untitled Horror Movie de forma totalmente não presencial. Os equipamentos necessários para a gravação foram enviados aos atores, que executaram todas as funções, como a iluminação, maquiagem e figurino, com orientações da equipe responsável pelo setor18. No cinema, a opção por produções com equipamentos não profissionais e sem equipe se tornou parte da estética do relato do momento histórico, a recorrência da temática pandemia dá indícios desse uso. Os curtas dirigidos por expoentes do cinema em obras com caráter experimental têm uma influência semelhante à da adoção pela Netflix da técnica de videoconferência. Os especialistas do domínio cinema validam, neste contexto, o uso dos dispositivos móveis como ferramenta de produção em meio a situações de crise, algo semelhante ao uso do vídeo em seu advento. É preciso reconhecer que este movimento pode ser exclusivo do contexto pandêmico para este alto escalão do setor cinematográfico; entretanto, isso não retira determinada legitimidade conquistada por essas estratégias. No caso da produção de The Untitled Horror Movie, há uma intencionalidade dos produtores de encontrarem um modelo que possa ser incorporado pelo cinema independente de forma mais duradoura, ampliando acessos e possibilidades da produção cinematográfica. Dentro do setor audiovisual, a animação teve a vantagem neste período por poder ser realizada de forma não presencial, o que permitiu às suas atividades não serem paralisadas. A animação começou a ser vista como um caminho seguro para contar histórias neste momento atípico. Observa-se um crescimento na procura pelo serviço para séries e filmes animados. A 20th Century Fox Television registrou um aumento de 25% nos pedidos de desenvolvimento. A série animada Solar Opposites (Hulu, 2020) é um exemplo de produção de animação na pandemia. O videoclipe de animação tornou-se uma tendência e foi usado para o desenvolvimento dos videoclipes das músicas “My Future”, da cantora Billie Eilish, “Hallucinate” de Dua Lipa, “Rajadão”, da cantora Pabllo Vittar19, entre outros. Assim, identifica-se a estratégia 3, que consiste na utilização da técnica de animação.
16 Disponível em: <https://canaltech.com.br/entretenimento/amor-e-sorte-como-produzir-serie-remotamente-170933/>.
18 Disponível em: <https://blog.jovempan.com.br/freakpop/nick-simon-dirige-filme-inteiramente-feito-na-quarentena-sem-contato-fisico/ >.
17 Disponível em: <https://www.folhape.com.br/noticias/especial-de-parks-and-recreation-arrecada-us-28-mi-para-causa-da-covid/139233/>.
19 Disponível em: <https://telaviva.com.br/21/08/2020/especializada-em-animacao-combo-estudio-nao-parou-em-tempos-de-pandemia/>.
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A estratégia 4 é a adaptação dos padrões tradicionais para os protocolos sanitários de segurança. Essa estratégia foi identificada em programas de TV como MasterChef Brasil (Band, 2014 - ) e Top Chef Brasil (Record, 2019 - ). O programa Esquadrão da Moda (SBT, 2009 - ) apresentou mudanças como o uso de máscaras pelos apresentadores durante as interações com as participantes, e as compras presenciais foram substituídas pelas on-line. As gravações de algumas telenovelas da Globo e Record também foram retomadas nesse esquema. A maioria das lives musicais com maior audiência optou pela estratégia 4, como as da cantora sertaneja Marília Mendonça, das duplas Bruno e Marrone, Henrique e Juliano, Simone e Simaria, que juntas contabilizaram mais de 123 milhões de visualizações no YouTube. A live de Ivete Sangalo “Ivete em casa” foi exibida pela Globo, Globo Play e Multishow, direto da cozinha da casa da cantora, que usava pijamas e interagia com sua família e teve um tom bem mais “aconchegante”, “caseiro” e “familiar” que os outros exemplos. A apresentação contou com uma equipe presencial reduzida 20, o que se encaixa na estratégia 4. É possível observar que esta é uma tentativa da TV aberta de incorporar a estética das lives espontâneas e aparições individuais da cantora em seu perfil pessoal no Instagram, mas com a preocupação de manter os padrões da emissora, como a qualidade técnica de som e imagem. A estratégia 5, colaborativa híbrida com parte presencial e parte em produção individual isolada, foi marca de programas de TV com entrevistas e rodas de conversa como o Saia Justa (GNT, 2002 - ), Papo de Segunda (GNT, 2015 - ) e Que história é essa, Porchat? (GNT, 2019 - ), do canal de TV paga GNT, e Encontro com Fátima Bernardes (Globo, 2012 - ). Neste modelo, um dos apresentadores está no estúdio e os convidados e/ou outros apresentadores participam de forma remota por videoconferência on-line. Nesta opção, os programas garantem uma imagem central dentro do padrão de qualidade das emissoras e utilizam-se também de videografismo e molduras como opção para reduzir os ruídos destas imagens, como impedir uma ampliação excessiva do vídeo em definição inferior, advindo da videoconferência on-line, que pode distorcer a imagem ou tornar seus pixels identificáveis.
Considerações Finais As limitações impostas pelo momento estimularam respostas criativas. As estratégias identificadas foram adotadas e validadas por nomes consolidados do audiovisual mundial, que transferiram seu capital para elas, tanto no cinema, com diretores aclamados e indicados e vencedores do Oscar, quanto na TV, por atores e apresentadores de destaque em grandes conglomerados de mídia, e na internet, com os atores e também criadores de conteúdo on-line, como foi o caso do Porta dos Fundos. Na música, as lives ganharam destaque e prestígio ao serem realizadas por artistas com muitos fãs, o que fez com que o formato se popularizasse.
20 Disponível em: <https://g1.globo.com/pop-arte/musica/noticia/2020/04/25/live-da-ivete-sangalo-inaugura-em-casa-programa-de-lives-da-globo-globoplay-e-multishow.ghtml>. 84
A TV aberta foi a que menos apresentou adoção de estratégias que não mantivessem seu padrão estético tradicional, optando pelo trabalho presencial e o respeito aos protocolos sanitários. A experiência de Amor e Sorte dá indícios de ter sido uma produção pontual com a intenção de relatar o isolamento. A TV fechada permitiu uma flexibilização um pouco maior, incorporando em maior escala o movimento do não presencial e do híbrido. Entretanto, foi na internet que as estratégias criativas tiveram mais recorrência. O domínio da internet se mostrou o mais flexível e aberto à incorporação de soluções criativas. O Porta dos Fundos, por se tratar de uma produtora de conteúdo online, apresentou diversos conteúdos com estratégias mais experimentais. As estratégias 1 e 2 se caracterizam por serem similares aos modelos utilizados por produtores de conteúdo digital. O cinema fez uso da concepção do cinema de autor e da linguagem experimental para produzir conteúdo. Pelo que foi observado, o cinema optou por temáticas relacionadas com a pandemia, adotando os equipamentos acessíveis e experimentando novas estéticas como forma de construir relatos artísticos marcados pela situação atual. O cinema incorporou o uso dos dispositivos móveis e fez uso parecido com o que foi dado ao vídeo no passado, visto como alternativa de continuar produzindo em meio à paralisação das atividades. Entretanto, é preciso tentar vislumbrar se, em um cenário posterior à pandemia, estes profissionais de renome adotarão essas alternativas como válidas em cenários de possibilidade presencial. Contudo, mesmo que expoentes não façam uso dessas estratégias após a pandemia, o fato de terem realizado obras nesse processo mais acessível legitima as estratégias e flexibiliza as fronteiras do domínio, dando às obras desenvolvidas por celular o aval dos especialistas do setor. Há, portanto, um alto potencial de obras desenvolvidas nesses formatos serem realizadas com mais frequência e mais bem aceitas pelo domínio e pelo público. Das estratégias adotadas, algumas trouxeram consigo um padrão estético específico. As lives foram marcadas pela qualidade de definição reduzida, por depender da qualidade de conexão, entretanto com grandes equipes e orçamentos. As produções colaborativas não presenciais, principalmente as ficcionais, assumiram a linguagem da videoconferência – a tela dividida em 85
diversas partes, a falta de familiaridade dos indivíduos com os aparatos técnicos, os ruídos de comunicação advindos dos equipamentos e da conexão de internet – como foi o caso das webséries Sala de Roteiro, Trabalhando em Casa e da série Parks and Recreation. Apesar do fetiche criado pela imagem e sua qualidade no contexto dos contínuos avanços tecnológicos do audiovisual, como os formatos High Definition TV (HDTV), 4k e 8k, o público mostrou aceitar uma qualidade inferior de imagem quando o conteúdo é relevante, como aconteceu no advento do vídeo. Serão necessárias investigações futuras que avaliem a incorporação das estratégias elencadas nesta pesquisa pelo domínio do audiovisual e suas consequências pós-pandemia.
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Por Bruno
MÚSICA ENFRENTANDO A COVID-19: UMA ANÁLISE DA CENA MUSICAL DO VALE DO PARAÍBA DURANTE A PANDEMIA
Ferreira
Músico e produtor na área da música e em projetos culturais há dez anos no mercado. Bacharel em Administração (2013) pela UNIP - Universidade Paulista, especialista em Mídia, Informação e Cultura (2019) pelo CELACC - Centro de Estudos LatinoAmericanos sobre Cultura e Comunicação, núcleo da ECA - Escola de Comunicação e Artes da USP - Universidade de São Paulo e especialista em Gestão de Projetos Culturais (2020) neste mesmo núcleo da universidade. Possui certificações na área cultural, de produção de eventos, de gestão e planejamento, produção técnica na área de áudio e em comunicação, mídias e plataformas digitais. O artigo corresponde ao trabalho de conclusão de curso apresentado em 2020 como requisito parcial para obtenção do título de Especialista em Gestão de Projetos Culturais pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, sob a orientação da Prof. Dra. Karina Poli.
Resumo: A pandemia da Covid-19 em 2020 impactou o mercado da música no Brasil e em todo o mundo ao impedir aglomerações de pessoas em apresentações ao vivo. O setor foi afetado em diversa áreas como produtoras de festivais, agências de artistas, casas de shows e fornecedores, que vão da locação de equipamentos, transporte, hospedagem à outros campos de operação envolvendo milhares de profissionais. As dificuldades e incertezas, na mesma medida, estimularam de forma criativa e com o uso da tecnologia e das mídias sociais, a reinvenção da área musical para sua sobrevivência no enfrentamento ao Coronavírus. O presente artigo consiste na pesquisa, mapeamento, análise de soluções e estratégias adotadas por projetos e negócios da música, em um recorte para a região do Vale do Paraíba, no interior de São Paulo, compreendendo as suas singularidades e revisando a literatura que apresenta conceitos e conhecimentos deste mercado musical. Palavras-chave: Mercado Musical. Negócios na Música. Economia da Cultura. Pandemia. Covid-19. Vale do Paraíba.
ABSTRACT The music facing COVID-19: an analysis of the music scenario in the Vale do Paraíba (Interior of the state of São Paulo-Brazil) during the pandemic The Covid-19 pandemic in 2020 impacted the music market in Brazil and around the world by preventing crowds in live performances. The sector has been
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affected in several areas such as festival producers, artist’s agencies, concert halls and suppliers, from the renting of equipments, transport, accommodation to others fields of operation involving thousand of professionals. The difficulties and uncertainties, on the same extent, stimulated the creative way and with the use of technology and social media, the reinvention of the musical scenario to survive and confront the Coronavirus. This article consists of researching, mapping, analyzing solutions adopted by music projects and businesses, in Vale do Paraíba region, in the interior of São Paulo, understanding their singularities and reviewing the literature that presents concepts and knowledge of this musical market. Keywords: Musical Market. Business in Music. Economy of Culture. Pandemic. Covid-19. Vale do Paraíba. RESUMEN La música frente al COVID-19: un análisis del escenario musical en el Vale do Paraíba (interior del estado de São Paulo-Brasil) durante la pandemia La pandemia de Covid-19 en 2020 afectó el mercado de la música en Brasil y en todo el mundo al evitar multitudes en presentaciones en vivo. El sector se ha visto afectado en diversas áreas como productores de festivales, agencias de artistas, salas de conciertos y proveedores, desde el alquiler de equipos, transporte, alojamiento hasta otros campos de actuación que involucran a miles de profesionales. Las dificultades e incertidumbres, en la misma medida, estimularon la forma creativa y con el uso de la tecnología y las redes sociales, la reinvención del escenario musical para sobrevivir y enfrentar el Coronavirus. Esta pesquisa consiste en investigar, mapear, analizar las soluciones adoptadas por los proyectos y empresas musicales, en la región del Vale do Paraíba, en el interior de São Paulo, comprender sus singularidades y revisar la literatura que presenta los conceptos y conocimientos de este mercado musical. Palabras clave: Mercado Musical. Negocios en Música. Economía de la Cultura. Pandemia. Covid-19. Vale do Paraíba.
INTRODUÇÃO O ano é 2020 e um novo vírus que ataca o sistema respiratório se espalhou a partir da região de Wuhan, na China. Com alta transmissibilidade por meio de contato próximo entre as pessoas, foi classificado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como emergência internacional, caracterizada como uma pandemia que atingiu uma escala global. O planeta enfrenta, desde fevereiro de 2020 a COVID-19 (vírus) e seguindo novas recomendações e protocolos sanitários, o isolamento e o distanciamento social foram definidos como fundamentais alterando todo o ritmo econômico e social do planeta. Logo que eclodiram os primeiros casos na Ásia, um dos primeiros setores a cancelarem ou suspenderem, por tempo indeterminado, suas atividades foi o de shows e eventos musicais. E antes que a pandemia chegasse ao Brasil, já dava para prever os impactos: turnês, eventos internacionais, viagens ao exterior 92
começaram a ser canceladas. Os efeitos da pandemia levou a indústria da Música a uma crise sem precedentes. Se grandes festivais de Música reconhecidos no mundo como Lollapalooza e Coachella sofrem com os impactos da pandemia, a situação se agrava ainda mais em mercados de nicho, menores economicamente, porém expressivos se olharmos para a cadeia produtiva nacional, atingindo centenas de músicos, produtores, festas, festivais, casas de shows, bares, técnicos e os agentes atuantes no mercado musical como um todo. Como uma opinião unânime de profissionais do ramo, o mercado da Música vive neste período um momento delicado: alterações em agenda, datas suspensas, readequação do modelo físico para o virtual, adaptação técnica para o formato digital, trazendo uma nova rotina onde a criatividade e a busca incessante por novas forma de se reinventar é o único caminho para encontrar soluções paliativas. No Vale do Paraíba e Litoral Norte, região do interior de São Paulo composta por 39 municípios, onde temos uma reconhecida cena de artistas e um mercado cultural consolidado, este diagnóstico não foi diferente. Nesta pesquisa buscamos compreender este mercado e identificar alguns negócios da Música e suas estratégias adotadas frente aos impactos sofridos, relacionando com alguns conceitos por pensadores dos estudos culturais e pesquisadores de Música, compreendendo também a evolução tecnológica que se faz suporte essencial ao mercado da Música e da Cultura nesse período.
O NEGÓCIO DA MÚSICA A Música é o segmento da Economia Criativa, apontada pela UNESCO (2013), como sendo o quarto pilar de desenvolvimento das nações, que tem na produção de bens e serviços culturais seu insumo estratégico, se destacando, ao mesmo tempo, como um fator indispensável na composição de outras linguagens culturais como o Cinema, o Teatro, o Balé, a TV e o Rádio. De acordo com o Data SIM (2018), núcleo de pesquisa da SIM São Paulo - Semana Internacional de Música, que organiza dados e informações sobre o mercado da Música, esta indústria é vetor de desenvolvimento econômico através da arrecadação de impostos, movimentação de investimentos diretos e indiretos, aumento da oferta de empregos e também de desenvolvimento social através das transformações pela repercussão de idéias e conceitos. O negócio da Música envolve uma série de profissionais além de músicos, como produtores, técnicos, empresários, compositores, artistas, profissionais liberais e da área da comunicação. E, ao contrário do que normalmente se imagina, a indústria da música não está restrita apenas ao grande mercado, de artistas milionários, famosos, hits da rádio, grandes gravadoras, shows em grandes arenas, cachês milionários, atuantes no mainstream, definido por Martel (2012) como:
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literalmente “dominante” ou “grande público”. Diz-se por exemplo de um produto cultural voltado para o público em geral. “Mainstream Culture” pode ter uma conotação positiva, no sentido de “cultura para todos”, mas também negativa, no sentido de “cultura dominante”. (MARTEL, 2012, p. 479). O mainstream vem a ser a massificação dos objetos culturais para o maior número de pessoas, para entendermos, segundo Adorno e Horkheimer (1947) a indústria cultural possui padrões que se repetem com a intenção de forma estética voltada ao consumismo, uma cultura produzida para consumo das massas e que se manifesta em diversos aspectos sociais como: educação, religião, arte, música, política e no próprio ideal de consumo, transformando a produção cultural em mercadoria, impondo uma subsistência possível, sendo como uma existência incorporada ao mercado, atua dentro de uma lógica comercial. Paralelo a isto, existe também toda uma cadeia produtiva alternativa, do músico independente, do underground, e que compõem esta indústria da música trazendo muitas possibilidades de atuação para este mercado. Este trabalho se consolida através de festivais, selos, circuitos envolvendo espaços alternativos para shows e iniciativas de novas mídias para promover os trabalhos na área. Para compreender de forma mais clara a atuação nessa esfera, De Marchi (2006) revisita o conceito de independente extrapolando a ideia do músico autônomo que banca seu disco e enfrenta as regras do mercado e propondo a música independente como agente de inovação comercial através do apoio em rede, atuando em segmentos e entendendo o independente também como negócio e mercado. O que podemos perceber, seja no independente ou nas majors1, seus processos de criação, produção e circulação estão incorporados a uma mesma lógica e fazem parte de um mesmo mercado, seja lançando conteúdo e artistas para as grandes mídias e atingindo as grandes massas ou pelas centenas de bandas e artistas que geridos por si mesmo têm se despontado com trabalhos por todo o país, por onde cada vez mais o Brasil tem consolidado esse cenário musical como negócio. Segundo Tarson Núñez (2017) o caminho que vai da criação artística até sua realização enquanto valor monetário é longo e passa por múltiplos estágios que envolvem diferentes processos econômicos, seja para a produção de conteúdo musical em suporte físico (CD ou vinil), para plataformas de streaming2 ou um evento show ou apresentação, há todo um encadeamento de atividades relacionadas à produção, como os estúdios de gravação, equipes técnicas, atividades de produção de espetáculos, na divulgação, como assessorias de imprensa, publicações especializadas, rádios e programas de TV e na execução, como teatros, casas de shows, clubes, bares e também ao processo de venda dos produtos vinculados à música.
Ainda ao entorno dessas atividades há atividades em termos de suporte, como a contratação de serviços de logística como transporte, alojamento e alimentação, de divulgação, de produção gráfica e audiovisual, envolvendo portanto uma grande quantidade de recursos no campo industrial e no de serviços. A ideia é ter uma dimensão do mercado da Música, compreendendo a rede e a cadeia de produção musical, onde o produto final comercializado é resultado é uma série de atividades interligadas. O setor é parte de uma tendência global de grande importância na economia e mais do que isso integra importantes cadeias globais de valor.
NOVOS MEIOS DE RECEPÇÃO E DIFUSÃO MUSICAL Até a década de 90 o mercado da música se estruturava em torno da indústria fonográfica, composta pelas grandes gravadoras, em um processo industrial verticalizado, ou seja, a partir da criação todo o resto dependia dessas empresas. Grandes empresas dominavam o mercado com estratégias centradas no lançamento de grandes sucessos e atendendo a nichos por meio de selos específicos. Segundo Hesmondhalgh (1998) somente o advento da tecnologia digital modificou o panorama. As transformações tecnológicas no final do século XX impactaram de forma profunda e irreversível a indústria fonográfica, abrindo caminho para um novo mercado musical, o mercado independente, que segundo o pesquisador Eduardo Vicente (2006, p.4) seria “uma cena independente surge tanto como espaço de resistência cultural e política à nova organização da indústria, quanto como única via de acesso ao mercado para um variado grupo de artistas.” Dois fatores foram essenciais nesse processo, o primeiro foi a acessibilidade aos equipamentos de gravação que permitiu a gravação de músicas de maneira descentralizadas resultando em uma criação e produção mais autônoma e o segundo foi a emergências das novas tecnologias de informação e comunicação,
1 Neste sentido, se refere às grandes gravadoras da indústria musical. 2 Se refere a transmissão instantânea de dados por aplicativos e plataformas virtuais. 94
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que abriram caminhos para a divulgação e a distribuição na internet3, mediante download4 ou streaming. Segundo Nakano (2010) este cenário foi importante para o surgimento das primeiras gravadoras independentes, importantes para a renovação da cena musical nessa década. Para Luersen (2012) nesse momento se mudou também a maneira de fazer música, dando ao músico capacidade de recriar obras e conduzir processos de composição e produção autônoma, resultando em uma nova produção musical feita de forma independente e oriunda a partir de uma série de possibilidades de gravação e produção. A mobilidade das novas tecnologias e o uso das novas mídias têm encurtado distâncias, aproximando pessoas e agrupado iniciativas e propostas comuns, principalmente no cenário da música independente, onde a atuação dos projetos de coletivos e/ou pequenos negócios contribui para a (re) organização da indústria fonográfica nacional e o estabelecimento de uma nova “geografia musical” no país, que nesta condição, têm sido plural, efervescente e mutante. Estando atento a esse movimento na contemporaneidade, é possível perceber o crescimento e fortalecimento de artistas e bandas independentes, paralelamente ao desenvolvimento e criação dos novos meios de difusão e recepção musical, bem como o compartilhamento de informações, onde as novas tecnologias e mídias tem mediado e mapeado essas parcerias e relações. O consumo da música também tem sido mediado em ambiente digital, onde as mídias sociais e a internet se tornam uma ferramenta para aproximação do público ao produto cultural. Para Capra (2002, p. 267) a sociedade vive em uma era onde as redes têm grande importância para as organizações: Na era da informação - a qual vivemos - as funções e processos sociais organizam-se cada vez mais em torno das redes. Quer se trate de grandes empresas, do mercado financeiro, dos meios de comunicação das novas ONGS globais, constatamos que a organização em rede tornou-se um fenômeno social importante e uma fonte crítica de poder. (CAPRA, 2002, p. 267).
O PAPEL DOS EDITAIS E O FINANCIAMENTO PÚBLICO NA CULTURA As leis de incentivo fiscal e as políticas públicas de cultura no Brasil permitiram à produção artística e cultural novas possibilidades e caminhos realização, tornando assunto de grande relevância na construção da sociedade contemporânea brasileira. Os editais que, neste contexto são mecanismos formais que regulamentam concursos direcionados a determinados segmentos
artísticos, têm multiplicado a realização de projetos culturais em todo o território nacional, tendo o papel de incentivar ações de democratização e descentralização da cultura promovendo o acesso e o estímulo à produção de pequeno porte, impactando também na economia e gerando empregos. Como já citado anteriormente, conforme Atlas Econômico da Cultura Brasileira” lançado pelo Ministério da Cultura, o setor é de interesse público sendo responsável por 2,64% do PIB (Produto Interno Bruto) no Brasil. Conforme pesquisa da FGV - Fundação Getúlio Vargas (2018) no Estado de São Paulo, o ProAC, considerado um dos melhores mecanismos de incentivo à cultura existentes no Brasil, por meio da Secretaria da Cultura, premiou entre os anos de 2013 e 2017 cerca de 2.528 projetos, sendo investidos o montante de R$ 602,7 milhões em ações culturais pelo Estado, onde o resultado disso busca a consolidação de uma cadeia especializada de bens e serviços ligadas ao setor da cultura, reconhecendo a sua importância para o desenvolvimento do país. Segundo Romildo Campello, ex-Secretário da Cultura do Estado de São Paulo, o ProAC Editais teve um impacto direto sobre o PIB (Valor Adicionado) de R$ 82,1 milhões, gerando 1.321 empregos nos últimos cinco anos no Estado de São Paulo. Considerando toda a cadeia produtiva, os investimentos do ProAC Editais nos últimos cinco anos geraram 1.605 empregos e aumentaram o PIB em R$ 131,9 milhões. O impacto direto sobre a economia paulista do ProAC ICMS é ainda mais relevante: gerou mais de três mil postos de trabalho e significou um PIB de R$ 223 milhões, além de R$ 67,5 milhões de arrecadação. Considerando toda a cadeia produtiva, os investimentos do ProAC ICMS movimentaram R$ 715,4 milhões na economia brasileira, aumentando o PIB em R$ 360,3 milhões entre 2012 e 2016 (0,6% do setor). Foram gerados mais de quatro mil empregos, que significam 0,4% dos empregos do setor de cultura, esporte e recreação, e os investimentos retornaram R$ 93,6 milhões para os cofres públicos.
IMPACTOS DA PANDEMIA NO MERCADO MUSICAL BRASILEIRO A doença de COVID-19 (Coronavirus Disease 2019) é uma infecção respiratória provocada pelo Coronavírus da Síndrome Respiratória Aguda Grave 2 (SARS-CoV-2) (Schuchmann et al., 2020). A doença foi identificada em dezembro de 2019, depois de surto de pneumonia de causa desconhecida, envolvendo casos de pessoas que tinham em comum o Mercado Atacadista de Frutos do Mar de Wuhan, e definida, até então, como uma epidemia (SifuentesRodríguez & Palacios-Reyes, 2020). Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou a COVID19 como uma pandemia (Schmidt et al., 2020). Nesta situação, o status da doença se modificou, pela alta taxa de transmissão do vírus e sua propagação em nível mundial. Na América Latina, o primeiro caso foi registrado no Brasil em 25 de fevereiro de 2020 pelo Ministério da Saúde do Brasil (MS-Brasil) (D. L. F. Lima, 2020).
3 Sistema global de redes de computadores interligadas que utilizam um conjunto próprio de protocolos abrangendo usuários no mundo inteiro. 4 Ato de baixar ou transferir arquivos a partir de um servidor de internet. 96
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No Brasil sessões de cinema, espetáculos de teatro, shows de música, baladas, exposições em museus que dependiam da aglomeração de pessoas para sobreviver são primariamente afetadas. Adiamentos, cancelamentos, diminuição do ritmo de trabalho, interrupção das atividades, falta de insumos, sem poder funcionar, sem venda de ingressos, sem poder trabalhar milhares de profissionais do mercado cultural, e essencialmente em diversas áreas do mercado da Música, são prejudicados no Brasil. Segundo levantamento do DATA SIM (2020), núcleo de pesquisa da Semana Internacional de Música de São Paulo (SIM São Paulo) realizado em março de 2020, o impacto inicial da pandemia gerou prejuízo de R$ 480 milhões podendo chegar bilhões de reais até o final do período. A pesquisa foi realizada entre 536 empresas do setor, de 21 estados brasileiros, onde mais de 8 mil eventos foram afetados impactando uma projeção de público de 8 milhões de pessoas. De acordo com dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2018, cerca de 5 milhões de pessoas trabalham no setor cultural brasileiro, e que segundo o “Atlas Econômico da Cultura Brasileira” lançado pelo Ministério da Cultura, o setor é responsável por 2,64% do PIB (Produto Interno Bruto). Outro aspecto é que esses profissionais não ganham salário fixo nem têm carteira assinada, onde cerca de 44% atuam de maneira autônoma, o que em condições normais já é uma vida sujeita a imprevisibilidades e ficar sem trabalhar por longos períodos pode ser financeiramente devastador.
Com a pandemia da COVID-19, pelo impedimento das aglomerações de pessoas em apresentações ao vivo, o mercado da música atravessa uma crise sem precedentes, provavelmente pior do que a provocada pela pirataria digital5, no início dos anos 2000. A vantagem é que neste momento justamente as plataformas e ferramentas digitais vieram como resposta emergencial ao momento de crise. Como boa parte das pessoas tiveram que permanecer em casa, artistas, produtores, empreendedores e agentes da classe artística descobriram nas transmissões em vídeo uma nova maneira de interagir com o público. A atual onda de lives6 impulsionou o consumo de um formato de vídeo que até a pandemia era utilizado apenas em situações pontuais. As lives se tornaram uma grande alavanca para as apresentações musicais, segundo Cruz (2020) em matéria para a Veja, algumas lives chegaram a alcançar mais de 3 milhões de pessoas de audiência em tempo real. De acordo com os dados da plataforma Google Trends (2020) que monitora as palavras-chave mais buscadas na internet, durante toda a pandemia ocorreram picos de buscas pela palavra “live”. Segundo matéria do portal de jornalismo da Unesp escrito Anne Hernandes (2020) o instagram registrou um aumento de cerca de 70% na produção de lives em março deste ano, comparado ao mesmo período de 2019. Já o Youtube, registrou um crescimento de 19% nas lives e um aumento de 4.900% de buscas por conteúdo ao vivo.
Pesquisa DATA SIM. Impactos do Coronavírus no mercado brasileiro de música, 2020.
Para Fabiana Baptistela (2020), diretora da SIM São Paulo, o mercado cultural, e o da música em especial, foi o primeiro a parar por conta da pandemia e vai ser o último setor a voltar. Muitos profissionais da classe enfrentam dificuldades, estão sem receber nada, todas as casas de shows pararam e a maioria dos festivais não aconteceu.
As lives podem ser consideradas os novos ‘espaços públicos musicais’ para compartilhamento e relação entre as pessoas nessa época de isolamento social. Ainda segundo pesquisa encomendada pelo Facebook (2020) com dados anteriores a pandemia, o público consumidor de música tem usado, principalmente por meio das mídias sociais, como forma de acompanhar artistas e obter informações sobre os próximos shows. Portanto, se antes da pandemia as pessoas já utilizavam a internet para descobrir mais sobre a música, em tempos de isolamento social e aumento das atividades on-line nesse campo é um número é ainda maior.
5 Neste contexto, se refere a crise da indústria fonográfica musical devido ao compartilhamento de músicas em formato digital na internet. 6 Termo em inglês pelo qual as transmissões ao vivo em vídeo ficaram conhecidas
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O MERCADO DA MÚSICA E A LEI ALDIR BLANC NO VALE DO PARAÍBA Com alguns dados apresentados neste artigo é possível, vide a abordagem feita sobre o papel dos editais e o financiamento público na cultura, é possível reconhecer que o investimento na Cultura traz alto retorno para a sociedade e evidencia o quanto é importante investir nela, mas frente ao momento COVID-19, mais do que questão de investimento, a participação do poder público no financiamento do setor cultural têm sido manter a sua sobrevivência. Conforme publicação do Governo Federal (2020) em junho deste ano foi aprovada pelo Congresso Nacional como medida de auxílio para a cultura a Lei Emergencial da Cultura nº 14.017/2020, “Lei Aldir Blanc”, em homenagem ao compositor e escritor que morreu em maio deste mesmo ano, que prevê apoiar com R$ 3 bilhões os estados, municípios e o Distrito Federal para serem distribuídos a profissionais na área que sofreram com o impacto das medidas de distanciamento social através de renda básica emergencial, aos espaços culturais através de subsídio para sua manutenção e editais para desenvolvimento de projetos e artistas por meio de chamadas públicas. São José dos Campos e Taubaté, cidades importantes da região metropolitana do Vale do Paraíba, são dois dos municípios que foram contemplados pela Lei Aldir Blanc. Em consulta aos portais da Prefeitura, Secretarias e instituições responsáveis pelas políticas públicas de cultura nestas cidades, o processo para acessar os recursos se deu por meio de editais, seguindo as mesmas diretrizes da Secretaria de Cultura do Governo do Estado de São Paulo para a Lei Aldir Blanc, atendendendo aos eixos da Produção, abrangendo grupos teatrais, espetáculos de dança, música e festivais; Licenciamento voltado a distribuição de conteúdo digital artístico e de atividades formativas; Fruição abrangendo casas de shows, teatro, museus, circo e cinema e Premiação, voltado a reconhecer trajetórias de agentes e artistas da cultura que tenham relevância e contribuíram para o cenário artístico e cultural destes municípios. A pesquisa buscou os mecanismos de apoio e editais somente das cidades de São José dos Campos e Taubaté, como representantes da região, pois os projetos e negócios que foram entrevistados nesta pesquisa são residentes nestes locais. Desde a década de 80 até os dias atuais, a região do Vale do Paraíba tem se consolidado no cenário musical independente brasileiro, primeiro porque tem uma produção cultural relevante na sua cena local e já lançou centenas de bandas e artistas que se despontaram com trabalhos por todo o Brasil, e segundo que se tornou parte da rota e ponto de parada de bandas e artistas independentes pelo seu favorecimento geográfico. A região está localizada entre o eixo dos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo e se tornou parte dessa circulação musical.
estúdios de sonorização Container Estúdio de Taubaté e o AS Estúdio de São José dos Campos, a rádio online WebRádio SindCT de São José dos Campos e o selo de distribuição digital Bangue Records, o festival TMA Festival e o projeto de música Bar de Quinta, ambos iniciativas independentes de São José dos Campos mas financiados pelo governo municipal, e, as produtoras de shows Vale Punk e Bolacha Música de São José dos Campos, se tornando estes, o objeto de análise desta pesquisa, buscando a compreensão das singularidades deste mercado.
METODOLOGIA A estratégia metodológica utilizada neste artigo consiste na observação exploratória sobre o contexto e o objeto analisado. Conforme proposto pelo cientista social William Foote Whyte (2005, p. 320): A observação participante, implica, necessariamente, um processo longo. Muitas vezes o pesquisador passa inúmeros meses para “negociar” sua entrada na área. Uma fase exploratória é, assim, essencial para o densenrolar ulterior da pesquisa. O tempo é também um pré-requisito para os estudos que envolvem o comportamento e a ação de grupos: para se compreender a evolução do comportamento de pessoas e de grupos é necessário observá-los por um longo período e não num único momento (p. (WHYTE, 2005, p. 320). Os agentes do objetivo analisado foram escolhidos dada a sua relevância e atuação no mercado da Música no Vale do Paraíba, onde os 10 entrevistados foram observados em todo o período de pandemia até o momento das entrevistas, análise dos dados e discussão do resultados. Nesta metodologia foram aplicadas entrevistas semi-estruturadas com os agentes do objeto buscando aprofundar o conhecimento do fenômeno e a coleta de dados, onde as informações formalizadas neste artigo, não seriam possíveis encontrar em textos publicados, dado também à emergência do tema. As respostas das entrevistas feitas com o objeto foram notadas e registradas para a análise e discussão dos resultados desta pesquisa, estando disponível na íntegra no apêndice deste artigo. Dados estatísticos de institutos de pesquisa, veículos de comunicação, sites governamentais e portais especializados na área também subsidiaram a pesquisa e foram citados. O diário de campo foi instrumento durante o período desta pesquisa, como uma maneira de acompanhar o avanço do fenômeno, por meio do registro de percepções, comentários, destaques para organizar os dados e informações para análise.
Com essa distinção, alguns negócios e projetos do mercado musical têm tido destaque na sua atuação, inclusive em encontrar possibilidades e soluções criativas para tentar se manter frente à pandemia, como as casas de shows Bangue Estúdio de Taubaté e Hocus Pocus Studio & Café de São José dos Campos, os
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DADOS COLETADOS A apresentação dos agentes e o registro dos dados coletados nas entrevistas deste objeto de análise estão disponíveis de forma integral no apêndice deste artigo, além de registros e anotações do diário de campo de fatos que foram percebidos durante todo o processo de pesquisa. A análise sobre a cena musical do Vale do Paraíba compreendeu agentes que são elos importantes da cadeia exercendo papéis de Circulação, Difusão, Criação e Produção o que possibilitou, durante a pesquisa no período de pandemia, explorar algumas questões que retratam essa região neste momento histórico e segue organizadas e apresentadas nos tópicos abaixo: 1 - O impacto da COVID-19 nos negócios É unânime que todo o mercado da Música foi abalado pela pandemia, mais do que isso foi o primeiro afetado e provavelmente será o último a retomar com as suas atividades de forma efetiva. Na região do Vale do Paraíba esse diagnóstico se manteve, com as medidas de isolamento social e o impedimento de se aglomerar públicos toda a cadeia produtiva da música foi paralisada de ponta a ponta. A produtora ValePunk que nos conta que “toda a agenda de eventos previstas foram canceladas provocando um forte desequilíbrio financeiro”, o festival anual de Música Independente TMA diz “A 4ª edição do festival que aconteceria em 2020 foi cancelada” ou a casa de shows Hocus Pocus que fez “o cancelamento de toda a agenda de shows e suspensão total das atividades”. Fica perceptível que os nichos e cenas locais, que pela fala dos interlocutores já vinham desde antes da pandemia enfrentando dificuldades e sofrendo com escassez de recursos e talvez seja nesse contexto que a situação se agrava ainda mais, como reflete o selo Bangue Records “O impacto seguiu o que aconteceu no cenário nacional mas aqui no interior a situação é mais complicada pois a escassez financeira já vinha antes da pandemia com dificuldades de apoio público e no levantamento de patrocínios” e também forçou uma adequação obrigatória ao momento de uma crise sanitária como diz o Bangue Estúdio “As gravações e ensaios aconteceram de forma selecionadas, com bandas pequenas, seguindo os protocolos sanitários em prol da preservação da saúde.” 2 - Soluções em meio a pandemia Crise, crítica e criatividade são palavras de uma mesma origem morfológica e a sua sua relação em meio a pandemia COVID-19 mostre a sua ligação, isso porque se por um lado o isolamento social privou as pessoas de 102
experiências compartilhadas favoráveis para a criação, por outro é notável que fornece um alicerce para o pensamento inovador. Na região do Vale do Paraíba a reinvenção foi o instinto de sobrevivência e o caminho para se amenizar os impactos deixados pelo Coronavírus. Resiliência para se adaptar e continuar foi um atributo importante para a WebRádio SindCT que recebia convidados presencialmente e se adaptou “as entrevistas e o programa da rádio logo na mudança passaram a ser veiculados por meio de transmissão online.” e também para o projeto cultural Bar de Quinta que “Ficou com agenda suspensa por um tempo mas logo migrou as apresentações musicais para o formato LIVE.” A casa de shows Hocus Pocus que em um primeiro momento cancelou toda sua agenda se adequou oferecendo “serviço de bar através de delivery e realizando algumas lives buscando arrecadar recursos por meio de vaquinha online. No momento de flexibilização das medidas de distanciamento adequaram a estrutura física do espaço montando uma cozinha para funcionarem como bar”. A crise acabou se tornando uma oportunidade para o AS Estúdio que “atendeu uma alta demanda de lives e atividades de transmissão online, inclusive obtendo recursos para a ampliação dos seus equipamentos e estrutura” e também, por meio das TIC’s (Tecnologias da informação e Comunicação) abriu espaço para novos negócios como o Bangue Records “surgiu em meio a pandemia e têm atuado bastante no formato digital, nesse período eles têm focado em planejamento e na ampliação do alcance do selo” e a produtora Bolacha Música que “se adaptou a produção digital atendendo uma grande produção de LIVES na cidade no mercado independente, no corporativo e junto ao poder público.” Outro caso interessante que usou da ferramenta disponível é a produtora ValePunk que “realizou algumas lives com DJ e QR code para arrecadação de recursos por meio de vaquinha online.” 3 - O digital resolve? Apesar do ambiente digital ter sido o único caminho possível de ‘existir’ para todo o mercado da Música neste momento, analisando os negócios do Vale do Paraíba podemos perceber muito claramente que as soluções amenizam, mas apenas, amenizam, não resolvendo gargalos como a sobrevivência financeira destes empreendimentos. De acordo com o Bangue Estúdio as soluções encontradas por eles têm “baixa efetividade pois estão impedidos de trabalhar plenamente” e a casa de shows Hocus Pocus segue na mesma linha se referindo as soluções como “providencial ao momento mas pouco efetiva pois no caso deles há custos altos como aluguel, despesas administrativas e funcionários, o que se torna um ponto crítico estando sem funcionar.” 103
Essa realidade é um pouco mais saudável para quem imergiu na presença digital como a Bolacha Música que disse que as soluções são “Razoáveis na questão financeira mas bem efetiva pela adaptação e construção em ambiente digital” e para projetos que se renovaram totalmente produzindo Lives e contribuindo também como toda a cena local como o Bar de Quinta que conclui que a solução é “ Efetiva. O projeto acaba movimentando nesse momento crítico o artista, técnicos, produtores e mantém de alguma forma a cadeia ativa.” 4 - O público digital A transformação digital na pandemia consequentemente levou a uma transformação de comportamento e de público peculiar a cada tipo e realidade de negócio. O Hocus Pocus Studio & Café que têm 26 anos de história e um público presencial já consolidado diz que no digital o seu público “diminuiu em torno de 70%” assim como a produtora ValePunk que “impossibilitada de realizar shows o público que era presente diminuiu muito. O público online é expressivo mas com pouco engajamento nas ações”. Enquanto o projeto Bar de Quinta diz que pode funcionar como uma via de mão dupla pois “perderam uma fatia do público que acompanhava o projeto somente presencialmente mas conquistaram um público de diferentes localidades no formato online” ou até mesmo aproveitar o momento e presença no ambiente digital para aumentar sua base de público como a WebRádio SindCT está “aumentando sua popularidade e relacionamento com o intuito de divulgar a cultura que é produzida aqui na cidade.” 5 - Financiamento público pela Lei Emergencial da Cultura A falta de protocolos e soluções mais diretas pelos governos também deixam essa situação sem uma perspectiva positiva neste período. A Lei Emergencial da Cultura ‘Aldir Blanc’ a os editais como mecanismos de financiamento foram disponibilizados para a classe cultural em todo o território nacional, mas podemos perceber que a realidade no Vale do Paraíba pode não ser tão democrática assim, como o Container Estúdio que “Não utilizam Leis de Incentivo por não ter conhecimento de como acessar esse mecanismo” ou a WebRádio SindCT que “não utiliza Leis de Incentivo e não tem motivação para participar de editais. Tem dificuldades com burocracia”. E isso também se repete até nos mais bem estruturados no mercado como o AS Estúdio que “não utilizam Leis de Incentivo por acharem difícil escrever projetos”.
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS É evidente os desafios que a indústria da música enfrentou com uma crise sanitária que abalou toda a cadeia produtiva do setor. Através dos agentes e registro dos interlocutores é possível perceber que o momento abre possibilidades para que as estruturas e relações do mercado da Música sejam repensadas coletivamente em novos caminhos. 104
A aproximação de um cenário, se debruçando na história e singularidades de cada negócio e projeto local, nos faz refletir sobre toda a conjuntura nacional da Música Independente e na necessidade, essencialmente neste momento, em que se precisa desenhar um panorama mais completo de perdas e perspectivas de recuperação de todos os setores das artes. A pesquisa também leva a visualização da complexidade do mercado musical, dada às diferenças de atuação e papéis, elos de uma mesma cadeia produtiva, mas que ressaltam as suas desigualdades onde há independentes, com organização, pensamento e estrutura de ‘negócio e há independentes, onde a realidade pode ser bem diferente. Essas diferenças também se dão nas suas próprias trajetórias, onde temos uma casa de shows consolidada e resistente com 26 anos de existência como o Hocus Pocus Studio & Café e que neste momento se vê, talvez, na situação mais delicada da sua história, na mesma medida em que, temos o AS Estúdio que já vem de um processo de estruturação e preparação técnica, que obviamente, ninguém imaginava que viveríamos em um mundo de pandemia, mas que neste momento conseguiu atender a toda uma demanda de lives no mercado musical e cultural. O recorte desta pesquisa não buscou artistas e bandas independentes para compreender o enfrentamento junto a COVID-19, mas se ateve aos negócios que fazem girar e trabalham com esses artistas. Neste sentido as lives, no formato atual, não oferecem ao artista independente uma oportunidade de ascender a carreira, é uma solução momentânea substituir o ‘ao vivo’ pela live e acredito que assim que essa atuação digital deve ser pensada, visto também a problemática da saúde financeira e monetização, o que pode agravar a carestia de um mercado, que antes da pandemia, já sofria com escassez. A partir das falas dos entrevistados é perceptível também que, não existe uma fórmula para manter o engajamento do seu público e clientes, visto que não pode se considerar uma postura generosa do público como alternativa financeira, ele também foi impactado, todos sofrem com a pandemia. Se necessita e se faz necessário o papel do Estado, e não devemos isentálo dessa responsabilidade, obrigação, de subsidiar e amparar a todo um mercado seriamente afetado. É inequívoco que a pressão e articulação da classe artística como um todo cobrou respostas e a Lei Emergencial da Cultura ‘Aldir Blanc’ foi uma conquista, o aporte financeiro dos recursos públicos da lei amenizou o setor apoiando na sua sobrevivência, mas também fica claro que o mecanismo de projetização por meio de editais precisa ser repensado no ponto em que esses mecanismos não são tão acessíveis e democráticos o quanto se imagina, visto que a maioria dos entrevistados não acessa as Leis de Incentivo, na mesma forma em que é nítido uma cena musical local que não se organiza para buscar recursos públicos.
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O que também nos abre a necessidade de capacitação e investimento público na formação desses agentes, que talvez tenha pouco acesso pela própria escassez e dificuldades apontadas anteriormente características inerentes a este Mercado da Música Independente.
Os promotores e produtores independentes, de menor porte, são os que abrigam os grandes números de empregos e ocupações e são os responsáveis pela manutenção e renovação das cenas musicais locais que alimentam a grande indústria.
O efeito COVID-19 é cristalino e doloroso, mas os projetos foram forçados a migrar para a lógica do digital para manter o pulmão respirando por aparelhos e no Vale do Paraíba se configura também a reorganização do cenário desta forma. Uma reorganização que claramente é notável pelo esforço dos seus agentes em se movimentar e manter os seus negócios atuantes neste mercado, a impressão que fica é que se fosse em outros mercados esses negócios seriam considerados inviáveis, insolventes ou que não valeriam a pena investir.
Com a situação desta crise, se busca evidenciar a importância do editais públicos, evidenciar o papel do financiamento público, neste momento como a Lei Emergencial da Cultura ‘Aldir Blanc’ mas isso foi algo que não foi possível ser verificado nos entrevistados, na mesma medida que é possível notar que existe uma dificuldade da compreensão e acessibilidade pelos editais e os mecanismos de participação.
O que nos propõe a pensar também o que de fato está sendo investido aqui visto a escassez do cenário? Continuar esses projetos na impossibilidade de trabalhar? É um negócio com uma motivação além de uma questão mercadológica.
LEVANTAMENTO BIBLIOGRÁFICO
CONSIDERAÇÕES FINAIS
ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. 1947. 1985. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 2006.
Grandes mudanças na indústria da música ocorrem como respostas às crises, como a chegada da internet e o surgimento das plataformas de streaming. O consumo das lives e eventos online apenas reafirma o interesse do público pela música, seja ao vivo ou gravada.
CAPRA , F. As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável. São Paulo: Cultrix, 2002.
Em decorrência da COVID-19, os cancelamentos e adiamentos que geraram a paralisação total e por tempo indefinido das atividades com presença de público implicou numa reação imediata do Mercado da Música, com aumento na disponibilização de conteúdo on-line, porém a monetização desses conteúdos, crucial durante o momento da pandemia, ainda é um ponto crítico no ecossistema da música. No Vale do Paraíba, os projetos e negócios musicais enfrentaram a pandemia se reinventando e seguindo soluções, de certa forma todos foram forçados a migrar para o digital, que também foram aplicadas pelo setor da cultura e do entretenimento em todo o mundo.
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Este pesquisa e análise de estudos de casos foram satisfatórias as propostas, pois é um retrato fiel, no seu devido recorte, dos agentes atuantes no mercado musical da específica cena local no enfrentamento a COVID-19, mas serve como modelo para demonstrar a força e resiliência deste mercado em se reconstruir com criatividade, evidenciando a potência da Música em promover encontros, gerar conexões e exercer seu papel central na construção de identidade na sociedade contemporânea, ainda que enfrentando uma pandemia global.
CRUZ, F. B. Brasil lidera ranking das dez maiores audiências em lives no Youtube. VEJA. Cultura, 2020. Disponível em: https://veja.abril.com.br/cultura/brasil-lidera-ranking-das-dez-maioresaudiencias-em-lives-no-youtube/ Acessado em: 20 de setembro de 2020 DATA SIM. Impactos do Coronavírus no mercado brasileiro de música, 2020.Disponível em: https://datasim.info/pesquisas/acesse-relatorio-sobre-impactos-docoronavirus-no-mercado-brasileiro-de-musica/ Acessado em: 20 de setembro de 2020. DE MARCHI, L. Do marginal ao empreendedor. Revista Eco-Pós: Revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2006.
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APÊNDICE A - Dados coletados | Objeto de Análise • BANGUE ESTÚDIO Tipo de Negócio: Casas de Shows Cidade: Taubaté Papel na Cadeia Produtiva da Música: Difusão e Circulação
Sobre: O Bangue é um estúdio de áudio e vídeo em Taubaté que existe desde 2013 e ganhou notoriedade ao receber shows de bandas independentes autorais reconhecidas no cenário musical, se tornando palco de Música aqui na região e também abrindo oportunidade para bandas e artistas locais.
Especificidades do Mercado: O mercado do Bangue Estúdio no Vale do Paraíba é de um público jovem que gosta de cultura alternativa, música autoral e uma ecleticidade de estilos e gêneros como o eletrônico, o pop, o indie, entre outros. É um reflexo do cenário da capital paulista.
• HOCUS POCUS STÚDIO & CAFÉ Tipo de Negócio: Casas de Shows Cidade: São José dos Campos Papel na Cadeia Produtiva da Música: Difusão e Circulação
Sobre: O Hocus Pocus Studio & Café começou como estúdio de gravação em 1994, um dos primeiros da região na época. Em 2001 montou um palco para apresentações ao vivo, desde então há 26 anos pelo mesmo lugar dos músicos da região, passaram um sem número de bandas e artistas consagrados de todo o Brasil.
um espaço para criação e produção de suas músicas, visando tempo livre e liberdade para compor, pensando também em se tornar um negócio. Eles se estruturaram para poder receber as bandas e trabalhar em outras produções.
Especificidades do Mercado: Neste mercado da Música a criatividade, versatilidade, descobrimento, enriquecimento cultural, a troca de ideias e experiências são algumas das características importantes e satisfatórias, que se diferenciam de outros tipos de negócios e mercados. Para o Container, existe uma coisa intangível que é “uma música nascer de um lampejo, ir se moldando e se transformando, uma mágica inexplicável”.
• AS ESTÚDIO Tipo de Negócio: Estúdio de ensaios e gravações Cidade: São José dos Campos Papel na Cadeia Produtiva da Música: Circulação e Produção
Sobre: O AS Estúdio foi fundado em meados de 2015 e logo se destacou no mercado pela sua estrutura e equipe altamente capacitada contando com os melhores equipamentos do mercado e tendo salas totalmente confortáveis e planejadas pensando no ambiente de criação do artista.
Especificidades do Mercado: O AS Estúdio não trabalha especificamente com artistas independentes, mas todo tipo de produção fonográfica e audiovisual, com um amplo leque de clientes. Um ponto importante que pensaram foi se diferenciar na qualidade de suas produções para atender clientes de alto nível aqui na região, que normalmente iriam atrás de um Estúdio na capital paulista que oferecesse isso.
• BANGUE RECORDS Especificidades do Mercado: O circuito musical independente é sustentado em rede e através de parcerias, muitas vezes não monetizadas, mas que são essenciais para sua sobrevivência, o Hocus está há 26 anos fazendo acontecer e essa dinâmica acaba sendo orgânica.
• CONTAINER ESTÚDIO Tipo de Negócio: Estúdio de ensaios e gravações Cidade: Taubaté Papel na Cadeia Produtiva da Música: Criação e Produção
Sobre: O Container Estúdio nasceu da necessidade de seus fundadores terem 112
Tipo de Negócio: Selo de distribuição online (atuação digital) Cidade: Taubaté Papel na Cadeia Produtiva da Música: Difusão e Circulação
Sobre: O Bangue Records é um selo independente idealizado em 2019 e lançado em 2020 voltado a distribuição de música, atuando também com produção, eventos, curadoria, comunicação e gravação de músicos e artistas.
Especificidades do Mercado: O mercado do Bangue Records no Vale do Paraíba é de um público jovem que gosta de cultura alternativa, música autoral e uma ecleticidade de estilos e gêneros como o eletrônico, o pop, o indie, entre outros. 113
É um reflexo muito do cenário da capital paulista.
• WEBRÁDIO SINDCT Tipo de Negócio: Rádio Online (atuação digital) Cidade: São José dos Campos Papel na Cadeia Produtiva da Música: Difusão
Sobre: A WebRádio Sindicato da Cultura é um quadro que integra a Rádio CT vinculada ao Sindicato Nacional dos Servidores Públicos Federais na área de Ciência e Tecnologia do Setor Aeroespacial produzindo programas de entrevistas e programação musical.
Especificidades do Mercado: Acham o mercado da música para os pequenos difícil, essencialmente na atuação digital encontram dificuldades de divulgação e formação de público. Acreditam que antes do digital o acesso era mais direto e livre as pessoas.
•TMA FESTIVAL Tipo de Negócio: Festival (iniciativa independente financiada pelo poder público) Cidade: São José dos Campos Papel na Cadeia Produtiva da Música: Difusão e Circulação
Sobre: O TMA é um festival de música autoral que acontece em São José dos Campos desde 2017 e se tornou um dos maiores festivais de Música e Arte Independente do interior paulista, com um line-up com grandes bandas, convidados, debates e atividades formativas, também se tornou uma vitrine para o cenário musical da região. Com curadoria e produção de iniciativa independente, o festival conta com financiamento público do município para sua realização.
Especificidades do Mercado: Para eles não havia no interior paulista um grande festival de Música Independente para movimentar a região. Foram precursores e hoje outros festivais e mostras nesse segmento também acontecem.
Sobre: O Bar de Quinta é um projeto desenvolvido e financiado por uma política pública do município e conta com uma curadoria convidada. O projeto tem o objetivo de abrir espaço e valorizar grupos menos conhecidos no cenário musical.
Especificidades do Mercado: Não havia projetos do poder público voltado a palcos de Música na cidade. O projeto se solidificou acontecendo mensalmente e formou uma grande base de público presencial.
• BOLACHA MÚSICA Tipo de Negócio: Produtora de shows independentes Cidade: São José dos Campos Papel na Cadeia Produtiva da Música: Produção e Difusão
Sobre: Produtora que trabalha com shows de música Música e na execução de projetos culturais, independentes, de iniciativa própria, ações corporativas e junto ao poder público. Possui uma expertise em trabalhar com projetos de leis de incentivo e editais.
Especificidades do Mercado: Acreditam que no cenário regional faltam produtores comprometidos e com conhecimento técnico para uma boa entrega. Para eles existe uma escassez financeira em todo o setor mas há também possibilidades ainda inexploradas.
• VALEPUNK Tipo de Negócio: Produtora de shows independentes Cidade: São José dos Campos Papel na Cadeia Produtiva da Música: Produção e Difusão
Sobre: O ValePunk foi um site sobre música independente fundado no ano de 2003 e que se tornou referência entre bandas, produtores e todo pessoal antenado sobre variadas vertentes do rock. Hoje o ValePunk atua como uma produtora de shows e eventos destinados ao público underground.
• BAR DE QUINTA
Tipo de Negócio: Mostra de Shows (iniciativa pelo poder público) Cidade: São José dos Campos Papel na Cadeia Produtiva da Música: Difusão e Circulação 114
Especificidades do Mercado: É um mercado de necessidades, sempre em falta, recursos escassos, muitas parcerias e em constante construção e movimento. O ValePunk surgiu da necessidade por um espaço e começou a produzir shows por necessidade de ter alguma sustentabilidade financeira. 115
QUESTÕES 1 - Como a COVID-19 impactou o seu negócio? • BANGUE ESTÚDIO Impactou de forma muito grande em todos os projetos que estávamos envolvidos, principalmente pelo impedimento da aglomeração de público impossibilitando de realizar shows. O impacto seguiu o que aconteceu no cenário nacional mas aqui no interior a situação é mais grave pois a escassez financeira já vinha antes da pandemia com dificuldades de apoio público e no levantamento de patrocínios. Está bem difícil manter a saúde financeira do negócio nesse momento mas estamos fazendo o possível porque se a situação de pandemia se estender muito não vamos suportar.
• VALEPUNK Toda a agenda de eventos previstas foram canceladas provocando um forte desequilíbrio financeiro.
2 - Como está buscando soluções? • BANGUE ESTÚDIO As gravações e ensaios estão acontecendo de forma selecionadas, com bandas pequenas, seguindo os protocolos sanitários em prol da preservação da saúde. O Bangue Estúdio tem sido o espaço sede para os planejamentos e desenvolvimentos das ações do selo Bangue Records.
• HOCUS POCUS STÚDIO & CAFÉ Com o cancelamento da agenda de shows e suspensão das atividades. Seguindo a paralisação de todo o setor da Música impedindo o funcionamento da casa afetando toda a cadeia de produtores, artistas, técnicos e outros.
• HOCUS POCUS STÚDIO & CAFÉ Ofereceram o serviço de bar através de delivery e realizaram algumas lives buscando arrecadar recursos por meio de vaquinha online. No momento de flexibilização das medidas de distanciamento adequaram a estrutura física do espaço montando uma cozinha para funcionarem como bar.
• CONTAINER ESTÚDIO A dificuldade foi manter o estúdio funcionando. Tinha artistas que já estavam em processo de gravação (mas que também foram prejudicadas pela pandemia perdendo também seu respaldo financeiro) e com isso as prioridades também mudaram e muitos trabalhos foram paralisados.
• CONTAINER ESTÚDIO Está buscando oferecer os serviços de ensaio seguindo todos os protocolos sanitários, com conforto e excelência, pensando na experiência do músico e realizaram diversas promoções para atrair clientes agregando também um cardápio com o serviço de cozinha e bar.
• AS ESTÚDIO Houve cancelamento de gravações e projetos que estavam em andamento.
• AS ESTÚDIO A crise acabou se tornando uma oportunidade e o estúdio atendeu uma alta demanda de lives e atividades de transmissão online, inclusive obtendo recursos para a ampliação dos seus equipamentos e estrutura.
• BANGUE RECORDS Impactou principalmente nos projetos de produção e circulação de shows, mas conseguiram de certa forma continuar atuando na distribuição e produção de conteúdo no formato digital. • WEBRÁDIO SINDCT As entrevistas que eram presenciais na sede da rádio foram suspensas e cancelaram algumas participações em eventos. Financeiramente não foram impactados devido ao mantenedor ser o sindicato. • TMA FESTIVAL A 4ª edição do festival que aconteceria em 2020 foi cancelada. Não foram desenvolvidas ações online. • BAR DE QUINTA Com os shows presenciais suspensos as apresentações foram adaptadas para a internet no formato de lives. Houve cortes no orçamento. • BOLACHA MÚSICA A produtora não tinha agenda prevista, portanto não necessitou cancelar ações. 116
• BANGUE RECORDS O Bangue Records surgiu em meio a pandemia e têm atuado bastante no formato digital, nesse período eles têm focado em planejamento e na ampliação do alcance do selo. Eles têm buscado soluções e formas de adaptar o trabalho e esperam também apoio do Estado e das políticas públicas. • WEBRÁDIO SINDCT As entrevistas e o programa da rádio logo na mudança passaram a ser veiculados por meio de transmissão online. • TMA FESTIVAL Tentou alguns editais pela Lei Aldir Blanc em nível Estadual e Municipal. • BAR DE QUINTA Ficou com agenda suspensa por um tempo mas logo migrou as apresentações musicais para o formato LIVE. • BOLACHA MÚSICA A produtora se adaptou a produção digital atendendo uma grande 117
produção de LIVES na cidade no mercado independente, no corporativo e junto ao poder público. • VALEPUNK Está realizando algumas lives com DJ e QR code para arrecadação de recursos por meio de vaquinha online.
4 - Qual foi o comportamento do seu público/clientes neste momento? • BANGUE ESTÚDIO Como não estão conseguindo trabalhar o público dos shows diminuiu muito. Estão com poucos clientes realizando gravações e ensaios. • HOCUS POCUS STÚDIO & CAFÉ Diminuiu em torno de 70% já que pode se considerar somente o público
3 - Qual a efetividade das soluções?
digital.
• BANGUE ESTÚDIO Baixa efetividade pois estão impedidos de trabalhar plenamente. • HOCUS POCUS STÚDIO & CAFÉ Providencial ao momento mas pouco efetiva pois no caso deles há custos altos como aluguel, despesas administrativas e funcionários, o que se torna um ponto crítico estando sem funcionar. • CONTAINER ESTÚDIO Pouco efetiva. • AS ESTÚDIO Muito efetiva. Ampliaram a atuação do seu negócio produzindo e construindo portfólio audiovisual. Uma tendência e nicho que acreditam continuar atuando mesmo quando a pandemia passar.
• CONTAINER ESTÚDIO Perderam muitos clientes. • AS ESTÚDIO Aumentou bastante com os serviços de LIVE que foi o único caminho em determinado momento. • BANGUE RECORDS Como não estão operando de forma plena, a métrica deles está atrelada somente ao formato digital, na expansão das redes sociais, na formação de seguidores e networking com outros artistas de fora e selos. Mas que não são o nosso público daqui do Vale do Paraíba. • WEBRÁDIO SINDCT Estão aumentando sua popularidade e relacionamento com o intuito de divulgar a cultura que é produzida aqui na cidade.
• BANGUE RECORDS As soluções têm sido paliativas visto que nesse momento todo o mercado está produzindo e consumindo o digital. Mas pouco efetivas na questão financeira.
• TMA FESTIVAL Algumas pessoas têm perguntado sobre o festival e uma possível edição online.
• WEBRÁDIO SINDCT Efetiva pois o programa continua sendo exibido e estamos tendo oportunidades que só o online nos dá como ter convidados de diferentes localidades.
• BAR DE QUINTA Perderam uma fatia do público que acompanhava o projeto somente presencialmente mas conquistaram um público de diferentes localidades no formato online.
• TMA FESTIVAL Até o momento nenhuma efetividade. • BAR DE QUINTA Efetiva. O projeto acaba movimentando nesse momento crítico o artista, técnicos, produtores e mantém de alguma forma a cadeia ativa. • BOLACHA MÚSICA Razoável na questão financeira mas bem efetiva pela adaptação e construção em ambiente digital.
• BOLACHA MÚSICA Ampliou o número de clientes trabalhando com projetos em ambiente digital. • VALEPUNK Impossibilitado de realizar shows o público que era presente diminui. O público online é expressivo mas com pouco engajamento nas ações.
5 - Já utilizou editais de alguma lei de incentivo? • VALEPUNK Pouco efetiva, mas uma maneira de mantê-los ativos.
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• BANGUE ESTÚDIO Não utilizaram até o momento editais de Leis de Incentivo como 119
proponente mas já trabalhamos junto a outros projetos contemplados com os serviços do Estúdio como áudio e vídeo. • HOCUS POCUS STÚDIO & CAFÉ Não utilizaram até o momento e acham os editais muito burocráticos. Mas já receberam na casa shows viabilizados pelo ProAC. Estão tentando a Lei Emergencial da Cultura Aldir Blanc no subsídio aos espaços. • CONTAINER ESTÚDIO Não utilizaram Leis de Incentivo por não ter conhecimento de como acessar esse mecanismo, mas os profissionais do Estúdio já trabalharam em um projeto da Lei Rouanet. • AS ESTÚDIO Não utilizaram Leis de Incentivo por acharem difícil escrever projetos. Mas já receberam e já foram gravar externamente vários projetos viabilizados por Leis de Incentivo. • BANGUE RECORDS Não utilizaram até o momento editais de Leis de Incentivo como proponente mas tentaram alguns editais em meio a pandemia e estão na expectativa do resultado do ProAC de uma de suas artistas Elizabeth Menezes. Já participaram em outros projetos contemplados com serviços de produção. • WEBRÁDIO SINDCT Não utiliza Leis de Incentivo e não tem motivação para participar de editais. Tem dificuldades com burocracia. • TMA FESTIVAL Utiliza Leis de Incentivo municipal e estadual na viabilização do festival. Estão tentando projetos na Lei Emergencial da Cultura Aldi Blanc também nas esferas estadual e municipal. • BAR DE QUINTA Já inscreveram alguns projetos mas não foi contemplado por Leis de Incentivo. • BOLACHA MÚSICA Participa de editais e já foram contemplados em projetos em Leis de Incentivo Estaduais (ProAC Festivais e ProAC ICMS) e Municipais (Fundo Municipal de Cultura). • VALEPUNK Não utiliza Leis de Incentivo e não tem conhecimentos sobre.
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Seleção de decisões pelos organizadores José Vitor Pereira Neto, Matheus Gomes Nunes, Nayara dos Santos Juvenal, e Victor Matos. STF
JURISPRUDÊNCIA
“DECISÃO AÇÃO CÍVEL ORIGINÁRIA. LEI ALDIR BLANC. AÇÕES EMERGENCIAIS. SETOR CULTURAL. PANDEMIA. MEDIDA PROVISÓRIA N. 1.019/2020. PRORROGAÇÃO DE PRAZO PARA APRESENTAÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS DOS RECURSOS RECEBIDOS AO MINISTÉRIO DO TURISMO. TUTELA DE URGÊNCIA DEFERIDA. PROVIDÊNCIAS PROCESSUAIS. Relatório 1. Ação cível originária, com requerimento de tutela provisória, ajuizada pelo Acre e pela Fundação de Cultura e Comunicação Elias Mansour – FEM, em 6.4.2021, distribuída por prevenção (caput do art. 69 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal) em razão da Ação Cível Originária n. 3.484, contra a União, objetivando a prorrogação do prazo para prestação de contas dos recursos recebidos pela Lei Aldir Blanc ao Ministério do Turismo e o afastamento de ônus ou penalidades para o Acre. 2. Os autores alegam que “o Acre está executando R$ 23.026.330,59 (vinte e três milhões vinte e seis mil trezentos e trinta mil reais e cinquenta e nove centavos) em programas conduzidos no âmbito da Lei Aldir Blanc (DOC. 04), muitos deles com programação para este exercício de 2021, os quais não poderão ter a prestação de contas final apresentada até junho de 2021, prazo estipulado pelo Decreto regulamentador da Lei Federal 14.017/2020 (Decreto n.º 10.464/2020)” (fl. 5, e-doc. 1). Apontam que “a demora do Governo Federal em formalizar a alteração do Decreto n.º 10.464/2020, para ajustar o prazo da prestação de contas final dos recursos recebidos via Lei Aldir Blanc à previsão da MP 1.019/2020, portanto, traz o Estado do Acre às vias judiciais para obter o resultado prático necessário, vez que é preciso um mínimo de programação para que a Administração Pública Estadual planeje e execute o programa, sem os riscos de se ver negativada em junho próximo” (fl. 7, e-doc. 1). Sustentam que, “no atual cenário de obrigação normativa (atual redação do Decreto 10.464/2020), o Estado deve executar o total dos recursos repassados pela Lei Aldir Blanc (aproximadamente R$ 23 milhões de reais), receber a prestação de contas das entidades parceiras, analisar as prestações de contas dessas entidades e apresentar o Relatório Final de Gestão (do Estado) para o Ministério do Turismo, tudo até o mês de junho de 2021 – mesmo havendo lei permitindo que a execução se dê durante todo o exercício de 2021 (art. 14-A da Lei Federal n.º 14.017/2020). Caso seja necessário executar o programa nos moldes descritos, certamente restará frustrado o objetivo do Auxílio Emergencial à Cultura, além de que há sérios riscos do Estado não conseguir realizar os projetos programados (especialmente considerando as restrições constantes no Decreto estadual em vigor), o que provocaria a negativação do ente no CAUC e restrições de repasses de recursos” (fl. 8, e-doc. 1). Requerem “seja concedida medida liminar inaudita altera pars para determinar a prorrogação do prazo de prestação de contas final do Estado para a União, quanto aos recursos recebidos pela Lei Aldir Blanc, passando o marco final para junho de 2022” (fl. 11, e-doc. 1). No mérito pedem “o julgamento final do processo com o reconhecimento da procedência do pedido, confirmando-se a tutela de urgência, declarando-se como prazo final para prestação de contas do Estado para a União, quanto aos recursos recebidos pela Lei Aldir Blanc, o mês de junho de 2022; Que não sejam aplicadas penalidades ou restrições ao Estado do Acre por ausência de prestação de contas referente aos recursos da Lei Aldir Blanc, antes de junho de 2022” (fls. 11-12, e-doc. 1). Examinados 123
os elementos havidos no processo, DECIDO. 3. Este Supremo Tribunal assentou ser necessário examinar os aspectos institucionais da lide para aferir se há, na questão judicializada, conflito real ou potencial apto a tocar a questão relativa ao equilíbrio federativo, fragilizando a harmonia nas relações estatuídas entre as pessoas estatais. Esses os elementos balizadores da fixação da competência originária estabelecida na al. f do inc. I do art. 102 da Constituição da República. Na espécie em exame, os autores buscam obrigar a União a prorrogar o prazo para prestação de contas dos recursos recebidos pela Lei Aldir Blanc ao Ministério do Turismo. 4. A questão posta, de inegável relevo e urgência, no atual contexto econômico e social, severamente impactado pela pandemia desencadeada pelo novo Coronavírus (Covid-19) e suas repercussões, a continuidade dessas condições pela persistência da grave situação experimentada pelos Estados e pelos profissionais da cultura revelam conflito de caráter federativo nos termos postos na al. f do inc. I do art. 102 da Constituição da República, a justificar a competência originária deste Supremo Tribunal. Estão presentes, na espécie, os requisitos para concessão da tutela de urgência prevista no caput do art. 300 do Código de Processo Civil. O Ofício Circular n. 1/2021/SECDEC/ SECULT, pelo qual a Secretaria Nacional da Economia Criativa e Diversidade Cultural informa aos Secretários de Cultura estaduais e municipais que a “Secretaria Especial de Cultura está elaborando instrumento legal para ampliação do prazo de prestação de contas/Relatório de Gestão dos entes federados para a União, possibilitando, por consequência, mais prazo para a realização dos projetos pelos artistas e demais beneficiários da Lei Aldir Blanc” (e-doc. 3), e o Comunicado n. 2/2021, DJU 17.3.2021, pelo qual a Secretaria Nacional da Economia Criativa e Diversidade Cultural informa que, “sobre o prazo para envio do Relatório de Gestão Final, a Secretaria Especial de Cultura está em tratativas com o Ministério da Economia e demais órgãos envolvidos para nova definição, em consonância com a MP 1.019/2020” (e-doc. 4), evidenciam a plausibilidade do direito sustentado nesta ação. O perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo são evidenciados pela possibilidade de a União aplicar sanções aos autores, impactando também os profissionais da cultura, pelo descumprimento do prazo para prestação de contas dos recursos recebidos pela Lei Aldir Blanc ao Ministério do Turismo. Não há perigo de irreversibilidade do efeito da decisão (§ 3º do art. 300 do Código de Processo Civil). A prestação de contas dos recursos recebidos pela Lei Aldir Blanc ao Ministério do Turismo ainda deverá ser apresentada, postergando-se apenas a data de entrega. No mesmo sentido decidi monocraticamente as tutelas de urgência nas Ações Cíveis Originárias ns. 3.484 (DJe 24.3.2021), 3.487 (DJe 26.3.2021) e 3.488 (DJe 6.4.2021). 5. Pelo exposto, sem prejuízo da reapreciação da matéria no julgamento do mérito, presentes os requisitos da medida requerida, defiro a tutela de urgência para prorrogar o prazo até o julgamento de mérito da presente ação, para apresentação da prestação de contas dos recursos recebidos pela denominada Lei n. 14.017/2020 ao Ministério do Turismo, sem ônus para o Acre ou para os agentes culturais. Comunique-se esta decisão, com urgência e por meio eletrônico, à União. Cite-se a ré para, querendo, contestar no prazo legal. Publique-se. Brasília, 9 de abril de 2021.” (STF - ACO: 3492 DF 005149125.2021.1.00.0000, Relator: CÁRMEN LÚCIA, Data de Julgamento: 09/04/2021, Data de Publicação: 13/04/2021) TJDF “REMESSA NECESSÁRIA. APELAÇÃO CÍVEL. MANDADO DE SEGURANÇA. 124
LEI ALDIR BLANC. EMPRESÁRIO INDIVIDUAL. MICROEMPRESA. ATIVIDADES CULTURAIS. PRODUÇÃO DE PEÇAS TEATRAIS. REQUISITOS. PREENCHIMENTO. CADASTRO EMERGENCIAL. INABILITAÇÃO ILEGALIDADE. ANULAÇÃO. A empresa impetrante demonstrou que realiza eventos culturais, principalmente peças teatrais, o que está em consonância com o seu objeto social. Por outro lado, o DISTRITO FEDERAL não comprovou a alegação de que a apelada seria mera locatária de equipamentos e organizadora de feiras e eventos. Quanto ao enquadramento, a apelada demonstrou a sua qualificação como microempresa, que teve interrupção de suas atividades por força das medidas de isolamento social decorrentes da pandemia do COVID-19. As atividades da apelada estão inseridas no artigo 8º, inciso XVI, da Lei nº 14.017/2020, bem como no artigo 12, inciso I, da Portaria nº 183/2020, de modo que restaram preenchidos os requisitos para a sua habilitação no processo de cadastro emergencial da Lei Aldir Blanc.” (TJ-DF 07082903920208070018 DF 070829039.2020.8.07.0018, Relator: ESDRAS NEVES, Data de Julgamento: 18/08/2021, 6ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE : 13/09/2021. Pág.: Sem Página Cadastrada) TJMG “MANDADO DE SEGURANÇA - LEI FEDERAL 14.017/2020 (LEI ALDIR BLANC)PROCEDIMENTO DEFLAGRADO PELO ENTE MUNICIPAL PARA DISTRIBUIÇÃO DOS RECURSOS - PESSOA JURÍDICA RECONHECIDA COMO ESPAÇO CULTURAL - DESCLASSIFICAÇÃO - VÍNCULO LABORAL DO SEU REPRESENTANTE LEGAL COM O MUNICÍPIO - ÓBICE LEGAL INEXISTENTE - CONCESSÃO DA SEGURANÇA - SENTENÇA CONFIRMADA.” (TJMG, Remessa Necessária nº 5003232 65.2020.8.13.0625, Relator Afrânio Vilela, Data do Julgamento 25/05/2021) TJSP “Mandado de segurança. Lei nº 14.017/20 (Lei Aldir Blanc). Incentivo à cultura. Impedimento por débito tributário sobre a totalidade do imóvel em que construída a unidade habitacional de propriedade da impetrante. Ato que já produziu efeitos no tempo. Liminar concedida e confirmada ao final. Perda de objeto. Reexame necessário desprovido.” (TJSP, Apelação nº 1041494-34.2020.8.26.0224, Relator Des. Borelli Thomaz, Data do Julgamento 30/06/2021) TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO “Natureza: Consulta Órgão: Secretaria Especial da Cultura do Ministério do Turismo. Consulentes: Frente Nacional de Prefeitos – FNP e Fórum de Secretários e Gestores de Cultura das Capitais e Municípios Associados. SUMÁRIO: CONSULTA. FRENTE NACIONAL DE PREFEITOS E FÓRUM DE SECRETÁRIOS E GESTORES DE CULTURA DAS CAPITAIS E MUNÍCIPOS ASSOCIADOS. INFORMAÇÕES ACERCA DA ADEQUADA APLICAÇÃO DOS RECURSOS PROVENIENTES DA LEI 14.017/2020 (LEI ALDIR BLANC) EM AÇÕES EMERGENCIAIS PARA ENFRENTAMENTO DOS EFEITOS DA PANDEMIA NA ÁREA CULTURAL. CONSULENTES NÃO LEGITIMADOS. NÃO CONHECIMENTO. ARQUIVAMENTO.” (TCU, TC nº 035.084/2020-0, ata nº 19/2021 - Plenário) 125