Cadernos de Direito e Cultura do Instituto de Direito, Economia Criativa e Artes
Organizadores Carol Monteiro Reis Nayara dos Santos Juvenal Viviane Alves de Morais Coodernação Geral Nichollas de Miranda Alem Projeto Gráfico e Diagramação Paulo Zapella Edição Nayara dos Santos Juvenal Autores participantes dessa edição Lucca Petri Tomaz Felinto Marcelo Mari Marco Aurélio Mayer Duarte Neto Mariana Alves Paul Schweizer Paula Gil Larruscahim Agradecimentos Agradecemos especialmente autores dos artigos dessa edição, que gentilmente nos autorizaram a incluir seus artigos na presente publicação. Informações adicionais A publicação é distribuída gratuitamente por meio digital. Qualquer forma de comercialização é vedada. Esta publicação teve a colaboração de toda equipe do Instituto de Direito, Economia Criativa e Artes. REIS, Carol Monteiro. JUVENAL, Nayara dos Santos. MORAIS, Viviane Alves de (org.). Cadernos de Direito e Cultura. Volume 4: Regime Jurídico do Grafite e Street Art. São Paulo: Instituto de Direito, Economia Criativa e Artes, 2020.
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Os Cadernos de Direito e Cultura foram criados para compilar diversos conteúdos jurídicos sobre um determinado tema e, assim, facilitar e incentivar o seu estudo. A maior parte dos textos que compõem a coleção já foram publicados de maneira dispersa. Porém, acreditamos que estes mereciam uma reunião especial. Essa é a proposta dos Cadernos: juntar anotações, reflexões e o melhor de nossa produção teórica e técnica nos temas de convergência entre Direito e Cultura. Esta quarta edição reúne quatro artigos para colaborar com o debate sobre alguns dos desdobramentos jurídicos a respeito do grafite e da arte de rua (street art) como instrumentos de expressão artística.
APRESENTAÇÃO
Elegemos este tema não apenas para debater as formas de proteção legal do grafite e da street art, mas também tendo em vista as controvérsias que são levantadas de tempos em tempos à volta deste assunto, sobre o uso do espaço público, a discriminação entre vandalismo e arte de rua, e sobre enquadrar tais práticas como lesivas ao patrimônio público ou privado, e, portanto, sujeitas à criminalização. Ao final, na segunda parte desta publicação, incluímos uma seleção da jurisprudência existente sobre o tema. Boa Leitura!
Nayara dos Santos Juvenal
SUMÁRIO A TELA URBANA: A PROTEÇÃO JURÍDICA AO GRAFITE NO DIREITO BRASILEIRO E COMPARADO
PG 08
A PROTEÇÃO DAS OBRAS SITUADAS EM LOGRADOUROS PÚBLICOS: UM EQUILÍBRIO NECESSÁRIO ENTRE A PRESERVAÇÃO DOS DIREITOS DO AUTOR E A DEMOCRATIZAÇÃO DA ARTE
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CURADORES, ARTISTAS E COMO TRANSFORMAR A ARTE DE RUA EM ALGO RENTÁVEL
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A CRIMINALIZAÇÃO DA PIXAÇÃO COMO CULTURA POPULAR NA METRÓPOLE BRASILEIRA NA VIRADA PARA O SÉCULO XXI
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JURISPRUDÊNCIA
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Por Marco
Aurélio Mayer Duarte Neto
Mestrando em Direitos Humanos e Governança Multinível pela Universidade de Pádua, Itália. Bacharel em Direito pela UFPB. Ex-trainee de Gestão Pública na Secretaria de Estado da Justiça do Espírito Santo.
Lucca Petri Tomaz Felinto Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
A TELA URBANA: A PROTEÇÃO JURÍDICA AO GRAFITE NO DIREITO BRASILEIRO E COMPARADO
Resumo: O grafite enseja uma proteção diferenciada e um olhar mais atento a suas características peculiares. Essa forma mais notável da arte de rua recentemente vem se propagando como forma de expressão característica do cenário urbano mundial, carregando em si a efemeridade e informalidade do cotidiano das metrópoles. Contudo, a excentricidade de seu meio de reprodução - as paredes e muros do espaço público urbano - faz com que esses desenhos e pinturas a aerossol sejam objetos de diversos litígios jurídicos no Brasil e no mundo. O direito, enquanto ferramenta com função de resolver conflitos e proteger os interesses de uma sociedade cada vez mais complexa, participa como ferramenta de proteção à arte, mas ainda carece de medidas inibitórias relacionadas à proteção do patrimônio cultural urbano. Partindo dessas constatações, faremos uma análise de casos da jurisprudência brasileira e estrangeira envolvendo o grafite, com o objetivo de compreender como é feita a proteção jurídica à arte de rua no Brasil e em certas jurisdições de direito comparado, estudar o alcance, a efetividade e a aplicação da legislação brasileira nos casos envolvendo o grafite e identificar as formas jurídicas de tutela à arte urbana no Brasil como solução à proteção do grafite. Palavras-chave: Direito da arte; grafite; direito patrimonial de autor; direitos autorais. Abstract: Graffiti art demands a different form of protection and a closer look to its peculiar characteristics. As the most popular form of street art, it has been recently becoming an artistic expression of the international urban scenery, carrying in itself the ephemerality and informality of the everyday life in the metropolis. However, the eccentricity of its means of reproduction - the walls and murals of the public urban space - makes these drawings and aerosol paintings become objects of several juridic litigations in Brazil and the rest of the world. Law, as a tool used to solve conflicts and to protect the interests of society in its ever-increasing complexity, participates as a means to protect art, but it still lacks inhibitory measures 09
necessary for protecting the urban cultural patrimony. From these points we will analyse cases from Brazilian and foreign jurisprudence involving graffiti art with the objective of understanding how protection of street art is conducted in Brazil and in certain jurisdictions of comparative law, study the reach, the effectivity and the application of Brazilian legislation in cases involving graffiti and identify the juridic forms of protection of urban art in Brazil as a solution to the graffiti issue. Keywords: Art law; graffiti; patrimonial law, copyright law.
1. INTRODUÇÃO
do mundo da arte chegam a um consenso quando se trata do conceito de obra de arte, e a arte urbana do grafite, moderna em essência, encontra ainda mais dificuldade em ser respaldada pelo direito no Brasil e restante do mundo. Diante disso, o presente artigo investigará a proteção jurídica dada à arte de rua do grafite no Brasil e em certos institutos de direito comparado, mais especificamente no tocante aos direitos patrimoniais (cópia e reprodução). Outros elementos pertinentes também serão alvo da investigação. O grafite é obra de arte? Quais são os instrumentos utilizados para fornecer proteção a esta forma artística? Que argumentos são utilizados pelos juízes para decidir controvérsias sobre a matéria? Essas questões serão abordadas a partir da análise da legislação brasileira, americana e de direito internacional público sobre a matéria, além do estudo de casos paradigmáticos encontrados no Brasil, nos Estados Unidos da América e na Europa. Posteriormente, a atualidade e pertinência destes precedentes e as discussões serão demonstradas através de decisões recentes de maior relevância.
A sociedade é marcada pelos espasmos da história. Do doloroso legado das grandes guerras aos avanços tecnológicos em todas as áreas da ciência e do saber, a vida de todos é influenciada por uma série de descobertas, transformações e conflitos que sintetizam aquilo que chamamos de progresso; e é graças a esses episódios entrópicos que a humanidade vem se renovando e evoluindo para uma realidade cada vez mais cosmopolita e complexa. A transição do passado para o mundo moderno em que vivemos revela um cenário rico em linguagem, diversidade, cultura e, por consequência, na expressão mais criativa do homem: a arte. É através desta que o indivíduo consegue experienciar e revelar o que a vida, finita e limitada, esconde, seja por meio da música, do cinema, da literatura ou das artes plásticas – e, entre estas últimas, encontra-se a arte de rua, uma das manifestações mais cosmopolitas da criação artística.
2. O GRAFITE
O direito e a arte urbana, ambos frutos de um meio intenso de constantes trocas culturais, são dois fenômenos sociais que acompanham e tiram proveitos dessa transitividade ensejada pelo mundo globalizado. Apesar disso, a doutrina jurídica brasileira e estrangeira ainda não tem dedicado atenção suficiente ao mundo das formas artísticas, especialmente quanto à arte de rua. O direito brasileiro ainda encontra-se carente de diálogo com o artístico. Em razão disso, as diversas problemáticas jurídicas que concernem ao mundo das artes no Brasil sofrem com o obstáculo da falta de arcabouço normativo, doutrinário ou jurisprudencial consistente necessário para a solução dos conflitos que, naturalmente, emergem das relações sociais. A própria definição de obra de arte, os limites da liberdade de expressão, a propriedade (a quem pertencerá o grafite: ao dono do muro ou ao artista?), os direitos de reprodução, as controvérsias tributárias, a proteção ao patrimônio histórico, o dever de integridade da obra artística, os limiares que separam o grafite do vandalismo – os conflitos sociais que enlaçam a arte são inúmeros.
A arte de rua diferese dos estilos tradicionais das artes plásticas em alguns pontos importantes. Primeiramente, o seu meio de reprodução e de exibição é o ambiente urbano. Segundamente, o objetivo primário do grafiteiro não é necessariamente a expressão de suas emoções ou mesmo a representação mimética da realidade: comumente, o grafite é feito com o propósito de servir de instrumento de manifestação política. O ambiente urbano no qual o mesmo é colocado é perfeito para este fim pois é nele que vive a sociedade cosmopolita cujas características estão representadas na arte de rua.
A regulação jurídica surge com o intuito de resolver os conflitos, embora muitas vezes a complexidade da matéria impossibilite encontrar uma solução única para os litígios. Enquanto constructo cultural voltado para a organização da vida humana, o direito precisa criar conceitos que reflitam os inúmeros objetos de interesse humano. Entre estes, encontra-se o conceito de obra de arte, que vem sendo reiteradamente repensado em razão da complexidade da matéria em face às reviravoltas no mundo da arte. Esses conceitos jurídicos não são fáceis de se elaborar. É notável que nem mesmo os artistas, estudiosos e demais entusiastas
O grafite, enquanto tipo de arte de rua, oferece uma visão plural da realidade. Nele se manifesta uma das maiores aberturas da atualidade: a liberdade de expressão. Um exemplo notável desta manifestação é o mural satírico Beijo fraterno, do artista russo Dmitri Vrubel, reprodução de uma infame fotografia do beijo entre os políticos soviéticos Leonid Brezhnev e Erich Honecker registrada em 1979, na ocasião do aniversário de 30 anos da Alemanha Oriental. Este famoso grafite, dotado de um caráter zombeteiro que não seria tolerado pela política opressora da Alemanha Oriental, foi pintado em 1990 sobre uma seção do Muro
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de Berlim e lá permanece até hoje, embora não mais em sua condição original; além da deterioração causada pelo tempo e pelas intempéries climáticas, vários grafiteiros e vândalos haviam modificado a obra. Recentemente, Vrubel foi contratado para refazer o mural, restaurando assim um dos marcos mais icônicos da arte urbana. A arte de rua, enquanto objeto do direito, enseja uma proteção diferenciada e um olhar mais atento a suas características peculiares. O grafite é um dos tipos dessa arte que tem mais se desenvolvido e espalhado no mundo como uma forma de expressão característica do cenário urbano; muitas vezes carrega em si a efemeridade e informalidade que lembram o cotidiano das metrópoles. No entanto, em virtude de seu meio de reprodução - as paredes e muros do espaço público urbano - não pertencer ao artista na maioria das vezes, esses desenhos e pinturas feitos com aerossol de tinta têm sido objeto de diversos litígios jurídicos no mundo (Stern, 2016, p. 556). Isto não quer dizer que o grafite seja necessariamente um ato de vandalismo, no entanto. Há alguns anos, com as reviravoltas na regulamentação da arte pelo direito, a jurisprudência e a legislação vêm acomodando a possibilidade do grafite legalizado; discorreremos sobre isto ao longo deste artigo. O que antes pareceu estar reservado às gangues das periferias hoje dá espaço às manifestações artísticas e político-culturais, como nas célebres obras em estêncil de Blek le Rat e Banksy e nos diversos murais que colorem e decoram as grandes cidades do mundo inteiro. Apesar dos avanços, deve-se ressaltar que o mundo artístico ainda encontra dificuldades para garantir ao grafite a sua devida proteção, em virtude da insuficiência de arcabouço jurídico e doutrinário necessário. Ainda que haja amparo constitucional às manifestações artísticas na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 265 e, especificamente, ao próprio grafite na Lei nº 9.605/1998, em seu artigo 65, §2º, não há ainda como garantir, no direito brasileiro, a proteção jurídica ao grafite que não seja realizado nesse molde legal; e a condição de vulnerabilidade do grafite urbano, consectário lógico da ausência da devida proteção jurídica, pode prejudicar a integridade física das obras. De que maneira será possível garantir a essas obras e aos artistas esta integridade? Será o tombamento uma ferramenta plausível para esta finalidade? Ou ainda poderiam os artistas e proprietários exigir do poder público o zelo pela arte pública? O Direito, portanto, participa aqui como ferramenta necessária à criação de medidas inibitórias e ressarcitórias relacionadas à proteção do patrimônio cultural.
3. A PROTEÇÃO JURÍDICA AO GRAFITE NO DIREITO BRASILEIRO É fundamental fazermos um estudo da proteção jurídica brasileira ao grafite para entendermos o que vem sendo posto em discussão e como é feita a tutela do mesmo, tanto no que concerne às garantias legais, bem como as decisões judiciais que dizem respeito ao bem em questão. A proteção patrimonial
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do grafite no direito brasileiro não dispõe de tipos específicos, sendo utilizados nos litígios os dispositivos que de uma forma análoga ou muito próxima, servem às resoluções dos mesmos. Por isso, cabe citá-los e comentá-los a fim de entendermos melhor como são utilizados na interpretação do direito. Abaixo encontra-se uma recolha dos principais dispositivos legais que tratam do grafite, como também, especificamente, quais deles são recorrentemente citados em deliberações jurídicas e, portanto, têm importância no processo argumentativo e decisório sobre os casos, resultando num panorama que engloba a guarda judicial e legislativa do tema. Fazem parte desse rol normativo, por exemplo: a Constituição Federal; o Código Civil e o Código de Processo Civil; a Lei 9.605/98 (Lei de crimes ambientais); a Lei 9.610/98 (Direitos autorais) e a Lei 12.408/2011 (Descriminalização do ato de grafitar). Cabe a nós agora explicitarmos os artigos envolvidos na discussão a nível nacional.
3.1. A legislação brasileira 3.1.1. Constituição federal Em primeiro lugar, temos a lex magna, que se sobrepõe à temática do grafite, sob a ótica jurídica, em seu artigo 5°, inciso XXVII: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XXVII - aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar; Nele, é resguardado o direito exclusivo ao autor da utilização, publicação e reprodução de suas próprias obras. O artigo também nota que esses direitos são transmissíveis aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar; mas, nos casos estudados, não era versado sobre a temática sucessória, e sim sobre questões de utilização e reprodução das obras, em especial aos direitos de imagem. Importante comentar que este artigo é proa hermenêutica para a leitura e interpretação dos seguintes artigos que serão citados. Veremos até, logo adiante, trechos legislativos que não consoam com o texto constitucional, cabendo então, de forma prudente, a sua desconsideração. 3.1.2. Código Civil Quanto ao nosso Código Civil de 2002, vimos serem frequentemente citados, em particular, os artigos 186, 927 e 944. Eles referem-se, primeiramente, às condutas de ação e omissão que venham a violar direito ou causar dano a outrem, mesmo que este seja somente moral. Essas condutas são previstas como atos ilícitos e, obviamente, devem ser comprovadas através do processo, não bastando somente a inconsistente alegação do mesmo pela parte alegadamente 13
afetada. Em termos da jurisprudência estudada, percebemos que as alegações de dano moral ou material, geralmente por parte dos artistas, não prosperavam quando não havia efetiva demonstração de prejuízo. Com isso, podemos aferir que, apesar de aqui nos ocuparmos sobre a proteção jurídica ao grafite, não significa que a balança do direito tenderia somente ao lado dos artistas, caso assim se dessem as decisões. Conjuntamente, temos pelo mesmo código o trato sobre autoria de dano a outrem, surgindo, assim, a obrigação de reparar. O parágrafo único do artigo 927 aponta que o dever de reparação se mantém, independente de culpa ou da atividade desenvolvida por aquele que causou o dano. Por último, o artigo 944 dita que deve haver uma proporção entre a gravidade da culpa e o dano. Dessa forma, os pedidos judiciais que pleiteiam direitos de forma imoderada, devem ser reduzidas de forma equitativa pelo decisor. 3.1.3 Lei de crimes ambientais (Lei 9.605/98) e lei de descriminalização do ato de grafitar (Lei 12.408/2011) A lei de crimes ambientais brasileira (Lei 9.605/98) abriga uma mudança significativa e que interessa à nossa discussão. O artigo 65 da referida lei publicada em 12 de fevereiro de 1998 definia o seguinte: Art. 65. Pichar, grafitar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa. Parágrafo único. Se o ato for realizado em monumento ou coisa tombada em virtude do seu valor artístico, arqueológico ou histórico, a pena é de seis meses a um ano de detenção, e multa. Nela, como exposto acima, a lei englobava e criminalizava tanto o ato de pichar como o de grafitar. Esta diferenciação suscita, de início, uma necessidade de distinção conceitual entre os dois verbos. Pichar, segundo o Dicionário Aulete *citar*, é escrever ou desenhar sobre paredes, muros e portais. Geralmente são utilizados rolos de tinta, sprays e/ou estênceis, e comumente são pichadas frases de protestos ou marcações e assinaturas, sem fins estético-artísticos tão elaborados. Já o grafite utiliza os mesmos meios da pichação, mas objetiva um resultado artístico, seja ele estético, comunicativo ou reflexivo. Visa produzir uma obra com cores, personagens, cenários e composição, gerando assim uma narrativa que critica, elogia, retrata ou distorce um elemento da realidade. É por envolver uma complexidade maior e qualidades técnicas próprias de um artista, pelo resultado em si que é alcançado, por envolver um processo criativo e um labor maior e ainda agregar valor ao ambiente, que o grafite seja considerado arte, se distanciando da pichação, sendo esta última atividade criminalizada. É por haver essa distinção que a lei 12.408/2011 tratou de descriminalizar o grafite, deixando ao artigo 65 da lei de crimes ambientais somente a pichação como tipo criminoso.
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3.1.3 Lei de direitos autorais (Lei 9.610/98) Por fim, a lei de direitos autorais é a norma que mais vem sendo utilizada nas discussões jurídicas sobre o tema no Brasil, por uma razão simples: os processos judiciais envolvendo o grafite geralmente apontam à discussão dos direitos autorais em reclamações dos próprios autores das obras, que reclamam direitos de uso da imagem destas. É a partir dela que o decisor obtém os parâmetros legais para decidir em que medida houve ou não alguma infração aos direitos do autor. Faremos comentário, em ordem numérica, dos artigos que mais se mostram úteis à discussão da proteção jurídica ao grafite. Em seu artigo 7°, já encontramos a garantia legal da proteção jurídica não só do grafite mas de qualquer obra intelectual criada, expressa e fixada em qualquer meio, seja físico ou virtual, inclusive prevendo de maneira genérica outras formas de artes que venham a ser criadas; não limitando, pois, de forma taxativa, quais formas artísticas deveriam ser protegidas. No 24° artigo, há também a proteção aos direitos morais do autor, e continua ao longo de seus incisos que fazem parte desses direitos o direito de reivindicar a autoria da obra e o de ter o seu nome ou pseudônimo anunciado como autor da obra, em caso de utilização da mesma. Apesar do dispositivo articular não denotar sua conexão automática com a aplicação nos casos estudados, depreendemos deles que é necessária a demonstração, por meio do processo, da intenção do utilizador da obra em ter tido aquela obra referenciada como uma agregadora de algum valor (econômico ou valorativo) à sua outra obra, seja de qualquer tipo de veiculação. O artigo 28° também abriga juridicamente os direitos do autor, quando diz que ‘’cabe ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica. Os artigos 48, 77 e 78 desta lei também revelam-se adequados à aplicação do direito nos casos que versam sobre o assunto. Deles, podem ser extraídas interpretações que abrangem qualquer modalidade de arte nela tratada, inclusive, o grafite. Temos neles a seguinte redação: Art. 48. As obras situadas permanentemente em logradouros públicos podem ser representadas livremente, por meio de pinturas, desenhos, fotografias e procedimentos audiovisuais. Art. 77. Salvo convenção em contrário, o autor de obra de arte plástica, ao alienar o objeto em que ela se materializa, transmite o direito de expô-la, mas não transmite ao adquirente o direito de reproduzi-la. Art. 78. A autorização para reproduzir obra de arte plástica, por qualquer processo, deve se fazer por escrito e se presume onerosa. Estes artigos se demonstram mais condizentes no que concerne à tutela do grafite quando interpretados em conjunto, como bem já foram utilizados pelo Superior Tribunal de Justiça. No referido caso de 22.03.2011, o Min. Aldo Passarinho Junior elucida que: 15
À toda evidência, a mera reprodução por fotografia de uma obra exposta em logradouro não configura ilicitude. A aludida norma legal dá essa liberdade , bem como a sua representação por outros meios. Porém, o sentido da liberdade há que ser conjugado com os direitos assegurados nos arts. 77 e 78 do mesmo diploma, que versam sobre a utilização da obra, portanto o seu proveito de ordem econômica, como geradora de renda para terceiros, alheios à sua confecção. Se o intuito é comercial direta ou indiretamente, a hipótese não é a do art. 48, mas a dos arts. 77 e 78. [...] Por último, dentre os dispositivos legais utilizados para a interpretação e solução dos processos, encontramos o artigo 46, que em seu inciso VI, estabelece que a citação em quaisquer meios de comunicação, com fins de estudo crítica ou polêmica, à medida que se atinja o seu fim, desde que indicando o nome do autor e origem da obra, não constitui ofensa aos direitos autorais.
Por fim, os direitos patrimoniais supostamente infringidos foram negados ao autor inicial da ação, pois o juiz não reconheceu ato ilícito em sua reprodução não autorizada. Porém, os danos morais foram mantidos, visto que além de reproduzida, a imagem foi alterada de forma que deformaram-se as características originais da obra. Um outro caso encontrado na jurisprudência brasileira é um acórdão da 10ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo que nega provimento a um recurso movido pelo apelante, resultando na manutenção da sentença. Nele, são apelantes Daniel Medeiros (e outros) e Frederico George Barros Day, e apelado é a Revista Roxos e Doentes. No referido caso, a sentença proferida pela Doutora Ana Laura Correa Rodrigues julgou improcedente o pedido e condenou os autores ao pagamentos das custas processuais e honorários advocatícios. Os autores recorreram da sentença e sustentaram que a ré usou seus grafites com fins comerciais na Revista Roxos e Doentes, e que não houve autorização para o uso de suas obras, e que têm o direito à indenização solicitada.
A JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA Na jurisprudência brasileira, foram encontrados processos concernentes à atividade do grafite, especificamente em respeito a direitos patrimoniais deste tipo de arte. O primeiro caso que encontramos é uma apelação remetida ao Tribunal de Justiça de São Paulo, onde a apelante é a Editora e Distribuidora - Edipress, que edita uma revista no qual foi veiculada publicação sobre veículos, e na qual constava, como pano de fundo das fotografias dos automóveis, uma obra feita em grafite, exposta em local público. O apelado é o autor da ação inicial, o artista Frederico George Barros Day. O pedido feito inicialmente reclamava danos morais e patrimoniais, onde, numa primeira instância, foram acatados os dois. Dizia o autor que os danos morais eram referentes à reprodução não autorizada, e quanto aos danos patrimoniais, se referia à alteração feita eletronicamente, havendo edição da sua obra. Na apelação, a ré alegou que as fotografias foram expostas de maneira parcial, não havendo intuito comercial da reprodução da obra, assim como a obra nunca foi o objeto principal dos retratos. Alegou também que os direitos das fotografias foram cedidos pelos fotógrafos. A divulgação sem autorização foi julgada procedente, visto que a lei de direitos autorais, em seu artigo 48° é clara quando diz que obras situadas permanentemente em logradouro público podem ser representadas livremente. Também constatou-se que não houve excesso de utilização, nem presença das intenções comerciais, como exposto anteriormente.
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A ré apresentou resposta na qual pediu a manutenção da sentença. Os apelantes tiveram provimento ao recurso dado pelo Relator, mas por maioria, teve o voto vencido, tendo a apelação sido julgada como improcedente. No caso, os apelantes sustentaram que são os autores de grafite realizado em local privado, mas de acesso público, e que foi indevidamente utilizado pela apelada em fotografias da revista Roxos e Doentes. Os apelantes pediram a condenação da ré em indenização e em obrigação de divulgação da identidade dos autores em edições posteriores. A ré alegou que os grafites não estavam identificados, impossibilitando a identificação dos mesmos. Na petição inicial e na réplica, os apelantes alegaram que são conhecidos e que suas obras têm similitudes que permitem conhecer a autoria. Porém, essas alegações não foram suficientes para concluir que a ré tinha condições de saber a autoria das obras pela caráter vasto e numeroso da produção artística. Diz o relator do caso que a proteção legal conferida ao direito autoral exigido pelos apelantes advém da possibilidade de identificação da autoria, o que não se demonstrou possível. E conclui que, como a Convenção de Berna rege em seu artigo 15, item 1, para que os autores das obras tenham os direitos protegidos pela referida convenção, basta que seus nomes venham indicados nas obras pela forma usual, o que não ocorreu no caso. Em suma, como a proteção da obra depende da forma comum de identificação da autoria, e não tendo ocorrido o mesmo, o relator vota por negar provimento ao recurso para a manutenção da sentença. 17
ATIVIDADE ESTATAL DE INCENTIVO Além da atividade legislativa de tutela ao grafite e todos os seus consectários jurídicos e sociais, uma outra forma de proteção vinda do Estado que se mostra eficaz é através do incentivo a esta arte, seja pelo fomento à produção da arte, como pela manutenção e proteção de obras de grafite expostas em logradouros públicos. Este tipo de ação vinda do Estado encontra sua fundamentação jurídica na Constituição Federal, em seu artigo 174, onde prescreve que o setor público deve exercer as funções de fiscalização, incentivo e planejamento por ser ele agente interventor da atividade econômica. Dois casos que ganham relevância e exemplificam este tipo de intervenção estatal são o Beco do Batman, na Zona Oeste da cidade de São Paulo, e o Projeto Motion Layers, de Curitiba, capital do Paraná. Beco do Batman - Zona Oeste da cidade de São Paulo O Beco do Batman é um dos principais pontos turísticos da Vila Madalena, localizada na Zona Oeste de São Paulo, que é conhecido por ser uma galeria de arte a céu aberto, com diversos muros grafitados por artistas desde os anos 80. Desde o dia 20 de maio de 2016, o espaço foi fechado com barreiras de concreto da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) para impedir a passagem de carros, possibilitando somente o acesso ao beco a pé ou de bicicleta. A prefeitura de São Paulo também instalou 13 pontos com lâmpadas de LED na região, possibilitando uma melhor visualização à noite. Projeto Motion Layers - Curitiba - PR Um outro projeto de fomento e proteção estatal envolvendo proteção jurídica do grafite é o projeto Motion Layers, viabilizado pela Prefeitura Municipal de Curitiba e pela Fundação Cultural de Curitiba, através da Lei de Incentivo à Cultura (Lei Complementar n°3/91), na modalidade de mecenato subsidiado, através da publicação de editais. A proposta resultou na realização de quatro murais públicos de grande escala, além da exposição de trabalho dos artistas e da realização de um curta-metragem. Os locais de realização dos murais foram feitos em prédios de grande alcance visual aos cidadãos. Das intenções objetivadas na realização dos estênceis e grafites feitos, estão entre elas a expressão e formação de uma identidade local, o despertar do sentimento entre a comunidade de posse do espaço público e a retomada de uma cultura mais afetiva com a cidade, além de representar um avanço técnico e estético em relação à pichação (Oliveira, 2016). Ações como essa que acabam por retratar uma das várias formas efetivas da proteção à arte grafiteira que se dá no Brasil.
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5. A PROTEÇÃO JURÍDICA AO GRAFITE EM DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO E COMPARADO 5.1 Convenção de Berna O dispositivo de direito internacional público mais proeminente utilizado para proteger os direitos patrimoniais dos artistas é a Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias, datada de 1886. No Brasil, a convenção foi promulgada pelo Decreto Nº 75.699, de 6 de maio de 1975. Este tratado estabeleceu regras importantes para a proteção moderna aos direitos autorais, dentre os quais vários concernem à matéria do grafite. Podemos citar o seu artigo 2º, §1, que determina que “Os temas ‘obras literárias e artísticas’ abrangem todas as produções do domínio literário, científico e artístico, qualquer que seja o modo ou a forma de expressão [...]” (Brasil, 1975), enumerando após isto uma lista não-exaustiva de obras como livros e brochuras.
5.1. Estados Unidos da América 5.1.1 UNITED STATES COPYRIGHT ACT Nos Estados Unidos, o grafite é passível de proteção pelo U. S. Copyright Act desde que preencha dois pré-requisitos: (1) deve ser uma obra de autoria original, e; (2) precisa estar fixado em um meio de expressão tangível. Isto significa que o trabalho da criação artística deve ter sido originado pelo autor e que a representação física da obra, quer esta tenha sido feita diretamente pelo autor ou sob sua autoridade, seja estável ou permanente o bastante para que ela tenha sido percebida, reproduzida ou comunicada por um período maior do que uma duração meramente transitória. Estes são os requisitos necessários e suficientes para a proteção da expressão artística sob o copyright nos Estados Unidos. Portanto, como qualquer outra obra de arte, se o grafite atender a esses dois requisitos, poderá ter seus direitos de cópia e reprodução protegidos. No entanto, não é todo e qualquer grafite que terá direito à proteção dos direitos autorais. Meras assinaturas, frases curtas, símbolos familiares ou textos em tipografias comuns não se qualificam como passíveis de proteção de copyright; o que não necessariamente impede que eles possam ser protegidos sob uma marca registrada (Lerman, 2013, p. 308). Comumente, o grafite é pintado sobre uma parede; como o U. S. Copyright Act só requer que a obra esteja estável ou permanente o suficiente para que seja percebida, reproduzida ou comunicada por um período mais do que transitório, é possível garantir o direito autoral de um grafite ainda que sua integridade física seja destruída posteriormente. Isto ocorre porque a lei do copyright faz uma distinção entre a obra e o seu suporte físico e só protege a sua existência intelectual, não a física. Sabemos que o grafite, conforme foi anteriormente explicado, costuma ser efêmero porque é feito sobre paredes e estas podem,
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futuramente, ser pintadas pelo proprietário do muro, pelas autoridades locais ou por outros grafiteiros, ou ainda prejudicadas pelas intempéries climáticas e falta de manutenção. Ainda assim, essa existência temporária é suficiente para submeter-se ao requerimento da lei de copyright. Não há que se falar em vieses quanto à legalidade da criação da obra: a preocupação do copyright é com o trabalho imaterial. É interessante mencionar que, para o U. S. Copyright Act, a possível ilegalidade do grafite (ou seja, a sua reprodução sem a permissão do proprietário do muro ou superfície sobre o qual a arte é feita) não enseja fato impeditivo algum para a proteção dos direitos autorais, estabelecendo assim uma diferença clara entre o trabalho material, em sua representação física, e a obra intelectual do artista. O grafite é ilegal nos EUA se ele for criado sem a permissão do proprietário da superfície onde o mesmo é feito, não importando se a pintura provocar dano ao artista. Aliás, fazse necessário notar que há casos onde o grafite acaba por aumentar o valor do imóvel, como no caso dos estênceis de Banksy (The Telegraph, 2008). Ainda que haja valorização imobiliária, este bônus não justifica o ato ilegal. Mas seria esta ilegalidade um impedimento para a proteção dos direitos autorais? Segundo o Copyright Act, §202, não (United States Copyright Office, 2011, p. 126). Basta, então, que haja um meio físico no qual a obra seja representada, não importando qual tenha sido o meio. A proteção de copyright somente seria negada se não houvesse conformidade com o Copyright Act ou se a obra violasse os direitos autorais de outro artista. LITÍGIOS JURÍDICOS NOS ESTADOS UNIDOS Em agosto de 2015, o estilista Jeremy Scott e sua empresa Moschino foram acusados pelo grafiteiro americano Rime de copiar e fazer uso comercial indevido de sua obra Vandal Eyes. Não restou dúvida quanto ao mérito da acusação: fotografias comprovaram que o estilista havia vestido um terno com a reprodução da obra no baile de gala de maio de 2015 do Metropolitan Museum of Modern Art. A situação tornou-se ainda mais grave porque o próprio Scott chegou ao evento acompanhado da cantora Katy Perry em um carro de luxo pintado a spray; ambos estavam munidos de latas de tinta aerossol com a marca da Moschino, dando a impressão de que a Moschino fosse também a mentora intelectual da obra artística de Rime (CNN, 2015). 20
Outro caso semelhante foi o processo contra a grife Roberto Cavalli, de 2014. Três artistas de grafite acusaram a empresa de criar uma linha de roupas utilizando cópias exatas de suas obras, além de ter sobreposto a assinatura da grife sobre os designs dos artistas, fazendo com que a logomarca parecesse parte das obras originais. As partes chegaram a uma decisão sem levar o caso a julgamento em janeiro de 2016 (Anselmo, 2016).
5.2. Reino Unido Assim como nos EUA, o grafite criado de maneira ilegal não terá impedimento para a proteção dos direitos autorais. Não há disposição expressa na legislação de direitos autorais britânica que limite a proteção do copyright apenas a obras de arte criadas na estrita legalidade, destarte demonstrando a preocupação em separar a obra física da criação intelectual. No entanto, ainda que a legislação de direitos autorais proíba a livre cópia das obras de arte, não existem dispositivos normativos que possibilitem que o artista de grafite impeça a alienação da obra de arte em sua forma física. Vale salientar que, apesar da proteção aos direitos autorais do grafite, é necessário que o artista declare publicamente ser o autor intelectual da obra. No entanto, se ele criou a obra sem a permissão expressa do proprietário do meio onde a obra foi feita (um muro de um imóvel, por exemplo), ele estará sujeito a sanções por ter cometido um crime sob o Criminal Damage Act 1971 (Reino Unido, 1971). Isto configura um grande empecilho para a efetiva proteção dos direitos patrimoniais do grafiteiro, que deverá decidir entre assumir a responsabilidade e proteger seus direitos autorais ou abdicar da proteção da sua obra intelectual e evitar uma possível condenação criminal. LITÍGIOS JURÍDICOS NO REINO UNIDO Em 2014, o artista gráfico Stik processou uma grande empresa multinacional que havia utilizado uma de suas obras de grafite, pintada na porta de seu ateliê, em um comercial, lucrando assim com seu trabalho intelectual sem a devida autorização. Stik disse que não teria problemas se a utilização não fosse comercial, mas o uso indevido de sua obra com fins lucrativos o levou a tomar a ação legal necessária. Posteriormente, o artista e a empresa chegaram um acordo, encerrando assim o litígio (BBC, 2014). CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise dos textos legais e da jurisprudência contemporânea sobre o grafite no direito brasileiro e comparado permite concluir que a proteção jurídica ao grafite e ao direito patrimonial do artista ainda é incipiente no Brasil. As ferramentas jurídicas de que valem os artistas americanos para proteger o seu trabalho imaterial, capitaneadas pelo U.S. Copyright Act, ainda que imperfeitas, são objetivamente mais eficazes em garantir a integridade da obra intelectual e a capacidade do artista de usufruir da criação de sua obra do que as ferramentas encontradas no Brasil e no Reino Unido. A garantia da subsistência 21
do artista e o incentivo ao desenvolvimento cultural do espaço urbano, portanto, são mais acessíveis e estáveis no ordenamento jurídico americano.
batman-e-fechado-para-veiculos-e-tem-iluminacao-reforcada.html> Acesso em: 19 out. 2016
Portanto, concluímos que o apoio estatal, acompanhado do suporte normativo, revela ser a peça fundamental na proteção ao direito autoral dos artistas de grafite, tutelando assim, de maneira efetiva, os direitos constitucionais da liberdade de expressão e de acesso à cultura.
LERMAN, Celia. Protecting Artistic Vandalism: Graffiti And Copyright Law. New York: N.Y.U. Journal of Intellectual Property & Entertainment Law, New York, v. 2, n. 2, p. 295-338, 2013.
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OLIVEIRA, Aline Rayane de Souza. Motion Layers: uma dentre muitas leituras possíveis. Revista Interdisciplinar Internacional de Artes Visuais, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 87-98, jun. 2016. REINO UNIDO. Criminal Damage Act 1971, de 14 de julho de 1971. Disponível em: <http://www.legislation.gov.uk/ukpga/1971/48/section/1>. Acesso em: 23 out. 2016. SÃO PAULO. 10ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo. STERN, Dillon H. Navigating the Legal Landscape of a Subversive Art Form: Protecting Expression and Neglecting Embodiment. Chicago-Kent Journal of Intellectual Property, Chicago, v. 15, n. 2, p. 555-573, 2016. TELEGRAPH, The. 2008. Banksy graffiti doubles derelict pub’s value. Disponível em: <http://www.telegraph.co.uk/finance/property/houseprices/3541901/Banksy-graffiti-doubles-derelict-pubs-value.html>. Acesso em: 19 set. 2016 UNITED STATES COPYRIGHT OFFICE. 2011. Copyright Law of the United States and related laws contained in Title 17 of the United States Code. Disponível em: <https://www.copyright.gov/title17/circ92.pdf>. Acesso em 20 set. 2016.
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Por Mariana
A PROTEÇÃO DAS OBRAS SITUADAS EM LOGRADOUROS PÚBLICOS: UM EQUILÍBRIO NECESSÁRIO ENTRE A PRESERVAÇÃO DOS DIREITOS DO AUTOR E A DEMOCRATIZAÇÃO DA ARTE
Alves
Advogada formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Mestre em Direito do Entretenimento pela University of California Los Angeles School of Law, com atuação no Brasil e na Califórnia nas áreas de música, cinema, TV e artes visuais. Membro do California BAR e do Comitê de Mídia e Entretenimento da Brazil California Chamber of Commerce e Counsel da Los Angeles Entertainment Services.
Apresentação: O artigo a seguir corresponde a um trecho retirado do trabalho de conclusão de curso elaborado em 2017 para graduação em Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie. O trabalho original abordava o conflito entre normas constitucionais que consagram como direito fundamental a proteção aos autores, conferindo a eles a exclusividade de utilização, publicação ou reprodução de suas obras intelectuais, em contraposição ao o acesso à cultura e a responsabilidade do Estado de garantir o pleno exercício dos direitos culturais, também inserido no rol de direitos fundamentais. A proposta era o estudo de uma harmonização entre normas no âmbito das obras permanentemente situadas em logradouros públicos, limitação prevista no artigo 48 da Lei n. 9.610/1998, a qual tutela os Direitos de Autor, por meio do equilíbrio entre a proteção das obras artísticas e a democratização da arte, visando, em última esfera, o acesso à cultura. A seguir, serão apresentadas as limitações aos direitos do autor de acordo com a legislação nacional e internacional, bem como a relação entre tais limites e as normas e princípios da Constituição Federal de 1988.
2. LIMITAÇÕES AOS DIREITOS AUTORAIS 2.1 Limites previstos no artigo 46 da Lei de Direitos Autorais Antes de adentrar no rol de limites do art. 46 da Lei n. 9.610/1998, destacase a mais comum das limitações aos direitos autorais, o domínio público. Trata-se primordialmente de limitação temporal aplicável a toda e qualquer obra, pois decorre, simplesmente, do transcorrer do tempo. Na atual lei de regência esse limite vem previsto no art. 41, o qual determina que “os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subsequente ao de seu falecimento, obedecida a ordem sucessória da lei civil”1.
1 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9610.htm. Acesso em: 22/08/2017. 25
Pois bem, a Convenção de Berna 2 e o Acordo TRIPS 3 estabeleceram como piso mínimo para proteção dos direitos autorais o prazo de 50 (cinquenta) anos, no entanto o ordenamento jurídico pátrio optou por alargar o prazo por 70 (setenta) anos, o que para grande parte da doutrina é exagerado.
imagem, feitos sob encomenda, quando realizada pelo proprietário do objeto encomendado, não havendo a oposição da pessoa neles representada ou de seus herdeiros; d) de obras literárias, artísticas ou científicas, para uso exclusivo de deficientes visuais, sempre que a reprodução, sem fins comerciais, seja feita mediante o sistema Braille ou outro procedimento em qualquer suporte para esses destinatários; II - a reprodução, em um só exemplar de pequenos trechos, para uso privado do copista, desde que feita por este, sem intuito de lucro; III - a citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra; IV - o apanhado de lições em estabelecimentos de ensino por aqueles a quem elas se dirigem, vedada sua publicação, integral ou parcial, sem autorização prévia e expressa de quem as ministrou; V - a utilização de obras literárias, artísticas ou científicas, fonogramas e transmissão de rádio e televisão em estabelecimentos comerciais, exclusivamente para demonstração à clientela, desde que esses estabelecimentos comercializem os suportes ou equipamentos que permitam a sua utilização; VI - a representação teatral e a execução musical, quando realizadas no recesso familiar ou, para fins exclusivamente didáticos, nos estabelecimentos de ensino, não havendo em qualquer caso intuito de lucro; VII - a utilização de obras literárias, artísticas ou científicas para produzir prova judiciária ou administrativa; VIII - a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores.” 8
A este respeito Guilherme Carboni levantou, no Fórum Nacional de Direito Autoral realizado em Agosto/2008, a seguinte questão: “o prazo que nós temos hoje é um prazo que levaria a um desenvolvimento cultural?” 4. Para Maurício Cozer Dias, “esse exagero de proteção certamente contribui para que as obras caiam no esquecimento completo e não no domínio público como deveria” 5. Sob o ponto de vista patrimonial, a obra caída em domínio público passa a integrar o patrimônio cultural da coletividade. Nesse aspecto, Denis Borges Barbosa ensina que o instituto do domínio público recai tão somente sobre os direitos patrimoniais, permanecendo na titularidade dos herdeiros ou do próprio Estado, a quem compete a defesa da integridade e autoria da obra caída em domínio público 6, a parte dos direitos morais suscetível de transmissão post mortem 7. Além da limitação temporal, o art. 46 da Lei n. 9.610/1996 prevê hipóteses que não configuram ofensa aos direitos autorais mesmo durante o período de exclusividade da exploração, quais sejam: “Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais: I - a reprodução: a) na imprensa diária ou periódica, de notícia ou de artigo informativo, publicado em diários ou periódicos, com a menção do nome do autor, se assinados, e da publicação de onde foram transcritos; b) em diários ou periódicos, de discursos pronunciados em reuniões públicas de qualquer natureza; c) de retratos, ou de outra forma de representação da 2 “ARTIGO 7. 1) A duração da proteção concedida pela presente Convenção compreende a vida do autor e cinquenta anos depois da sua morte.” (Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ decreto/1970-1979/d75699.htm. Acesso em: 27/08/2017.) 3 “ARTIGO 12 – Duração da proteção. Quando a duração da proteção de uma obra, que não fotográfica ou de arte aplicada, for calculada em base diferente à da vida de uma pessoa física, esta duração não será inferior a 50 anos, contados a partir do fim do ano civil da publicação autorizada da obra ou, na ausência dessa publicação autorizada nos 50 anos subsequentes à realização da obra, a 50 anos, contados a partir do fim do ano civil de sua realização.” (Disponível em: http://www.inpi.gov.br/legislacao-1/27-trips-portugues1.pdf. Acesso em: 27/08/2017.) 4 CARBONI, Guilherme. Palestra proferida no Fórum Nacional de Direito Autoral. Ministério da Cultura, agosto/2008. Apud JÚNIOR, Rafael Angelo Lot. Função Social da Propriedade Intelectual: O Patrimonialismo Autoralista em Contraste com o Direito de Acesso à Cultura. Dissertação de Mestrado. Fortaleza: Universidade de Fortaleza, 2009. p. 66. 5 DIAS, Maurício Cozer. A proteção das obras musicais caídas em domínio público. In: BRASIL, Ministério da Cultura. Direito autoral. Brasília, 2006 (Coleção Cadernos de Políticas Culturais, vol. 1), pp. 64.
Observa-se que, assim como o domínio público, o efeito desses limites é puramente patrimonial, visto que a maioria dos incisos se refere a modalidades de utilização da obra que integram o rol dos direitos patrimoniais do art. 29 da LDA 9. Nesse sentido, Ascensão afirma que:
6 “§ 2º Compete ao Estado a defesa da integridade e autoria da obra caída em domínio público.” (Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/L9610.htm. Acesso em: 22/08/2017.) 7 BARBOSA, Denis Borges. Direito de Autor: questões fundamentais de direito de autor. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 85. Apud BALTHAZAR, Luiza Silva. Limitações aos Direitos do Autor: A Questão das Obras Permanentemente Situadas em Logradouros Públicos. Revista da ABPI nº 141, Mar/Abr 2016. pp. 38/49. 26
8 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9610.htm. Acesso em: 22/08/2017. 9 Ibidem. 27
“O limite dos direitos autorais, neste embate, é a exteriorização de uma exceção, que efetivamente não será objeto de um poder de polícia. Exceção esta que é escolhida tendo em vista não causar prejuízos injustificados aos interesses legítimos do autor nem impeçam-no de explorar normalmente a obra.”10 Já Eduardo Vieira Manso chama atenção para um aspecto diferente das limitações compreendidas nos arts. 46 a 48 da Lei 9.610/1998, que em sua visão são “uma consequência da função social das obras, atendendo ao inafastável interesse público pelo desenvolvimento cultural” 11. Ocorre, contudo, que o rol apresentado nesses artigos é taxativo, e por não comportar uma interpretação extensiva, contraria, para Guilherme Carboni, a função social dos direitos de autor. Em suas palavras: “As limitações aos direitos autorais traçadas pela Lei 9.610/98 não são suficientes para resolver os conflitos entre o direito individual do autor e o interesse público à livre utilização de obras intelectuais. A previsão numerus clausus dessas limitações contraria a função social do direito de autor. É por essa razão que somos favoráveis à regulamentação das limitações aos direitos autorais na forma de princípios gerais (tal como no fair use norte-americano) e não à enumeração de situações taxativas. Isso porque o princípio geral pode ser moldado pelo juiz no caso concreto, além de sobreviver mais facilmente às mudanças sociais e tecnológicas.”12 Significa dizer, portanto, que qualquer outra modalidade de utilização não compreendida no rol das limitações previstas na Lei n. 9.610/1998 implica em violação aos direitos do autor da obra e, portanto, contraria o princípio constitucional da função social do direito de autor13.
2.2 Limites previstos na legislação internacional A Convenção de Berna, instrumento padrão do direito autoral internacional, traz em seu Artigo 9.2 uma regra que direciona os países signatários no sentido de permitir a reprodução de obras protegidas desde que, cumulativamente, não cause prejuízo ao autor, nem afete a exploração normal da obra. In verbis:
“ARTIGO 9 (...) 2) Às legislações dos países da União reserva-se a faculdade de permitir a reprodução das referidas obras em certos casos especiais, contanto que tal reprodução não afete a exploração normal da obra nem cause prejuízo injustificado aos interesses legítimos do autor. (...)”14 Já Artigo 13 do Acordo TRIPS alude à mesma regra, porém amplia o escopo de sua aplicação para todos os direitos exclusivos dos autores. Vejamos: “ARTIGO 13 Limitações e Exceções Os Membros restringirão as limitações ou exceções aos direitos exclusivos a determinados casos especiais, que não conflitem com a exploração normal da obra e não prejudiquem injustificavelmente os interesses legítimos do titular do direito.”15 Trata-se da internacionalmente conhecida Regra dos Três Passos (ou three-step test), que, nas palavras de Maristela Basso, pode ser definida como uma “diretriz que deve ser empregada pelo operador/intérprete/aplicador da LDA para a definição do escopo das limitações e sua aplicação, no caso concreto, a fim de não causar prejuízo injustificado aos interesses legítimos dos autores”16. Explica João Henrique Fragoso, em poucas palavras, que a regra dos três passos consiste em verificar se a reprodução: “(i) encontra-se entre aqueles certos casos especiais – destinada à informação, ensino, crítica, comentários, prova judiciaria e administrativa etc.; (ii) não afeta a exploração normal da obra – o que significa que a reprodução não poderá se substituir, por exemplo, à aquisição lícita de um exemplar da obra original, quando possível; (iii) não cause prejuízo injustificado ao seu autor – o que significa que seja em quantidade e com substancialidade que atenda ao fim visado, e que a obra reproduzida esteja inserida no corpo de obra maior, à qual não se excede.”17
10 ASCENSÃO, José de Oliveira. A Função Social do Direito Autoral e as Limitações Legais. In Direito da Propriedade Intelectual – Estudos em Homenagem para Pe. Bruno Jorge Hammes. Coord. Marcos Wachowicz e Luiz Gonzaga Silva Adolfo. Curitiba, Juruá, 2007. Apud BALTHAZAR, Luiza Silva. Limitações aos Direitos do Autor: A Questão das Obras Permanentemente Situadas em Logradouros Públicos. Revista da ABPI nº 141, Mar/Abr 2016. pp. 38/49. 11 MANSO, Eduardo Vieira. Utilização das obras intelectuais para organização de antologias e compilação justapostas a obra original. Revista dos Tribunais, v. 589, nov. 1984, p. 39. Apud CARBONI, Guilherme. Função social do direito de autor. Curitiba: Juruá, 2008, p. 164. 12 CARBONI, Guilherme. Aspectos Gerais da Teoria da Função Social do Direito de Autor. In: PIMENTA, Eduardo Salles (org.). Propriedade intelectual: estudos em homenagem ao Min. Carlos Fernando Mathias de Souza. 1ª ed. São Paulo: Letras Jurídicas, 2009, p. 200/216. (Disponível em: https://gcarbonicombr.files.wordpress.com/2016/08/aspectos-gerais-da-teoria-da-func3a7c3a3o-social-do-direito-de-autor. pdf. Acesso em: 05/11/2017). 13 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito intelectual, exclusivo e liberdade. Revista da ABPI – Associação Brasileira da Propriedade Intelectual, n. 59, jul./ago., 2002, p. 48. Apud CARBONI, Guilherme. Função social do direito de autor. Curitiba: Juruá, 2008, p. 172. 28
14 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1970-1979/d75699.htm. Acesso em: 28/08/2017. 15 Disponível em: http://www.inpi.gov.br/legislacao-1/27-trips-portugues1.pdf. Acesso em: 28/08/2017. 16 BASSO, Maristela. As exceções e limitações aos direitos do autor e a observância da regra do teste dos três passos (three step test). Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, vol. 102, 2007, p. 500. 17 FRAGOSO, João Henrique da Rocha. op. cit., p. 84. 29
Maristela ressalta que, à luz da Doutrina da Interpretação Consistente, regra hermenêutica de normas legais cuja origem é internacional18, por ser o Brasil um País Membro da OMC, assumiu-se a obrigação de proteger os direitos autorais nos patamares mínimos estabelecidos no Acordo TRIPS, o qual veio a ser incorporado ao Direito Brasileiro pelo Decreto 1.355/199419, razão pela qual essa exceção é identificada no art. 46, VIII da Lei n. 9.610/1998, que preleciona: “Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais: (...) VIII - a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores.”20 Além das regras norteadoras das exceções e limites aos direitos de autor, que se encontram presentes nos tratados internacionais (Convenção de Berna e Acordo TRIPS), necessário se faz apontar alguns dos sistemas adotados na legislação estrangeira, a começar pelos Estados Unidos. O fair use, expresso na Section 107 do US Copyright Act de 197621 consiste na possibilidade de utilização de uma obra protegida sem autorização do respectivo autor em determinadas circunstâncias. Maristela Basso entende que o fair use pode ser considerado “um conjunto apropriado de critérios para determinar o equilíbrio entre os direitos dos titulares e as necessidades e interesses do usuário” 22. Assim, conclui que qualquer uso que não preenche, concomitantemente, os elementos da Regra dos Três Passos seria considerado injusto e, portanto, implicaria em violação aos direitos de autor. Patricia Aufderheide e Peter Jaszi apontam para dois tipos de fair use: “one is your right to do with copyrighted material what you will for personal purposes”23. Basicamente, a utilização é considerada justa quando feita para
fins pessoais, seja uma cópia ou digitalização de um livro para estudos, seja a gravação de um programa de televisão para assistir em momento oportuno. O outro tipo seria o chamado “productive” fair use, que consistiria na reutilização de material protegido no processo de criação de algo novo24. Os mesmos autores sublinham os quatro fatores encontrados no US Copyright Act que conduzem a aplicação do fair use: “The character of the use (what are you doing with the material?), the nature of the original work (is it mainly factual reportage, or an imaginative production?), the amount taken (and whether it’s the central part of the work) and the effect of taking on the market value of the work.”25 Contudo, Anne Lepage, em artigo escrito para o e-Copyright Bulletin da UNESCO, afirma que a entrada em vigor do Digital Millennium Copyright Act (DMCA) modificou a legislação norte-americana ao enumerar todas as exceções aos direitos de autor, tornando o sistema adotado nos Estados Unidos bem mais próximo ao sistema europeu26. Em outras palavras, o rol de possibilidades de aplicação do fair use que antigamente não era exaustivo27, passou a se aproximar do sistema adotados em países como a Inglaterra28, a França29, que optaram por apresentar um rol extenso, porém taxativo, de exceções aos direitos de autor. Indispensável para o presente trabalho, destaca-se outra exceção aos direitos autorais, o chamado “Right of Panorama”, que nasceu na Alemanha como uma resposta às disposições sobre direitos autorais contra reproduções editadas em 1837. Mélanie Dulong de Rosnay e Pierre-Carl Langlais, em artigo publicado na Internet Policy Review, afirmam que à época, os membros da Confederação Alemã iniciaram tentativas de suavizar os aspectos mais restritos daquela lei.
24 Ibidem, p. 19. 25 Ibidem, p. 24. 18 “A Doutrina da Interpretação Consistente (Doctrine of Consistent Interpretation) é uma regra de hermenêutica de normas legais nacionais cuja gênese seja internacional. Segundo esta doutrina, quando uma norma local permitir diferentes interpretações, esta deverá ser interpretada em consonância com as obrigações internacionais pertinentes à matéria, possibilitando-se uma relação harmônica do sistema jurídico nacional com o internacional, bem como a realização concreta do princípio do Pacta Sunt Servanda que, necessariamente, deve ser observado por todos os órgãos estatais, inclusive pelo Poder Judiciário. No campo das relações comerciais internacionais, a aplicação da Doutrina da Interpretação Consistente ainda traz a vantagem pragmática de minimizar os riscos do Estado brasileiro vir a ser alvo de litígios internacionais perante o Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) da Organização Mundial do Comércio (OMC) e de retaliações comerciais.” (BASSO, Maristela. As exceções e limitações aos direitos do autor e a observância da regra do teste dos três passos (three step test). Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, vol. 102, 2007, pp. 494-494). 19 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/antigos/d1355.htm. Acesso em: 28/08/2017. 20 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9610.htm. Acesso em: 22/08/2017. 21 Disponível em: https://www.copyright.gov/title17/title17.pdf. Acesso em: 29/08/2017. 22 BASSO, Maristela. op. cit., p. 502. 23 AUFDERHEIDE, Patricia; JASZI, Peter. Reclaiming Fair Use: How to Put Balance Back in Copyright. Chicago: The University of Chicago Press, 2011, p. 18. 30
26 LEPAGE, Anne. Overview of exceptions and limitations to copyright in the digital environment. UNESCO e-Copyright Bulletin, January-March 2013, p. 5. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001396/139696E.pdf. Acesso em: 29/08/2017. 27 “Fair use is now governed by the provisions of Section 107 of the Copyright Act of 1976, which contains a non-exhaustive list of considerations which determine whether or not fair use is made of a work. This is not a cumulative list of elements but rather a set of factors to be considered.” (Ibidem, p. 5) 28 “Chapter III – Acts Permitted in relation to Copyright Works. 28 – Introductory provisions. (1) The provisions of this Chapter specify acts which may be done in relation to copyright works notwithstanding the subsistence of copyright; they relate only to the question of infringement of copyright and do not affect any other right or obligation restricting the doing of any of the specified acts; (...)” (Disponível em: http://www.legislation.gov.uk/ukpga/ 1988/48/part/I/chapter/III. Acesso em: 29/08/2017.) 29 “Article L122-5. Lorsque l’œuvre a été divulguée, l’auteur ne peut interdire: 1° Les représentations privées et gratuites effectuées exclusivement dans un cercle de famille; 2° Les copies ou reproductions strictement réservées à l’usage privé du copiste et non destinées à une utilisation collective, à l’exception des copies des œuvres d’art destinées à être utilisées pour des fins identiques à celles pour lesquelles l’œuvre originale a été créée et des copies d’un logiciel autres que la copie de sauvegarde établie dans les conditions prévues au II de l’article L. 122-6-1 ainsi que des copies ou des reproductions d’une base de données électronique; (...)” (Disponível em: https://www.legifrance.gouv.fr/affichCodeArticle.do?cid Texte=LEGITEXT000006069414&idArticle=LEGIARTI000006278917&dateTexte=20081211. Acesso em: 29/08/2017.) 31
Até que em 1840 foi editado pelo Rei da Bavária o primeiro ato da “liberdade de panorama”30. Em suas palavras, trata-se de exceção específica para as obras situadas em logradouros públicos (“an exception to this general rule regarding the “work of arts architecture in their exterior contours” situated in a public space”)31. Com o processo de unificação da Alemanha, abriu-se um debate acerca do desequilíbrio entre o direito que os artistas tinham de disseminar e divulgar seus trabalhos e a preservação do espaço público como um bem público (em alemão “Gemeingut”). Contudo, a expressão hoje conhecida no Direito Alemão “Panoramafreiheit” surgiu apenas em 199032. Em referência a Bertoni e Montagnani, Langlais e Rosnay sugerem que: “‘public art’ works may express the identity of a community, a state, a nation; they can embody cultural, economic, social, environmental interests, and have civic, commercial, and touristic value”33. Ainda nessa discussão, Langlais e Rosnay trazem o cerne da questão do presente trabalho, que é a inclusão das obras localizadas em logradouros públicos em outras obras de arte. Vejamos: “Finally, another area of law which has been used to control the use of public artworks outside of the narrow and recent scope of the exception of panorama is the incidental inclusion of a work in another work. For example, current case law in France has been relying on another copyright exception of the Directive, article 5.3 (i) which authorizes the incidental inclusion of a work or other subject-matter in other material. The legal battle opposing Buren and Drevet to postcards makers in the city of Lyon granted the right of accessory representation of a copyrighted work when it cannot be extracted from a public domain space, namely a contemporary art installation on a public square. Authors can still enjoy other aspects of copyright, notably moral rights, as they sued the municipality to preserve and repair their public artwork. (…)
30 “In 1837, the German Confederation approved a new author right disposition against reproductions (“gegen den Nachdruck”). As was the use at the time, it made a special case of mechanical reproduction (“auf mechanischem Wege”). The reform aimed to establish a common standard on copyright law within the Confederation (with a minimal protection length of 10 years). Several members of the German Confederation quickly attempted to soften some aspects of this stricter legal frameworks — a process somewhat analogous to the subsidiarity principle in the contemporary EU. Three years later, in 1840, the Kingdom of Bavaria edicted the very first “freedom of panorama” (LANGLAIS, Pierre-Carl; ROSNAY, Mélanie Dulong de. Public artworks and the freedom of panorama controversy: a case of Wikimedia influence. Internet Policy Review – Journal on Internet Regulation, vol. 6, issue 1, Fevereiro/2007, pp. 4-5. Disponível em: https://policyreview.info/articles/analysis/public-artworks-and-freedom-panorama-controversy-case-wikimedia-influence. Acesso em: 29/08/2017).
Another example of national nuance is German law, which allows photographers to take pictures that are visible from publicly accessible places. According to case law, which has been influenced by a strong conception of privacy as underlined in the previous section, this includes private ways and parks with common access. However, it does not include railway station buildings or platforms. The picture must be taken from a publicly accessible point.”34 Partindo das discussões aqui levantadas, especialmente no que concerne às obras situadas em logradouros públicos, aprofundar-se-á, a seguir, na questão da livre representação dessas obras sob o ponto de vista do ordenamento jurídico brasileiro.
2.3 Limite previsto no artigo 48 da Lei de Direitos Autorais Dispõe o art. 48 da Lei n. 9.610/1998: “As obras situadas permanentemente em logradouros públicos podem ser representadas livremente, por meio de pinturas, desenhos, fotografias e procedimentos audiovisuais.”35 Pois bem. Para aferir o alcance dessa exceção aos direitos dos autores das obras que estão localizadas em espaços públicos, faz-se necessário a conceituação de elementos inseridos pelo legislador no referido dispositivo legal.
2.3.1 Definição de “logradouro público” Em primeiro lugar, vejamos como o verbete “logradouro público” vem definido no Dicionário Jurídico: “LOGRADOURO PÚBLICO – Na terminologia nativa, é mais propriamente tido como o local, ameno e agradável, como praças, jardins, hortas, passeios, mantidos pelos poderes públicos, para desfrute e gozo dos habitantes da localidade. Mas, a qualidade de público, atribuída ao logradouro, não se restringe aos jardins, praças, etc., conforme anotamos acima. Toda parte ou superfície da cidade destinada ao trânsito público, oficialmente reconhecida e designada por um nome de acordo com as posturas do Município, entende-se logradouro público, isto é, para uso e gozo de toda a população.”36
31 LANGLAIS, Pierre-Carl; ROSNAY, Mélanie Dulong de. op. cit., pp. 4-5.
34 LANGLAIS, Pierre-Carl; ROSNAY, Mélanie Dulong de. op. cit., pp. 6-7.
32 Ibidem, p. 5-6.
35 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9610.htm. Acesso em: 01/09/2017.
33 BERTONI, Aura; MONTAGNANI, Maria Lillà. Public architectural art and its spirits of instability. Queen Mary Journal of Intellectual Property, 5(3), 247-263. Apud LANGLAIS, Pierre-Carl; ROSNAY, Mélanie Dulong de. op. cit., pp. 4-5.
36 DE PLÁCIDO E SILVA, Dicionário jurídico. Vol. III. Apud PELLEGRINI, Luis Fernando Gama. Direito autoral do artista plástico. 2. Ed. São Paulo: Letras Jurídicas, 2011, pp. 204-205.
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Partindo desse conceito, verifica-se que todas as obras que estão situadas nas partes da cidade destinadas ao “uso e gozo de toda a população”, sejam elas esculturas, monumentos, painéis ou grafites (foco principal do presente trabalho), estarão abarcadas pela exceção presente no art. 48 da LDA. João Henrique Fragoso ressalta, no entanto, que não se pode confundir as obras que aparentemente estariam em logradouros públicos com obras localizadas em área particular de livre circulação pública. Como exemplo, citase obras particulares que pertencem a um banco, ou a grandes empresas que, embora estejam localizadas em nas proximidades de tais edificações ou em áreas de passagem, não se encontram excepcionadas pelo referido dispositivo legal37.
2.3.2 Definição de “livre representação” No tocante à expressão empregada pelo legislador “representação”, Costa Netto procurou diferenciar do termo “reprodução”, embora ambas sejam espécies do termo genérico “utilização”41. Com base na doutrina influenciada pelo sistema do Direito Positivo francês, o autor define “reprodução” pela comunicação de uma obra de forma indireta ao público, incorporada em suporte material. Enquanto que “representação” corresponderia a uma comunicação direta ao público, decorrente, todavia, de uma interpretação ou execução da obra42.
Já com relação às obras de propriedade do Estado, que constituem bens públicos, situadas no interior de edifícios igualmente pertencentes ao Estado, o mesmo autor entende que é possível aplicar, por analogia, o art. 48 da Lei 9.610/199838.
Ocorre que ambos os termos dão margem para interpretações diversas, especialmente considerando as mais variadas formas que a criação intelectual assume. Afirma Costa Netto que:
Importante salientar a diferença entre os conceitos de logradouro público e domínio público. Este último, como já mencionado anteriormente, trata-se limitação temporal aplicável a todas as obras intelectuais, de modo que transcorrido o prazo previsto na lei, de setenta anos, as obras caem em domínio público, ficando livre sua utilização por qualquer modalidade39.
“é necessário que se dê aos termos “reprodução” e “representação” uma elasticidade improvável para que possam conter não só as várias espécies de utilização das obras intelectuais que emergiram do início do século até agora, mas também o que ainda está para surgir com o incremento da evolução tecnológica e dos meios de comunicação.”43
Acerca da confusão criada entre ambos os termos, Luis Fernando Gama Pellegrini chama a atenção para o projeto de lei Barbosa-Chaves, cuja redação não fora aproveitada, embora fosse mais clara com relação ao atual art. 48: “Art. 53. Utilização de obras artísticas expostas. As obras artísticas que se encontrem de maneira permanente em logradouros públicos, nos museus públicos e estabelecimentos similares, podem ser reproduzidas e divulgadas por meio de desenho, da pintura, pela fotografia ou cinematografia, ou por aparelhos de radiodifusão sonoros ou visuais. § 1º A utilização dessas obras, mediante o emprego do mesmo processo usado para a leitura do original, ou a colaboração no comércio de suas reproduções, depende de autorização do titular de direito.”40 Diante do critério espacial adotado pelo art. 48, verifica-se que a expressão “logradouro público” não guarda, portanto, qualquer relação com o termo “domínio público”.
Ascensão ensina que o termo “reprodução” é empregado em um sentido específico no Direito de Autor, na medida em que a reprodução é corpórea, isto é, depende da produção de exemplares em um suporte material. Em outras palavras, diferentemente da representação, a reprodução “pressupõe uma fixação e implica a produção de cópia”44. Especificamente acerca da fotografia, que muitas vezes é tratada apenas como mera reprodução, importante ressaltar alguns pontos. Primeiramente, deve-se considerar a fotografia como obra artística ao lado de todas as outras, na medida em que transmite a visão do fotógrafo em um suporte material, seja ele digital ou impresso. Ocorre que, a fotografia pressupõe a existência de elementos a serem fotografados, elementos estes que podem compreender desde uma paisagem, até uma pessoa, titular dos direitos de sua imagem45, bem como uma obra artística, cujos direitos de reprodução e representação pertencem ao seu autor.
41 COSTA NETTO, José Carlos. op. cit., pp. 80/81. 42 Ibidem, pp. 80/81. 37 FRAGOSO, João Henrique da Rocha. op. cit., p. 330. 38 Ibidem, p. 330. 39 “Art. 41. Os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subsequente ao de seu falecimento, obedecida a ordem sucessória da lei civil.” (Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9610.htm. Acesso em: 01/09/2017). 40 PELLEGRINI, Luis Fernando Gama. Direito autoral do artista plástico. 2. Ed. São Paulo: Letras Jurídicas, 2011, pp. 204-205. 34
43 Ibidem, pp. 80/81. 44 ASCENSÃO, José de Oliveira. op. cit., pp. 173/175. 45 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;” (Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_ 03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 27/08/2017). 35
Tomando por base tais conceitos, podemos afirmar que a fotografia de uma obra localizada em logradouro público, ou seja, que apresenta elementos protegidos pelo direito autoral, poderia consistir tanto na livre representação daquela obra, conforme previsto no art. 48 da LDA, quanto na reprodução da mesma. A diferença estaria, portanto, na natureza da obra representada ou reproduzida e não na modalidade de utilização da obra. Por esse motivo, Costa Netto faz a seguinte crítica: “Por isso, em face das imprecisões dessas diferenciações, mais apropriado seria considerar os direitos patrimoniais de autor em seu significado genérico: a faculdade do autor de autorizar, mediante a remuneração e condições que este estabeleça, a utilização de sua obra através de sua comunicação (distribuição ou transmissão) ao público por qualquer meio ou processo, como reproduções, adaptações, representações, execuções por radiodifusão ou qualquer outra modalidade de comunicação.”46
não se podendo jamais cogitar a sua utilização-comercialização-reprodução, sem expresso consentimento do autor, seus sucessores ou mesmo titular do direito”49. Nessa lógica já afirmava Antonio Chaves que “a tendência mais moderna revela-se no sentido de não admitir qualquer aproveitamento de sua obra por outrem sem consentimento, independentemente mesmo do conceito de remuneração”50, posicionamento este que é acompanhado por grande parte da Doutrina atualmente e, inclusive, pelo Superior Tribunal de Justiça. O posicionamento jurisprudencial acerca da questão será pormenorizado adiante. Já adiantamos, entretanto, que à luz do direito fundamental de acesso à cultura, caberia ao Poder Judiciário uma análise pormenorizada das peculiaridades de cada caso, de modo que a democratização da arte não seja prejudicada pela generalização da proibição que, frisa-se, não tem expresso respaldo legal.
2.3.3 Definição de “obra permanente”
Com a devida vênia, entendemos necessária a diferenciação dos conceitos. Primeiramente, pois apesar da ausência de clareza do legislador, este fez questão de utilizar os termos “reprodução” e “representação” para situações diversas, posicionamento que deve ser respeitado pelo intérprete.
Em breves notas, é conveniente repisar que, apesar do caráter óbvio da expressão “obras situadas permanentemente em logradouros públicos”, a exceção prevista no art. 48 da Lei n. 9.610/1998 não abrangeria as obras que estão temporariamente localizadas em logradouros públicos.
Outrossim, demonstrar-se-á adiante a necessidade de alcançar um equilíbrio entre a proteção dos direitos de autor das obras situadas em logradouros públicos e a democratização da arte, e, para tanto, é indispensável a definição mais precisa dos conceitos empregados no dispositivo legal.
Em interpretação literal, significa dizer que o transporte de uma obra, por exemplo, não implica na aplicação desse limite, ainda que a obra esteja totalmente visível em qualquer parte da cidade destinada ao trânsito público.
A respeito das modalidades de representação previstas no art. 48 da LDA, Pellegrini afirma que o rol é taxativo, de sorte que as obras permanentemente situadas em logradouros públicos somente poderão ser representadas por meio de “pinturas, desenhos, fotografias e procedimentos audiovisuais”47. Já para Plinio Cabral, quando o legislador fala em “representação”, ele exemplifica as modalidades48. Ressaltamos, por fim, que acompanhando a maioria da Doutrina, Pellegrini afirma no caso específico das obras situadas em logradouros públicos, a representação é livre apenas para o “deleite do próprio executante,
A contrário senso, conforme já dito anteriormente, os direitos de autores das obras que estão em áreas privadas, ainda que visíveis ao público do ponto de vista do trânsito público, seja por uma rua, praça, parque, etc., também não sofrerão a restrição prevista no referido dispositivo legal. Ocorre que, diante da terminologia empregada pelo legislador, exposições artísticas temporárias situadas em logradouros públicos não estariam abarcadas pela exceção legal do art. 48 da LDA, afrontando, assim, os direitos fundamentais que ela busca alcançar. Como exemplo podemos citar a CowParade, mostra de arte que
46 COSTA NETTO, José Carlos. op. cit., p. 82.
49 Ibidem, p. 225.
47 PELLEGRINI, Luis Fernando Gama. op. cit., p. 228.
50 CHAVES, Antonio. Direito de autor do arquiteto, do engenheiro, do urbanista, do paisagista, do decorador. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 60, n. 433, p. 11–24, nov., 1971. Apud PELLEGRINI, Luis Fernando Gama. op. cit., p. 225.
48 CABRAL, Plinio. Direito autoral: dúvidas e controvérsias. São Paulo: Editora Harbra, 2000, pp. 97-98. 36
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acontece ao redor do mundo, por meio da qual esculturas de vacas pintadas por diversos artistas são colocadas em pontos estratégicos das cidades, com o intuito de democratizar a arte por meio da inclusão cultural51. Com um propósito diverso, porém adotando o mesmo estilo de exposição artística itinerante em logradouros públicos, está a Elephant Parade, cuja proposta é exibir esculturas de elefantes pintadas por diversos artistas nas maiores cidades do mundo, com o intuito de ajudar na preservação destes animais e incentivar a produção artística local por meio da arrecadação das obras leiloadas52. Podemos mencionar, igualmente, a exposição do Rubber Duck53, criada pelo artista Florentijn Hofman, que decidiu expor nas maiores áreas portuárias do mundo um pato amarelo, cujo design foi inicialmente criado e patenteado pelo americano Peter Ganine54; bem como a Mônica Parade, evento que, em comemoração aos cinquenta anos da personagem dos quadrinhos de Maurício de Souza, colocou cinquenta esculturas da Mônica nas ruas55. Ressalta-se, aqui, que apesar do caráter temporário das referidas obras, elas passam a integrar a paisagem e os logradouros públicos da mesma forma que obras arquitetônicas ou murais pintados por grafiteiros, por exemplo. No entanto, à luz da interpretação literal da letra da lei, estariam excluídas do conceito de “obra permanentemente situada em logradouro público”, do art. 48 da LDA, não podendo, portanto, serem livremente representadas. Mais uma vez, a restrição proposta pelo legislador infraconstitucional às obras permanentes, juntamente com sua falta de clareza, faz com que o dispositivo legal não atinja sua finalidade de promover a facilitação ao acesso à cultura, dando margem a uma interpretação extremamente restritiva que impediria a democratização da arte.
51 “A CowParade é o maior evento de arte a céu aberto do mundo, que tem como objetivo democratizar a arte através da inclusão cultural. Artistas selecionados usam como suporte uma escultura de vaca feita em fibra de vidro e em tamanho natural. Elas são expostas em vias públicas e são apreciadas por todos. Estima-se que mais de 500 milhões de pessoas já se depararam com pelo menos uma das obras das 84 edições registradas em 36 países.” (Disponível em: http://www.cowparade.com.br. Acesso em 17/09/2017). 52 “A Elephant Parade® é uma das maiores exposições de arte do mundo. São dezenas de esculturas de elefantes decoradas por artistas locais que transformam o ambiente urbano em uma galeria a céu aberto. As esculturas, no tamanho real de um bebê elefante, são exibidas em importantes cidades. Edições limitadas de miniaturas pintadas à mão e uma seleção de produtos são criados a partir das obras. Ao final de cada exposição, os elefantes são leiloados e parte da quantia arrecadada é destinada à filantropia local, a projetos de preservação dos elefantes e aos artistas participantes. Em São Paulo faremos uma das maiores edições da Elephant Parade® e a maior exposição ao ar livre já realizada na cidade. Serão, no mínimo, 85 esculturas pelas ruas paulistanas. Em uma cidade com 11 milhões de habitantes, esperamos impactar diretamente cerca de 6 milhões de pessoas. Nós acreditamos no poder de um movimento global para tornarmos o mundo mais feliz. Nossas exibições de arte estimulam sorrisos e sensibilizam a população para a necessidade de preservação dos elefantes” (Disponível em: http://elephantparade.com.br/a-elephant-parade/. Acesso em 17/09/2017). 53 Disponível em: http://www.florentijnhofman.nl/?id=119. Acesso em 17/09/2017. 54 Disponível em: http://pdfpiw.uspto.gov/.piw?PageNum=0&docid=D0153514&IDKey=87BED3 D7C514%0D%0A&HomeUrl=http%3A%2F%2Fpatft.uspto.gov%2Fnetacgi%2FnphParser%3FSect2%3DPTO1%2526Sect2%3DHITOFF%2526p%3D1%2526u%3D%2Fnetahtml%2FPTO%2Fsearchbool.html%2526r%3D1%2526f%3DG%2526l%3D50%2526d%3DPALL%2526S1%3DD153514.PN.%2526OS%3DPN%2FD153514%2526RS%3DPN%2FD153514. Acesso em 17/09/2017. 55 Disponível em: http://monicaparade.com.br/monica-parade/. Acesso em 17/09/2017. 38
2.4 Relação dos limites com os Princípios Constitucionais Consoante introduzido no capítulo anterior, a Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 1988 ampara direitos do autor no art. 5º, incisos XXVII e XXVIII. Não obstante, Fragoso sustenta que em contrapartida ao conjunto de direitos morais e patrimoniais dos autores, existe, no ordenamento jurídico brasileiro, um princípio de livre uso das criações intelectuais. Em suas palavras, tal princípio: “assenta-se na curiosidade humana e na necessidade de comunicação de ideias e sentimentos; é, antes de qualquer coisa, resultado da inteligência e encontra-se arraigado no inconsciente coletivo da humanidade”56. Verifica-se que, de fato, o legislador constituinte contrapôs os privilégios conferidos aos autores de obras intelectuais ao contemplar a tutela dos interesses da coletividade relacionados às mesmas obras. Vejamos: “Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. § 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. § 2º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais. § 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à: I - defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; II - produção, promoção e difusão de bens culturais; III - formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões; IV - democratização do acesso aos bens de cultura; V - valorização da diversidade étnica e regional;” “Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais
56 FRAGOSO, João Henrique da Rocha. op. cit., p. 305. 39
espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico; (...)”57 Aliás, a própria Declaração Universal dos Direitos do Homem consagra o interesse coletivo e o interesse individual em um mesmo artigo, in verbis: “Artigo 27 1. Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios. 2. Todo ser humano tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica literária ou artística da qual seja autor.”58 Ocorre que, de acordo com o princípio da unidade hierárquico-normativa, não há, nas constituições formais, hierarquia entre as normas, devendo todas elas serem tratadas com igual prioridade, cabendo ao legislador constituinte a competência para estabelecer exceções e balancear os preceitos constitucionais59. Pois bem. Fazendo referência a Robert Alexy, Carboni explica que a colisão de princípios constitucionais não implica na preterição de um ou de outro, mas sim na tentativa de aplicar e atingir a finalidade de ambos, por meio da razoabilidade ou proporcionalidade60. Ensina, no entanto, que diante de uma antinomia entre normas de direito público e de direito privado, o correto seria a preponderância de princípios sobre regras e, citando Juarez Freitas, explica: “os princípios devem ser entendidos como os mais relevantes pontos de convergência entre as esferas do Direito público e do Direito privado, compreendendo-se o sistema como totalidade vida, de sorte que a distinção, mais do que pelos interesses em jogo ou em razão dos sujeitos, há de ser efetuada pela dominância axiológica dos princípios.”61 Assim, demonstraremos adiante como Princípios Constitucionais que salvaguardam o direito e interesse público se manifestam nas exceções ao direito privado do autor.
2.4.1 Acesso à Cultura Dentre todos os princípios constitucionais conflitantes com a proteção ao direito de autor, o mais polêmico deles é o acesso à cultura. Isto porque a garantia insculpida no art. 215, §3º, IV da Constituição Federal62 sintetiza a preocupação do Estado com o interesse coletivo pelos bens de cultura. Sabe-se que com o advento da internet e demais evoluções tecnológicas, observa-se uma maior facilidade de acesso às obras intelectuais, a qual esbarra, todavia, nos privilégios conferidos pela Lei dos Direitos Autorais. Ocorre que tanto o interesse individual quanto o coletivo foram objeto de tutela na CF de 1988, o que acaba por gerar um conflito de normas constitucionais, cuja solução dependerá da ponderação entre tais direitos fundamentais. É nessa perspectiva que encontramos os limites aos direitos autorais. Em outras palavras, o interesse coletivo manifesta-se nas restrições impostas pelo legislador infraconstitucional. A própria Regra dos Três Passos, para Maristela Basso, “reflete a necessidade de se manter o equilíbrio entre os direitos dos autores e o interesse do grande público, isto é, interesses relacionados à educação, pesquisa e acesso à informação”63. Carboni traz em sua obra a divisão dos direitos culturais proposta por José Afonso da Silva: “(a) direito de criação intelectual, que compreende as criações científicas, artísticas e tecnológicas; (b) direito de acesso às fontes da cultura nacional; (c) direito de difusão da cultura; (d) liberdade de formas de expressão cultural; (e) liberdade de manifestações culturais; e (f) direito-dever estatal de formação do patrimônio cultural brasileiro e de proteção dos bens de cultura, que, assim, ficam sujeitos a um regime jurídico especial, como forma de propriedade de interesse público.”64
57 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 03/09/2017. 58 Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/pt/resources_10133.htm. Acesso em: 03/09/2017. 59 CARBONI, Guilherme. op. cit., p. 147.
62 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 03/09/2017.
60 CARBONI, Guilherme. op. cit., pp. 191-192.
63 BASSO, Maristela. op. cit., p. 500.
61 FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 4. Ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 242. Apud CARBONI, Guilherme. op. cit., pp. 191-192.
64 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 20. Ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 312. Apud CARBONI, Guilherme. op. cit., pp. 191-192.
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Verifica-se que os direitos culturais ultrapassam a proteção individual do autor, compreendendo a necessidade de propagação da cultura para a maior quantidade de pessoas possível, conferindo um caráter de propriedade de interesse público ao patrimônio cultural brasileiro. Ainda com relação ao direito à cultura, Gilberto Gil, em seu discurso no I Congresso Internacional da Propriedade Intelectual reconhece a necessidade de buscar um equilíbrio entre o acesso à cultura como direito básico de cidadania e a proteção dos artistas nacionais: “É evidente que os interesses econômicos neste ramo de direito são consideráveis. No entanto, é importante salientar que os direitos de propriedade intelectual sempre se pautaram pela busca de um equilíbrio entre os direitos do criador, que deve receber uma justa compensação pelo seu esforço criador, e o conjunto da sociedade, que deve ter garantido o seu direito de acesso à informação, à tecnologia e ao patrimônio cultural comum. Tenho afirmado que não cabe ao Estado fazer cultura, mas, sim, proporcionar condições necessárias para a criação e a produção de bens culturais, sejam eles artefatos ou mentefatos. O acesso à cultura é um direito básico de cidadania, assim como o direito à educação, à saúde, à vida num ambiente saudável. Neste sentido, reveste-se da maior importância - no âmbito dos direitos autorais - a busca de uma legislação equilibrada e que tenha como objeto principal a efetiva proteção dos criadores nacionais.”65 Luiz Gonzaga Silva Adolfo vai além, associando o direito de acesso à cultura com o princípio da dignidade humana, uma vez que consiste em “fator importante para a formação do ser humano” e “desenvolvimento social de um país”66. Sob o ponto de vista do Direito Constitucional, Sarlet preleciona: “(...) mesmo os direitos fundamentais a prestações são inequivocadamente autênticos direitos fundamentais, constituindo (justamente em razão disto) direito imediatamente aplicável, nos termos do disposto do art. 5º, § 1º, da nossa Constituição. A exemplo das demais normas constitucionais e independentemente de sua forma de positivação, os direitos fundamentais prestacionais, por menor que seja a sua densidade normativa ao nível da Constituicao, 65 Discurso do Ministro Gilberto Gil no I Congresso Internacional de Propriedade Intelectual (Disponível em: http://www.cultura.gov.br/ discursos//asset_publisher/DmSRak0YtQfY/content/ discurso-do-ministro-gilberto-gil-no-i-congresso-internacional-da-propriedade-intelectual-35459/10 883. Acesso em: 03/09/2017). 66 ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva; PIRES, Eduardo Pires. Direito de autor versus Direito de acesso à cultura: possibilidades e tendências para resolução dos conflitos entre direitos fundamentais por mio da Teoria Constitucional. Curitiba: Anais do X Congresso de Direito de Autor e Interesse Público, 2016, p. 363. 42
sempre estarão aptos a gerar um mínimo de efeitos jurídicos, sendo, na medida desta aptidão, diretamente aplicáveis, aplicando-se-lhes (com muito mais razão, a regra geral, já referida, no sentido de que inexiste normal constitucional destituída de eficácia e aplicabilidade.”67 Diante disso, concordamos com a afirmação de Luiz Gonzaga Silva Adolfo de que “seria possível defender judicialmente o direito ao acesso a obras intelectuais para fins culturais contra autores, produtores e editores, com embasamento direto no direito fundamental à cultura”68. Um dos casos mais polêmicos envolvendo o acesso à cultura de obras localizadas em logradouros públicos envolveu a estátua do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro. Em ação intentada pela Associação Brasileira dos Direitos dos Autores Visuais em face de H Stern Comércio e Indústria S/A, discutiu-se a suposta violação de direitos autorais dos herdeiros do escultor Paul Landowski, responsável pela criação da obra “Cristo Redentor”, por meio da reprodução da obra em joias produzidas pela Ré. Em detalhado estudo acerca dos direitos autorais concernentes à obra, Gabriel Leonardo e Aline Ferreira da Silva, concluem que, ao contrário do que afirmou a associação, os direitos patrimoniais sobre o Cristo Redentor pertencem à Arquidiocese do Rio de Janeiro, já que foi a responsável pela organização dessa obra coletiva, ressalvados os direitos morais de cada um dos artistas que participaram69. Independentemente da titularidade dos direitos, importante destacar a seguinte asserção do relator: “Não bastasse, ademais, a própria natureza da obra, financiada por doações, escolhida a partir de concurso, gerida por comissão e alocada em propriedade pública de grande destaque para a cidade do Rio de Janeiro, estava a pressupor as condições de cessão dos direitos patrimoniais. Mesmo porque, atualmente – e já há um bom tempo –, forçoso reconhecer-se que a obra “Cristo Redentor” tornouse elemento de identificação comum não apenas da capital fluminense, como do próprio país”70
67 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10 ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, pp. 280-281. Apud ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva; PIRES, Eduardo Pires. op. cit., p. 369. 68 ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva; PIRES, Eduardo Pires. loc. cit., p. 363. 69 LEONARDOS, Gabriel F. SILVA, Aline Ferreira de C. da. O Direito Autoral sobre o Cristo Redentor. Revista da ABPI nº 106, Mai/Jun 2010, p. 61. 70 “DIREITOS AUTORAIS. REPRODUÇÃO COMERCIAL DA OBRA ‘CRISTO REDENTOR’ POR JOALHERIA. PEDIDO PARA ABS15/03/2012; Data de Registro: 26/03/2012). 43
Acerca do tema, Carboni afirma que, à luz do art. 48 da LDA, a seu ver, os herdeiros do escultor Paul Landowski não fariam jus a royalties pela utilização da obra, justamente pelo fato de que o “Cristo Redentor” se tornou símbolo do Rio de Janeiro e do Brasil, passando a integrar o patrimônio cultural do país71. Vislumbra-se, portanto, uma tendência, tanto na jurisprudência, quanto na doutrina, em invocar o princípio do acesso à cultura em situações que o interesse coletivo, no caso, o patrimônio cultural brasileiro, deva se sobressair em detrimento do direito privado do autor. 2.4.2 Função Social A proteção conferida ao autor pelo art. 5º, XXVII da Constituição Federal72 concedeu o status de direito fundamental à exclusividade do autor em utilizar, publicar e reproduzir suas obras.
Ocorre que, antes mesmo de as obras caírem em domínio público, elas sofrem restrições intrínsecas, ou seja, aquelas estabelecidas em lei, bem como restrições extrínsecas, que correspondem à aplicação da função social75. Nesse aspecto, porém, o mesmo autor vislumbra a divisão entre função social da propriedade e função social do contrato. Alcides Tomasetti Junior acredita que a função social da propriedade estaria submetida a algumas metas, quais sejam: “(a) construir uma sociedade livre, justa e solidária; (b) garantir o desenvolvimento nacional; (c) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e (d) promover o bem de todos;”76. Acerca de sua aplicação ao Direito de Autor, Carboni entende que a propriedade engloba bens materiais e imateriais, uma vez que independentemente da natureza da coisa, ela se submete aos poderes do proprietário77. No mesmo sentido, José de Oliveira Ascensão afirma: “quando se fala em propriedade na Constituição abrangemse todos os direitos patrimoniais privados. (...) os direitos de exclusivo, que representam em si indesejáveis monopólios, não podem deixar de estar sujeitos a limites que os reconduzem ao interesse social”78
Não obstante, conforme mencionado anteriormente, referida garantia não goza de proteção absoluta. Luiz Gonzaga Silva Adolfo ensina que, por integrar o conjunto de institutos do direito privado, o Direito de Autor está vinculado à sua função social. Em suas palavras: “a fundamentalidade reconhecida ao Direito de Autor não representa que este direito seja absoluto, muito pelo contrário, pois assim como outros institutos de direito privado, como a propriedade, o contrato e a empresa, o Direito de Autor também deve cumprir uma função social. Isso significa dizer que a proteção do direito de autor deve estar em harmonia com os interesses sociais.”73 Tamanha é a relevância do tema, que Guilherme Carboni dedicou uma obra completa para discutir a função social do Direito de Autor. Para ele, as exceções ditadas na Lei de Direitos Autorais não são suficientes para atingir a real função social, que corresponde a: “promoção do desenvolvimento econômico, cultural e tecnológico, mediante a concessão de um direito exclusivo para a utilização e exploração de determinadas obras intelectuais por um certo prazo, findo o qual, a obra cai em domínio público e pode ser utilizada livremente por qualquer pessoa.”74
Já a função social do contrato, princípio que limita a autonomia da vontade e que encontra resguardo nos arts. 42179 e 2.03580 do Código Civil, tem aplicação diversa no campo dos Direitos Autorais. Nesse ramo do direito, a autonomia da vontade é limitada por uma regra de ordem pública prevista no art. 4º da LDA, o qual dispõe que “interpretamse restritivamente os negócios jurídicos sobre os direitos autorais”81. Sendo assim, em sentido contrário à função social da propriedade, a função social do contrato tem o condão de proteger os interesses individuais do autor, e não necessariamente os da coletividade.
75 CARBONI, Guilherme. op. cit., p. 97. 76 Ibidem, p. 175. 77 Ibidem, pp. 179-180. 78 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito intelectual, exclusivo e liberdade. Revista da ABPI – Associação Brasileira da Propriedade Intelectual, n. 59, jul.ago. 2002, p. 48. Apud CARBONI, Guilherme. op. cit., p. 175. 79 “Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.” (Disponível em: http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm. Acesso em: 03/09/2017).
71 CARBONI, Guilherme. op. cit., pp. 191-192. 72 “XXVII - aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar;” (Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 03/09/2017). 73 ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva; PIRES, Eduardo Pires. op. cit., p. 360. 74 CARBONI, Guilherme. op. cit., p. 97. 44
80 “Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução. Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.” (Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm. Acesso em: 03/09/2017). 81 “Art. 4º. Interpretam-se restritivamente os negócios jurídicos sobre os direitos autorais.” (Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9610.htm. Acesso em: 03/09/2017). 45
Patricia Aufderheide e Peter Jaszi observam que, no contexto do direito estrangeiro, o fair use vem a ser importante ferramenta para alcançar a função social do direito de autor ao construir uma política de direitos autorais mais adequada: “The assertion of fair use is part of a larger project of reclaiming the full meaning of copyright policy – not merely protection for owners, but the nurturing of creativity, learning, expression. Asserting and defending fair-use rights are a crucial part of constructing saner copyright policy.”82 Na tentativa de promover o desenvolvimento cultural da nação pela facilitação do acesso à cultura, o legislador determinou que as obras situadas em logradouros públicos poderiam ser livremente representadas, o que nos permite concluir pela presença implícita da função social no art. 48 da Lei n. 9.610/1998. 2.4.3 Liberdade de Expressão A Liberdade de Expressão, por sua vez, é direito fundamental que vem previsto no art. 5º, inciso IX da CF: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;”83. Essa garantia também foi assegurada pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu Artigo 19: “Artigo 19 Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.”84 Em artigo escrito para o UNESCO e-Copyright Bulletin, Anne Lepage defende que o primeiro tipo de limitação para os direitos exclusivos do autor é a liberdade de expressão, especialmente porque é por meio dessa restrição que se tornam possíveis os direitos de citação, paródia, caricatura, crítica, dentre outros: “The first type of limitation to the exclusive right granted to authors is explained by respect for fundamental freedoms, in particular freedom of expression, freedom of the press and the right to information. This type includes exceptions to copyright that are often known as right of quotation, parody, caricature,
press review, pastiche, etc., which allow a user to refer to and quote another person’s work without having to request prior consent. The fact that such use is not made part of the author’s exclusive rights is easily explained. If the author’s monopoly were broad enough to prevent such use, it would be impossible, for example, to review an exhibition, to quote a work and make a study or pastiche thereof, etc. No critical reviews would be possible and no news could be circulated about a work without the copyright owner’s prior authorization. This being the case, limitations to copyright are the guarantees of a democratic society. Such limitations are crucial and must be preserved, whether in the analogue world or in the digital world.”85 No ordenamento jurídico brasileiro, a liberdade de expressão encontra restrição no próprio texto constitucional86, no entanto enfatiza-se, no presente trabalho, que o direito do autor é, em si, uma restrição à liberdade de expressão. Sobre o tema, Carboni afirma que quanto maior a proteção do direito de autor, menor a possibilidade de expressar-se livremente sobre uma obra anterior, isto porque em sentido amplo, a liberdade de expressão compreende tanto a manifestação acerca do conteúdo quanto da forma de algo que já foi expressado87. Com todo o respeito para com o posicionamento do autor no sentido de que inexiste uma real colisão entre o direito de autor e a liberdade de expressão88, acreditamos que, em algumas situações fáticas, o conflito sai do âmbito filosófico para se tornar um problema concreto. No contexto da livre representação de obras situadas em logradouros públicos, analisaremos a seguir alguns julgados do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo sob o ponto de vista da finalidade comercial (aspecto que gera a maior parte das demandas no Poder Judiciário), destacando, porém, situações em que se identificou a supressão da liberdade de expressão perante a proteção autoral.
85 LEPAGE, Anne. op. cit., p. 4.
82 AUFDERHEIDE, Patricia; JASZI, Peter. Reclaiming Fair Use: How to Put Balance Back in Copyright. Chicago: The University of Chicago Press, 2011, p. 15.
86 “Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. (...) § 3º Compete à lei federal: I - regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada;” (Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ constituicao/constituicao.htm. Acesso em 03/09/2017).
83 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 03/09/2017.
87 CARBONI, Guilherme. op. cit, pp. 196-197.
84 Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/pt/resources_10133.htm. Acesso em 03/09/2017.
88 CARBONI, Guilherme. op. cit, p. 198.
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3. DIREITOS DO AUTOR VERSUS DEMOCRATIZAÇÃO DA ARTE 3.1 Efeitos práticos do limite previsto no artigo 48 da Lei n. 9.610/1998 na visão dos artistas Inicialmentee, insta relembrar que o art. 48 da Lei de Direitos Autorais permite a livre representação das obras situadas em logradouros públicos, por meio de “pinturas, desenhos, fotografias e procedimentos audiovisuais”89. Estamos diante de uma gama aparentemente pequena de possibilidades de representação dessas obras, porém que implicam nas mais diversas e polêmicas questões. Isto porque, para o artista que vê sua obra representada em fotografias de utilização comercial, pode haver certo desconforto, na medida em que a sua criação está gerando lucro para outrem. Ao mesmo tempo, existem artistas que prezam pela divulgação da sua arte independentemente do meio, podendo ser desde a publicação de matéria de cunho jornalístico em uma revista, até a utilização como cenário em um filme de abrangência nacional e como produtos de decoração ou uso comum da população. Da mesma forma, aqueles artistas que veem suas obras sendo modelos de releituras podem se sentir tanto lisonjeados como ofendidos com eventual distorção que implique em ofensa à sua reputação e imagem. Por outro lado, outra questão controvertida é a dos fotógrafos, já mencionada anteriormente. Estes são considerados artistas e suas fotografias recebem a mesma proteção de direito autora, conforme preleciona o art. 7º, VII da Lei n. 9.610/199890.
Ascensão entende, porém, que apenas serão objeto de proteção dos Direitos de Autor as fotografias artísticas, não a simples “tomada automática de imagens”91. Ocorre que, segundo ele, “o processo da fotografia permite a apresentação de elementos preexistentes”92, o que implica em reprodução, na hipótese de tais elementos serem obras artísticas protegidas. Por conseguinte, para analisar a visão do artista a respeito do tema é preciso, antes de mais nada, identificar a posição que ele ocupa na relação indiretamente estabelecida pelo art. 48 da LDA. À título ilustrativo citamos o caso analisado anteriormente, Apelação n. 1001669-19.2015.8.26.001193. Em Réplica, a autora (e artista) Marina Josefovic se opõe à aplicação do limite previsto no referido dispositivo legal, tendo em vista que se sentiu lesada pelo “simples uso da obra artística da Autora pela Ré sem a devida e prévia autorização expressa da primeira e sem contrapartida econômica”94, o que importaria em dano material. Nesse mesmo sentido foi a manifestação do artista Frederico George Barros Day em Réplica nos autos do processo nº 1005221-33.2013.8.26.002095, o qual invocou a decisão monocrática proferida nos autos do Agravo de Instrumento nº 1.286.884/TO96, pelo Ministro Sidnei Beneti, afirmando que “A representação de obra inserida num logradouro público é permitida, desde que não seja utilizada para obtenção de lucro”. Em entrevista concedida exclusivamente para o presente trabalho, Gustavo e Otávio Pandolfo, artistas contemporâneos internacionalmente conhecidos como OSGEMEOS, afirmam que veem seus trabalhos sendo constantemente fotografados nas ruas por onde pintam, tanto pela mera admiração, quanto com o intuito de reprodução97.
91 ASCENSÃO, José de Oliveira. op. cit, p 61. 92 Ibidem, p 427. 93 TJSP. Apelação n. 0139036-39.2009.8.26.0100; Relator (a): Carlos Alberto Garbi; Órgão Julgador: 10ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 16ª Vara Cível; Data do Julgamento: 25/02/2014; Data de Registro: 15/05/2014. 94 Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/pastadigital/abrirPastaProcessoDigital.do?origem DocumentoP&nuProcesso=100166919.2015.8.26.0011&cdProcesso=RI002Y48P0000&cdForo=990&tpOrigem=2&flOrigem=S&nmAlias=SG5TJ&cdServico=190201&ticket=xv4ji7TxiJGs1yTIlYCUzTbDmGLf%2FMwTyeWqRiDkbRiCy4IUZbNOKN4F0xYudKlvbSBwoCu4JDoTtG6LDTrqspElur%2Bk8m8uHYKEq9vnBjyvkQg%2Fd2Uzp%2BGny%2BKR%2BYOwTWXptQignWFJch18b0slhcYlsUTTARVCy%2FJtZ%2FttxF2P3BWOBGycQCsfrPORLVAxeddbH7XFFb3I0OjzuZiuEsS9q6Fh8I5mxzZIII77milVch5bXT76EStmhsyduzQhL9o5kr%2F%2FrokXHOa8%2FHj3bw%3D%3D. Acesso em: 23/09/2017. 95 TJSP. Apelação n. 1005221-33.2013.8.26.0020; Relator (a): Salles Rossi; Órgão Julgador: 8ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional XII - Nossa Senhora do Ó - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 31/05/2017; Data de Registro: 05/06/2017. 96 STJ. Ag 1.286.884/TO, Rel. Ministro Sidnei Beneti, 3ª Turma, j. 30/03/10. DJe 09/04/10.
89 “Art. 48. As obras situadas permanentemente em logradouros públicos podem ser representadas livremente, por meio de pinturas, desenhos, fotografias e procedimentos audiovisuais.” (Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9610.htm. Acesso em: 23/09/2017). 90 “Art. 7º. São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como: (...) VII - as obras fotográficas e as produzidas por qualquer processo análogo ao da fotografia;” (Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9610.htm. Acesso em: 23/09/2017). 48
97 “Mariana: Você já viu algum dos seus trabalhos que estavam na rua sendo fotografado ou, de alguma forma, representado por outro meio (como por exemplo filmes, pinturas, esculturas, releituras)? Poderia exemplificar? OSGEMEOS: Sim, nosso trabalho é fotografado por pessoas que passam na rua sempre, isso acontece principalmente enquanto estamos pintando na rua. Já vimos obras também virarem produtos e tivemos que brigar judicialmente para resolver a questão. Como as obras estão na rua, todo mundo acha que tem o direito de fazer o que bem entende com elas e não é bem assim”. (Entrevista concedida pelos artistas Gustavo e Otávio Pandolfo, OSGEMEOS, via e-mail, cuja íntegra se encontra no Anexo do presente trabalho). 49
Informa, curiosamente, que nos casos em que viram suas obras virarem produtos, isto é, objeto de utilização com fito comercial, as pessoas não costumam pedir autorização, enquanto que nos casos em que a utilização servia ao propósito de promoção da cultura, a preocupação com a autorização do artista é maior98.
Conhecido por estampar espaços públicos com os seus retratos, desde a Times Square em Nova Iorque (“Inside Out Project”101) até o Museu do Louvre em Paris102, JR afirma que não se envolve em projetos comerciais com grandes marcas, no entanto ele vende suas fotografias em galerias como forma de financiar os projetos gratuitos que faz em comunidades ao redor do mundo103.
Quando questionados acerca da implicação da exceção prevista no art. 48 da Lei n. 9.610/1998, sentem-se divididos:
JR relata que se sente livre para fotografar o que lhe inspira e que apesar de nem sempre pedir autorização aos autores de obras retratadas, não as utiliza como forma de promoção. Em suas palavras:
“5- Vocês sabem da possibilidade de representar livremente as obras que estão na rua por meio de pinturas, desenhos, fotografias e procedimentos audiovisuais? Sim, isso nós sabemos. 6- Se sim, como vocês acreditam que essa possibilidade implica na sua arte? Mais especificamente, nessas situações vocês se sentem lisonjeados ou prejudicados? Acreditamos que é metade, metade. É bom o fato de poder divulgar a nossa arte em meios que seu trabalho nunca chegou, por exemplo em filmes que nem falam de Graffiti. Só que acreditamos que tem que ter cuidado ao associar o trabalho com uma plataforma nova de divulgação pra não prejudicar a essência da arte. De qualquer forma, acreditamos na mensagem e na força que nosso trabalho passa, de modo que essas reproduções não influenciam na conteúdo do trabalho, a nossa mensagem sempre estará lá, independentemente do suporte.”99 Sob outra perspectiva, o fotógrafo e artista plástico JR, também em entrevista concedida especificamente para o presente trabalho, cuja íntegra se encontra no Anexo, declara que se vê constantemente fotografando obras de arte que se encontram em espaços públicos100.
98 “Mariana: Caso a utilização da sua obra tenha sido comercial, a pessoa que reproduziu sua obra pediu autorização? Vocês chegaram a conceder a autorização? Alguma vez já tiveram problemas com essa questão? OSGEMEOS: As pessoas nunca pediram autorização. Não autorizamos o uso comercial das nossas obras, a não ser para parcerias, que são muito bem selecionadas, principalmente considerando a empresa e a marca que estarão associadas. Já tivemos casos também que a pessoa utilizou a mesma ideia, sem reproduzir exatamente a obra. O desenho não era igual, mas o conceito era o mesmo e acabamos resolvendo judicialmente a questão também. Mariana: Caso a utilização da sua obra tenha sido em alguma espécie de evento artístico ou promoção da cultura, a pessoa que reproduziu sua obra pediu autorização? Vocês chegaram a conceder a autorização? OSGEMEOS: Nesses casos as pessoas costumam pedir autorização e nós costumamos autorizar. (Entrevista concedida pelos artistas Gustavo e Otávio Pandolfo, OSGEMEOS, via e-mail, cuja íntegra se encontra no Anexo do presente trabalho). 99 Entrevista concedida pelos artistas Gustavo e Otávio Pandolfo, OSGEMEOS, via e-mail, cuja íntegra se encontra no Anexo do presente trabalho. 100 “Mariana: The first of all is: have you ever photographed an artwork located in a public space? (…) JR: Yes, I always photograph outdoor walls and that is the way I place all of my works, but also, I constantly photograph walls in public places. As I am walking now in the streets, I always look around me and when I see something that catch my eyes and, for example, if you look at my Instagram, the last one I put was OSGEMEOS, because they just did something in New York City and I loved it and I photographed it and I posted it and shared with more people.” (Entrevista concedida pelo artista e fotógrafo JR ao telefone, cuja íntegra se encontra no Anexo do presente trabalho). 50
“You know, I always felt free to taking photos of whatever I want I’m inspired, so never actually, because I don’t use my artwork as a promotion of the painting, I never had the problem of feeling that I couldn’t take any photos. I understand the freedom that I could photograph whatever I want. Now in Paris, for example, if you photograph the Eiffel Tower, you are not allowed to print it on a magazine or in the movie without paying them. So, it’s actually interesting that for a lot of filmmakers, it changes what they are filming because they have to wait for the permit or to have money to add the image of the Eiffel Tower in the film. So often they don’t film those monuments anymore, because they don’t want to pay for it. In my case, I try to always photograph and share the work freely, and now with social medias anyway, you know, you share the photo with a lot of people. And that’s why I try to keep my out work and my photography disconnected from any brand or any commercial purposes, so I can have the full freedom of selling whatever I want.”104 Paralelamente, a questão da reprodução da Torre Eiffel em Paris em filmes, levantada por JR, foi igualmente explorada e criticada por Lawrence Lessig em sua obra The Future of Ideas: “In the process of making a film, a director must “clear rights”. A film based on a copyrighted novel must get the permission of the copyright holder. (…) 101 “From April 22 to May 10, 2013, for INSIDE OUT NEW YORK CITY, JR and his team invite New Yorkers and visitors to take self-portraits in a photo booth truck stationed in Times Square, the site of the world’s first ever photo booth almost 100 years ago. The posters are pasted on Duffy Square in Times Square, or in the home community of the portrait’s subject.” (Disponível em: http://www.jr-art.net/projects/ inside-out-nyc. Acesso em: 30/09/2017) 102 “Pirâmide do Louvre ‘desaparece’ com instalação de artista plástico. Francês JR envelopa a estrutura de vidro do museu em Paris com megafoto” (Disponível em: https://oglobo.globo.com/boa-viagem/piramide-do-louvre-desaparece-com-instalacao-de-artista-plastico-19371451#ixzz4uDuLy4RW. Acesso em: 30/09/2017) 103 “Mariana: Have you ever used any of these photos for a commercial purpose, to sell your photo or just a commercial project? JR: So, that is a good question. I never do any commercial project, for example, with brands, but I do sell my out works in galleries and that’s how I actually finance the projects that I do in communities around the world, that I do for free to the people. So, my model is always a mixture of works that I sell in galleries, that people can have in the house and of works that are in the streets for free, and for anybody, and also anybody can take photos of. So, my work is very free to the people.” (Entrevista concedida pelo artista e fotógrafo JR ao telefone, cuja íntegra se encontra no Anexo do presente trabalho). 104 Entrevista concedida pelo artista e fotógrafo JR ao telefone, cuja íntegra se encontra no Anexo do presente trabalho. 51
The lawyers thus decide what’s allowed in the film. They decide what can be in the story.”105 Curioso notar, por fim, que JR muitas vezes se encontra na situação de ver suas próprias obras sendo reproduzidas, porém não se sente prejudicado por esse fato. Pelo contrário, entende ser importante compartilhar a arte com o maior número de pessoas possíveis, o que, inclusive faz por meio de seu perfil do Instagram106, o qual conta atualmente com mais de um milhão de seguidores. Já a fotógrafa Martha Cooper, que atende pelo pseudônimo “Kodakgirl”, em entrevista por e-mail, quando questionada acerca da autorização do autor da obra que está fotografando, afirma que nem sempre retrata apenas uma obra e que, a seu ver, quando articula várias obras de arte e as fotografa, acaba por criar sua própria arte. Interessante ressaltar o modo como Martha Cooper trabalha, ao ganhar permissão do artista para fotografar sua obra, ela lhe concede, informalmente, o direito de utilizar suas fotos para qualquer propósito: “It is rare for me to take a photo that is only of someone’s artwork. I always try to include the context of the art. As I understand the law, including more than the artwork turns the photo my art. I do not ask for authorization from the artist but I do try to credit the artist if I know who it is. In the case of graffiti I don’t always know who created the art. Mostly I photograph art in process. The artists grant me permission to photograph and I always try to give them photos that they can use for their own purposes. There are also many cases where artists reproduce my photos in their art such as the photo of Dondi on the wall Os Gemeos just painted in NYC. I am usually happy for them to do that.”107 Martha entende ser difícil controlar as imagens de obras situadas em logradouros públicos, contudo, acredita que não deveria ser permitido lucrar com a reprodução comercial de tais imagens108. Feitas as considerações, é preciso reconhecer que a linha entre o que se entende por finalidade comercial e meios de democratização da arte e disseminação da cultura pode, muitas vezes, ser bastante tênue.
105 LESSIG, Lawrence. The future of ideas: The Fate of The Commons in a Connecter World. New York: Random House, 2001, pp. 3-4.
Isto porque, a população local tem acesso amplo, irrestrito e, sobretudo, gratuito, às obras de arte situadas nos logradouros públicos de sua cidade. Porém, ao serem representadas por meio de fotografias ou procedimentos audiovisuais e, posteriormente, divulgadas em exposições de arte e filmes, cujo ingresso é pago, o acesso à tais obras deixa de ser igualitário. Ademais, há de se considerar que ao cobrar a entrada às exposições e aos filmes produzidos com imagens das obras situadas em logradouros públicos, haveria um lucro indireto, o que confronta o atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça acerca do tema. Permanece, portanto, a seguinte questão: até que ponto a produção de novas obras de arte por meio da livre representação de obras situadas em logradouros públicos pode, de fato, promover a democratização da arte? E mais, até que ponto os artistas são realmente beneficiados com a exceção prevista no art. 48 da Lei n. 9.610/1998? Adiante, trataremos do aspecto da inovação tecnológica e do monopólio das grandes indústrias de tecnologia e entretenimento, enfraquecendo cada vez mais os artistas, o que vai de encontro à questão suscitada.
3.2 Monopólio dos Direitos Autorais pelas grandes indústrias de tecnologia e entretenimento De acordo com Lawrence Lessig, o advento da Internet e a inovação tecnológica trouxeram diversas mudanças para o sistema de copyrights, isto porque as consequências diretas desse processo foram prejudiciais à indústria de conteúdo já existente 109. Jonathan Taplin, produtor musical Americano, em seu livro “Move Fast and Break Things: How Facebook, Google, and Amazon Have Cornered Culture and What It Means For All Of Us” acredita que os prejuízos que vem sendo enfrentados pelos artistas na era digital se devem ao monopólio que as grandes empresas do ramo tecnológico criaram: “The deeper you delve into the reasons artists are struggling in the digital age, the more you see that Internet monopolies are at the heart of the problem and that it is no longer a problem just for artists.” 110 Acerca da indústria do entretenimento, Luiz Gonzaga Silva Adolfo traz a crítica feita por José de Oliveira Ascensão no sentido de que o
106 Disponível em: https://www.instagram.com/jr/. Acesso em 30/09/2017. 107 Entrevista concedida pela fotógrafa Martha Cooper via e-mail, cuja íntegra se encontra no Anexo do presente trabalho. 108 “It is very hard to control images of artworks in public spaces but it should be against the law to profit from the commercial reproduction of these images without permission for example if someone is selling a poster of a detail of an artwork.” (Entrevista concedida pela fotógrafa Martha Cooper via e-mail, cuja íntegra se encontra no Anexo do presente trabalho). 52
109 LESSIG, Lawrence. op. cit., pp. 125-127. 110 TAPLIN, Jonathan. Move Fast and Break Things: How Facebook, Google, and Amazon Have Cornered Culture and What It Means For All Of Us. Disponível em: http://extracts.panmacmillan.com/extract?isbn=9781509847716. Acesso em: 01/10/2017. 53
criador intelectual deve ser valorizado, o verdadeiro foco da legislação de direitos autorais. Em suas palavras, é o artista “a pessoa de quem se fala, por vezes a pessoa por quem se fala, mas cada vez menos a pessoa que fala”111. Por esse motivo, Ascensão entende que o direito de autor deve ser interpretado como um Direito de Cultura, na medida em que são os artistas e demais criadores que, de fato, contribuem para o desenvolvimento cultural de um povo. A seu ver, diante de todas as mudanças que se enfrenta atualmente, o Direito Autoral somente subsistirá se cumprir essa finalidade cultural, já que, em suas palavras: “doutra maneira acabará por ser submergido pela teia de interesses empresariais que cada vez mais o sufocam e desfiguram. E poderá porventura amanhã ser qualificado com mais verdade como num direito dos privilégios das empresas de copyright”.112 Paralelamente, o mesmo ocorre com todos os direitos advindos da Propriedade Intelectual, nas palavras de Eduardo Ariente: “Quando tais direitos exclusivos são utilizados para proteção de posições de mercado, impedimento de atuação de possíveis concorrentes, aumento arbitrário de lucros, ou uso egoístico dos monopólios, passam a desvirtuar as diretrizes constitucionais da PI e representar abuso de direito.”113 A seu ver, a democratização do conhecimento ocorre quando os direitos exclusivos são aproximados de sua função social e do princípio da dignidade da pessoa humana114, interpretação que pode ser igualmente empregada quando se trata da democratização da arte perante a proteção dos direitos de autor. Em consonância com o entendimento expresso pelo autor, entendemos que as limitações impostas às exclusividades pertencentes aos autores representam uma forma de evitar, ou até mesmo reprimir os monopólios configurados pelas grandes indústrias do entretenimento, especialmente no que se refere à possibilidade de representação de obras em logradouro público.
3.3 Contribuição do artigo 48 da Lei n. 9.610/1998 para a Liberdade de Expressão e Incentivo à Criatividade Conforme mencionado no capítulo anterior, a Liberdade de Expressão é direito fundamental que vem assegurado no art. 5º, inciso IX da Constituição Federal115, bem como no Artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu Artigo 19116. Luiz Gonzaga Silva Adolfo afirma que a Liberdade de Expressão compreende também a Liberdade de Pensamento e, citando Roberto Cantoral García destaca que: “en este orden de ideas, es donde la libertad de expresión y la liberdad del pensamiento se convierten en requisitos sin los cuales no es posible pensar en la creación intelectual. El hombre para crear, necesita de un régimen que le permita la creatividad y por tanto que le garantice la libertad de pensamiento y de expresión”117 Sua relação com o Direito Autoral é claramente direta, já que a expressão muitas vezes se materializa em criações do intelecto, as quais são objeto de proteção da Lei de Direitos Autorais. E não é só. Uma vez que as obras de arte se tornam acessíveis ao público, em especial aquelas situadas em logradouros públicos, elas passam a integrar a paisagem, esta que poderá ser representada pelas mais diversas formas artísticas. Em referência a Henri-Jacques Lucas e André Lucas, Adolfo salienta que “a liberdade de expressão permite empréstimos, à título de citações ou paródias, por exemplo, que deveriam normalmente ficar na órbita do monopólio”118. O mesmo acontece com as obras que embelezam as cidades. Em termos práticos, essas obras poderiam, por exemplo, aparecer em produções audiovisuais para um filme, cujos direitos autorais são de titularidade dos respectivos autores e diretores, como preleciona o art. 16 da LDA119; ou ainda em exposições de fotógrafos.
115 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 03/09/2017. 111 ASCENSÃO, José de Oliveira. O direito de autor como direito da cultura. In OMPI. Num novo mundo de Direito de Autor? Congresso Ibero-Americano de Direito de Autor e Direitos Conexos, 2. Anais. Tomo II. Lisboa: OMPI/Cosmos, 1994, p. 1.053. Apud: ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva. Obras Privadas, Benefícios Coletivos: A Dimensão Pública do Direito Autoral na Sociedade da Informação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008, p 293.
116 Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/pt/resources_10133.htm. Acesso em 03/09/2017.
112 ASCENSÃO, José de Oliveira. O direito de autor como direito da cultura. In OMPI. Num novo mundo de Direito de Autor? Congresso Ibero-Americano de Direito de Autor e Direitos Conexos, 2. Anais. Tomo II. Lisboa: OMPI/Cosmos, 1994, p. 1.053. Apud: ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva. op. cit., p 293.
118 LUCAS, André; LUCAS, Henri-Jacques. Traité de la Propriété Littéraire et Artistique. 2. ed. Paris: Litec, 2001, p. 255. Apud ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva. op. cit., p 270.
113 ARIENTE, Eduardo Altomare. Função Social da Propriedade Intelectual. São Paulo: Editora Lumen Juris, 2015, p. 235. 114 Ibidem, p 241. 54
117 GARCÍA, Roberto Cantoral. El derecho de autor como derecho de la cultura. In: OMPI. Num novo mundo de Direito de Autor? Congresso Ibero-Americano de Direito de Autor e Direitos Conexos, 2. Anais. Lisboa: OMPI/Cosmos, 1994, t. II, p. 1.039. Apud ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva. op. cit., p 264.
119 “Art. 16. São co-autores da obra audiovisual o autor do assunto ou argumento literário, musical ou lítero-musical e o diretor. Parágrafo único. Consideram-se co-autores de desenhos animados os que criam os desenhos utilizados na obra audiovisual.” (Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9610.htm. Acesso em 28/09/2017). 55
O autor conclui levantando a seguinte indagação: “A principal questão que se põe é se o Direito Autoral é um motor ou um freio à liberdade de expressão, já que especialmente nos Estados Unidos se construiu a tese de que era seu motor, enquanto na prática se vê o contrário. Haveria, no dizer de Ascensão, uma conotação positiva no sentido de que o Direito Autoral emana da liberdade de expressão, ou o contrário, e outra, negativa, no sentido de que o Direito Autoral afeta a liberdade de expressão.”120 Partindo desse questionamento e considerando a visão dos artistas exposta nos tópicos anteriores, entendemos que a exceção que vem prevista no art. 48 da Lei n. 9.610/1998 poderia representar um motor à liberdade de expressão, na medida em que proporciona a possibilidade de se criarem novas obras de arte utilizando as criações já existentes sem que isso implique em ofensa aos direitos de autor. Ademais, ao admitir que a representação de obras situadas em logradouros públicos não seja considerada um ato ilícito, tanto no âmbito penal, quanto no âmbito civil, o legislador acaba por incentivar a criatividade daqueles que, por meio da fotografia, pintura, desenho ou procedimento audiovisual, compartilhem as obras de arte já existentes promovendo, de alguma forma, o acesso à cultura. Contudo, é preciso reconhecer que o Poder Judiciário vem impondo certo limite à exceção criada pelo legislador, ao não aplicar o dispositivo legal nos casos que se apura alguma finalidade comercial naquela representação. Com todo o respeito para com o entendimento dos Tribunais, é necessário fazer uma análise caso a caso nessas situações, de modo a averiguar em que medida a reprodução realizada contribui para o interesse público, sobretudo para o acesso à cultura. E mais, é preciso compreender o fato de que a inovação tecnológica proporciona transformações que constantemente quebram os paradigmas que a sociedade conhece, não podendo ela se afastar dessa realidade. O mesmo ocorre com o ordenamento jurídico, o qual deve sempre se adaptar ao momento que se vivencia. Por essa razão, faz-se conveniente trazer a reflexão de Lawrence Lessig no sentido de que as mudanças que estamos assistindo atualmente afetam diretamente a criatividade humana, ultrapassando os limites das atividades “meramente” comerciais: “And how we decide these questions will determine much about the kind of society we will become. It will determine what the “free” means in our self-congratulatory claim that we are now, and will always be, a “free society”.”121
3.4 Livre representação das obras em logradouros públicos como meio de Disseminação da Cultura e Democratização da Arte Assim como o direito à saúde, ao meio ambiente e à educação, o direito à cultura, não está expresso no rol de direitos fundamentais do art. 5º da Constituição Federal, porém está presente nos artigos 23122, 215123, 216124 e 227125 e é definido por Cunha Filho como: “aqueles afetos às artes, à memória coletiva e ao repasse de saberes, que asseguram a seus titulares o conhecimento e o uso do passado, interferência ativa do presente e possibilidade de previsão e decisão de opções referentes ao futuro, visando sempre à dignidade da pessoa humana”126 Marilena Chauí, em sua obra “Cidadania Cultural: O direito à cultura”, ensina que o sentido de cultura que conhecemos atualmente tomou forma no século XVIII, passando a significar: “os resultados daquela formação ou educação dos seres humanos, de seu trabalho e de sua sociabilidade, resultados expressos em obras, feitos, ações e instituições: as artes, as ciências, a filosofia, os ofícios, a religião e o Estado. (...) cultura torna-se sinônimo de civilização, como expressão dos costumes e das instituições enquanto efeitos de formação da educação dos indivíduos, do trabalho e da sociabilidade”127. 122 “Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: V - proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação, à ciência, à tecnologia, à pesquisa e à inovação.” (Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ constituicao. htm. Acesso em: 03/09/2017). 123 “Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. §1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. §2º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais. §3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à: I - defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; II - produção, promoção e difusão de bens culturais; III - formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões; IV - democratização do acesso aos bens de cultura; V - valorização da diversidade étnica e regional;” (Disponível em: http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/constituicao/constituicao. htm. Acesso em: 03/09/2017). 124 “Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; (...)” (Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 03/09/2017). 125 “Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” (Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao /constituicao.htm. Acesso em: 03/09/2017).
120 ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva. op. cit., p 270.
126 CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Direitos Culturais como Direitos Fundamentais no Ordenamento Jurídico Brasileiro. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 5. Apud ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva; PIRES, Eduardo Pires. Direito de autor versus Direito de acesso à cultura: possibilidades e tendências para resolução dos conflitos entre direitos fundamentais por mio da Teoria Constitucional. Curitiba: Anais do X Congresso de Direito de Autor e Interesse Público, 2016, p. 361.
121 LESSIG, Lawrence. op. cit., p. 11.
127 CHAUÍ, Marilena. Cidadania Cultura: O direito à cultura. 1ª ed. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006, p. 106.
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Luiz Gonzaga Silva Adolfo entende a cultura como elemento indissociável do convívio social, razão pela qual o acesso à cultura adquiriu o status de direito constitucional, cujo exercício é tão importante quanto dos demais direitos fundamentais128. Para o autor, o direito à cultura apresenta, ainda, relação direta com o Princípio da Dignidade Humana129. Para Carboni, o desafio consiste em “equacionar o Direito Autoral com o direito social de acesso à cultura, possibilitando que a esfera pública volte a ser um espaço destinado à livre formação da opinião pública”130. Conforme elucidado anteriormente, Ascensão, por sua vez, faz uma interpretação do Direito de Autor como Direito da Cultura, na medida em que atende, de certa forma, uma finalidade cultural131. Sob essa perspectiva, os direitos exclusivos dos autores não impediriam o desenvolvimento cultural. Na prática, porém, muitas vezes o acesso à cultura representa uma limitação aos direitos de autor, uma vez que faz prevalecer o interesse público sobre o privado132. Acerca de sua experiência na Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, Marilena Chauí afirma que a divisão social existente no referido município é extrema, o que impede a criação do chamado campo democrático. A ausência desse “campo democrático” se manifesta em problemas de difícil solução, tendo em vista que a “tendência particularista das carências e dos privilégios coloca o poder público sempre aquém da possibilidade de atender plenamente as primeiras e de bloquear inteiramente os segundos”133. Outro ponto levantado pela filósofa é a questão da burocracia que, a seu ver, é contrária às práticas democráticas: “Não bastasse a rigidez autoritária da burocracia, a rotina e a repetição administrativa, no caso da cultura, são visceralmente contrárias à atividade cultura, à sua lógica, ao seu tempo, à sua oportunidade e ao seu sentido. (...) Em uma única proposta política, dois antagonismos com a burocracia: democracia e cultura.”134
Feitas tais considerações, acompanhamos o entendimento de Luiz Adolfo no sentido de que existe, de fato, uma colidência entre os interesses individuais e coletivos, estando os direitos de autor de um lado, e o acesso à cultura de outro. Em suas palavras: “Nessa perspectiva, em que observa-se um conflito entre interesses individuais e interesses coletivos, deve haver uma ponderação entre os direitos em jogo, afim de se estabelecer uma situação de equilíbrio e harmonização entre os valores colidentes, ou seja, busca-se a proteção do direito do autor, contudo de tal forma que não obste o acesso a informação e ao conheci- mento, pressupostos para a concretização do direito fundamental à cultura.”135 Ainda que a redação do art. 48 da Lei n. 9.610/1998 não proporcione uma interpretação desprovida de dúvidas, a limitação que está ali imposta confere, em certa medida, uma ponderação entre os direitos do autor e o acesso à cultura, ao garantir a possibilidade de representar livremente obras que já estão ao alcance da população. A democratização da arte, por sua vez, está, não somente em proporcionar o compartilhamento das obras situadas em logradouros públicos com as pessoas que não têm acesso direto a elas, mas também em conferir os mesmos direitos que possuem os artistas criadores dessas obras, aos autores de obras nelas inspiradas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva. Obras Privadas, Benefícios Coletivos: A Dimensão Pública do Direito Autoral na Sociedade da Informação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008.
128 ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva. op. cit., pp. 284/286.
__________; PIRES, Eduardo. Direito de Autor versus Direito de Acesso à Cultura: Possibilidades e Tendências para a Resolução dos Conflitos entre Direitos Fundamentais por meio da Teoria Constitucional. In: WACHOWICZ, Marcos (org.) Estudos de Direito de Autor e Interesse Público. Anais do X Congresso de Direito de Autor e Interesse Público. Curitiba: UFPR, 2016.
129 “O direito fundamental a cultura, apresenta ainda, íntima relação com o princípio da dignidade humana, princípio matriz do sistema constitucional pátrio. Nesse sentido, o próprio Governo Federal Brasileiro, através do Programa Mais Cultura, lançado em outubro de 2007, reconheceu expressamente a cultura como necessidade básica do cidadão, tanto quanto a alimentação, a saúde, a moradia, a educação e o voto.” (ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva; PIRES, Eduardo. op. cit., p. 362).
ARIENTE, Eduardo Altomare. Função Social da Propriedade Intelectual. São Paulo: Editora Lumen Juris, 2015.
130 CARBONI, Guilherme. Conflitos entre Direito de Autor e liberdade de expressão, direito de livre acesso à informação e à cultura e direito ao desenvolvimento tecnológico. In: CARVALHO, Patrícia Luciane (Org.). Propriedade Intelectual: Estudos em homenagem à Professora Maristela Basso. Curitiba: Juruá, 2006, p. 451. Apud ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva. op. cit., p. 290. 131 ASCENSÃO, José de Oliveira. O direito de autor como direito da cultura. In: OMPI. Num novo mundo de Direito de Autor? Congresso Ibero-Americano de Direito de Autor e Direitos Conexos, 2. Anais. Tomo II. Lisboa: OMPI/Cosmos, 1994, p. 1053. Apud ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva. op. cit., p. 293. 132 ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva. op. cit., p. 293.
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil: Direito de Autor e Direitos Conexos. Coimbra: Coimbra Editora, 1992. __________. Direito autoral. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.
133 CHAUÍ, Marilena. op. cit., pp. 73/74. 134 Ibidem, p. 76. 58
135 ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva; PIRES, Eduardo. op. cit., p. 372. 59
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Por Marcelo
Mari
Professor da Universidade de Brasília. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: arte moderna, estética, arte e sociedade.
CURADORES, ARTISTAS E COMO TRANSFORMAR A ARTE DE RUA EM ALGO RENTÁVEL
Resumo: Em anos recentes, a arte de rua e mais especificamente o Graffiti foi incorporado no ritual das mostras e grandes exposições no Brasil e mundo afora. Com isso sua potencialidade de subversão foi enfraquecida pela necessidade de atender demandas do circuito das artes. Mas afinal como tornar um Graffiti imerso na cidade atrativo para o mercado? A resposta é arrancá-lo de seu lugar específico e leva-lo para o museu e depois para a galeria. Isso não é apenas um jogo de palavras, pois ocorreu recentemente na Europa e foi contestado por intelectuais, sociedade civil e artistas. Palavras-chave: Arte Strappata; curador versus artista; Banksy; Blu; OsGemeos. Abstract: In recent years, Street art and more specifically the Graffiti was incorporated into the art system of the exhibitions and large exhibitions in Brazil and around the world. With that, its subversion potentiality was weakened by the need to meet new demands. Then how to make a Graffiti immersed in the city scenery attractive for the market? The answer is uproot it from its specific place and takes it to the museum and then to the gallery. This is not just a play on words; it has recently occurred in Europe and was contested by intellectuals, civil society and artists. Palavras-chave: Strappata art; curator versus artist; Banksy; Blu; OsGemeos. Hoje, depois de tudo, os negociadores de arte tentam se apropriar do que antes era tido como impossível de ser institucionalizado e sacralizado no interior das instituições burguesas. Não basta dizer que a arte de rua era a última fronteira de negação da institucionalidade, pois se criaram recentemente museus a céu aberto e a própria cidade passou a ser entendida como espaço próprio da arte. Entretanto, não basta dizer que a Street Art foi musealizada, ou parte da produção dos artistas da arte de rua foi musealizada, mas mais ainda elas se tornaram objetos rentáveis no mundo da arte contemporânea. Não se trata aqui da encomenda de pintura de painel ou parede em casa de gente rica ou em galeria de São Paulo, Nova York ou Dubai, mas de processo de apropriação brutal de murais da cidade. Parece ser ideia extravagante, mas não é. Veja-se a declaração de Christian Omodeo, curador e pesquisador de arte 67
contemporânea, corresponsável pela exposição “Street art, Banksy & Cia. - l’arte allo stato urbano”, que ocorreu na cidade de Bolonha, Itália. Essa mostra itinerante, com algumas variações, apresentada em outras capitais da Itália e da Europa, com as obras do grafiteiro inglês e as cenas locais. No caso da cena local de Bolonha, essa tem particularidade pois o graffiti e antes disso os murais, tiveram alguma expressão na cidade. Talvez porque Bolonha tenha acenado desde o período do final da segunda grande guerra até recentemente para uma tradição figurativa muito forte na arte moderna. Deixado esse parêntese de lado, o fato é que o graffiti bolonhês tem nomes expressivos entre eles Dado, Rusty e o mais famoso deles, Blu. O street artista Blu é de geração mais nova do grafite em relação aos outros dois citados. Suas pinturas estão espalhadas pela Itália, Europa e mundo. Em 03 de janeiro de 2016, Christian Omodeo, futuro co-curador da mostra Street art, Banksy & Cia: A arte em seu estado urbano, daria entrevista ao jornal Artribune para explicar o que estava acontecendo com a arte de rua em Bolonha. Parecia ser mais uma exposição de Street Art, com apresentação de grafites, de stickers e de colagens diversas, de assemblages e writings. De fato, a exposição poderia ser vista como um conjunto bem organizado da história das principais manifestações artísticas de rua ocorridas na cena europeia com os ratos de porão no grafite holandês dos anos de 1970, a particularidade da cena francesa com uma plêiade de grupos atuando em Paris dos anos de 1980 até hoje, a arte londrina pré e pós-grafite, a arte pop e a grafitagem norte-americana. Tudo isso somado, a expectativa era de que a exposição fosse inaugurada em março de 2016. Porém, havia nas ações dos curadores um elemento a mais, que se fosse trazido à luz como novidade no Brasil ou em outras partes do mundo levaria à aceitação basbaque, mas na Itália e especialmente em Bolonha, as coisas ganharam outra conotação. Tratava-se do empenho de se levar para a mostra alguns grafites de Blu. Não se está falando de um convite para que o artista expusesse seus grafites, desenhos ou pinturas em outros formatos e agraciasse o público com essas obras, sejam elas telas, painéis, assemblages etc., como muitos artistas brasileiros já fizeram e continuam a fazer para ganhar dinheiros vultosos com suas obras, deixando de ser exclusivamente grafiteiros para se tornarem manipuladores de imagens em diversos suportes. Nem se tratava de apresentar fotografias e reproduções dos grafites na exposição. A intenção era levar os grafites mesmos para o interior do museu, o que foi cumprido. De mais a mais, o debate enveredou menos para a questão da aceitação do grafite nos museus e mostras do que sobre a capacidade de resistência dessa arte contra a assimilação cultural contemporânea. É bom saber que no caso brasileiro e internacional, a tendência é justamente a mais conservadora possível de ser vislumbrada com a introdução amarga do grafite, a arte de subversão e de contestação, para a cena normalizada da vida capitalista. Nesta situação, as produções de rua servem especialmente como o outro lado de quantidade de exposição e de promoção que garantirão ao artista, seu 68
grau de sucesso e suas encomendas públicas e privadas futuras. Aqui opera-se na contramão da orientação subversiva do grafite que visava agir como meio e mensagem de contrapropaganda no horizonte visual, significativo e ideológico da cidade. Até aí estamos no ano de 2016, sem muita novidade no fronte desses procedimentos e aberrações que se naturalizaram e generalizaram na arte contemporânea internacional. Muitos podem contestar o fato de a inserção desses artistas grafiteiros ser em círculo mais baixo das manifestações artísticas, portanto de valorização menor no mercado de arte e abaixo daquilo que se convencionalizou como representação highbrow da pequena elite definidora daquilo que chamamos por arte contemporânea. Mas do que se tratava no caso do grafiteiro Blu? Os curadores Luca Ciancabilla e Christian Omodeo queriam levar os grafites de Blu para a exposição no formato e suporte tradicionais do grafite e isso se constituía como novidade. Os curadores da mostra de Street art em Bolonha, dois meses antes de sua inauguração, deram uma série de entrevistas para explicar ao público o que se estava por fazer. A intenção era utilizar o strappato para conseguir retirar os grafites de Blu de locais de Bolonha, onde supostamente os grafites estariam condenados (demolição de prédios, reformas em edifícios, mau estado de conservação dos grafites). A técnica da strappatura surgira no século XVIII para retirar pinturas murais, afrescos de igrejas medievais e obras de interesse estético ou histórico. Como se sabe essa técnica foi inventada (circa 1726-31) pelo artista de Ferrara, Antonio Contri, que usou desse procedimento engenhoso para destacar pinturas murais antigas, utilizando uma tela impregnada de solução betuminosa e solúvel em água1. Diante da polêmica causada antes mesmo da abertura da exposição dos grafites a serem apresentados na mostra, em entrevista para o Artribune, Christian Omodeo justificava o procedimento como algo relativo ao processo de institucionalização da arte desde a formação de coleções de obras antigas em museus até o interesse recente pela preservação de grafites. Apesar da tentativa de dar normalidade ao procedimento, havia uma certa dissimulação acanhada de o fato de que as obras tinham sido retiradas da rua e dos prédios sem o consentimento do artista, justamente por ocuparem espaços que não eram lícitos em
1 Cf. GENUS BONONIAE – MUSEI NELLA CITTÀ. Street art, Banksy & Co. – L’arte allo stato urbano. 18 de março a 26 de junho de 2016, Palazzo Pepoli, Bolonha, Itália, 2016. 69
termos jurídicos, isto é, os grafites foram feitos em lugares sem a devida permissão e isso justificaria o fato de os curadores se apropriarem daqueles grafites e inseri-los na mostra e depois integrá-los à coleção pública ou privada. Omodeo indagado, pelo jornalista Marco Enrico Giacomelli, sobre se havia algum sentido em destacar grafites das paredes da cidade para levá-los à exposição, respondeu: “Ha senso esporre i marmi del Partenone al British Museum o i quadri d’altare provenienti da chiese italiane nei più importanti musei stranieri? Ha senso un museo come il Quai Branly o gli oggetti che vi sono esposti dovrebbero piuttosto essere restituiti alla tribù e ai Paesi dai quali provengono? Aveva senso ridare all’Etiopia l’obelisco che si trovava a Roma, a due passi dal Circo Massimo? Come sempre, il problema vero quando si altera la destinazione d’uso di un oggetto, monumento o opera d’arte, non è tanto cosa si fa, ma perché lo si fa. Come ricorda Bénédicte Savoy, quello che va valutato non è tanto lo spostamento, ma il motivo di una “traslazione patrimoniale”. Prima di tutto bisogna osservare che gli “stacchi” sono sempre esistiti”(OMODEO, 2016)2 Omodeo referia-se ao fato de os posters de Keith Haring terem saído do subway de Nova York e foram expostos em museu, outro exemplo seria os strappati de grafites de Banksy, ocorridos os casos mais notáveis em 2007 e 2013. Em 2007, uma pequena peça de grafite destacada de muro no centro de Londres foi anunciada no site de vendas Ebay pelo preço de vinte mil libras esterlinas. Depois de protestos de pessoas que conheciam a imagem de vê-la na rua, o anúncio de venda foi retirado do site Ebay. Esse foi um episódio entre outros que sucederam com a obra de Banksy, a partir de 2007, quando sua obra já estava a valer meio milhão de libras. Em 2013, por exemplo, o grafite Slave labour (maio de 2012), feito na parede da loja Poundland, trazia imagem de menino trabalhando em máquina de costura a fazer bandeirinhas britânicas, tudo isso em clara denúncia do trabalho infantil pela rede de lojas de produtos baratos, confeccionados no exterior, em países pobres com ação e conivência imperialista. Nesse caso, a disputa, ao largo das decisões diretas de Banksy, foi travada entre a comunidade de Wood Green na Inglaterra e a Fine Art Auctions de Miami nos Estados Unidos, mais precisamente Nova York.
O mural que fora strappato, sem que ninguém percebesse, da parede de Poundland, estava à venda em site de casa de leilão nos Estados Unidos. O responsável pela Fine Art Auctions de Miami, Frederic Thut, quando indagado sobre o fato de a obra ter sido furtada de muro na Inglaterra, reservou-se o direito de apenas comentar que o grafite pertencia a colecionador privado, cujo nome por questão ética não revelaria, e não saberia o que dizer sobre o fato de aquela obra estar anteriormente na Inglaterra e estar à venda sem a permissão do artista. No final das contas, não havia como a comunidade de Wood Green reaver a obra por meios legais, pois a questão estava imbrincada na dicotomia entre lugar público e pintura não-autorizada versus interesse privado e propriedade intelectual. Restava à comunidade reaver o trabalho de Banksy, contando com ação jurídica e talvez com a chance de o artista contestar a autoria do grafite strappato. Com isso o preço de venda, pela Fine Art Auctions de Miami, desinflacionaria frente à valorização autoral. Não foi exatamente isso que aconteceu com Slave Labour, o que levaria a supor que a obra era mesmo de Banksy e o próprio artista embora dissesse estar em desacordo com a venda de seu grafite, estava na realidade muito feliz com ela. Em outras palavras, era contra a venda, mas ganhava muito com ela. De fato, é difícil saber onde começa e onde termina a aproximação de Banksy com agentes de mercado. Tudo leva a crer que a obra dele conta com essa maneira furtiva e anônima de especular, garantir preços elevados e completar os ciclos de valorização da arte como capital, diminuindo ao grau zero a possível dimensão contestadora da arte. Ao final, a controvérsia toda restou sobre a autoria do grafite. Houve especulação na época de que era mesmo de Banksy, pois havia ao lado do grafite destacado o Rat, seu símbolo-assinatura. Aliás assinatura essa deixada no muro de onde a obra fora destacada. Não por acaso, pois assim como era sabido que aquela obra era de Banksy era sabido também que se daria falta dela. E a assinatura estaria ali para respaldar a autenticidade, é o que se supõe. De fato, a imprensa local acompanhou o surgimento de manifestações nas cercanias do local onde o grafite sumira e teria aparecido logo em seguida um ponto de interrogação. Ao final de tudo, a comunidade de Wood Green entrou com queixa contra a venda do grafite strappato em leilão virtual, que foi suspenso. A obra foi então posta à venda em Londres para ser vendida, por um milhão e cem mil dólares, por Bankrobber London, através da casa de leilão Sincura Group. Esperava-se que com isso o grafite voltasse para a comunidade de Wood Green através de doação, o que não aconteceu. O que se estava por fazer era uma operação que deixaria muita gente rica com arte de rua e jogaria o graffiti subversivo no interior das conservadoras instituições de arte.
2 GIACOMELLI, M. E. A Bologna è bufera. Sulla Street Art. Artribune. Milão, Itália, 03 de janeiro de 2016. Disponível em: <http://www. artribune.com/2016/01/bologna-street-art-mostra-polemica/>. Acesso em: 20-03-2016. 70
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Em 15 de maio de 2013, sairia entrevista no Evening Standard3 com o diretor do Sincura Group, Tony Baxter. O debate naquele momento, um mês antes do leilão, era não exatamente sobre quem roubara o grafite e nem mesmo sobre as circunstâncias de sua volta para Londres, mas de quanto poderia ser alcançado no leilão e como talvez a obra seria ou não doada à comunidade de Wood Green. Na entrevista, Baxter refere-se ao “proprietário” do grafite que tinha posto a peça a leilão, agora para ocorrer em Londres. Em momento nenhum questionou-se o fato de a obra ter sido furtada da comunidade. A comunidade serviu de pretexto para a venda por casa de leilão em Londres, assim como o discurso da venda da obra pela casa de leilão era referendado pela ação benemérita dos ricos, a plutocracia que poderia dispor de seu dinheiro e doar a obra para a comunidade de Wood Green, onde o grafite de Banksy havia se tornado parte de percurso turístico. O leilão ocorreu e ao contrário da retórica de Baxter (que dizia que se ganharia o suficiente somente para reaver a obra, ou seja, um total de 500 mil libras), a obra rendeu o famoso milhão e cem mil dólares americanos (700 mil libras). Ainda que infeliz a explicação de Omodeo estava muito impregnada desses precedentes quando explicou a apropriação que eles, curadores, estavam fazendo de obras do grafiteiro Blu na cidade de Bolonha. Ora, para dar um tom mais eticamente correto ao seu discurso, Omodeo e Ciancabilla faziam alusão à tentativa de preservação dos murais do grafiteiro Blu, ameaçados de destruição, pois em lugares vulneráveis. Isso garantia um verniz de falsas boas intenções para os curadores que encobria o puro interesse venal nas peças destacadas. O que se ressalta na fala de Omodeo é justamente a distância entre curadores e grafiteiros; distância que no caso de Bolonha traria grandes complicações. Amparado em Nicolas Bourriaud, dizia Omodeo: “Prima di tutto bisogna osservare che gli “stacchi” sono sempre esistiti. Pensate ai subway posters di Keith Haring, che siamo tutti contenti di vedere nelle mostre su questo artista, o agli stacchi di muri di Banksy. Ormai, ce ne sono talmente tanti che si fanno mostre – ultravisitate – solo con sue opere provenienti dalla strada. (…) Quando si parla di arte urbana, direi che il vero problema è piuttosto come faranno gli artisti a gestire i rapporti con i curatori. Per anni, la Street Art si è sviluppata senza vere figure curatoriali. Ancora oggi, la maggior parte dei curatori di Street Art non sono altro che degli art dealer o degli organizzatori di eventi, che mettono assieme artisti senza nessun criterio e, fondamentalmente, per non dire nulla. Mi viene in mente Francesco Masci, quando scrive che assistiamo a “un’infinità di eventi, ma a nessun avvento”. Per me, la sfida non è quindi tanto il diritto d’autore, ma far capire a questa comunità artistica che, oggi, esistono figure curatoriali cresciute in strada come loro e che un dialogo tra artisti e curatori urbani non è solo necessario,
3 SHEILS, C. ‘Lost’ Banksy mural may fetch £1 million at London auction. Evening Standard. Londres, 15 de maio de 2013.Disponível em: <http://www.standard.co.uk/news/london/lost-banksy-mural-may-fetch-1-million-at-london-auction-8616730.html>. Acesso em 0303-2016. 72
ma fondamentale per gli anni a venire. (…) Se espongo un’opera, perché considero che serva a portare avanti un discorso o a generare un dibattito lo faccio, esattamente come un dj che sceglie un sample per creare un pezzo totalmente nuovo. Mi aspetto di essere giudicato per quello che ho creato e non per come ho trattato i sample selezionati.” (OMODEO, 2016)4 Os curadores assumem um discurso conciliatório dos interesses deles mesmos em sua posição no circuito em relação à posição dos artistas de rua (Street Artists). Esse tom conciliatório serve para justificar a apropriação de grafites do artista Blu sem seu consentimento e também para justificar a possível venda desses trabalhos no mercado de arte e a partilha entre curador e artista, frente ao fato de que a arte de rua pode ser apropriada por interesse particulares ou furtada de seu lugar de significação para a coletividade na tessitura social. Nesse sentido, o curador Omodeo justificaria sua posição de Curador, como parte do circuito da arte em busca de oportunidades de mercado, assim como o artista. A significação disso é muito clara, em um ambiente altamente competitivo como o da arte de rua, mas também da arte contemporânea, com poucas oportunidades para artistas e curadores, resta a concorrência geral para a sobrevivência em um sistema marcado pela ideia de exceção e aparências: “Se poi uno o più artisti sentiranno il bisogno di fare ricorso a un quadro giuridico sclerotizzato come il diritto d’autore, valuterò il da farsi, ma la mia posizione non cambierà: un artista che rifiuta che la sua opera possa essere usata, trasformata, distrutta/ conservata o deturpata è e sarà sempre ai miei occhi come una multinazionale che tutela i propri prodotti. Personalmente, ho altre priorità, come affermare che non ci vedo nulla di male a prendere dei muri di proprietà di un privato e trasformarli in bene comune, perché si fa l’esatto contrario di quello che si è fatto fino ad oggi, o valutare con dei giuristi se è teoricamente possibile imporre per legge a chiunque si appropri, legalmente o meno, di un’opera d’arte in strada di versare il 50% del ricavato in caso di un’eventuale vendita all’artista che l’ha prodotta. Questo sì che scoraggierebbe il mercato degli street pieces.” (OMODEO, 2016)5 O grafiteiro Blu fez pinturas no Brasil em 2009. Sua obra também é conhecida em outros países latinos, especialmente Argentina e México. Quando da exibição de suas obras arrancadas dos muros da cidade para a exposição organizada por Luca Ciancabilla e Christian Omodeo, Blu resolveu apagar todos os seus grafites em Bolonha. Sua resposta era contra a arte de rua privatizada. Naquela ocasião, mais precisamente à véspera da abertura da exposição de Street Art em Bologna, em nova entrevista aos jornais o curador Christian Omodeo comentaria com arrogância o seguinte sobre a atitude contestatória do artista que resolvera 4 GIACOMELLI, M. E. A Bologna è bufera. Sulla Street Art. Artribune. Milão, 03 de janeiro de 2016. Disponível em: <http://www.artribune.com/2016/01/bologna-street-art-mostra-polemica/>. Acesso em: 20-03-2016. 5 Idem, ibidem. 73
apagar todos seus grafites na cidade de Bolonha: “Non è l’unico ad avere il diritto di decidere sulla vita della propria opera. E gli abbiamo restituito quella carica di dissenso che non aveva più...”.(SMARGIASSI, 13-03-2016)6 O que causa estranheza na argumentação de Omodeo é seu autoritarismo em dizer que o artista que concebeu e executou o grafite nas paredes da cidade, já não pode decidir o que será feito com sua obra. Segundo o curador, ela já não mais lhe pertence. Pertence então à cidade? Não, a resposta não é exatamente essa. O fato é que para o curador da mostra, que retirou trabalhos de Blu da rua para expô-los no museu sem o consentimento do artista, as obras de Blu não são mais dele não é afirmação simples, poética e enlevada de que a obra tem múltiplos significados e que ganha autonomia em relação ao seu idealizador. Nada disso, é a afirmação judicial de que o artista por pintar em lugares da cidade privatizada que não lhe pertencem, abre o flanco para que a sua obra possa ser pilhada por outros. Esses outros podem ser tanto quanto as apropriações que se fazem sobre os grafites por outros grafiteiros e pichadores, o picho do picho, quanto como agora a mais nova fonte inexplorada da arte contemporânea que são as apropriações de muros por gente ligada a galerias, feiras e bolsas de arte. Omodeo deixou claro que as obras de Blu eram passíveis de serem apropriadas pelos homens de mercado, independentemente de sua vontade, sem que precisassem pagar qualquer coisa para o artista e bastando entrar em acordo com o dono do espaço onde o grafite foi feito. O artista foi visto, no caso descrito acima, como alguém que não estava comprometido com o sistema artístico e o ciclo vigente desse sistema, que deve ter sua etapa final de sacramentação e de necessária valorização comercial do produto, e justamente por isso Blu deve ser considerado, malgrado tudo que fez, como alguém que deve ser deletado do sistema. Ou se está dentro desse sistema, ou se está fora; NÃO HAVENDO OUTRA OPÇÃO. Essa alternativa embora metafórica determinou o lugar de fala do curador em relação ao artista. O curador tornou-se uma espécie de algoz e bom representante da distopia contemporânea, em que a redução imanente de realidade se dá nos braços da mercantilização e privatização de tudo.
6 SMARGIASSI, M. Blu, il curatore della mostra: “Ora le sue opere sono soltanto al museo”. La Repubblica. Bolonha, 13 de março de 2016. Disponível em: <http://bologna.repubblica.it/cronaca/2016/03/13/news/blu_il_curatore_della_mostra_ora_le_sue_opere_sono_soltanto_al_ museo_-135360267/>. Acesso em: 20-04-2016. 74
Essa situação gera dois outros significados subentendidos: 1) O curador chegou a afirmar que dentro do sistema contemporâneo de arte, que inclui também um setor específico de discussão jurídica de direitos autorais e de uso de imagens etc., os atores, os entes e o sistema deles como um todo se auto justificam; concluir-se-ia com isso que cumpridas as funções parcas das partes, elas se tornam irrelevantes, mas o que o funcionamento do circuito demonstra é que o artista está refém não só do circuito, mas e principalmente dos curadores e especialistas que hoje trabalham com uma visão muito específica de negócios na arte no estrito senso das relações de produção e de consumo no capitalismo; as ameaças dos curadores da mostra em Bolonha ao artista Blu demonstram o grau de baixeza a que estas chantagens de mercado podem chegar. 2) A irrelevância do artista e do significado da obra são decretados pelo funcionamento da lógica de valorização e desvalorização proposta pelo jogo dos atores e entes envolvidos no sistema da arte. O problema é justamente esse, hoje parece não haver arte que não seja passível de algum tipo de comercialização, em suas expressões mais torpes a lógica do mercado de arte atual quer incorporar todas as expressões sejam mais avançadas ou não da pesquisa artística contemporânea. Essa dimensão contemporânea da arte enfraqueceu sua mensagem de transformação, de mudança e de liberdade. Isso se deve ao fato de que o mercado está a buscar continuamente novos horizontes de especulação, com tudo o que isso significa de aposta na propaganda massiva e na publicidade de características diferenciadoras de determinado produto artístico em comparação com outros. É justamente esse Plus fictício de sentido, de experiência, de raridade e de outros qualificativos que transformam o produto artístico em algo se não mais aprazível, pelo menos mais interessante para o consumo diferenciado. O grafiteiro Blu tomou a atitude anticapitalista e corajosa na contracorrente da realidade do sistema das artes na lógica neoliberal, de apagar seus grafites ou “murales” como são conhecidos na Itália. A questão foi melhor colocada pelo jornal Il Fatto Quotidiano que toca no ponto central da polêmica, a saber, a autorização dos artistas: “Sta facendo discutere – e a ragione – la decisione di Genus Bononiae, una delle più prestigiose istituzioni culturali bolognesi di esporre in un museo alcuni murales realizzati su pareti e facciate di edifici, pubblici e privati, del capoluogo emiliano. Ma non è solo la scelta di fare della c.d. street art il tema di un’esposizione museale, “normalizzando” così un genere artistico “ribelle” a far discutere, quanto quella di realizzare l’esposizione rimuovendo fisicamente dagli edifici sui quali gli artisti le hanno realizzate le opere d’arte in questione senza chiedere nessun permesso o autorizzazione ai loro autori.” (SCORZA, 2016)7
7 SCORZA, G. Bologna, i murales finiscono al museo senza il permesso degli artisti. Il Fatto Quotidiano. Roma, 06 de janeiro de 2016. Disponível em <http://www.ilfattoquotidiano.it/2016/01/06/bologna-i-murales-finiscono-al-museo-senza-il-permesso-degli-artisti/2352753/>. Acesso em: 10-05-2016. 75
Auxiliado por pessoas dos Centros Sociais de Bolonha (espécie de pontos de cultura da cidade), Blu – considerado um dos dez mais importantes grafiteiros do mundo - apagou todos seus grafites da cidade de Bolonha. O jornal A Repubblica transcreveu trechos de entrevista de Blu ao Blog Giap (pois o artista não dá entrevista à grande mídia). Blu foi peremptório em dizer o que estava por trás daquela ação dos curadores, que se autodenominaram a salvaguarda de suas obras para a posteridade a partir da institucionalização: “La mostra “Street Art” è il simbolo di una concezione della città che va combattuta, basata sull’accumulazione privata e sulla trasformazione della vita e della creatività di tutti a vantaggio di pochi. Di fronte alla tracotanza da landlord, o da governatore coloniale, di chi si sente libero di prendere perfino i disegni dai muri, non resta che fare sparire i disegni. Agire per sottrazione, rendere impossibile l’accaparramento. Non stupisce che ci sia l’ex-presidente della più potente Fondazione bancaria cittadina dietro l’ennesima privatizzazione di un pezzo di città. Questa mostra sdogana e imbelletta l’accaparramento dei disegni degli street artist, con grande gioia dei collezionisti senza scrupoli e dei commercianti di opere rubate alle strade. Non stupisce che sia l’amico del centrodestra e del centrosinistra a pretendere di ricomporre le contraddizioni di una città che da un lato criminalizza i graffiti, processa writer sedicenni, invoca il decoro urbano, mentre dall’altra si autocelebra come quella della street art e pretende di recuperarla per il mercato dell’arte” (SMARGIASSI, 12-03-2016)8 As palavras de Blu são fortes e cheias de sentido, ou seja, a mostra de grafite em Bologna nada mais é do que um modo de proceder do sistema da arte vinculado exclusivamente à acumulação capitalista e em benefício de pouquíssimos. Para o artista restava, frente aos mandos e desmandos dos donos da terra e autoridades políticas inescrupulosas, “destruir” sua própria arte, apagar sua arte dos muros da cidade. O pior de tudo isso é a ausência de perspectiva de horizontes outros para o sistema da arte em Bolonha na esteira da tendência internacional, por isso Blu se queixa da postura similar da centro-esquerda e dos governos de centro-direita em Bolonha, todos rezando a cartilha neoliberal que, por um lado, criminaliza os jovens writers, por outro, aposta na arte como grande negócio. A exposição “Street art, Banksy & Cia. - A arte em seu estado urbano” foi montada como uma maneira a apresentar os grandes nomes do graffitti mundial, entre eles: principalmente, Banksy, Dran, Blu e também OsGemeos. A abordagem da exposição é justamente legitimar o grafite na lógica de uma exposição convencional de museu. Tanto esse é o conceito básico que, a maior parte das obras expostas eram de coleções privadas ou de galerias especializadas em venda de Street Art. Retiradas de seu lugar na trama urbana, os grafites perdem sua força
8 SMARGIASSI, M. Bologna, Blu cancella tutti i suoi murales: “No alla street art privatizzata”. La Repubblica. Bolonha, 12 de março de 2016. Disponível em: <http://bologna.repubblica.it/cronaca/2016/03/12/news/bologna_graffiti-135303806/>. Acesso em: 10;05;2016. 76
de contraposição às mensagens reificadas da cidade venalizada e não servem como contrapropaganda de mensagens liberatórias do processo de redução unidimensional da vida. Era justamente esse o impasse colocado por Blu, pois na medida em que o grafite se insere no universo convencionalizado da arte institucionalizada de hoje, os grafiteiros tornam-se parte do processo de destruição da potencialidade crítica de sua própria arte. Com OsGemeos, a domesticação do grafite não ocorreu de maneira diversa da que ocorreu com Banksy, embora eles todos neguem esse processo nefasto. Nas obras de OsGemeos a assimilação e domesticação dos elementos outrora críticos da sociedade revelam que o mercado soube ser mais subversivo do que os grafiteiros e os incluiu no processo de conscientização das derrotas sofridas pela arte de contestação social. Em tudo hoje as obras de Banksy e de OsGemeos se parecem com obras de arte convencionais no circuito convencional das artes. No caso específico de OsGemeos, eles têm trabalhado com objeto e pinturas no sentido de reforçar a diferença entre arte de museu e arte de rua. Veja-se por exemplo a obra Madonna com bambino (2000) ou The Guitar (2007), que brincam com a linguagem das artes visuais de museu e mostram que a linguagem do grafite funciona em outro lugar, na rua. Isso sem romper com o esquema conservador da arte atual.
REFERÊNCIAS BANKSY. Wall and Peace. London: Century, 2005. BOURRIAUD, N. Postproduction – La culture comme scénario: comment l’art reprogramme le monde contemporain. Dijon: Les Presses du réel, 2004. GENUS BONONIAE – MUSEI NELLA CITTÀ. Street art, Banksy & Co. – L’arte allo stato urbano. 18 de março a 26 de junho de 2016, Palazzo Pepoli, Bolonha, Itália, 2016. GIACOMELLI, M. E. A Bologna è bufera. Sulla Street Art. Artribune. Milão, Itália, 03 de janeiro de 2016. Disponível em: <http://www.artribune. com/2016/01/bologna-street-art-mostra-polemica/>. Acesso em: 20-032016. IRVINE, M. The work on the Street: Street art and Visual Culture In HEYWOOD, I. (org.). The handbook of visual culture. London: Berg Publishers, 2012. KNIGHT, C. K. Public Art: Theory, practice and populism. Malden: Blackwell Publishing, 2008. RANCIERE, J. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005. 77
SCORZA, G. Bologna, i murales finiscono al museo senza il permesso degli artisti. Il Fatto Quotidiano. Roma, 06 de janeiro de 2016. Disponível em <http://www.ilfattoquotidiano.it/2016/01/06/bologna-i-murales-finisconoal-museo-senza-il-permesso-degli-artisti/2352753/>. Acesso em: 10-052016. SMARGIASSI, M. Blu, il curatore della mostra: “Ora le sue opere sono soltanto al museo”. La Repubblica. Bolonha, 13 de março de 2016. Disponível em: <http://bologna.repubblica.it/cronaca/2016/03/13/news/blu_il_curatore_ della_mostra_ora_le_sue_opere_sono_soltanto_al_museo_-135360267/>. Acesso em: 20-04-2016. SMARGIASSI, M. Bologna, Blu cancella tutti i suoi murales: “No alla street art privatizzata”. La Repubblica. Bolonha, 12 de março de 2016. Disponível em: <http://bologna.repubblica.it/cronaca/2016/03/12/news/bologna_ graffiti-135303806/>. Acesso em: 10;05;2016.
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Por Paula
Gil Larruscahim Paul Schweizer
O presente artigo foi originalmente publicado na Revista de Direitos e Garantias Fundamentais da Faculdade de Direito de Vitória em 2015.
A CRIMINALIZAÇÃO DA PIXAÇÃO COMO CULTURA POPULAR NA METRÓPOLE BRASILEIRA NA VIRADA PARA O SÉCULO XXI
Introdução No presente artigo discutimos o pixo como uma das tantas manifestações da cultura popular brasileira no contexto especifico urbano do séculos XX e XXI. Assim, é importante referir que somos nós quem atribuímos ao pixo tal significado, pois este pode ser (e é) percebido e chamado de muitas outras maneiras. O fato de usarmos essa denominação como categoria analítica para apontarmos certos aspectos de nosso problema de pesquisa, não significa dizer que somos portavozes de todos os praticantes da pixação. Exatamente o contrário: a presente análise é apenas uma das tantas possíveis abordagens desse fenômeno. Para tanto, desenvolvemos uma breve análise de alguns aspectos da criminalização de algumas expressões de cultura popular na virada para o século XX, utilizando como principal exemplo a capoeira. Nas sessões seguintes desenvolvemos um escorço histórico da criminalização do pixo no contexto dos discursos midiático, político e jurídico. Esse trabalho resulta de uma análise parcial do intercruzamento de nossas pesquisas de campo sobre a pixação durante os anos de 2013 a 2015 na cidade de São Paulo. Através da combinação da pesquisa etnográfica, com entrevistas semiestruturadas e material midiático, procuramos desenvolver uma análise crítica do processo de criminalização da pixação desde a metade da década de 80 até os dias atuais.
Criminalização da cultura popular brasileira O pixo está sendo aqui discutido como uma das tantas formas de expressão da cultura popular brasileira. É importante apontar nesse sentido que nós não acreditamos em “uma cultura”, seja ela “popular”, “brasileira” ou “popular brasileira”. No entanto, observamos que tanto na história brasileira, assim como na história da humanidade em geral, em sociedades divididas em classes nascem
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e desenvolvem-se continuamente expressões culturais, manifestadas pelas classes populares.
do imperativo da máxima exploração da força de trabalho para a produção da mais-valia.
Ao aludirmos elas aqui como “cultura popular”, nos referimos especialmente à capacidade dessas práticas de (1) tematizar os problemas cotidianos dessas populações; (2) criar estratégias de autoajuda coletiva; e (3) às vezes até desenvolver elementos próprios de luta coletiva contra a raiz da desigualdade social, seja essa luta simbólica ou mesmo material. Nesse sentido, a própria desigualdade social, diversamente manifestada nos diferentes contextos histórico-políticos, vai ser o principal elemento constituinte para o conceito de cultura popular aqui usado.
Contexto da metrópole paulista no fim do século XX
Falando de cultura popular “brasileira”, não intencionamos participar na criação de um mito nacional. Ao contrário, recusamos qualquer uso da categoria nacional, referindo à nação ou mesmo à cultura nacional como algo ontológico. O adjetivo “brasileira” é aqui utilizado para indicar um contexto histórico-político específico – a violenta colonização e dominação portuguesa de uma parte da América do Sul, o regime de escravidão que prevaleceu até 1888, a seguinte desigualdade social até os dias de hoje reproduzida através das relações de propriedade, um regime de governo que apesar de republicano, se constituiu desde os interesses das classes oligárquicas, e de um Estado que até hoje legitima os interesses das classes altas, muitas vezes de uma maneira extremamente violenta. Nesse sentido, vale lembrar os clássicos exemplos de criminalização da cultura popular brasileira na transição do regime imperial para o regime republicano, como foi o caso da capoeira, da umbanda, do maxixe e do samba. A capoeira, como diria Jorge Amado, “a luta mais bonita do mundo, porque é também uma dança” (Amado, 2008), foi expressamente criminalizada no Código Penal de 1890, no título dos crimes contra à pessoa e à propriedade, no artigo 402 que também tipificava a “vadiagem”, ou seja, criminalizava aqueles que não estavam inseridos no mercado de trabalho. Sobre o capoeirista, Jorge Amado o referiu como o “Malandro. Armador de fuzuês. Jogador de capoeira navalhista, ladrão quando se fizer” (Amado, 2008). Com certeza o legislador não usou da mesma licença poética do escritor baiano quando equiparou a capoeira à vadiagem. Nesse sentido Serafim e de Azeredo (2011), lembram que a criminalização de elementos da cultura Afrobrasileira no início da República está intimamente ligada à recepção da ideologia liberal capitalista para o incipiente “mercado de trabalho” que surge após a abolição da escravatura. Se no regime colonialista a capoeira representava a corporificação da resistência dos escravos contra o sistema de opressão imposto pela classe latifundiária, no novo regime de acumulação capitalista, a capoeira continua funcionando como a representação simbólica da insurgência. Como tal, a capoeira precisa ser contida através da lei penal, bem como a vadiagem que no recente estabelecido modo de produção capitalista representa uma subversão 82
Para discutir a pixação como uma dessas expressões culturais populares e como a mesma vem sendo criminalizada, vale a pena explicitar o contexto no qual o pixo está se desenvolvendo. No caso específico do pixo, estamos aqui falando da metrópole brasileira no final do século XX, início do século XXI. Nossa pesquisa foi desenvolvida sobretudo em São Paulo, contexto também no qual nasce o pixo na década de 1980. Uma extraordinária quantidade de trabalhos científicos já foi escrita para descrever esse contexto. Para a presente discussão, importa notar a extensa urbanização que marcou a sociedade brasileira na segunda metade do século XX. No caso de São Paulo, foi a partir dos anos 1940 que a cidade se expandiu rapidamente – horizontalmente nas periferias, e, a partir dos anos 1960 e 1970, verticalmente no centro, ou melhor nos vários centros (ver Droulers, 2004, p. 323). Economicamente São Paulo cumpre um papel decisivo para a inserção da economia brasileira na divisão do trabalho internacional, sendo a primeira metrópole brasileira industrializada e, mais recentemente tornando-se metrópole informacional. (de Souza, 2004, p. 23). As várias fases do processo de urbanização, conduzidas pelo capital industrial e progressivamente pelo financeiro, como Carlos aponta (2004), marcaram a paisagem urbana, criando, como já Milton Santos (1990) afirmava uma “metrópole corporativa e fragmentada”. De fato é por essa mesma fragmentação da cidade e dos espaços vividos pelos seus habitantes, que a desigualdade social está onipresente na vida cotidiana na metrópole paulistana. A segregação das populações está sendo “fortificada” por e pela própria arquitetura e urbanística, que constroem múltiplas cercas materiais entre os espaços apartados (Caldeira, 2000). Vale também notar que a partir do papel decisivo de São Paulo na economia brasileira desenvolveu-se durante as últimas décadas uma considerável classe média paulistana (de Souza, 2004, p. 23 segs). É essa que juntamente com a classe alta burguesa consegue dominar os aspectos visuais do espaço público, especialmente nos bairros centrais e mais representativos. Mesmo se a grande maioria da população ainda pertence às classes populares e vive em bairros populares, essas populações de São Paulo são bem menos visíveis que em outras metrópoles brasileiras como é por exemplo, o caso do Rio de Janeiro (Carreras, 2004). É nesse contexto que Tiburi fala da “estética da fachada que defende o muro branco, transformado em uma verdadeira ideologia em cidades como São Paulo” (Tiburi, 2011, p. 42). O pixo, como aqui é discutido constitui apenas uma das várias expressões da cultura popular no contexto desigual da metrópole brasileira, na virada do século XX para o século XXI. Dentre tantas outras manifestações contemporâneas 83
da cultura popular brasileira no contexto urbano, é importante apontar para as recentes pesquisas de Pereira (2014) que analisou o fenômeno dos “rolezinhos” e dos “pancadões”, exercidos pelos jovens das periferias de São Paulo; também quando Coelho de Oliveira (2015), que além do pixo (xarpi no contexto do Rio de Janeiro), investiga expressões culturais potentes como o funk e a torcida organizada.
Pixo, Pixação, Rabisco A pixação (com “x”), pixo ou rabisco, como muitos pixadores referem, é aqui compreendida como uma de tantas formas de intervenção visual no espaço urbano. Dentre esse oceano de intervenções podemos citar o grafite, o estêncil, as frases de conteúdo poético e político, o grapixo, o bombing, o lambe lambe, e inclusive a chamada “arte de rua”, apenas para mencionar alguns. O presente trabalho tem como foco de análise a chamada pixação, ou como Mittmann (2012) definiu, a chamada “escola paulistana”. No entanto, a breve descrição da pixação, serve aqui como recurso heurístico para a análise de sua criminalização enquanto expressão da cultura popular brasileira. Ainda que não trabalhemos com os conceitos de subcultura criminal (Ferrell, Hayward, & Young, 2015; Hall & Jefferson, 2006; Williams, 2013), tribos urbanas (Maffesoli, 1988) ou redes e circuitos de jovens na metrópole (Magnani, 2005), é importante referenciar que desde a nossa perspectiva, o pixo também não corresponde ao grito dos muros ou das paredes. O pixo ou a pixação, é antes de qualquer coisa a representação visual de uma ampla e rica prática de diversos sujeitos, os pixadores.
A grafia com “x” ao invés de “ch” é um subversão da ortografia para destacar as práticas do pixo que surgem no final dos anos 1980 (Larruscahim, 2014). As palavras pixo ou pixação, ainda que não incorporadas ao dicionário oficial da Língua Portuguesa são com certeza neologismos que já estão sendo utilizados para designar essa forma única de intervenção visual no espaço urbano. Ainda que quiséssemos estabelecer uma genealogia da pixação seria impossível contar “a” história do pixo. No entanto, desde as várias histórias ouvidas durante essa pesquisa, é possível afirmar que é em meados da década de 1980, quando jovens, alguns trabalhando como “office-boys”, muitos oriundos da periferia, se encontravam no centro da cidade para sociabilizar ou simplesmente “trocar uma ideia”, é que a pixação começa a dar seus primeiros passos como movimento urbano. A partir da década de 1990, a pixação se consagra como expressão da cultura popular única no cenário da capital paulista. Consequentemente passam a ser observáveis as três habilidades supramencionadas que as práticas da cultura popular podem oferecer em relação aos problemas cotidianos dos sujeitos que delas fazem parte. No caso especifico do pixo isso poderia ser imaginado nas possibilidades que abaixo propomos. Em um contexto no qual a pobreza está sendo cada vez menos visível, como já mencionado, “[f]alar de desigualdade, neste tempo em que se deveria ocultá-la por amor do sistema [...] é, sem dúvida, promover estarrecimento.” (Tiburi, 2011, p. 41). Embora a pixação não tenha necessariamente conteúdo político explícito, a imagética por ela produzida já é por si uma forma de dar visibilidade às desigualdades sociais. Opondo à fragmentação da metrópole, as redes sociais criadas entre pixadores originários de bairros distantes podem ser interpretadas como elemento de autoajuda, subvertendo a segregação socioespacial (pereira), que exercita uma forte influência na vida cotidiana especialmente dos paulistanos pertencentes às classes populares. Se a “ideologia do muro branco” é “a forma estética da propriedade privada”, mantida por “o ódio ao outro, ao diferente, ao excluído […] em nossa sociedade de primatas humanos arrumadinhos, sacerdotes” como propõe Tiburi (Tiburi 43), o pixo representa uma verdadeira luta simbólica contra essa fachada asséptica. Como autêntica e radical expressão da cultura popular no contexto específico da metrópole brasileira contemporânea, o pixo está sendo temido pelas classes altas, assim como a capoeira era na época do Império ou a vadiagem no início da República. Portanto, em nada surpreende que ele venha sendo criminalizado, da mesma forma que foram seus antecedentes.
Raízes da criminalização do pixo
Monumento da Bandeira (Fonte: Folha de São Paulo 2013)
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A criminalização do ato de rabiscar, de intervir visualmente no espaço urbano também aparece desde o Código Penal de 1890, como uma das contravenções referentes ao uso ilegal da arte tipográfica. O artigo 387 definia como contravenção o ato de “Affixar em logares publicos, nas paredes e muros 85
das casas, sem licença da autoridade competente, cartazes, estampas, desenhos, manuscriptos, ou escrever disticos ou letreiros.” Embora o Código Penal de 1940 (mesmo em suas posteriores reformas), não tenha criminalizado a pixação especificamente, até o advento da Lei 9605/98 (Lei dos crimes ambientais), o pixo (como a pichação) era punido como crime de dano contra o patrimônio, previsto no artigo 163 e do Código Penal. O tipo penal consiste em destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia e não traz previsão na forma culposa. Ou seja, é necessário que o sujeito ao praticar o delito possua o dolo, a vontade direta de destruir, inutilizar ou deteriorar o tal patrimônio alheio. Nesse sentido, poderíamos pensar perfeitamente na tese de que pixo jamais poderia ter sido enquadrado como crime de dano, pois conforme Cripta Djan nos lembra, “o pixo não INUTILIZA uma parede, um muro. O muro continua apto a cumprir sua função. Mas seu SIGNIFICADO muda. A ressignificação do espaço público por meio de intervenções estéticas constitui uma importante tradição da arte contemporânea, excedendo a esfera da própria pixação, vetor mais radical da arte urbana, que acaba por sofrer uma discriminação descabida.” (Djan, 2015, p. 49). Procurou-se aqui trazer um breve contexto do ordenamento legal que criminalizava as intervenções visuais no espaço público entre o tempo do surgimento do pixo nos anos 1980 e sua posterior criminalização especifica a partir de 1998. Coincidindo com a expansão do pixo como movimento urbano, intensificase também o olhar repressivo sobre o mesmo, tanto por parte da mídia, dos atores políticos e, finalmente do legislador. A questão aqui proposta é no sentido de compreender a relação entre os discursos midiáticos, políticos e jurídico sobre o pixo a partir do final dos anos 1980. De particular interesse é observar como as ações efetuadas nessas diversas esferas interferem umas nas outras, bem como se condicionam mutuamente. Assim, surge o questionamento sobre como o pixo vêm sendo utilizado como argumento e instrumento para a autolegitimação de determinadas políticas partidárias de determinados atores políticos.
O discurso repressivo e a criminalização específica Desde a primeira aparição da pixação (então chamada pichação) na mainstream mídia no fim dos anos 1980, o discurso midiático dominante tendeu para definir o pixo como sujeira, vandalismo ou em vários casos até como terrorismo. Consequentemente esse discurso já sugeriu a implícita ou muitas vezes explícita demanda de ações repressivas contra esse “inimigo público” por parte dos atores políticos. Assim, é possível observar em muitos momentos um ativo posicionamento por parte desses atores políticos em relação à pixação. É dessa maneira que uma das primeiras grandes entradas do pixo na cena midiática foi encabeçada pelo então prefeito de São Paulo, Jânio Quadros. No Suplemento número 105 [Ano 1] do Diário Oficial do Município de São Paulo de 1988, este 86
declarou guerra aos pixadores Juneca e Bilão. No artigo os pixadores eram chamados de “campeões dos atentados aos próprios públicos e municipais”, ameaçados de serem “processados com o maior rigor”, podendo assim, em um futuro próximo, “pichar a cadeia” (Jânio Quadros citado por Abrahão, 1988). Aqui já está claro que não foi fúria pessoal que levou Quadros a expressar-se tão publicamente contra o pixo. No seguinte período e até hoje o pixo está sendo chamado em inúmeros casos de “[r]abiscos que infernizam a vida da cidade” (Vallerio & Dias, 1989), de “sujeira” e “poluição”; enquanto os pixadores são chamados de “agressor[es]”, “vândalos noturnos” e “inimigos da cidade e da arte” (GSA, 1989), dentre tantas outras expressões do gênero. Tal discurso remanesceu como hegemônico por muito tempo e em muitas esferas, dominando a percepção sobre pixo na mídia, no discurso político e mesmo na linguagem cotidiana, influenciando na progressiva demanda de respostas legislativas cada vez mais repressivas. Obviamente não entendemos esse processo como linear, mas circular e com a sobreposição conflituosa de diferentes interesses que se manifestam nessas várias esferas discursivas. Após quase sete anos de tramitação no Congresso Nacional, é aprovada a Lei 9605/1998 (Lei dos Crimes ambientais) que trazia na redação original do artigo 65 a tipificação tanto do pixo quanto do grafite, que passaram a ser considerados como crimes contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural. Apesar de a lei ao ser promulgada ter como foco principal a proteção de bens ambientais naturais, o meio-ambiente passa a ser concebido de forma ampla, ou seja, para além dos elementos naturais, como o solo, o ar, a água, a fauna e a flora, passando a ser compreendido também a partir de seus elementos artificiais, ou seja, o espaço urbano, ou melhor dizendo nas palavras da própria lei: “o Ordenamento Urbano e o Patrimônio Cultural”. Embora o presente artigo não tenha como foco principal a relação da pixação com a produção do espaço urbano e com a formação do patrimônio cultural, vale a pena observar que desde o texto inicial da lei, já existe uma espécie de censura criminalizadora quanto ao uso desse espaço. Tanto o pixo como o grafite, eram entendidos como atos de “conspurcação”, ou conforme na acepção literal da palavra, “cobrir de imundície, sujar, macular, aviltar, corromper” (Porto Editorial, 2011).
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Essa censura criminalizadora é explicitamente declarada na Lei 12.408/2011, que estabeleceu a nova redação para a Lei 9605/98 a descriminalização condicionada da prática do grafite, quando realizada com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado mediante manifestação artística. Apesar de a nova redação sobre os delitos de pixação e grafite ter sido promulgada em 2011, o projeto de lei tramitou por quatro anos no Congresso Nacional. Esse pode ser um dos indicativos sobre como a construção do discurso de demonização da pixação em oposição ao grafite no plano do discurso legal, foi sendo desenvolvida na virada do século XX para o século XXI. No texto original do projeto de lei, a proposta era de explicitamente conceituar a pixação como um ato ilegal. O projeto de lei (PL 706/2007) trazia como justificativa clara o objetivo de “combater o crime de pichação”, porém diferenciando-a expressamente do grafite, que passa a ser’ entendido como “manifestação artística e cultural”. A proibição da venda de spray para menores de 18 anos é justificada na velha e ingênua função de prevenção geral e intimidadora da norma penal.
ameaça séria à sociedade, mas como um sujeito precário, “o jovem transviado”, que só deve ser guiado na busca do caminho certo. Como já exibido no exemplo de Juneca o modelo para essa conversão muitas vezes inclui o grafite, como alternativa “boa”, “elaborada”, “criativa” e “artística” ao “rabisco”, à “sujeira” que a pixação representa.
O texto final da lei coloca o Brasil como o único país do mundo em que a legislação penal normatiza duas categorias de intervenções visuais no espaço urbano de forma dicotômica, através da oposição dos conceitos de “arte” e “conspurcação”. Isso porque a pixação segue criminalizada e equiparada ao ato de sujar, macular, manchar, enquanto o grafite é elevado ao status de arte, desde que realizado com a autorização do proprietário e com o “objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado mediante manifestação artística”.
O discurso domesticador-reabilitador Também pode ser identificado um segundo discurso midiático, que desde os últimos anos da década de 1980 discute o pixo de uma outra maneira. O mesmo Juneca, que foi um dos primeiros pixadores a serem publicamente hostilizados e “demonizados”, foi também um dos primeiros sujeitos desse discurso. Ainda em 1988 Juneca foi citado na Folha de São Paulo com as palavras: “Não picho muros há um ano e agora só faço arte” (Folha de São Paulo, 1988). O próprio Juneca menciona que já Luiza Erundina de Souza, a primeira prefeita de São Paulo pelo PT, ficou interessada nesse sujeito tanto odiado por Jânio Quadros. Em entrevista nos mostra fotos nas quais políticos notórios como a prefeita Marta Suplicy (PT) estão posando com ele (Juneca, 2015). Décadas depois os jornais paulistanos ainda se interessam em Juneca, identificando-o como “pichador regenerado” (Jornal da Tarde, 2002), que virou “artista respeitado”. E, como para afirmar que essa “evolução do artista” (Jabaquara em Notícias, 2002) não é apenas um caso único, mas um modelo para a regeneração ou reabilitação dos pichadores, realça-se que “Agora que virou grafiteiro, Juneca fica pichando quem suja a cidade” (Jornal da Tarde, 2002). Esse discurso pode ser chamado “domesticador-reabilitador”, em oposição ao “discurso repressivo” acima mencionado. Utilizando-se de linhas de argumentação social-pedagógica, ele promove uma imagem bem diferente do pixador. Este vem sendo apresentado não como vândalo, conspurcador e 88
Personagem Felício Feliz da cartilha “Muita agua e sabão... mas pichação não!” (Fonte: Secco, 2008, p. 5)
Esse modelo vem sendo aplicado em programas educacionais nas escolas que admiram-se com o fato de que “o grafite era considerado sinônimo de pichação e não ganhava espaço nas discussões sobre arte” (Trevisan, 2012), e apontam a importância de “compreender as diferenças entre pichação (código fechado de pouca variação, utilizado por grupos específicos na demarcação de um território) e grafitagem (linguagem elaborada por artistas para transmitir uma ideologia)” (Araújo, 2007). Nesse sentido, tomamos como exemplo uma cartilha pedagógica publicada pela a Fundação Educar Dpaschoal que conta a história de crianças orientadas pelo protagonista “Felício Feliz”, que “[...] resolveram comentar com todos os amigos que as tintas usadas para pichar muros e monumentos poderiam ser usadas para enfeitar a cidade” ou ser entregues aos professores para que esses “as usem para ensinar o grafite, uma forma de arte que se expressa nas ruas...” (Secco, 2008, p. 12 seg). É importante notar que no plano político administrativo, como por exemplo no âmbito da elaboração das políticas públicas para a juventude, esse 89
“discurso domesticador-reabilitador” vem sendo promovido especialmente por atores políticos adeptos de uma perspectiva política entendida como progressista. Tomamos como exemplo a atual gestão da prefeitura de São Paulo em que tal orientação vem prevalecendo. Como afirmam representantes da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura, as atuais políticas intencionam lidar com a pixação não mais através de aplicação de estratégias repressivas, mas criando oportunidades para os jovens, especialmente para aqueles que encontram-se em situações “desfavorecidas”, e que portanto, ainda se expressam de uma maneira “inadequada” (Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, 2015).
E o pixo volta ao Congresso Nacional Em março desse ano foi proposta na Câmara dos Deputados a PL 985/2015 que originalmente propunha o aumento da pena para o crime de pixação para 6 meses a 2 anos de detenção e multa, bem como determinava a perda de benefícios de usuários dos programas do Governo Federal tais como o Bolsa Família, Bolsa Alimentação, Programa Auxílio Gás, dentre outros programas sociais. Na justificativa do projeto o pixador é identificado como uma espécie de figura lombrosiana da era neoliberal que além de ser “desempregado, com baixa remuneração ou que exercem alguma atividade informal”, tira proveito de recursos públicos “sendo em sua maioria beneficiários de programas assistenciais do Governo Federal”. Essa associação da imagem do pichador com o sujeito pobre, que além de usufruir do dinheiro público através de programas assistenciais e ainda usurpa desse dinheiro para praticar outros crimes é reforçada na justificativa da emenda número 1 de 2015: A prática do crime resta ainda mais reprovável quando atribuída à beneficiários de programas e benefícios sociais concebidos pelo Governo Federal, por configurar verdadeiro acinte à sociedade como um todo, que recursos públicos tenham sua destinação desvirtuada para a prática de crimes contra o patrimônio das cidades e contra o meio ambiente. O contexto político em que a pixação está sendo discutida é também o reflexo do tensionamento, entre os discursos misóginos, homofóbicos e fundamentalistas da bancada conservadora em oposição aos discursos sociais democratas da bancada mais progressista do Congresso Nacional. No entanto, apesar de aparentemente antitéticos, ambos os discursos tem em comum o uso da fala criminalizante para produção de um Outro, seja ele demonizado, seja ele precarizado. No caso do primeiro discurso, pautado no ressentimento de classe, o sujeito é essencializado e colocado na condição de “bom inimigo” (Young, 2003). Young nos lembra que para a criação desse “bom inimigo” devemos primeiramente nos convencer de que esses sujeitos são a grande causa dos problemas sociais e que são intrinsicamente diferente de nós, ou seja, são naturalmente maus, etc. (Young, 2003, p. 400).
a PL 985/2015 e não fala explicitamente do pixador, mas sim da necessidade de combater a vulnerabilidade dos sujeitos marginalizados através da reinserção social e não da repressão. Após discussão e votação, foi aprovada na Câmara, a redação final da PL 985-A/2015, propondo a punição da pichação com penas de prestação de serviços à comunidade e reparação do dano à vítima. 2013 - Monumento às Bandeiras amanhece pichado em São Pau
Conclusão Esse artigo intencionou analisar a criminalização da pixação. Conforme afirmamos acima, inúmeras são as possibilidades de abordagem do pixo ou do pixo como meta categoria analítica. Procuramos aqui pensa-lo como uma das tantas manifestações da cultura popular, no contexto específico da metrópole paulista nas últimas décadas. Procuramos demostrar como o pixo a partir do final dos anos oitenta é tratado nas diferentes esferas discursivas - midiática, política e jurídica. Assim, pode-se observar duas linhas principais para discutir o fenômeno da pixação, que demandam duas respostas distintas por parte do Estado: o “discurso repressivo” que entende o pixo como algo a ser combatido e neutralizado com toda rigidez, em todas as dimensões do poder punitivo; o “discurso domesticador-reabilitador” ao contrário, supõe que o pixo é fruto de uma inaptidão gerada pela desigualdade social que precisa ser combatida através de “boas” politicas sociais e educacionais. Outro aspecto fundamental a ser observado é a instrumentalidade da figura do pixador para atores políticos oponentes na construção dos próprios Outros. Independente da perspectiva política, eles precisam dessa figura para constituir e legitimar a própria identidade e as políticas por eles promovidas. Para além disso a discussão sobre o pixo abre um terreno fértil para que esses atores possam justamente contrastar suas perspectivas opostas. Discutindo-se o pixo como cultura popular, é interessante pensarmos em como o mesmo seguirá sua trajetória, visto que muitas das expressões de cultura popular, já passaram por os diferentes processos de demonização, criminalização, domesticação em direção à apropriação pela indústria cultural. O grande questionamento é sobre até onde a pixação poderá ou não seguir por uma estrada emancipatória e como os pixadores poderiam exercer um papel proativo nesse processo, seja criando situações adequadas aos seus interesses e necessidades, bem como sendo porta-vozes diretos de suas demandas.
Já o segundo discurso, do Outro precarizado, ou como também Jock Young (2011) chamou de “romantizado”, aparece na última proposta de emenda 90
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Seleção de decisões pelas organizadoras Carol Monteiro Reis, Nayara dos Santos Juvenal e Viviane Alves de Morais. DIREITO AUTORAL STJ
JURISPRUDÊNCIA
“RECURSOS ESPECIAIS. 1. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO DECORRENTE DE VIOLAÇÃO DE DIREITO MORAL E PATRIMONIAL DO AUTOR DE OBRA ARQUITETÔNICA, REPRODUZIDA EM LATAS DE TINTAS E MATERIAL PUBLICITÁRIO, SEM SUA AUTORIZAÇÃO E INDICAÇÃO DO CRÉDITO AUTORAL. 2. AUTORIZAÇÃO DO PROPRIETÁRIO DA CASA RETRATADA, MEDIANTE CORRELATA REMUNERAÇÃO (CONTRATO DE CESSÃO DE USO DE IMAGEM). IRRELEVÂNCIA. ADQUIRENTE DA OBRA, EM REGRA, NÃO INCORPORA DIREITOS AUTORAIS. 3. ESCUSA DO ART. 48 DA LEI N. 9.610/1998 (OBRA SITUADA EM LOGRADOURO PÚBLICO). INAPLICABILIDADE. UTILIZAÇÃO DA OBRA COM FINALIDADE COMERCIAL. 4. SANÇÃO CIVIL. SUBSUNÇÃO DO FATO À NORMA SANCIONADORA. NÃO VERIFICAÇÃO. 5. VIOLAÇÃO DE DIREITO PATRIMONIAL DO AUTOR. RECONHECIMENTO. MENSURAÇÃO CERTA E DETERMINADA DO DANO MATERIAL. NECESSIDADE. 6. VIOLAÇÃO DE DIREITO MORAL DO AUTOR. AUSÊNCIA DO CRÉDITO AUTORAL. SUFICIÊNCIA PARA A CARACTERIZAÇÃO DE DANO MORAL INDENIZÁVEL. 7. RECURSO ESPECIAL DA FABRICANTE DE TINTAS IMPROVIDO; E RECURSO ESPECIAL INTERPOSTO PELO AUTOR DA OBRA PARCIALMENTE PROVIDO. 1. Especificamente em relação às obras arquitetônicas, o projeto e o esboço, elaborados por profissionais legalmente habilitados para tanto, e a edificação são formas de expressão daquelas. A construção consiste no meio físico em que a obra arquitetônica, concebida previamente no respectivo projeto, veio a se plasmar. A utilização (no caso, com finalidade lucrativa) da imagem da obra arquitetônica, representada, por fotografias, em propagandas e latas de tintas fabricadas pela demandada encontra-se, inarredavelmente, dentro do espectro de proteção da Lei de Proteção dos Direitos Autorais. 2. A aquisição, em si, de uma obra intelectual não transfere automaticamente os direitos autorais, salvo disposição expressa em contrário e ressalvado, naturalmente, o modo de utilização intrínseco à finalidade da aquisição. Na hipótese dos autos, ante o silêncio do contrato, o proprietário da casa, adquirente da obra arquitetônica, não incorporou em seu patrimônio jurídico o direito autoral de representála por meio de fotografias, com fins comerciais, tampouco o de cedê-lo a outrem, já que, em regra, a forma não lhe pertence e o aludido modo de utilização refoge da finalidade de aquisição. Assim, a autorização por ele dada não infirma os direitos do arquiteto, titular do direito sob comento. 3. Em razão de as obras situadas permanentemente em logradouros públicos integrarem de
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modo indissociável o meio ambiente, a compor a paisagem como um todo, sua representação (por meio de pinturas, desenhos, fotografias e procedimentos audiovisuais), por qualquer observador, não configura, em princípio, violação ao direito autoral. A obra arquitetônica, ainda que situada permanentemente em propriedade privada, sendo possível visualizá-la a partir de um local público, integra, de igual modo, o meio ambiente e a paisagem como um todo, a viabilizar, nesse contexto (paisagístico) a sua representação, o que, também, não conduziria à violação do direito do autor. A hipótese, todavia, não é de mera representação da paisagem, em que inserida a obra arquitetônica, mas sim de representação unicamente da obra arquitetônica, com a finalidade lucrativa. Refoge, em absoluto, do âmbito de aplicação do art. 48 da Lei n. 9.610/1998, a representação por terceiro de obra arquitetônica com finalidade comercial, que, como detidamente demonstrado, consubstancia direito exclusivo de seu autor. 4. O art. 103, da Lei n. 9.610/1998, veicula sanção civil específica pela violação de determinado direito autoral (editar fraudulentamente obra sem autorização do titular), e não, propriamente, um parâmetro de reparação pelo dano material percebido pelo autor da obra. Na espécie, não houve edição/reprodução da obra, compreendida esta como a confecção de cópia ou exemplar da obra em si, e, muito menos, reprodução fraudulenta da obra, que pressupõe má-fé, ou seja, deliberado propósito de contrafação. 5. A mensuração do dano material deve ser certa e determinada, não comportando meras conjecturas. In casu, o autor deve obter a reparação pela violação de direito patrimonial, consistente na remuneração pela representação de sua obra ajustada, devidamente atualizada, nos exatos termos em que se deu a contratação entre a fabricante de tintas, de renome no seguimento, e o suposto titular do direito autoral, os proprietários da casa retratada. Inexiste razão idônea para compreender que esta contratação não observou a praxe mercadológica para a concessão dos direitos de utilização da imagem, com a prática de valores igualmente condizentes com o objeto contratado. 6. A criação intelectual é expressão artística do indivíduo; a obra, como criação do espírito, guarda em si aspectos indissociáveis da personalidade de seu criador. Nessa extensão, a defesa e a proteção da autoria e da integridade da obra ressaem como direitos da personalidade do autor, irrenunciáveis e inalienáveis. Por conseguinte, a mera utilização da obra, sem a devida atribuição do crédito autoral representa, por si, violação de um direito da personalidade do autor e, como tal, indenizável. 7. Recurso especial da fabricante de tintas improvido; e recurso especial do autor da obra parcialmente provido.” (STJ, REsp 1562617 / SP, Relator Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, Data do Julgamento 22/11/2016, DJe 30/11/2016) “RECURSOS ESPECIAIS. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS AJUIZADA POR ARTISTA PLÁSTICO. ESCULTURA EDIFICADA EM LOGRADOURO PÚBLICO. REPRESENTAÇÃO DA OBRA, SEM AUTORIZAÇÃO DO AUTOR, EM INGRESSOS DE PARTIDA DE FUTEBOL ENTRE A SELEÇÃO BRASILEIRA E A SELEÇÃO VENEZUELANA (ELIMINATÓRIAS DA COPA DO MUNDO FIFA 2010). 1. A Lei 9.610/98 - evidenciando a dissociação entre o suporte físico da obra intelectual e o direito autoral em si - estabelece a regra de que a aquisição do original de uma obra, ou de exemplar, não confere ao adquirente qualquer dos direitos patrimoniais do autor, salvo convenção em contrário entre as partes e os casos excepcionais legalmente previstos 98
(artigo 37). 2. O artigo 77 da referida lei erigiu exceção à supracitada norma, ao dispor que a transferência da propriedade do corpus mechanicum da obra de arte plástica (o quadro, a gravura, a escultura, entre outras formas) implica apenas a transmissão, ao comprador, do direito de expô-la ao público, o que não alcança os direitos morais do autor nem o direito exclusivo de exploração econômica com a sua reprodução, desde que inexistente disposição contratual em sentido diverso. 3. No mesmo sentido, releva-se imprescindível a prévia e expressa autorização do autor, salvo convenção em contrário, para a reprodução da obra sob encomenda, objeto de contrato de prestação de serviços, no qual o encomendante (tomador) apenas sugere o tema ou solicita a criação, sem participar, concretamente, de sua consecução. 4. Nada obstante, o artigo 48 da Lei 9.610/98 autoriza que a obra de arte situada permanentemente em logradouro público seja livremente representada por meio de pinturas, desenhos, fotografias e procedimentos audiovisuais, instituindo, portanto, expressa limitação ao direito patrimonial do artista plástico. Assim, a reprodução meramente ilustrativa da obra situada em local destinado ao uso comum de toda a população (tais como praças, jardins, passeios, hortos, avenidas, ruas, museus, entidades culturais) prescinde de autorização prévia do autor, tendo em vista seu papel eminentemente cultural, capaz de contribuir com a evolução social e o progresso humano. 5. A exceção prevista no supracitado dispositivo legal não autoriza, contudo, o aproveitamento subsequente da representação da obra para fins comerciais (diretos ou indiretos), sem a prévia anuência do autor, ressalvada, entretanto, a hipótese em que o ato de reprodução em si consubstanciar evidente divulgação do patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico ou paisagístico. Precedente da Quarta Turma: REsp 951.521/MA, Rel. Ministro Aldir Passarinho Júnior, julgado em 22.03.2011, DJe 11.05.2011. 6. No caso concreto, ao confeccionar ingressos para evento esportivo internacional realizado na cidade de Campo Grande (partida de futebol entre a Seleção Brasileira e a Seleção da Venezuela, válida pelas eliminatórias da Copa do Mundo), a Confederação Brasileira de Futebol CBF utilizou-se de fotografia de obra de arte edificada na Praça das Araras, na qual retratado o contexto ambiental circundante. A propósito, fotografias com o mesmo conteúdo constam no sítio eletrônico da Prefeitura de Campo Grande, o que demonstra ser a obra de arte representativa do próprio ponto turístico. 7. A reprodução da fotografia da obra nos ingressos da competição revelou-se, diretamente, vinculada ao escopo de divulgação do patrimônio turístico da cidade, sem qualquer reflexo no interesse do público em participar do evento. Ora, certamente, a partida de futebol entre a Seleção Brasileira e a Seleção Venezuelana atrairia público de naturalidade e nacionalidade diversas, bem como a atenção da mídia internacional. A CBF, então, no exercício de sua atividade de produção e promoção de eventos esportivos e de administração da Seleção Brasileira de Futebol (cuja contribuição ao turismo do Brasil é inegável), utilizou-se dos ingressos para promover ponto turístico da cidade onde realizada a competição. 8. Ademais, a utilização da referida fotografia, inexoravelmente, não significou qualquer incremento ao número de espectadores do jogo, mas sim o renome da Seleção Brasileira de Futebol, cujo reconhecimento como patrimônio cultural do país é, inclusive, objeto de projeto de lei na Câmara dos Deputados (PL 1.429/07). 9. Assim, não se verifica a contrafação alegada na inicial, uma vez que a conduta das rés encontra subsunção na norma disposta 99
no artigo 48 da Lei 9.610/98. 10. Recursos especiais das litisconsortes passivas providos para julgar improcedente a pretensão formulada na inicial, condenando o autor ao pagamento das custas e dos honorários advocatícios, estes arbitrados em 10% (dez por cento) sobre o valor da causa.” (STJ, REsp 1438343 / MS, Relator Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, Data do Julgamento 01/12/2016, DJe 22/02/2017)
“RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. DIREITO AUTORAL. VIOLAÇÃO. OBRA ARTÍSTICA. GRAFITISMO. MANIFESTAÇÃO CULTURAL. PROTEÇÃO LEGAL. EXPLORAÇÃO COMERCIAL. AUTORIZAÇÃO DO AUTOR. INEXISTÊNCIA. LOGRADOURO PÚBLICO. PUBLICIDADE. FINS LUCRATIVOS. CONSENTIMENTO. IMPRESCINDIBILIDADE. ART. 48 DA LEI Nº 9.610/1998 (LDA). PREJUÍZO. EXISTÊNCIA. RESPONSABILIDADE CIVIL. INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS E MATERIAIS. CABIMENTO. CRÉDITO. IDENTIFICAÇÃO. INDISPONIBILIDADE. ARTS. 24 e 79, §1º, DA LDA. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. AUSÊNCIA. 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ). 2. Cinge-se a controvérsia a aferir se a conduta da ré, de utilizar obra de arte do autor, localizada em logradouro público, em proveito econômico e comercial próprio, sem a necessária autorização do criador, sem lhe oferecer remuneração ou indicar seu crédito, caracteriza infração ao art. 48 da Lei nº 9.610/1998 (LDA). 3. A obra artística representada pelo grafite é protegida pela Lei de Direitos Autorais, sendo que eventual exposição de desenho sem o consentimento do autor, sua identificação por meio de créditos (art. 79, § 1º, da Lei 9.610/1988) ou remuneração retratam contrafação passível de indenização moral e patrimonial. 4. Somente ao autor é conferida a possibilidade de permitir a exploração econômica ou comercial de sua obra de arte, ainda que esta se encontre em logradouro público. 5. Recurso especial não provido.” (STJ, REsp 1.746.739 / SP, Relator Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, Data do Julgamento 25/08/2020, DJe 31/08/2020) TJRJ “REPRESENTAÇÃO POR INCONSTITUCIONALIDADE. LEI No 5.074/2014, QUE DISPÕE SOBRE A ARTE EM GRAFITE NO ÂMBITO DO MUNICÍPIO DE VOLTA REDONDA. VÍCIO DE INICIATIVA. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. Representação por Inconstitucionalidade da Lei no 5.074/2014 do Município de Volta Redonda, de iniciativa parlamentar, que “dispõe sobre a arte em grafite no âmbito do Município de Volta Redonda e dá outras providências”. Patente violação à reserva de iniciativa do Chefe do Poder Executivo em matéria de leis que disponham sobre gestão de espaços públicos. Violação ao princípio da separação dos poderes. Criação de ônus financeiro para o Município sem previsão orçamentária. Ofensa aos artigos 7o, 112, §1o, II, ‘d’ e 211, I, da Constituição Estadual. Procedência da Representação.” (TJRJ, Direta de Inconstitucionalidade n.º 0003864-22.2015.8.19.0000, Relator Des. Ricardo Rodrigues Cardozo, Data do Julgamento 14/03/2016)
“GRAFITE. DIREITO AUTORAL. UTILIZAÇÃO DE MURAL EM CLIPE MUSICAL. PLEITO INDENIZATÓRIO. SETENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. - Trata-se de ação indenizatória por pretensa violação ao direito autoral do autor, ao argumento de que o mural de sua autoria foi utilizado sem prévia autorização ou pagamento em clipe musical, pelo que pretende ser ressarcido. - A sentença julgou improcedentes os pedidos com fundamento no art. 48 da Lei 9.610/98 que autoriza que a obra de arte situada permanentemente em logradouro público seja livremente representada por meio de pinturas, desenhos, fotografias e procedimentos audiovisuais, instituindo, portanto, expressa limitação ao direito patrimonial do artista plástico. Assim, a reprodução meramente ilustrativa da obra situada em local destinado ao uso comum de toda a população (tais como praças, jardins, passeios, hortos, avenidas, ruas, museus, entidades culturais) prescinde de autorização prévia do autor, tendo em vista seu papel eminentemente cultural, capaz de contribuir com a evolução social e o progresso humano. - O Superior Tribunal de Justiça, em situação semelhante, entende que a exigência de prévia autorização para reprodução de obra, quando realizada em logradouro público é despicienda por expressa autorização legal, desde que o aproveitamento subsequente da representação da mesma não possua fins comerciais (diretos ou indiretos). - Apesar do videoclipe pretender a divulgação do estilo de dança – “passinho” - que teve origem em comunidades, não resta dúvida de que os réus estariam se beneficiando comercialmente da obra, objeto da ação, que pertence à cultura chamada “underground” formada pelo graffiti. Deste modo, ao enquadrar as imagens como cenário, nota-se claramente que a apelada buscou agregar o valor da arte de um artista renomado do “Graffiti” nacional ao seu produto, sem, contudo, sequer citar a autoria tampouco remunerá-lo, atitude que deve ser repudiada por este Egrégio Tribunal. - Deste modo, ao enquadrar as imagens como cenário, nota-se, claramente, que a apelada buscou agregar o valor da arte de um artista renomado do “Graffiti” nacional ao seu produto, sem, contudo, sequer citar a autoria tampouco remunerá-lo, atitude que deve ser repudiada por este Egrégio Tribunal. - Outrossim, não pode haver confusão entre Espaço Público e Domínio Público, pois em nada se assemelham. Espaço público se refere ao logradouro em que a obra está exposta, se público ou privado, ao passo que Domínio Público, este sim, trata do direito da sociedade de livremente usufruíla, sem qualquer custo ou necessidade de autorização. Logo, não é por estar em logradouro público que uma obra artística é, necessariamente, de domínio público. - In casu, o dano moral é in re ipsa, eis que se presume em decorrência de fatos causadores de angústia, apreensão, constrangimento e preocupações impostas ao autor e seu direito moral personalíssimo de ver seu nome associado à autoria da referida “arte de rua” propagandeada em videoclip. Tal situação transcende aos meros aborrecimentos cotidianos, configurando violação à sua dignidade, nos termos do 5o, X e art. 1o, caput, ambos da CF/88, que está apta a ser reparada por meio de indenização em pecúnia. PARCIAL PROVIMENTO DO RECURSO.” (TJRJ, Apelação n.º 0306287-73.2015.8.19.0001, Relator Des. Flávia Romano de Rezende, Data do Julgamento 08/08/2018) TJRS “RESPONSABILIDADE CIVIL. DIREITO AUTORAL. GRAFITISMO. REPRODUÇÃO EM FOLDER PUBLICITÁRIO. MONTAGEM NÃO AUTORIZAÇÃO. SUPRESSÃO DE
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AUTORIA. DANO MORAL IN RE IPSA TIPIFICADO. Ausente prévia e expressa autorização do autor para reprodução de sua obra artística, bem como a falta de indicação da autoria e da supressão de parte de sua assinatura, circunstâncias que caracterizam o agir ilícito do réu, tipificada a ofensa aos direitos autorais, insculpidos no artigo 24, incisos II e IV, primeira parte, da Lei 9.610/98. Dano moral in re ipsa. Quantificação adequada. Precedentes jurisprudenciais. Apelação desprovida.” (TJRS, Apelação n.º 0327823-17.2010.8.21.7000, Relator Des. Marilene Bonzanini Bernardi, Data do Julgamento 15/10/2010, DJe 07/01/2011) TJSP “EMENTA DIREITO AUTORAL – INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS Improcedência - Obra realizada em logradouro público Reprodução para fins de divulgação de veículo comercialização por terceiro Norma do artigo 48, da Lei no 9.610/98, que não afasta a responsabilidade pela reprodução indevida (para fins lucrativos ou comerciais) Direito moral dos autores de terem seus nomes ou sinal indicado Direito patrimonial que reside no fato de não ter sido consentida a divulgação das obras para fins comerciais Indenização por dano material e moral devida – Danos morais Ocorrência – Arbitramento 20.000,00 (vinte mil reais) para cada requerente conforme pleiteado Correção monetaria a partir do arbitramento (Súmula no 362 do STJ), acrescidos de juros legais de mora a partir da data do evento danoso, a teor da Súmula 54, do STJ Montante arbitrado que se encontra em consonância com a regra do artigo 944 do Código Civil Danos materiais Devidos Fixação em conformidade com precedentes desta Egrégia.” (TJSP, Apelação n.º 0215338-75.2010.8.26.0100, Relator Des. Salles Rossi, Data do Julgamento 20/03/2013) “GRAFITISMO. MANIFESTAÇÃO ARTÍSTICA E CULTURAL. PROTEÇÃO PELOS DIREITOS AUTORAIS. PEDIDO DE INDENIZAÇÃO. USO COMERCIAL. AUSÊNCIA DE IDENTIFICAÇÃO DOS AUTORES NOS DESENHOS. PRESUNÇÃO DE CONHECIMENTO PELA RÉ QUE NÃO TEM SUSTENTAÇÃO. PROTEÇÃO LEGAL QUE ADVÉM DA POSSIBILIDADE DE IDENTIFICAÇÃO DO AUTOR DO GRAFITE. IMPROCEDÊNCIA MANTIDA. RECURSO NÃO PROVIDO. 1. Grafite. Descriminalização da conduta pela Lei no 9.605/98. Contribuição para o desenvolvimento da atividade. Manifestação artística e cultural. Proteção pelos direitos autorais. 2. Pedido de indenização. Uso de grafite dos autores em publicação de revista. Ausência de identificação da autoria do grafite nos desenhos. Proteção legal que exsurge da possibilidade de identificação da autoria. Presunção de conhecimento da autoria pela ré que não se sustenta. 3. Convenção de Berna. País signatário. Identificação como fato gerador de direitos. 4. Ausência de conduta ilícita da ré. Grafite em local público, sem assinatura. Ausência que faz incidir a regra do art. 45, inc. II, da Lei dos Direitos Autorais. Domínio público. Improcedência mantida. Recurso não provido.” (TJSP, Apelação n.º 0139036-39.2009.8.26.0100, Relator Des. Carlos Alberto Garbi, Data do Julgamento 25/02/2014) “DIREITO AUTORAL. DIREITOS PATRIMONIAIS E MORAIS DE AUTOR. REPRODUÇÃO DE OBRA DO TIPO ‘GRAFITE’ EM FOTOGRAFIAS INSERIDAS EM MATÉRIA DE REVISTA AUTOMOBILÍSTICA EDITADA PELA RÉ. DIREITOS 102
PATRIMONIAIS NÃO VULNERADOS. OBRA SITUADA PERMANENTEMENTE EM LOGRADOURO PÚBLICO, CUJA REPRODUÇÃO É LIVRE. INTELIGÊNCIA DO ART. 48 DA LEI 9.610/98. AUSÊNCIA, OUTROSSIM, DE INTUITO COMERCIAL DA REPRODUÇÃO, DADO O CARÁTER NITIDAMENTE JORNALÍSTICO DA MATÉRIA. DIREITOS MORAIS, POR OUTRO LADO, VIOLADOS. IMAGEM REPRODUZIDA DA OBRA QUE FOI MANIPULADA DIGITALMENTE, AO PONTO DE RESTAR DESCARACTERIZADA E DEFORMADA. MANUTENÇÃO DA INCOLUMIDADE DA OBRA OU, AO REVÉS, INTRODUÇÃO DE MODIFICAÇÃO SUPERVENIENTE QUE CONSISTEM EM PRERROGATIVAS PERSONALÍSSIMAS DO CRIADOR (ART. 24, IV E V, DA LEI 9.610/98). DANO MORAL CARACTERIZADO, NA HIPÓTESE, ‘IN RE IPSA’, MEDIANTE A PUBLICAÇÃO. RESPONSABILIDADE CIVIL DA RÉ CARACTERIZADA. ‘QUANTUM’ ARBITRADO COM RAZOABILIDADE, PELA SENTENÇA. AÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE. SENTENÇA REFORMADA EM PARTE. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.” (TJSP, Apelação n.º 013908490.2012.8.26.0100, Relator Des. Vito Guglielmi, Data do Julgamento 17/03/2016) “Direito do autor. Grafite. Caso em que se discute a lesão pelo aproveitamento, como imagem de fundo, da obra ‘PANDA”, grafitada em local público, do ensaio fotográfico (moda) denominado “Mochileira”. Sentido de acessoriedade que retira a ilicitude do emprego da obra para finalidade específica. Danos materiais e danos morais inexistentes. Não provimento.” (TJSP, Apelação n.º 100166919.2015.8.26.0011, Relator Des. Enio Zuliani, Data do Julgamento 05/05/2016) “DIREITO AUTORAL INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS Improcedência - Obra realizada em logradouro público - Reprodução para fins de divulgação de automóvel da marca - Norma do artigo 48, da Lei no 9.610/98, que não afasta a responsabilidade pela reprodução indevida (para fins lucrativos ou comerciais) - Direito moral dos autores de terem seus nomes ou sinal indicado Direito patrimonial que reside no fato de não ter sido consentida a divulgação de sua obra para fins comerciais Indenização devida Sentença reformada Recurso Provido.” (TJSP, Apelação n.º 1007409-55.2015.8.26.0011, Relator Des. Moreira Viegas, Data do Julgamento 12/04/2017) “INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS - Pedido fundado na reprodução de grafite existente no “Beco do Batman” de titularidade do requerente - Improcedência do pedido - Inconformismo - Desacolhimento - Imagem reproduzida como pano de fundo em campanha publicitária do Shopping Morumbi intitulada “Viva a cidade que inspira sua moda. Homenagem aos 457 anos de São Paulo” – Danos materiais e morais não demonstrados – Obra situada permanentemente em logradouro público - Inteligência do art. 48 da Lei 9.610/98 – Aplicação do disposto no art. 252 do RITJSP – Sentença mantida - Recurso desprovido.” (TJSP, Apelação n.º 0193274-37.2011.8.26.0100, Relator Des. J. L. Mônaco da Silva, Data do Julgamento 07/02/2018) “DIREITOS AUTORAIS. GRAFITE. Caso em que se discute a lesão pelo aproveitamento, como imagem de fundo grafitada em local público, de ensaio fotográfico (moda). Sentido de acessoriedade que retira a ilicitude do emprego da obra para finalidade específica. Rejeição do dano moral que se preserva. DIREITO MORAL DO AUTOR. A atribuição da paternidade da obra artistica a outrem é 103
modalidade de dano moral in re ipsa. A ausência de citação do nome do autor pode ser relevada em determinadas circunstâncias, sendo, contudo, inadmissível que se atribua a outrem a produção própria. Testemunhar o seu trabalho como obra de terceiro perturba o íntimo do artista (inclusive MICHELANGELO passou pela experiência), o que permite qualificar o episódio como sentimento ruim e indutor da lesão compensatória. HONORÁRIOS. Reforma parcial. Sucumbência reciproca. Apesar de correta a incidência do art. 21, deve ser fixada a verba honorária em 10% do valor da condenação, para cada qual, devido ao trabalho desenvolvido de acordo com as circunstâncias previstas no artigo 20, §4o, do Código de Processo Civil.” (TJSP, Apelação n.º 103408479.2015.8.26.0100, Relator Des. Enio Zuliani, Data do Julgamento 27/02/2018) “APELAÇÃO. DIREITO AUTORAL. OBRA ARTÍSTICA. Pleito ajuizado por artista em face de empresa, ao argumento de que esta utilizou sua obra artística indevidamente em campanha publicitária. Sentença de procedência, com condenação da ré ao pagamento de indenização por danos materiais, os quais deverão ser apurados em sede de liquidação por arbitramento. Condenação da ré, ainda, ao pagamento de indenização por danos morais decorrentes da não indicação de autoria da obra artística. Apelo do autor. Consistência. Sentença que não considerou a utilização do grafite arte de autoria do apelante, pela requerida, em filme publicitário. Conteúdo divulgado no Youtube e no site da apelada. Nítida finalidade comercial. Autor que também deverá ser indenizado pelos danos materiais decorrentes do uso de sua obra no filme publicitário. Ausência de indicação da autoria da obra artística no filme publicitário que consubstancia dano moral do autor, consoante a Lei no 9.610/98. Majoração do valor dos danos morais de R$ 10.000,00 para R$ 25.000,00, notadamente porque a utilização do grafite no filme publicitário foi maior do que no catálogo de fotografias, além de conter alteração digital da obra do apelante. RECURSO PROVIDO.” (TJSP, Apelação n.º 0037387-55.2014.8.26.0100, Relator Des. Viviani Nicolau, Data do Julgamento 19/02/2019) “DIREITO AUTORAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANO MATERIAL E MORAL. REPRODUÇÃO DE OBRAS DOS AUTORES, CONSISTENTES EM MURAIS ELABORADOS PELA TÉCNICA DE ‘GRAFITTI’ E EXPOSTOS PERMANENTEMENTE EM LOGRADOURO PÚBLICO DA CAPITAL, COMO CENÁRIO DE FOTOGRAFIAS DE CAMPANHA PUBLICITÁRIA DA RÉ, QUE EXPLORA A ATIVIDADE DE VESTUÁRIO. DIREITOS DOS AUTORES NÃO VULNERADOS. OBRAS SITUADAS PERMANENTEMENTE EM LOGRADOURO PÚBLICO, CUJA REPRODUÇÃO É LIVRE. INTELIGÊNCIA DO ART. 48 DA LEI 9.610/98. REPRODUÇÃO DAS OBRAS, OUTROSSIM, QUE NÃO CONSTITUIU O OBJETIVO PRINCIPAL DAS FOTOGRAFIAS, CUJA FINALIDADE ERA DE DIVULGAÇÃO DE PEÇAS DE VESTUÁRIO. AÇÃO IMPROCEDENTE. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO IMPROVIDO.” (TJSP, Apelação n.º 1004260-39.2019.8.26.0099, Relator Des. Vito Guglielmi, Data do Julgamento 25/06/2020) “DIREITO AUTORAL - INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS Improcedência - Obra realizada em logradouro público - Reprodução para fins de divulgação de roupas da marca - Norma do artigo 48, da Lei no 9.610/98, que 104
não afasta a responsabilidade pela reprodução indevida (para fins lucrativos ou comerciais) - Direito moral do autor de ter seu nome ou sinal indicado - Direito patrimonial que reside no fato de não ter sido consentida a divulgação de sua obra para fins comerciais Indenização devida Sentença reformada Recurso Provido.” (TJSP, Apelação n.º 1045721-22.2018.8.26.0100, Relator Des. Moreira Viegas, Data do Julgamento 10/07/2019) “APELAÇÃO. DIREITO AUTORAL. DANO MATERIAL E MORAL. PLEITO AJUIZADO POR ARTISTA DISCUTINDO A LESÃO PELO APROVEITAMENTO COMO IMAGEM DE FUNDO GRAFITADA EM LOCAL PÚBLICO, DE SUA AUTORIA, EM CAMPANHA PUBLICITÁRIA, SEM AUTORIZAÇÃO E SEM IDENTIFICAÇÃO. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. INSURGÊNCIA DA REQUERIDA. NORMA DO ARTIGO 48, DA LEI No 9.610/98, QUE NÃO AFASTA A RESPONSABILIDADE PELA REPRODUÇÃO INDEVIDA (PARA FINS LUCRATIVOS OU COMERCIAIS). DANO MATERIAL E MORAL. CABIMENTO. INDEVIDA UTILIZAÇÃO DA OBRA DO AUTOR. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.” (TJSP, Apelação n.º 1085160-40.2018.8.26.0100, Relator Des. Coelho Mendes, Data do Julgamento 03/09/2019) “Apelação cível. Obrigação de não fazer c.c. reparação de danos materiais e morais. Direitos autorais Ilegitimidade ativa afastada. Apesar de a obra fotografada no site da ré não ser identificada com qualquer nome de quem a executou, é certo que nela está inserido o sinal utilizado pelo autor para identificar suas obras. Restou incontroverso que as rés utilizaram do grafite em suas fotos de divulgação. O fato de o grafite ser localizado em logradouro público, no caso, “Beco do Batman”, não afastam os direitos autorias. Inegável que a propaganda veiculada pela ré usou como pano de fundo a obra do autor, sem indicação da autoria ou autorização deste último. A obra de arte colocada em logradouro da cidade, que integra o patrimônio público, gera direitos morais e materiais para o seu autor quando utilizado indevidamente foto sua para ilustrar produto comercializado por terceiro, que sequer possui vinculação com área turística ou cultural. Precedentes do C. STJ. De rigor a condenação das rés na indenização pelos danos morais e materiais causados. Os valores fixados em sentença atendem aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade. Apelo desprovido.” (TJSP, Apelação n.º 1057152-53.2018.8.26.0100, Relator Des. Silvério da Silva, Data do Julgamento 27/11/2019)
DIREITO PENAL STF “EMENTA: HABEAS CORPUS. PICHAÇÃO DE EDIFÍCIO RESIDENCIAL PERTENCENTE AO EXÉRCITO BRASILEIRO. AGENTES CIVIS. NÃO OCORRÊNCIA DE CRIME MILITAR. EXCEPCIONALIDADE DA JUSTIÇA CASTRENSE PARA O JULGAMENTO DE CIVIS, EM TEMPO DE PAZ. ORDEM CONCEDIDA. 1. O MPM tem legitimidade para impetrar HC em favor de quem se ache constrangido em sua liberdade de locomoção, direta ou indiretamente, atual ou iminente. No caso, o habeas corpus se revela apto a favorecer os pacientes com medidas 105
despenalizadoras, inclusive as previstas na Lei 9.099/1995. 2. Ao contrário do entendimento do Superior Tribunal Militar, é excepcional a competência da Justiça castrense para o julgamento de civis, em tempo de paz. A tipificação da conduta de agente civil como crime militar está a depender do “intuito de atingir, de qualquer modo, a Força, no sentido de impedir, frustrar, fazer malograr, desmoralizar ou ofender o militar ou o evento ou situação em que este esteja empenhado” (CC 7.040, da relatoria do ministro Carlos Velloso). 3. O cometimento do delito militar por agente civil em tempo de paz se dá em caráter excepcional. Tal cometimento se traduz em ofensa àqueles bens jurídicos tipicamente associados à função de natureza militar: defesa da Pátria, garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem (art. 142 da Constituição Federal). 4. No caso, nada revela a vontade dos pacientes de atentar contra as Forças Armadas, tampouco a de impedir a continuidade de eventual operação militar ou atividade genuinamente castrense. Conduta que, em tese, se amolda ao tipo do art. 65 da Lei 9.605/1998. 5. Ordem concedida para determinar a remessa do procedimento investigatório para a Justiça comum federal. (STF, HC 100230/SP, Relator Ministro Ayres Britto, Segunda Turma, Data do Julgamento 17/08/2010, DJe 23/09/2010)” STJ “PROCESSUAL PENAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. CRIME CONTRA A SEGURANÇA NACIONAL. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS PREVISTOS NA LEI 7.170/83. INEXISTÊNCIA DE LESÃO REAL OU POTENCIAL AOS BENS TUTELADOS NA REFERIDA LEI. COMPETÊNCIA DO JUÍZO ESTADUAL. I - No caso em apreço, um grupo declarado “Anarquista” atuaria de forma criminosa, realizando pichações e incêndios, principalmente em estabelecimentos bancários privados. II - A lei 7.170/83, em seus artigos 1º e 2º traz dois requisitos, um de ordem subjetiva e outro objetiva, para sua incidência: i) motivação e objetivos políticos do agente, e ii) lesão real ou potencial à integridade territorial, à soberania nacional, ao regime representativo e democrático, à Federação ou ao Estado de Direito. III - Ausentes, no caso, os requisitos, por não haver lesão real ou potencial aos bens jurídicos tutelados pela lei, o que afasta sua incidência. Conflito de competência conhecido para declarar competente o Juízo de Direto suscitado.” (STJ, CC 156.979 / SP, Relator Ministro FELIX FISCHER, TERCEIRA SEÇÃO, Data do Julgamento 11/04/2018, DJe 16/04/2018) TRF5 “DIREITO CIVIL. DANOS MORAIS. PRISÃO POLÍTICA. REGIME MILITAR DE 1964. CONDENAÇÃO PELA JUSTIÇA MILITAR. UM ANO DE PRISÃO. REJEITADAS AS PRELIMINARES DE FALTA DE INTERESSE DE AGIR E IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. RECONHECIMENTO DO DIREITO COM O ADVENTO DA LEI Nº 10.559/02. REJEITADA A PREJUDICIAL DE MÉRITO DE PRESCRIÇÃO QÜINQÜENAL. INAPLICABILIDADE DO DECRETO Nº 20.910/32. - Cingese a controvérsia acerca da possibilidade de indenização por danos morais a ex-preso político, condenado pela Justiça Militar a um ano de prisão por ato considerado subversivo à época do Regime Militar de 1964. No caso, a título de esclarecimento, “pichação” de muro em via pública com frases contra a ditadura 106
militar. - Rejeito as preliminares de falta de interesse de agir e de impossibilidade jurídica do pedido, pois é fato notório que a ditadura militar implantada no Brasil em 31 de março de 1964, a exemplo de outras mais que se sucederam em toda América Latina, foram todos regimes de exceção, que perseguiram cidadãos por suas convicções políticas procedendo toda sorte de atrocidades em nome do Estado, em suposta defesa da sociedade. Ademais, além do reconhecimento da Constituição de 1988 dos anistiados políticos, com o advento da Lei nº 10.559/02, houve o reconhecimento do interesse processual dos anistiados políticos de ingressar em juízo objetivando serem indenizados em decorrência daqueles arbítrios. - “É inaplicável o prazo qüinqüenal previsto no Decreto nº 20.910/32 nas ações em que se busca o pagamento de indenização em face de perseguição e prisão política durante o regime militar. Nesses casos, que dizem respeito à violação a direitos fundamentais, há de se entender pela imprescritibilidade, por se tratar de ofensa a pilares da República. Noutra perspectiva, em não se admitindo a imprescritibilidade, impõe-se considerar o prazo extintivo mais amplo possível, que, na espécie, será o de vinte anos, previsto no art. 177 do Código Civil vigente à época (CC/1916), a contar da promulgação da Constituição Federal de 1988, que reconheceu a ilegalidade dos atos praticados no referido período ditatorial (ADCT, art. 8º), e restabeleceu a normalidade institucional do país. Precedentes do STJ e desta Corte”. (TRF - PRIMEIRA REGIÃO, AC - 200533000254700/ BA, QUINTA TURMA, Decisão: 24/10/2007, DJ DATA: 31/1/2008 PAGINA: 137, DESEMBARGADOR FEDERAL FAGUNDES DE DEUS). - Mantenho a indenização conforme estipulado na sentença, fixado em R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais). Valor que me parece completamente justo no contexto da angústia sofrida pela parte autora e todo o estigma que representou à época dos fatos, ser um preso político, um subversivo, não só para o próprio demandante, para toda sua família que, de resto, ficavam nodoadas com a marca da marginalização do sistema político ditatorial. Fora isso, o fato de que um ano de prisão, motivado pela legislação de exceção, por si só já é causa suficiente para indenizar o demandante. - No tocante aos juros de mora deverão ser fixados em 1% ao mês, desde a citação e até mesmo após a entrada em vigor do novo Código Civil, porquanto ser este o valor fixado no art. 406, do Código Civil atual c/c o art. 161, parágrafo 1º, do CTN. Apelação improvida.” (TRF 5, Apelação n.º 2005.82.01.004879-7, Relator Des. Federal José Maria Lucena, Primeira Turma, Data do Julgamento 14/11/2008) TJDF “APELAÇÃO. REMESSA DE OFÍCIO. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE NÃO FAZER. RETIRADA DE PINTURAS EFETUADAS EM MURO DE ESCOLA DA REDE PÚBLICA DE ENSINO DO DISTRITO FEDERAL. CONSELHO ESCOLAR. COMPETÊNCIA. REGULARIDADE DA OBRA. VALORIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO PÚBLICO. LIVRE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO E LIBERDADE DE EXPRESSÃO DA ATIVIDADE INTELECTUAL E ARTÍSTICA. ART. 5o, INC. IV E IX, DA CF. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. SUCUMBÊNCIA. ART. 20 DO CPC. I - A teor dos arts. 24 e 25 da Lei Distrital 4.751/12, combinados com os arts. 206, inc. VI, da CF e 14 da Lei 9.394/96, o Conselho Escolar possui competência para ordinariamente deliberar, ao lado do diretor da escola, sobre as questões pedagógicas, administrativas e intrínsecas a cada unidade de ensino. Rejeitada a alegada incompetência do Conselho Escolar para autorizar a pintura de painéis 107
no muro da escola pública. II - Sob o enfoque penal-administrativo, é regular a pintura mural ou grafite artístico que, não recaindo sobre monumento tombado ou de valor artístico, arqueológico ou histórico, valoriza o patrimônio público, não o destruindo, inutilizando ou deteriorando, arts. 65 da Lei 9.605/98 e 1o a 3o da Lei distrital 3.081/02. III - Os direitos à livre manifestação do pensamento e à liberdade de expressão da atividade intelectual e artística, art. 5o, inc. IV e IX, da CF, devem prevalecer sobre eventual proteção da imagem de instituições públicas, pois são elementos fundamentais para a existência e funcionamento do Estado Democrático de Direito, contribuindo para o aperfeiçoamento do debate político e a formação da vontade livre dos cidadãos. IV - Em ação proposta pelo Ministério Público, vencida a demanda, não há condenação do réu ao pagamento de honorários de sucumbência. O substrato da incidência do art. 20 do CPC é a prestação de serviços advocatícios, o que não se compatibiliza com a missão institucional do MP. V - Apelação do réu desprovida. Remessa oficial parcialmente provida.” (TJDF, Apelação n.º 0004239-70.2013.807.0018, Relator Des. Vera Andrighi, Data do Julgamento 10/06/2015)
TJMG
“DIREITO CONSTITUCIONAL E PENAL. CRIME CONTRA O ORDENAMENTO URBANO E O PATRIMÔNIO CULTURAL. PICHAÇÃO E GRAFITE. LIBERDADE DE EXPRESSÃO ARTÍSTICA. LIMITAÇÃO. LEI 9.605/1998. 1 - Pichação e grafite. A conduta de fazer grafite em obra pública viola o disposto no art. 65 da Lei n. 9605/1998 (pichar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano). Materialidade e autoria demonstradas pelas provas dos autos. 2 - A liberdade de manifestação artística (é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença, art. 5o., inciso IX da CF) deve ser exercida nos limites do respeito aos demais direitos, como, no caso, o direito à preservação do patrimônio público, igualmente protegido na Constituição (art. 5o., inciso LXXIII). 3 - Recurso conhecido, mas não provido.” (TJDF, Apelação n.º 0110294-91.2016.8.07.0001, Relator Des. Aiston Henrique de Sousa, Data do Julgamento 07/12/2017)
“APELAÇÕES CÍVEIS. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO INDENIZATÓRIA E RECONVENÇÃO. DESAVENÇA ENTRE VIZINHOS. COMPROVAÇÃO DE QUE AS AGRESSÕES APENAS PARTIAM DA PARTE RÉ. DANOS MORAIS CONFIGURADOS APENAS PARA O AUTOR. INDENIZAÇÃO MAJORADA. 1. A responsabilidade civil extracontratual subjetiva pressupõe a existência de três pressupostos: conduta culposa do agente, dano e nexo causal entre ambos. Caso em que demonstrada a conduta culposa apenas da ré, que reiteradamente proferia ofensas ao autor e sua família, além de ter destruído obra urbana – grafite – existente no muro da casa do autor. Conduta que, além de expor a imagem do autor negativamente perante a vizinhança, perturbou seu sossego a ponto de determinar sua mudança para outro bairro. 2. Danos morais. Quantum. A indenização por danos morais tem a finalidade de compensar o lesado e, quanto ao causador do prejuízo, tem caráter pedagógico e sancionatório. Caso em que, considerando a gravidade dos fatos, ainda que a condição sócio-econômica da ré não seja das mais favoráveis, tenho que justificada a majoração da indenização para R$ 3.000,00. APELAÇÃO DO AUTOR PROVIDA E DESPROVIDA A DA RÉ.” (TJRS, Apelação n.º 0462236-88.2015.8.21.7000, Relator Des. Carlos Eduardo Richinitti, Data do Julgamento 13/04/2016, DJe 22/04/2016)
TJES “APELAÇÃO CRIMINAL LEI 9605/98 ARTIGO 65, CAPUT PICHAÇÃO DE PATRIMÔNIO PÚBLICO PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO IMPOSSIBILIDADE - PROVAS DE AUTORIA E DA MATERIALIDADE ISENÇÃO DE CUSTAS PROCESSUAIS - APELO IMPROVIDO. 1) Não há nenhuma dúvida da prática do crime previsto no artigo 65, caput, da Lei 9605/98, eis que o recorrente foi preso em flagrante pichando uma coluna da 3ª ponte, patrimônio público, utilizando tinta spray, sem que tivesse autorização para o mesmo. Ademais, pichação não se confunde com grafite, o qual possui o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado por meio de manifestação artística, a ser realizado mediante autorização do proprietário ou do órgão competente, o que não é o caso dos autos. O pagamento das custas processuais é um dos efeitos da condenação penal, consoante se extrai da dicção do artigo 804 do CPP, sendo certo, ainda, conforme orientação pacífica do STJ, que o pedido de isenção deve ser reservado ao Juízo da Execução, diante da possibilidade de alteração após a condenação. 2) RECURSO IMPROVIDO.” (TJES, Apelação n.º 0041590-66.2012.8.08.0024, Relator Des. Adalto Dias Tristão, Data do Julgamento 19/12/2018) 108
“APELAÇÃO - AÇÃO DE REPARAÇÃO CIVIL - BOLETIM DE OCORRÊNCIA PASSAGENS POLICIAIS ANTERIORES - INFORMAÇÃO DESNECESSÁRIA - DANO MORAL - INOCORRÊNCIA - TEORIA DO MURO PICHADO - APLICABILIDADE APELAÇÃO - APELAÇÃO À QUAL SE NEGA PROVIMENTO. 1. A responsabilidade civil do Estado por ato de seus prepostos é objetiva, conforme art. 37, § 6º da Constituição da República. 2. Os pilares da responsabilidade civil se assentam na ocorrência de ato ilícito, dano e nexo de causalidade. 3. A informação constante do boletim de ocorrência, quanto às anteriores passagens policiais do autor, conquanto desnecessária, não configura propriamente ato ilícito. Incapacidade de implicar dano moral. 4. Segundo a teoria do muro pichado, por já haver uma pichação no muro, outras poderiam ser feitas, sem que se atentasse para a ilegalidade do ato em si.” (TJMG, Apelação n.º 0178082-91.2013.8.13.0056, Relator Des. Marcelo Rodrigues, Data do Julgamento 28/11/2017, DJe 04/12/2017) TJRS
“APELAÇÃO CRIME. AMBIENTAL. ART. 65, CAPUT, DA LEI 9.605/98. PICHAÇÃO DE EDIFICAÇÃO URBANA. SUFICIÊNCIA DE PROVAS. SENTENÇA CONDENATÓRIA MANTIDA. 1. Comete o crime do art. 65 da Lei 9.605/98 quem conspurca, suja, polui ou mancha, por qualquer meio, edificação ou monumento urbano. Prática que não se confunde com o grafite, arte que exclui a tipicidade penal, nos termos do § 2º do art. 65 da Lei 9.605/98, desde que consentida pelo proprietário ou autorizada pela autoridade competente. Devidamente comprovada nos autos a prática do delito imputado ao recorrente, que pichou edificação urbana com rabiscos estilizados, impositiva a condenação. 2. Carece de amparo legal a substituição de pena privativa de liberdade por prestação de serviços à comunidade na hipótese de a primeira não ser fixada em montante superior a seis meses, nos termos do art. 46, do Código Penal. Pena substitutiva 109
redimensionada para prestação pecuniária no montante de um salário mínimo. RECURSO DESPROVIDO. PENA READEQUADA, DE OFÍCIO.” (TJRS, Recurso Criminal n.º 0074594-28.2019.8.21.9000, Relator Des. Luis Gustavo Zanella Piccinin, Data do Julgamento 17/02/2020)
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