5 1
Direção: Bento Oliveira Montagem e Design Gráfico: Francisco Gomes Fotografia: Francisco Gomes Revisão de textos: Susana Ladeiro Propriedade: Portal iMissio 2017©iMissio
ESCREVEM P. João Aguiar Campos Sónia Neves Oliveira Fernando Cassola Marques Pedro Cotrim Isabel Figueiredo Bento Oliveira Rui Vasconcelos Moisés Sbardelotto Fernando Geronazzo Paulo Vasconcelos
ENTREGA JUBILOSA
P. João Aguiar Campos
1.Dentro dos seus noventa anos, a simpática religiosa – entretanto falecida – falava frequente e meigamente do «fim que se aproxima». Os nossos lanches eram sempre momentos quase festivos: percorríamos os anos e os acontecimentos com a alegre paz da vida exposta à divina misericórdia. Muitas vezes ríamos de nós e dos nossos ziguezagues, lembrando dificuldades de obediência ou os sacrifícios de integração numa comunidade diferente da de anos anteriores.
TU SABES, MEU SENHOR, QUE JÁ POR MAIS DE UMA VEZ PROTESTEI CONTRA AS TUAS INTERFERÊNCIAS NAS MINHAS ROTINAS... ao “faça-se a vossa vontade”. Frequentemente me atrevo a uma surdina que sugere a Nosso Senhor que “não contrarie muito a minha”…
O que um dia me fez rir mais abertamente foi a conversa que mantivemos sobre a «vontade de Deus. A dado passo do diálogo, aproximando as cadeiras, como se houvesse medo de uma escuta inoportuna, disseme com um sorriso juvenil: «Nunca rezo o Pai Nosso de uma enfiada. Paro sempre, aqui ou ali, para mastigar esta ou aquela frase, seja de louvor ou de petição. Mas onde paro mais vezes é quando chego 1
Estou certo que o dizia com bom humor e com a determinação firme de escuta e prática. Mas esta franqueza afirmava, afinal, o que muitos de nós sentem: dificuldade em discernir a vontade de Deus e, sobretudo, em pô-la em prática. Sabemos que a missão e o alimento do Filho foi fazer a vontade do Pai. Sabemos que a publicamente proclamada “bem-aventurança” de Maria esteve em ouvir e praticar a vontade de Deus. Sabemos. Mas vamos sempre esperando
que Deus não nos peça tanto como parece, escondemo-nos d’Ele para ver se arranja quem vá na nossa vez, etc., etc. Enfim, a vida como missão é algo que nos custa muito a interiorizar!... O Evangelho que tentamos reescrever, está, assim, cheio de descontos: sem uma proximidade orante e sem uma familiaridade com o Deus pessoal, vamos decretando que «Ele também não exige tanto». Fiquemos com o n. 2826 do Catecismo da Igreja Católica: «É pela oração que podemos “discernir qual (seja) a vontade de Deus (Rm 12,2; Ef 5,17) e obter “a perseverança para a cumprir” (He 10,36). Jesus ensina-nos que se entra no Reino dos Céus, não por palavras, mas “fazendo a vontade do meu Pai que está nos Céus” (Mt 7,21)». 2.A escuta orante da vontade de Deus dispõe para uma entrega consciente e livre. De facto, a Sua vontade não nos ata com algemas de escravo; entrega-se ao Seu desafio. Escreve Bento XVI, na Lumen Fidei, n. 10: «A fé compreende que a palavra — uma realidade aparentemente efémera e passageira —, quando é pronunciada pelo Deus fiel, torna-se no que
de mais seguro e inabalável possa haver, possibilitando a continuidade do nosso caminho no tempo». Esta entrega jubilosa está muito distante da vontade que se rende por fadiga ou comodismo; por desinteresse ou resignação. Ou não é verdade que o nosso “seja o que Deus quiser” manifesta, demasiadas vezes, desistência e superficialidade; facilitismo e abdicação?... Esbarramos contra a intransigência alheia e abandonamos a luta. Rendemonos à doença e às dificuldades. Não estamos dispostos a aprofundar as questões e escolhemos o mais cómodo. Mas vamos exclamando, em retirada: «Agora, seja o que Deus quiser!»… Mas agindo assim, afinal não depomos em Suas mãos a nossa fragilidade; antes atiramos para o Seu quintal (perdoe-se-me a expressão) o nosso lixo… 3. Permitam-me uma proposta rezada: «A Tua vontade, Senhor, que eu faça a Tua vontade!... Eis a força que Te peço, 2
certo de que muitas serão as surpresas que vou encontrar – eu que prefiro os dias organizados, com todos os momentos distribuídos na disponibilidade das horas!... Tu sabes, meu Senhor, que já por mais de uma vez protestei contra as Tuas interferências nas minhas rotinas: interferências do necessitado que me corta a pressa; do amigo que reclama testemunhas para as suas alegrias ou dores, do colega de trabalho que repete, pela milésima vez, a mesma queixa; do superior que põe mais uma tarefa na última dobra do meu horário… A Tua vontade, Senhor; que eu faça a Tua vontade!... Descobrindo-a na atenção dispensada a cada pessoa e às suas circunstâncias… Porque é deste modo que tornas visível e audível o que queres de mim!...» *
3
4
O AMOR COMO CRITÉRIO DE GESTÃO - SER PONTE Sónia Neves Oliveira
Nos dias 27, 28 e 29 de Novembro de 2017 tive o privilégio de efetuar uma rota pelos vários aeroportos onde a equipa com quem trabalho tem pontos de venda de restauração e lojas abertas ao público.
cada equipa quis mostrar o melhor que tem para dar e explicou, orgulhosa, as melhorias levadas a cabo no último ano. Foi também importante o singelo convívio que se conseguiu ter com pessoas que vivem realidades diferentes e que, nem sempre, conseguem dar e receber feedback das suas ações.
“TODOS QUEREMOS ‘SER PONTES’! MAS TODOS SABEMOS QUE, POR VEZES, SOMOS MARGEM QUE PRECISA DE SER UNIDA.”
O tema transversal que escolhi para a rota deste ano foi “Ser Ponte”. Desde o primeiro momento fui interpelando os responsáveis de zona a ir refletindo e partilhando pensamentos sobre a importância das pontes, daquilo que as pontes podem unir, da missão de ‘ser ponte’.
Esta rota já havia ocorrido no ano anterior e traduz-se num momento único para que o responsável de cada zona possa partilhar com os seus pares as inquietações, inovações, dificuldades e conquistas que abraçou nos últimos meses.
Para materializar e inspirar o tema escolhido para a edição deste ano tivemos oportunidade de subir ao Miradouro do Pilar 7 da Ponte 25 de Abril, em Lisboa (que recomendo vivamente!) e, já no Porto, desafiámo-
Foram dias intensos onde 5
nos a subir, a pé, o arco de betão que sustenta a Ponte da Arrábida e donde, uma vez chegados ao topo, conseguimos ter uma vista espetacular sobre Gaia e Porto.
por pontes ou, pelo menos, fazer uma ponte tão boa que consiga passar por cima dos muros mais destrutivos e isoladores é uma obra de mérito que fica.*
As partilhas que mais efetuamos entre nós foram a importância de unir margens que se encontram separadas (oferta/ procura; departamentos internos; colegas; esforços/ recompensas; sacrifícios/ alegrias; investimento/ retorno…). Todos queremos ‘ser pontes’! Mas todos sabemos que, por vezes, somos margem que precisa de ser unida. A humildade chega quando constatamos que há pontes que nos querem unir a algo mais. Contemplar pontes edificadas por outros, com a gratidão de quem sabe que aquele trabalho beneficiou muitas margens (nos beneficiou ou beneficia a nós também!), é fundamental para nos sentirmos inspirados a lançar novas pontes a ser utilizadas por nós e pelos outros. Identificar as margens cuja união é prioritária é um desafio permanente da nossa vida. Encontramos muitos muros, e alguns deles também foram construídos por nós, mais ou menos de forma consciente. Substituir muros 6
6
SEJA FEITA A TUA VONTADE! Fernando Cassola Marques | fernandocassola@gmail.com
Quando, por diversas vezes, nos sai da boca a típica expressão “seja o que Deus quiser” o que realmente queremos dizer?
o que Deus quiser!” Em si, esta frase encerra algo de mais profundo e significativo do que possa parecer. Diria que é mesmo algo que nos é intrínseco e que exprime um pouco a nossa relação espiritual com o criador.
Será que é meramente uma frase que se usa sem pensarmos no seu significado?
Do meu ponto de vista, não significa que essa atividade tenha sido mal pensada, pois escuteiro que é escuteiro, aplica o sistema de patrulhas e, consequentemente, usando o método do projeto, nada fica entregue ao acaso. Não significa também que, apesar da atividade ter surgido da cabeça dos rapazes e das raparigas e tenha sido programada por eles, recebendo os contributos da equipa de animação, esta possua lacunas que ponham em causa o sucesso da mesma.
Será que é apenas uma fuga para a frente sem assumirmos as nossas responsabilidades? Será que é tão simplesmente algo que deveríamos deixar de usar, pois a nossa religiosidade anda “pelas ruas da amargura”? Pois bem, desta feita, proponho que abracem o desafio de, em conjunto, refletirmos um pouco sobre o seu uso enquanto escuteiros, porque é nessa qualidade que por aqui continuo a escrever…
Significa, isso sim, que em Deus depositamos a nossa confiança e que só a Ele nos deveremos deixar levar. Porque, quando vamos para campo, aí sim, estamos realmente a viver e a fazer escutismo. O
Não raras vezes já apliquei esta expressão quando, após horas e horas de programação de uma atividade de campo e no final dessa reunião de preparação, terminamos dizendo: “Olha! E agora seja 7
7
nosso fundador, no livro “Escutismo para rapazes”, afirma perentoriamente que “O homem de pouco vale, se não acreditar em Deus e obedecer às suas leis. Por isso todo o escuteiro deve ter uma religião”. De facto, esta confiança em Deus é-nos claramente trazida pelo Seu Filho Jesus Cristo que por amor se fez um de nós e assim nos abraça nesta entrega eterna e nos transmite uma confiança única e singular. Quem está com Deus nunca está só e então pode confiar que a última palavra é sempre d’Ele, mesmo que todas as atividades tenham sido pensadas e programadas ao máximo. Ele sabe sempre o que é melhor para nós. Resta-nos dizer, como Maria, nossa mãe, quando, na presença do anjo Gabriel, lhe responde “SEJA FEITA A TUA VONTADE!”. Votos de um Feliz e Abençoado Natal de Jesus.*
8
8
DEUS É CAMPEÃO ( E EU NÃO GOSTO DE FUTEBOL) Pedro Cotrim
O que Michel Foucault designa como «intersecção fatal do tempo com o espaço» traz-nos um desfecho. Querido, crido, esperado, sonhado, ansiado ou qualquer outro quase sinónimo. O que resulta entra na gama total que se gasta entre o desastroso e o maravilhoso.
formulação loquaz como a primeira. Como tal, lábios ateus podem ser mais propensos a expirá-la, não se podendo comparar à anterior. “Seja o que Deus quiser”, ou então evocar a celebrizada frase do capitão da selecção portuguesa no Europeu de futebol quando ordenou a um companheiro que fosse bater uma grande penalidade. E Cristiano Ronaldo é um homem crente. A expressão, no fundo, não valerá os atributos lexicais de que se serve, o que significa que valerá muito mais que isso.
Esta intersecção, este cruzamento das três dimensões já cruzadas pelos planos com a quarta, ocorre em todos os instantes. É implacável, uma vez que a linha do tempo nunca se detém, e actua sobre o espaço, espaçomatéria. De intersecção em intersecção até à intersecção final, poder-se-á dizer de qualquer existência.
Outra expressão que entra de corpo inteiro no domínio dos deuses ou dos acasos é consagrada na saga Astérix: “Alea jacta est”, dito algumas vezes por Júlio César. Astérix nunca percebia muito bem o que o ditador-imperador queria dizer. Enfim, a César o que é de César, mesmo as suas expressões, terá cogitado o pequeno gaulês.
O crente pode tender a dizer “Seja o que Deus quiser” antes da intersecção. O nãocrente pode tender a não usar a expressão. Ainda não há estudos em Portugal que permitam saber distribuições no uso de expressões idiomáticas. O “Meu Deus!” é uma exclamação, não uma
Alea jacta est, os dados 9
9
estão lançados. Um dado de jogar perfeito é aleatório, o que serve maravilhosamente para testar acasos. Os que buscam coincidências podem entrar no domínio das probabilidades de forma cúbica. Ou então usar um dodecaedro e fazer uso da simbologia, uma vez que este poliedro corresponde ao céu e serve de forma perfeita o propósito de dado. Aleatório, como convém a qualquer dado. As expressões idiomáticas não representam uma oração, trabalhada e pensada. Como tal não se podem comparar às rezas, terços ou novenas. Os crentes rezam, os não crentes não. No fim de contas, talvez todos possam dizer “Seja o que Deus quiser”. E talvez seja mais uma questão de gosto que de crença.
Álvaro de Campos que banha todas as terras emersas. Quando nascemos devíamos berrar “Ui, ui, ui, lá vamos nós!” numa sinfonia de órgãos perfeitos. Quando expiramos devíamos deixar escapar entredentes, apaziguados com a vida que nos foi entregue, numa beatífica serenidade, “Seja o que Deus quiser”. Ou então citar o engenheiro. No fundo, talvez seja o que todos esperamos.*
Os que lavram nos baús descobriram recentemente que Álvaro de Campos escreveu “Aconteça o que acontecer, eu cá diverti-me”. Os que lavram descobrem, os que conhecem reconhecem. O engenheiro, se não o disse, disse-o certamente. O natural mais famoso da foz do Gilão nunca chegou a existir, mas não há dia que se acenda e apague que não contenha milhares de citações a si atribuídas; como tal este texto irá conter apenas uma gota do oceano 10
“MAS PORQUE É QUE DEUS NÃO HÁ-DE QUERER, MÃE?!” Isabel Figueiredo
“Seja o que Deus quiser”. Termino muitas vezes algumas conversas em família, com esta expressão, tão nossa. Mas oiço de imediato algum dos meus filhos a perguntar: “Mas porque é que Deus não há-de querer, mãe?!” e fico calada, perante a evidência da pergunta. Pensando melhor na razão de ser desta entrega a Deus, às vezes de coisas tão banais, outras de realidades mais sérias, percebo que só acontece porque a presença de Deus existe, está, acontece no nosso dia-a-dia. O que me recorda as palavras de uma amiga, quando um dia lhe pedi que me explicasse o que é ser carmelita. No pequeno locutório, com um sorriso que passava para lá das grades, disse-me em voz pausada, que é procurar viver as 24 horas do dia, de todos os dias, com a consciência da presença de Jesus, ali mesmo, ao seu lado. Esta presença, que implica confiança, naturalidade, companhia, entrega quase emociona, porque traz para a 11
nossa humanidade, o que nos transcende. Traz para o nosso presente, a eternidade, para a nossa fragilidade, a grandeza de Deus. Outro pensamento que me ocupa, quando me deixo interrogar sobre esta expressão, prende-se a outra realidade bem diferente. Olhando para o nosso passado, enquanto nação, encontramos pessoas e acontecimentos que nos asseguram uma identidade cristã. Exemplos de santidade, homens e mulheres cujas vidas todos conhecemos e momentos da nossa história de grande beleza e significado, como foi o acto de D. João IV, quando assumiu coroar a Imagem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa como Rainha de Portugal, nas cortes de 1646. E este mesmo Portugal que deu a sua Coroa Real a Nossa Senhora irá perseguir a Igreja, expulsar ordens religiosas, implantar a República à custa de perseguições ferozes e documentadas. Mas apesar de tudo, a Fé atravessou o tempo
e continuamos a ouvir e a dizer, com naturalidade, «seja o que Deus quiser». E ao dizêlo, mais do que a confiança ou desconfiança que ressalvamos, toca-me esta confirmação de presença, implícita ou explícita, consciente ou inconsciente. Deus fica connosco a cada dia que passa, está presente em cada momento das nossas vidas. E volto à segunda parte da conversa: «Mas porque é que Deus não háde querer?!» traz consigo um verdadeiro tesouro. A convicção de que Deus quer o nosso bem, sempre. Seja em coisas pequenas ou grandes, partilhadas ou guardadas. Porque é que Deus não háde querer, se é bom para nós? Como nos faz falta esta certeza dos mais novos, que fazem cair por terra as nossas resistências, feitas de medos e inseguranças perante a evidência do Amor de Deus.*
12
12
EXPECTATIVAS SOBRE OS RESULTADOS ACADÉMICOS Bento Oliveira
Expectativas! É caso para dizer: quem as não tem? Servem-nos para quê? Conduzem-nos onde? Talvez tenham surgido muitas respostas, umas tantas perguntas e algumas expectativas enquanto leu este pequeno parágrafo. Talvez!
este pensamento surgiu de forma muito sublime do meu inconsciente. A Clara fez uma sorriso e acenou com a cabeça como que a dizer que concordava. O tempo dos nossos dias foi-se passando. Um final de tarde, quando, como acontece na maior parte dos dias, fui buscar a Clara à escola, reparei que estava cabisbaixa. O meu coração começou a cavalgar ofegantemente: o que terá acontecido? O que se passou? Será que aconteceu alguma coisa grave? A Clara trazia numa mão a mochila e na outra um papel. No nosso encontro, a Clara entregoume o papel e disse qualquer coisa como isto: “Pai, vou ali à funcionária fazer…” (não me recordo o quê). Enquanto esperava pelo seu regresso, li o papel que dizia: “Desculpa, pai, porque te desiludi. Não consegui fazer o que me tinhas pedido.” Não compreendi logo o recado. Entretanto, a Clara voltou e eu disse-lhe que não tinha compreendido o papel.
Talvez concorde comigo que as expectativas, mais cedo ou mais tarde, levam-nos à desilusão. Talvez se tenha lembrado da última vez que isto aconteceu no emprego, numa relação, na vida familiar, consigo próprio. Está tudo bem. Estava a Clara, a minha filha mais velha, no quarto ano, e eu, com o objetivo de a motivar, passei-lhe as minhas expectativas. “Clara, atendendo aos resultados apresentados até agora, penso que tens capacidade para tirar nos testes sempre acima de 80 por cento. Tu és boa aluna!” Fiz o melhor que sabia. O sucesso da Clara é o meu sucesso: penso que
13
13
Aí a Clara, a chorar da forma que só ela sabe, disse-me: “Desculpa, pai, mas eu não consegui manter os 80% como tinhas pedido. Tive 55%.” E aumentou ainda mais o caudal das lágrimas e o aperto do meu coração. Senti-me naquele momento o pior pai do mundo: como é que a minha filha não me consegue dizer uma nota de um teste? Porque precisou de usar um bilhete para o fazer? A única coisa que consegui fazer foi abraçar a Clara e dizer que estava tudo bem. Depois de pensar muito sobre este assunto, senti que foi um momento brutal de aprendizagem. Foi um momento de viragem. Os objetivos, enquanto estudante, são da Clara e não meus. Claro que eu gosto de saber quais são. Claro que conversamos sobre os objetivos, mas é ela quem os define. É a Clara que estabelece as metas. O meu papel tem passado muito pelo feedback e pela responsabilização. Sempre que chega um resultado de uma avaliação de uma qualquer das minhas quatro filhas, as minha perguntas andam à volta do mesmo: como te sentes com o teu resultado? Como te sentiste quando o recebeste? Sentes que reflete o teu
trabalho? Ao início, sentia-me desconfortável com estas perguntas. Mas os resultados que tenho obtido ao longo dos tempos são fantásticos. As miúdas verbalizam que o resultado não reflete ou reflete o estudo que fizeram; que fizeram ou não uma boa preparação; que fizeram ou não uma boa gestão do tempo do teste; o que querem e devem melhorar. Sinto que há cada vez menos pressão nestes momentos. Sinto-as cada vez mais confiantes na sua atividade. Sinto-as cada vez mais responsáveis e empenhadas nas suas aprendizagens. Comportamento gera comportamento, sem qualquer dúvida. É tão bom ver a Maria a falar dos seus testes do primeiro ano! Mais importante do que o resultado, do que as expectativas, do que uma classificação, interessa é que continues a acreditar em ti, que desenvolvas a tua autoestima, a tua vontade de explorar, consigas formular os teus pensamentos, relacionando-te saudavelmente contigo, com a escola, com os amigos, com os professores. Tu sabes: está tudo bem!* 14
CHARLES DE FOUCAULD | OS SENTIDOS DA ESCRITA Rui Vasconcelos | Fundamentos
A transição do século XIX para o século XX ofereceu à tradição cristã duas figuras de uma dimensão notável: uma, talvez mais conhecida para nós, é Teresa de Lisieux, ou do Menino Jesus; a outra é Charles de Foucauld. E nas duas narrativas biográficas encontramos espelhada, como no reflexo de uma lagoa, a expressão «seja o que Deus quiser».
A fuga ou o itinerário do deserto não se resume aos primeiros séculos da era cristã: também a Belle Époque (1871-1914) conheceu os seus resistentes, irredutíveis a acomodar-se ao desenvolvimento industrial, científico, social e cultural que parecia incarnar já, na história, o Reino universal – e que redundaria na Grande Guerra e nas revoluções do século XX, tal como, no século IV, a bela união entre a Igreja e o Império não evitaria as convulsões seguintes. Charles de Foucauld (18581916) encarna em pleno o esplendor desta época: perito em «esbanjar todos os bens» que um rico contexto familiar propiciou, Foucauld fez carreira no exército francês, em campanhas militares no norte de África que o levariam ao encontro com os seus futuros irmãos de vida, de pobreza e de martírio: os habitantes 15
muçulmanos do deserto. Após uma conversão súbita e total, Foucauld percorre o médio oriente, primeiro como monge trapista, e depois como eremita solitário. Em 1901 estabelece-se no sul da Argélia, construindo um eremitério onde sonhava estabelecer uma comunidade de hospitalidade e adoração, em relações fraternas com as pobres populações tuaregs. O sonho da comunidade nunca se concretizou em vida de Foucauld – só mais tarde, com os Pequenos Irmãos de Jesus, espalhados por todo o mundo. Apenas Paul Embarek, um escravo árabe emancipado, testemunharia a morte de Foucauld.
também o coração vital da sua experiência espiritual: a relação com Jesus como Irmão, como o Mestre que guia e ensina, com o coração de um irmão mais velho, os seus discípulos e companheiros. Daí surgiria a descoberta fundamental, o nó que liga a todos os itinerários: que a pregação por excelência é a da própria vida, e que a sua fecundidade brota do silêncio e da pobreza – algo que terá muito a dizer-nos, hoje. E se os Evangelhos nos narram, num estilo denso, uma vida de Jesus intensa e fecunda, não nos podemos esquecer que tal intensidade e fecundidade só encontrou a sua terra natal em longos períodos de calma e de silêncio, de observação e de partilha – fosse na vida rural de Nazaré, nos trabalhos piscatórios de Cafarnaum ou na itinerância pela Palestina, onde os lírios cresciam e as multidões se extenuavam, como ovelhas sem pastor.
Não será uma coincidência – nunca o é – que tanto Teresa como Foucauld insistam tanto no caminho da humildade, da pequenez, do silêncio. Toda a sociedade – e sobretudo a sociedade francesa do seu tempo, no centro da civilização ocidental – respirava um brilho, um fausto social, económico e cultural, sustentado pela exploração social das classes sociais mais baixas. Também a Igreja surgia associada a este brilho, e a evangelização dos continentes africano e asiático seguia associada à expansão colonial. A vida de Foucauld entende-se neste cenário, e neste cenário se entende
«Quis ser chamado Jesus por esse nome ser profundamente terno e doce, e exprimir rigorosamente o meu amor por vós; e ainda por ser muito adequado a inspirar plena confiança em mim (...) É isso o que vos peço... Fiz-me e inúmeras vezes me declarei vosso irmão». Os escritos de Foucauld possuem uma experiência 16
16
sensível, um toque com todos os órgãos do seu corpo. São narrativas profundamente pessoais, companhia de caminhada quando a solidão mais se fazia sentir. Não foram pensados para o possível leitor – para além do seu diretor espiritual – e, ao mesmo tempo, são a busca de uma comunhão, a procura de um encontro, a transposição para a escrita do caminho de um cada vez maior desejo. O seu estilo habitual é o do diálogo – seja do místico com o seu Amor, seja do próprio Senhor com o seu discípulo, colocando na boca de Jesus os ensinamentos e virtudes que Foucauld considera vitais para a experiência cristã: uma prática que os místicos medievais – sobretudo as mulheres – gostaram de utilizar. É este o estilo que encontramos nas meditações da Quaresma de 1898, publicadas após a morte do mártir com o título Gritar o Evangelho (infelizmente, a única obra de Foucauld disponível em Portugal). Mergulhar na escrita de do Pequeno Irmão é entrar numa casa, num ambiente de intimidade, onde o Senhor, com os seus discípulos, conversa connosco.
não poderia encontrar. O regresso a Jesus de Nazaré deu-se aqui, nas cristãs e cristãos que, em todo o tempo – dos Padres do Deserto a Francisco de Assis, de João da Cruz a Teresa de Calcutá – depositaram aos pés da Cruz as estruturas do seu mundo e correram para longe, em direção à nudez, ao essencial, à pobreza extrema; e que sinónimos melhores do que estes para falar da morte? O Nome de Jesus transformou os seus lábios e a sua vida, ao estilo da narrativa do pequeno e ignorante camponês russo, imortalizada nos Relatos do Peregrino Russo ao seu Pai Espiritual. Oriente e Ocidente unidos, como cristãos e muçulmanos em Foucauld ou hindus e católicos em Teresa de Calcutá. Mas é sobretudo a nossa vida pessoal – bem mais difícil de unir do que as diversas religiões – que busca este Nome, sinal de paz, de confiança, de perdão, de proximidade, de cumplicidade, de beleza. «Na verdade, a tua bondade e o teu amor hãode acompanhar-me todos os dias da minha vida», diz-nos o Salmo 23. Se Deus quiser.
O deserto recebeu o sangue quente de Foucauld, numa vitalidade que o cristianismo burguês da Europa ocidental
«Por mais de uma vez me pedistes para vos ensinar a orar devidamente, e não deixei de vos esclarecer sobre isso. 17
17
A oração é uma conversa com Deus, um grito da alma dirigido a Deus. Deve ser portanto algo de absolutamente natural, a expressão mais profunda do coração. Os lábios não precisam de intervir; o que tem necessariamente de intervir é o espírito e a vontade… Manifestardes e comunicardes ao Pai a vossa vontade com toda a verdade, nudez, sinceridade e simplicidade, isso é que é orar. Portanto, não é coisa que por si mesma exija muito tempo nem precise de muitas palavras nem envolva muitos pensamentos. Mas isso pode variar.» «Em quaisquer formas de oração, embora possam interferir em maior ou menor escala o pensamento, o raciocínio, a reflexão e a palavra, há uma coisa que deve ocupar sempre, e de longe, o lugar da primazia: essa coisa é o amor. Seja qual for a forma de orar, o que sempre, absolutamente sempre, deve dominar, é o amor». Para aprofundar: Charles de Foucauld, Gritar o Evangelho, Braga, Ed. Franciscana 2004, 183 págs.*
18
18
A COMUNICAÇÃO ENCARNADA DE JESUS Moisés Sbardelotto
“E o Verbo se fez carne...” No mistério da encarnação de Deus na pessoa de Jesus, no seu “fazer-se carne”, podemos contemplar a construção da sua humanidade nas relações que ele ia estabelecendo com as pessoas, as coisas, os fatos. Em tudo isso, Jesus viveu uma comunicação “encarnada” no espaço (o “lugar” a partir de onde ele falava) e no tempo (a cultura da sua época e o estilo que a sua comunicação foi assumindo).
poderia “sair coisa boa”. A fama do lugar parece não ser das melhores. Nessa época, o centro do mundo era Roma, capital do Império Romano. Toda a região que hoje conhecemos como Oriente Médio era a periferia desse império, explorada para fins econômicos e militares. Nazaré, por sua vez, era a “periferia da periferia”, uma cidade perdida no interior da Galileia. E é a partir desse lugar que Jesus fala. O seu “lugar de fala” era a periferia, distante dos grandes centros políticos, econômicos ou filosóficos da época. Uma comunicação marginal, portanto, encarnada nas margens da sociedade e da cultura do seu tempo.
No início do seu Evangelho, João narra o seguinte fato: “Jesus decidiu partir para a Galileia. Encontrou Filipe e disse: ‘Siga-me’. (...) Filipe se encontrou com Natanael e disse: ‘Encontramos aquele de quem Moisés escreveu na Lei e também os profetas: é Jesus de Nazaré, o filho de José’. Natanael disse: ‘De Nazaré pode sair coisa boa?’” (Jo 1, 43-46). Em um tom que parece quase irônico e brincalhão, Natanael se espanta com a proveniência de Jesus. De Nazaré, dificilmente
O Evangelho de Marcos nos ajuda a aprofundar ainda mais essa característica da comunicação de Jesus. Ele narra que, no início de sua missão, “Jesus foi para Nazaré, sua terra, e seus discípulos o acompanharam. Quando chegou o sábado, Jesus começou a ensinar 19
19
na sinagoga. Muitos que o escutavam ficavam admirados e diziam: ‘De onde vem tudo isso? Onde foi que arranjou tanta sabedoria? (...) Esse homem não é o carpinteiro?” (Mc 6, 1-3). A admiração e a surpresa das pessoas diante daquilo que Jesus dizia e fazia baseiam-se, aqui, no “lugar social” desse carpinteiro. Jesus era reconhecido pelos seus conterrâneos como alguém que vinha das camadas mais baixas da sociedade. Havia uma brecha perceptível, quase uma incoerência: como um trabalhador braçal como Jesus podia falar daquele jeito? Também em nível socioeconômico, ele se comunicava a partir da periferia e das margens. Alguns estudiosos, como o teólogo australiano Peter Horsfield1, sustentam até que Jesus provavelmente fosse analfabeto, assim como a maioria dos seus primeiros discípulos (nada surpreendente em um contexto social como o de Jesus, com uma população de 95-97% de analfabetos!). Quer isso seja verdade ou não, o certo é que Jesus encarnou a sua comunicação na cultura oral da sua época. Daí a sua ênfase nas conversas, discursos, sermões, parábolas. Jesus não deixou nada por
escrito. Seu único “texto” redigido de próprio punho perdeu-se com o vento, por ter sido escrito na areia (cf. Jo 8, 6). Ele não recorria aos mais elevados padrões da estilística retórica, nem às mais aprimoradas técnicas de expressão oral da época. Ele falava a linguagem do povo, com o gênero discursivo mais simples – as parábolas –, usando como referência elementos do cotidiano daquelas pessoas, como as próprias relações humanas, as festas, as ovelhas, o campo, a pérola, o fermento, a moeda, a videira, a figueira... E Jesus não só “discursava”, mas também comunicava com a própria vida, com a linguagem do corpo: seus gestos, lágrimas, sangue, suor, saliva (e até “cuspe”, cf. Jo 9, 6). E também com os elementos do cotidiano: barro, trigo, água, vinho, pães, peixes... Não era uma comunicação “desencarnada”, mas, ao contrário, muito encarnada nos costumes e na cultura do seu povo, com grande riqueza de sabores, cheiros, cores. Uma comunicação viva e humana.*
1 - HORSFIELD, Peter. From Jesus to the Internet: A History of Christianity and Media. West Sussex:
Wiley Blackwell, 2015.
20
QUE NOSSA VONTADE SEJA A VONTADE DO PAI Fernando Geronazzo
Como é bom admirar a confiança que uma criança tem pelos seus pais! Desde o primeiro instante, os bebês encontram nos braços de sua mãe a segurança. Quando estão a dar os primeiros passos e caem, sabem que contam com a mão estendida do pai para as levantar. De igual maneira, a confiança em nossos pais também se manifesta quando ouvimos seus conselhos e quando acolhemos o que eles nos dizem, pois sabemos que eles desejam somente o nosso bem. Jesus ensinou seu povo a chamar a Deus de Pai e desde pequenos nossa vivência de fé amadurece nessa verdade. Na oração do Senhor, aprendemos a chamar a Deus de Pai e lhe pedimos que seja feita a sua vontade “assim na terra como no céu”. Porém, em muitas situações, agimos com filhos rebeldes e nem sempre aceitamos a 21
manifestação da vontade do Pai celeste. É como se disséssemos: “Seja feita a vossa vontade, desde que essa corresponda à minha”. Ao contrário das crianças, não confiamos inteiramente no Pai. Será que é por isso que, em outra ocasião, Nosso Senhor nos diz que devemos ser como as crianças para entrarmos no reino do céus? Por outro lado, será que a vontade de Deus se manifesta de maneira que devemos esperá-la passivamente, sem que possamos fazer nada para que ela se realize? É vontade de Deus, por exemplo, que sejamos santos, felizes, e, por isso, Ele não deseja que pequemos, o ofendamos e nos afastemos de sua presença. Mesmo assim, ele não nos impede que façamos isso. Pelo contrário, nos dotou de liberdade e responsabilidade para agirmos como quisermos e assumirmos as consequências de nossas escolhas.
A manifestação da vontade de Deus em nossas vidas também depende da disposição, em outras palavras, da nossa vontade de acolher o que Ele quer para nossas vidas. Como aprendemos no Pai-Nosso, precisamos querer que seja feita sua vontade. Mas é claro que muitas coisas que acontecem na nossa vida e na realidade que nos cerca não dependem em nada na nossa disposição em acolhê-las, como uma doença, uma tribulação e sobretudo a morte.
do Pai, até que Cristo seja formado em nós (Cf. Gal 4, 19).*
Qual seria nossa parte, então? O próprio Mestre Divino nos dá esta resposta quando diz que desceu do céu não para fazer sua vontade, mas a vontade daquele que o enviou (Cf. Jo 6, 38). Portanto, somos chamados a conformar a nossa vontade à vontade de Deus. Ao contrário de aceitála passivamente, isso implica numa atitude concreta, um ato de fé e de confiança. Desse modo, estaremos pouco a pouco nos assemelhando ao próprio Cristo. Numa antiga oração de ação de graças após a missa atribuída ao Papa Clemente XI há um trecho que diz: “Senhor, quero o que queres, porque o queres, como queres, enquanto quiseres”. Que possamos pouco a pouco transformar a nossa vontade à vontade 22
22
SEJA O QUE DEUS QUISER… Paulo Vasconcelos
…Uma expressão cada vez mais em desuso, fruto de uma sociedade portuguesa que ainda não conseguiu lidar bem com a questão de Deus em praça pública, procurando escondê-l’O do debate e até da linguagem.
pessoal de prescindir até da lógica humana com a certeza de que a bondade e grandeza de Deus ultrapassa qualquer projeto pessoal. Na escola é fácil perceber a atitude saudável dos alunos que se empenham em tudo o que depende deles, de uma forma positiva, sem a pressão externa de apenas obter resultados, mas que normalmente descobrem a beleza de uma vida mais completa onde cabem projetos extracurriculares, voluntariado e tempo para cultivar amizades.
“Seja o que Deus quiser” é uma expressão com duplo significado. Restringindo-me ao contexto académico, revela dois tipos quase antagónicos de atitude face à vida ou a algumas circunstâncias da vida. Por um lado, expressa uma atitude de total confiança em Deus, à imagem do “Fiat” de Maria face à proposta de Deus através do anjo Gabriel. Esta disponibilidade absoluta para que se cumpra a vontade de Deus carrega consigo a responsabilidade pessoal de estar constante e plenamente comprometido com a sua concretização a cada momento, aceitando humildemente o plano divino na sua vida tendo por base a confiança de que Deus garantirá sempre a sua felicidade. Exige o exercício 23
23
Por outro lado, a expressão “seja o que deus (minúsculas propositadas) quiser” pode ser entendida como o contrário da atitude original que lhe deu origem e pode ser traduzida pela expressão popular e religiosa de quem se “fia na Virgem e não corre”. Uma postura perante a vida e as dificuldades de grande desresponsabilização, contrária a qualquer desígnio divino que implica necessariamente o ser humano na sua totalidade, que exige a sua liberdade e compromisso de fazer render
os próprios talentos para a sua realização pessoal e maior bem da comunidade. Perante as dificuldades, alunos com este perfil, irracionalmente, confiam num “milagre” sem perceberem que depende apenas deles o empenho e o esforço. Deus não se substitui ao ser humano, antes conta com ele na sua economia da salvação para que o Seu Reino nasça no meio da humanidade. É preocupante perceber que os alunos que adotam esta atitude irresponsável manifestam enorme surpresa e genuína desilusão face aos resultados obtidos… Talvez um pouco o que se passa na cultura atual em relação à problemática das alterações climáticas. Não estaremos a assumir uma atitude completamente irresponsável e, inconscientemente, a confiar num falso “seja o que deus quiser”?! Neste tempo de Natal, juntamente com o nascimento do menino Deus em nós, cresça também a confiança autêntica em Deus, que leve a um verdadeiro compromisso pessoal, para que possamos dizer verdadeiramente “Seja o que Deus quiser” na nossa vida.*
24
25