I N É D I TO S / M A N U S C R I TO S
“Que autor é esse/ De uns versos tão mal feitos e tão tristes?!”, indaga Euclides da Cunha no final de “Página vazia”, a caligrafia bem-cuidada preenchendo esmeradamente o branco de uma folha com flores sobrevoadas por fulgurante borboleta – asas, pétalas, tudo resultando de um desenho de moça, F. (de Francisca) Praguer. A página agora cheia, título desmentido, fazia parte de um álbum da jovem, que ganhou o poema do então engenheiro e jornalista – de volta da “região assustadora” (leia-se Canudos, claro) de onde vinha, “revendo inda na mente/ Muitas cenas do drama comovente/ Da Guerra desapiedada e aterradora” – no dia seguinte de seu retorno à capital baiana, conforme ele datou abaixo da assinatura: 14 de outubro de 1897. Como poeta, o autor dos tais versos “tão mal feitos e tão tristes” continua quase desconhecido. Ressalte-se que a poesia em questão já foi difundida. Rara, porém, é a divulgação fac-similar, como a que aqui se faz, da página do álbum da doutora Francisca Praguer Fróes – uma das primeiras médicas formadas no país –, localizado por Francisco Foot Hardman, professor da Universidade Estadual de Campinas, que ao lado de Leopoldo Bernucci, da Universidade do Texas (EUA), prepara para 2003 um volume que reunirá toda a produção poética de Euclides. Nele aparecerão cerca de cem poemas além dos 37 que figuram na chamada Obra completa (1966).
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Resumamos: perto de dois terços dos versos euclidianos jamais conheceram o estado de livro. A maior parte das poesias de Euclides da Cunha integra o algo hugoano, castro-alvense caderno Ondas, composto de textos escritos na adolescência. São dele os dois inéditos editados que abrem esta seção, com notas de Foot Hardman – “No túmulo de um inglês” (1883) e “Cenas da escravidão I” (1884) –, e a poesia édita “Álgebra lírica”, também de 1884, que apareceria depois, num caderno de “Notas”, de 1885, ao lado de problemas matemáticos, sob o título “Amor algébrico” e apresentamos algumas mudanças de palavras e pontuação. O outro manuscrito, cuja cópia foi cedida pelo professor da Unicamp, é o poema édito “D. Quixote” (1890). Obnubilados por sua prosa avassaladora, os versos de Euclides ocuparamlhe, no entanto, mais da metade da vida. Seria um equívoco, no conjunto da obra euclidiana, considerar vazia a página poética.
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No túmulo de um inglês
És bem feliz mylord!… na tua tumba fria Um sono gozas, bom – no seio da soedade Feliz!… não tens o Sol de tu’Albion sombria Mas tens o olhar de Deus – o Sol da eternidade!… És bem feliz mylord a triste ventania Soluça nos ciprestes os cantos da saudade… Quem sabe se te traz – em vozes de agonia – Os risos e as canções de tua mocidade!… Estás livre do spleen... invejo-te deveras… Do túm’lo a sombra espanca as pálidas quimeras. – Em teu berço de pedra embala-te a soidão… És bem feliz mylord – assim antes eu fora!… Tu tens a calma eterna, a solidão sonora E tu não tens – feliz – não tens – teu coração… Rio – 2 de Novembro 1883.
Este túmulo está no cemitério de Catumbi – tornou-se-me saliente pela isolação em [que] se acha – quase em pleno mato – completamente separado dos outros. Antes de ler a inscrição na lousa – onde este soneto fiz – adivinhei ser de um inglês…
Poema inédito e manuscrito do caderno de adolescência Ondas, escrito aos 17 anos. Euclides acrescentou-lhe a uma nota explicativa no fim da página.
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Cenas da escravidão I
Acabara o castigo... áspero, cavo – Cheio de angústia um grito lancinante Estala atroz na boca hirta, arquejante Na boca negra, esquálida do escravo... O seu algoz... oh! não – íntimo travo O seu olhar espelha – rubro, iriante... É um escravo também, brônzeo, possante Arfa-lhe em dor o peito largo e bravo!… Cumprira as ordens do Senhor... tremente Fita o infeliz – calcado ao chão, dolente, Velado o olhar num dolorido brilho... Fita-o... depois, num ímpeto sublime Ergue-o; no peito cálido o comprime, Cinge-o a chorar – Meu filho!… pobre filho!…
Euclides 1884
Primeira das três partes de “Cenas da escravidão”, manuscrita e inédita, autógrafa e datada, pertencente ao caderno de adolescência Ondas, escrita quando Euclides tinha provavelmente 18 anos. No final do caderno, o autor acrescentou a seguinte nota explicativa, também manuscrita e igualmente inédita: “Há pensamentos que não [ilegível] o [bico] de uma pena... Ao traçar esses versos ebulia-me no cérebro um poema formidável – onde fremiam os soluços de cem raças – onde palpitava sangrento o clarão dos sóis do deserto, onde enfim – desenrolava-se a agonia sombria e dolorosa d’essa tétrica hecatombe [ilegível] a escravidão... E no entanto nada fiz... e nada fiz porque um sentimento enervador quebrava-me as forças da inteligência e custa dizê-lo – este sentimento [ilegível] e é – a vergonha!... Pobre Pátria!.. Tu, tão grande e nobre [ilegível] só tu – só tu vives dos [miseráveis] – só tu mendigas aos mendigos – [só] tu roubas aos desgraçados – o que [ilegível], tens de mais sublime – a liberdade – [ilegível] que têm de mais triste – a lágrima [ilegível] tu não és culpada de que a tua alma – o povo – guie-se pela alma de um homem...”.
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Álgebra lírica Acabo de estudar... da ciência fria e vã O gelo, o gelo atroz me gela ainda a mente Acabo de arrancar a fronte minha ardente Das páginas cruéis de um livro de Bertrand… Bem triste e bem cruel decerto foi o ente Que esse Saara atroz sem auras, sem manhã – A álgebra – criou a mente, a alma mais sã Nele vacila e cai – sem um sonho virente… Acabo de estudar e pálido, cansado De uma dez equações os véus hei arrancado. – Estou cheio de spleen, cheio de tédio e giz… É tempo, é tempo pois de – trêmulo, amoroso – Ir – dela descansar no seio fervoroso E achar de seu olhar – o rutilante x!… Euclides 1884
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Amor algébrico Acabo de estudar – da ciência fria e vã O gelo, o gelo atroz – me gela ainda a mente Acabo de arrancar a fronte minha ardente Das páginas cruéis de um livro de Bertrand. Bem triste e bem cruel decerto foi o ente Que esse Saara atroz – sem auras, sem manhã A álgebra criou – a mente a alma mais sã Nele vacila e cai sem um sonho virente... Acabo de estudar e pálido, cansado Dumas dez equações os véus hei arrancado... Estou cheio de spleen, cheio de tédio e giz É tempo, é tempo pois de trêmulo ansioso Ir – dela descansar no seio venturoso E achar de seu olhar o luminoso X!…
Euclides
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D. Quixote
Assim à aldeia volta o da triste figura Ao tardo caminhar do Rocinante lento; No arcabouço dobrado um grande desalento, No entristecido olhar uns laivos de loucura. Sonhos, a glória, o amor, a alcantilada altura, Do ideal e da fé, tudo isto num momento, A rolar, a rolar, num desmoronamento, Entre risos boçais do bacharel e o cura. Mas certo, ó D. Quixote, ainda foi clemente, Contigo a sorte ao pôr neste teu cérebro oco, O brilho da ilusão do espírito doente; Porque há cousa pior: é o ir-se a pouco e pouco Perdendo qual perdeste um ideal ardente E ardentes ilusões e não se ficar louco.
Euclides da Cunha
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Página vazia
Quem volta da região assustadora De onde eu venho, revendo inda na mente Muitas cenas do drama comovente Da Guerra despiedada e aterradora, Certo não pode ter uma sonora Estrofe, ou canto ou ditirambo ardente, Que possa figurar dignamente Em vosso Álbum gentil, minha Senhora. E quando, com fidalga gentileza, Cedestes-me esta página, a nobreza Da vossa alma iludiu-vos, não previstes Que quem mais tarde nesta folha lesse Perguntaria: “Que autor é esse De uns versos tão mal feitos e tão tristes”?!
Bahia – 14 Outubro de 97
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