M A N U S C R I TO S / I N É D I TO S
Os manuscritos de Mario Quintana revelam o modo metódico e disciplinado com que esse poeta considerado intuitivo cuidava de seus originais. Um fac-símile como o de “Estranhas aventuras da infância” – que reproduzimos aqui – revela um procedimento recorrente em inúmeros documentos do acervo de Quintana: o gesto de riscar transversalmente a folha de papel, como a indicar que aquele inédito ganhara a página impressa (no caso de “Estranhas aventuras da infância”, as páginas do livro Baú de espantos). Por essa razão, é difícil encontrar entre seus manuscritos uma folha limpa, sem o traço de seu imprimatur, como ocorre com o fac-símile de “Poema escrito numa garrafa”. Ainda assim, o trabalho do poeta com seus originais pode ser contemplado no cotejo dos manuscritos com a forma final – a exemplo do que ocorre com esse poema que, sob o título “Cripta”, acabaria integrando o livro O aprendiz de feiticeiro com as pequenas variações constantes da transcrição aqui publicada. Muito mais escassos, porém, são os papéis que ficaram de fato inéditos. Na maior parte, são anotações e esboços de caráter mais biográfico ou familiar do que literário – como o desenho ao lado, de 1982, assinado pelo “tio Mario”, ou o testamento escrito em 1983, que contém uma curiosidade: quase ao final, entre parênteses, o poeta justifica a brevidade do texto alegando a “urgência que o caso requer, por motivos óbvios”. Os motivos – óbvios para Quintana, mas nada evidentes para o leitor ciente de que ele sobreviveria mais de dez anos ao testamento – estão num sonho que o escritor gaúcho teve pouco tempo antes, no qual teria antevisto dia e mês da própria morte, data que passou a assombrá-lo a ponto de fazer o mais rápido possível suas disposições póstumas... Diante desse quadro, no qual textos poéticos inéditos são verdadeiras raridades, destaca-se o fragmento de prosa “Do individual e do universal”, que não encontra registro integral nos livros de Quintana – e que por isso merece leitura mais detida. O que surpreende desde logo é a estrutura do pequeno texto, que apesar de breve procura abranger as complexas relações entre o individual e o universal. Parece que essa oposição extrema leva o poeta a tratar as primeiras linhas como duas proposições lógicas que relacionam não o individual com o universal, e sim o homem com o bicho. O silogismo, no
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entanto, carece de qualquer conclusão se o leitor não admitir a ideia subjacente de que homem e bicho pertencem a uma mesma categoria. Daí resulta que todos os homens são bichos (o que é verdade, sob vários aspectos), e o que os torna desiguais – ou seja, individuais ou universais – são os “mundos” de cada um. Até aqui, o rigor da formulação seria quase impecável, não fossem as cambiantes trocas entre significantes e significados, fazendo ferver e estilhaçar o sentido do que vem depois. E o que vem depois é a afirmação paradoxal, porém plausível, de que o poeta, quanto mais individual, mais universal se torna. Quintana sustenta que o passo para a universalidade somente é possível quando o poeta se coloca acima das contingências, transcendendo as amarras do homem comum. O tom é filosófico, embora soe também como manifesto, no que discrepa dos meio-tons predominantes na poesia do autor. Como todo manifesto é também confissão de propósitos, o recatado Quintana salvou por fragmentação as partes que, separadas, não lhe infligiriam o desconforto da revelação. E, mais uma vez, usou a tática de implodir o poema, desmembrando suas partes, como sugeriu Horácio (disjecti membra poetae: “os membros do poeta esquartejado” – completáveis assim, segundo Paulo Rónai: “não seriam reconhecíveis se lhes desfizéssemos o ritmo e a disposição da frase”). O ritmo e a disposição da frase recaíram, no caso, nas linhas fragmentárias que o poeta escolheu para permanecer em seu patrimônio poético. As duas primeiras passagens aparecem no aforismo “Bicho & Gente”, do Caderno H, com uma pequena variação: “Existe um mundo para cada espécie de bicho. Mas, para cada bicho da espécie humana, existe um mundo diferente”. Já a frase “o poeta, quanto mais individual, mais universal” aparece em “Carta”, do mesmo livro. As passagens intermediárias, mais declaratórias que poéticas, ficaram registradas neste singular manuscrito, ao mesmo tempo édito e inédito – e, acima de tudo, revelador da inteligência poética de Mario Quintana.
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Do invividual e do universal Existe um mundo para cada espécie de bicho. Mas existe um mundo diferente para cada bicho da espécie humana. Daí, a minha desconfiança da poesia de equipe, engajada, comprometida. Porque um poeta, quanto mais individual, mais universal – isto é, mais livre das contingências da classe, do meio, da época, do folclorismo, dos campos fechados do regionalismo.
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Cripta*
Debaixo da mesa A negrinha. Assustada, Assustada. Na janela A lua. No relógio O tempo. No tempo A casa. E no porão da casa? No porão da casa umas estranhas ex-criaturas com cabelos de teia de aranha e os olhos sem luz sem luz e todas se esfarelando que nem mariposas ai todas se esfarelando mas sempre se remexendo eternamente se remexendo como anêmonas fofas no fundo de um poço de um poço!
* “Poema escrito numa garrafa” (manuscrito da pág. ao lado) foi publicado no livro O aprendiz de feiticeiro sob o título “Cripta”, com as pequenas variações que constam da transcrição acima.
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Estranhas aventuras da infância Era um caminho tão pequenino Que nem sabia aonde ia, Por entre uns morros se perdia Que ele pensava que eram montanhas... Enquanto a tarde, lenta, caía, Aflitamente o procuramos. Sozinho assim, aonde iria? Porém, deixamos para um outro dia... Perdido e só, nós o deixamos! E quando, enfim, ali voltamos Já nada havia, só ervas más... Tão vasto e triste sentiste o mundo Que te achegaste, desamparada... E foi bem juntos que regressamos, Ombro com ombro, a mão na mão, Enquanto, lenta, caía a tarde E nos espiava a bruxa negra... E nos seguia a bruxa negra Que hoje se chama Solidão! De Baú de espantos
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Minuta de testamento Eu, Mario de Miranda Quintana (profissão, CP [carteira profissional] etc.), em plena posse de minhas faculdades mentais (incluso atestado médico por psiquiatra) nomeio minha herdeira universal Elena Quintana de Oliveira e meu executor testamentário Dr. Marco Tullio de Rose. (O texto é simplesmente este, devido à urgência que o caso requer, por motivos óbvios.) As disposições do testador serão oportunamente entregues ao Dr. Marco Tullio de Rose. Mario Quintana Porto Alegre, 31.10.83
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