Olhando pela janela, vejo o mundo da mesma forma de quando plantava bananeira na infância. Tudo está de cabeça para baixo. Fomos forçados a parar e ver, para ajeitar. Dentro dessa loucura, quase sempre trago o meu olhar de criança, porque talvez assim melhore a minha visão sobre as coisas.
CHRISTINE JONES
A senhora saía todas as tardes para regar suas
em volta e observo o trânsito das pessoas. Por aqui
plantas. Regava uma por uma. Pegava sua cadeira, sentava
ninguém para. Muitos nem tiveram o privilégio de parar.
no lugar mais próximo do sol. Levantava, mas logo
Vejo o quanto um ajuda o outro, como o senhor Amilton
voltava a sentar por cansaço. Da janela da cozinha
que tem dividido o espaço com outros pipoqueiros que
acompanho a rotina da senhora que costumava sair de
surgiram por esses dias. Assim entendo o que é viver
tarde, depois do trabalho, mas que agora não tem um
em comunidade. Sempre vai ser nós por nós.
horário tão certo. Pela sombra da porta sei exatamente
Mal acordo e recebo um bombardeio de notícias. João
onde está. Não vejo a senhora tão sorridente como
Pedro havia sido encontrado morto. O mesmo menino
antes, na verdade nem a vejo tanto assim, não foi à toa
que no dia anterior circulava nas redes sociais como
que logo me chamou atenção, enquanto lavava a louça.
desaparecido. João Pedro brincava em casa com outras
Tento adivinhar o que pensa, observando seu olhar
crianças quando foi atingido pela polícia. João
parado em direção ao chão. Às vezes gosto de observar
Pedro era preto e favelado. Para a polícia ele era
as pessoas enquanto elas estão distraídas, para ver o
patologicamente suspeito. Por coincidência, hoje também
que me contam. Quase todos os dias escuto a vizinha
seria o aniversário de Malcolm X, se estivesse vivo.
do segundo andar gritando com o marido. A vizinha do
Malcolm X nos deixou um legado de resistência. Em
terceiro não sai da cozinha. A vizinha que mora em
suas lutas, defendia os direitos humanos dos afro-
frente ao meu apartamento não para de gritar com o
americanos, conscientizando as pessoas sobre os crimes
filho. Do meu quarto escuto tudo muito alto. São meu
cometidos contra a população preta. Saber dessa notícia
despertador para acorda.
me fez refletir, me fez pensar nessa necropolítica ainda
Chega sete horas e quando me dou conta, já são dez
existente em massa, onde o preto é sempre visto como
e aquela mulher ainda está na cozinha. Parece que nem
suspeito. O silêncio perpassa por aqui. Tempo estranho.
saiu dali. O filho da outra resolveu não dormir cedo
Uma semana pesada. Nos noticiários, vejo todos os dias
hoje. Ela não para de gritar. E os homens do prédio?
que mais um preto foi executado. Vítimas do racismo!
Não os vejo daqui, nem escuto suas vozes.
Pessoas postam vídeos ou escritos dizendo que não se
Minha audição parece estar mais sensível. Daqui
encontram bem, que choram o dia todo, por dias. Todos
consigo escutar barulhos de diferentes partes. O carro
pretos. Na sexta me encontro com o meu corpo cansado.
que passa na Rua 2. As motos passando do outro lado da
Porque tudo que aconteceu refletiu e reflete em mim. Não
praça. A obra no apartamento lá da entrada do conjunto,
importa se é próximo, ou distante. Sempre vai refletir
eu escuto daqui, em meio ao meu silêncio de um dia
em mim. Sempre vai pesar. Vidas negras importam sim!
que iniciou estranho. Já é noite. Ponho uma música
E não somos um evento de um dia nas redes sociais, com
para relaxar um pouco, depois de um dia agitado. Fico
o fundo preto e no outro já apagado, porque destoa
ali na janela de todo dia com um café na mão. Olho
das suas postagens. A consciência sobre os fatos não
tem que ser tomada só por uns instantes. Enquanto não colocarmos o racismo no centro das discussões não vai haver avanço nas questões raciais. Me sinto indisposta. Não sei quantas vezes eu já olhei para aquela mancha na parede, sem sequer saber pra onde a minha mente está me levando. Os dias são sempre iguais. Pego o celular para ver se tem alguma mensagem dos meus pais. Esquento os pés na pequena barra de sol que há próxima da cama e fico ali por uns instantes. Tento organizar meus pensamentos que já acordaram antes de mim. E não chego a nada. Perdi a hora do café, pulo para o almoço. Sinto pressa no tempo. Mesmo tudo estando tão parado. A tarde engole a noite de uma forma rápida e voraz. Quando vejo já estou adormecendo e acordando sob a luz invadindo meu quarto, ao som de pássaros do lado da minha janela. É dia quase tarde. O tempo me engole. Queria mesmo era sentar, comer um pastel e tomar um caldo de cana. Sabe aquele caldo de cana bem geladinho moído na hora? Queria tocar meus pés no chão. Sentir a areia fina da praia de um final de semana de descanso. Queria sentir a liberdade dos pés descalços, depois de uma semana cansativa de trabalho. Fico pensando como será depois que essa pandemia passar. Como será a sensação de iniciar um mundo completamente novo? Me pergunto como vai ser quando meus pés puderem tocar no chão. Falo daquela liberdade de uma criança quando se descalça pra brincar na rua, enchendo seus pés de bolhas e voltando para casa somente ao anoitecer. O que dá para sentir? Há liberdade nos seus pés que tocam o chão?
O dia por aqui amanheceu nublado. Parado. Silencioso.
capim-limão, erva-cidreira, tem um jarro de flores
Assim como eu, ainda deitada e sem vontade de levantar,
com pétalas rosadas e outras brancas, entre outras.
de fazer qualquer coisa. Por aqui as ruas andam sempre
Acho maneiro ela estar se interessando em fazer algo
cheias. Somente um tempo fechado, prevendo chuva, para
diferente, ajuda a ocupar a mente. Minha mãe também
fazer as pessoas sossegarem em casa. O silêncio da
é uma contadora de histórias. Entre tantas histórias,
rua fez o meu silêncio durante o dia. Enquanto todos
ela me contou uma na infância que não esqueço até hoje:
não pararem, quando se pede para parar, enquanto todos
a gente não deve, de jeito nenhum, jogar cabelo pela
continuarem sendo egoísta, esse período de isolamento
janela, ou sequer deixar cair no chão da rua, porque
irá continuar por muito tempo. Enquanto isso, eu me
pode passar um pombo, acabar comendo e a gente ficar
desfaço a cada dia. E seco por dentro. Desde ontem
com dor de cabeça pro resto da vida. Ela afirmou ser
sem internet em casa. Precisei quebrar o isolamento
verdade, porque quando era criança viu uma pessoa perto
e ir até a casa dos meus pais, porque teria uma
de casa passando por isso. Até hoje presto atenção para
reunião importante logo mais. A semana toda estive com
não deixar cair nenhum fio de cabelo e o pombo acabar
dificuldade para acessar a internet, até perdi uma outra
levando. Não vai ser eu que vou duvidar das histórias
reunião na terça. E ainda estão falando em aplicar a
dos mais velhos, é melhor prevenir do que remediar.
prova do Enem, em aulas online nas faculdades federais.
Acordei com muita saudade do mar, do cheiro salgado.
Agora vamos pensar: como fazer essas coisas acontecerem
Amanheceu bem quente. Ainda bem que guardei duas
se nem conseguimos ter um acesso bom? Imagina quantas
cervejas de ontem na geladeira, talvez assim refresque
pessoas ficariam de fora de uma boa formação.
um pouco. Parece mais verão do que inverno. A sensação
Enquanto troco de roupa no banheiro, vejo minha mãe
térmica é de 40 graus dentro desse apartamento. A
na janela do quarto. Lembro de uns dias atrás, quando
única coisa possível foi um banho de sol dentro do
ela me disse que essa doença não é de Deus. Dentro de
meu quarto mesmo. Tirei a roupa de dormir para botar o
suas crenças e religião, disse não ser Deus quem está
biquíni, escovei os dentes, sentei em uma cadeira que
trazendo essa doença para nós, porque não é possível a
tenho no quarto e fiquei ali até não aguentar mais.
gente não poder abraçar e beijar as pessoas, não poder
Aproveitei para alongar a coluna. De um tempo para
ter contato com elas. A voz dela embargou. Não consegui
cá tenho sentido muitas dores, até pouco tempo nunca
olhar em seus olhos. Não sabia o que dizer, porque
tinha sentido tantas assim. Por coincidência, elas
também sinto falta de poder estar próxima das outras
têm vindo com mais frequência durante essa pandemia.
pessoas. Depois que ela terminou a fala, o silêncio
Não duvido que isso esteja acontecendo por causa das
permaneceu por um bom tempo ali na cozinha. Agora ela
limitações que a pandemia trouxe. Passo mais tempo
está com um novo hobby. Entrando no prédio, lá de baixo
sentada em reuniões, ou estudando. E depois deito para
já dá para ver alguns jarros na janela. Tem babosa,
dormir. Debaixo do sol, o sentimento é só de saudades
da praia. O cheiro salgado, que me vem quase todos os dias, me aproxima de alguma forma do mar. Para mim a praia é para todas às horas, mesmo não havendo sol. A minha filosofia é que, não tendo chuva, sempre vai dar praia. Os meus lugares favoritos sempre vão ser os que beiram o mar. A vontade do mar é tanta que durante a noite sonhei que estava entre as águas. No sonho, submergia no mar e tudo em volta silenciava. Nunca entendi muito bem essa ligação que eu tenho com as águas. Mas aprendi a entender os avisos que as águas me trazem em sonhos. Eu estou secando aos poucos, minha mente já não me deixar dormir. O mar sempre me avisa quando devo prestar atenção, me avisa sobre os cuidados, sobre mim. Me avisa que não posso cair e que tudo vai ficar bem.
Enquanto organizava algumas coisas no computador,
Muitas vezes eu me sinto estranha ao sair de casa
escutei uma mulher com o rádio bem alto cantando
de máscara, enquanto todos andam sem. Parece até que
músicas evangélicas. Ela parecia estar chorando enquanto
eu que estou louca. Agem como se tudo já estivesse
cantava. Tentei ver pela janela de onde vinha o som,
passado, mas estamos aí morrendo aos montes. E cada
mas não achei. Não lembro muito bem da letra. Mas era
vez mais os números de mortes vão crescendo. É tudo
algo que pedia para que a fortalecesse. Estamos em
bem louco olhando daqui. A rua invade minha casa, me
tempos difíceis. Mas não posso ter certeza pelo que
atravessando de uma forma que não sei explicar. Eu
ela chorava. Espero que ela fique bem, fique forte.
entendo tudo que acontece lá fora. Entendo o corre da
Um tempo atrás minha mãe me contou que quando ela e
galera. Percebi que as ruas estão bem mais cheias do que
seus irmãos eram mais novos, carregavam água para ganhar
costumavam estar. Alguns comércios estão funcionando
um trocado e ajudar com as despesas de casa. Minha mãe
com meia porta, muitos ambulantes com barracas no meio
disse que durante as idas e vindas com a lata d’água
da calçada. De certa forma a gente acaba entendendo o
na cabeça, ela e seus irmãos espiavam pelas janelas
porquê disso tudo. Existem pessoas que nem conseguiram
das casas, para poderem ver um pouco de televisão, já
receber o auxílio ainda, que foram mandadas embora dos
que não tinham uma em casa, e nem iriam poder ter uma
seus trabalhos e que suas despensas já ecoam de tão
tão cedo. Vendo o filho do rapaz da obra espiando pelo
vazias. O desespero e a falta de suporte fazem com
lado de fora a televisão aqui de casa, vejo o quanto a
que isso aconteça. É preciso correr o risco para não
infância ainda é roubada.
morrer de fome.
Hoje é dia 1 de maio, feriado
do trabalhador, e um garoto que aparenta não ter mais
Assisto tudo daqui. Observo a tarde ir enquanto
que dezesseis anos, já está tendo que trabalhar tão
engole o azul. Ao fundo uma festa no céu. Pipas a voar.
cedo, sem folga e no feriado. Isso me faz pensar que
Ora pássaros, ora pipas. Quando vejo já confundi tudo.
muita coisa ainda se repete, de uma forma diferente,
Entre um gole e outro de café me perco entre vontades
mas se repete. E o quanto as crianças pobres tem que
infinitas. O sol já se foi. Já é noite em tão poucos
crescer mais rápido do que outras.
instantes. Olhando o céu durante a tarde, é possível
Mente turbulenta. Pensamentos embaralhados. Olhos
me imaginar envolvida na fumaça do café e com o olhar
bem abertos, que assistem a noite passar bem acordados.
perdido no entardecer. Nem consigo dar conta de quantas
Como escrever sobre o nada? Desordem na mente. Difícil
horas passei debruçada nessa janela com um café na mão,
escrever sobre o nada, mas em que momento do dia
tentando entender todos os meus incômodos.
a mente fica vazia sobre tudo? Não fica. Já dia, levanto. Mesmo ainda com sono. Tomo café. Continuo tentando fazer o dia ser produtivo, mesmo não tendo descansado à noite.
Me sinto tão inquieta, mas não consigo dizer o
Cada dia é projetado a partir do outro vivido. Vivo na
porquê. Fui na cozinha, abri a geladeira, passei alguns
incerteza do momento. Incerteza que não vem só a partir
segundos tentando lembrar o que tinha ido buscar. Não
desse momento pandêmico. Minhas origens já falam por si
faço ideia do que precisava, talvez nem sentia vontade
só. Sempre foi um corre tremendo para chegar no mínimo
por algo dali. Olhei um pouco e o que acabei pegando
dos meus objetivos. Na minha pele já corria os medos
foi uma garrafa de água. Mas não era sede. Não era
que muitos estão sentindo agora, e que ainda nem chegou
falta de nada que continha ali. Não sei o que falta.
para todos. A pandemia só fez com que alguns vejam o
A rua atravessa o meu quarto de uma forma tão incomoda, que pensamentos contrários e de revolta vêm
que meus olhos já veem há muito tempo. E muitos ainda nem consegue ver. Estão cegos.
muitas vezes. Minha mente contradiz tudo o que havia
A partir daqui não se verão mais palavras transcritas
pensado antes, apagando por alguns instantes toda a
sobre o papel e lidas por seus olhos. Mas isso não
consciência que havia conquistado. É um exercício
significa que eu tenha parado, que o momento tenha
diário compreender como as coisas refletem lá fora e
sido suspenso. Espero que lembrem sempre que o momento
aqui dentro, e como fazer disso tudo um equilíbrio em
de agora já escorre em muitos corpos, corpos pretos e
mim. Olhando pela janela vejo o mundo da mesma forma
favelados há muitos anos. E o que você faz sabendo de
de quando plantava bananeira na infância. Tudo está de
tudo isso?
cabeça para baixo. Fomos forçados a parar e ver, para ajeitar. Dentro dessa loucura, quase sempre trago o meu olhar de criança, porque talvez assim melhore a minha visão sobre as coisas. Talvez seja a visão correta de como as coisas devam ser. Uma inversão do olhar. Às vezes, o que parece errado é a forma como as coisas tem que ser. Em diversos momentos, penso sobre como as coisas estão se encaminhando, o tempo que essa pandemia já está durando e o quanto tudo isso continuará prejudicando muita gente, mesmo depois que acabar. Estou me segurando ao máximo para não sair, mas logo vou ter que começar a correr junto com o capitalismo e ficar também exposta, como muitos, por não ter outra opção. Não tem jeito, pobre e favelado sempre segue na desvantagem. O que vai acontecer daqui para frente é um tanto incerto.
Os ensaios aqui apresentados foram compostos a partir de um extenso material produzido ao longo de quatro meses, entre abril e agosto de 2020. Jailton Nunes, Fagner França, Larisse Paiva, Juliana de Oliveira, Jonas Willame e
Christine Jones Faz graduação em Educação Física na UFRJ. Fez parte da ECOM – Escola de Cinema Olhares da Maré e participou do curso Elã - o nome que a gente dá as coisas, no Galpão Bela Maré. Ministrou oficinas de fotografia em escolas da Maré.
Christine Jones, jovens moradores da Maré e integrantes do Mão na Lata, fotografaram e escreveram diariamente sobre seus cotidianos na quarentena. Periodicamente toda essa produção foi publicada no site www.amaredecasa.org.br, como parte de uma ação apoiada pela Redes da Maré e a organização Peoples Palace Projects, dentro da pesquisa Construindo Pontes, que estuda os níveis de bem-estar e saúde mental da população da Maré. Para o Programa Convida do IMS, apresentamos os ensaios, re-escrituras imagéticas e textuais da experiência vivida. Olhamos o que se passou como um contínuo processo de
Fotos e textos Christine Jones curadoria, diagramação e edição de imagens Tatiana Altberg edição de textos e revisão Raquel Tamaio
reelaboração do presente, na intenção de projetar um futuro outro.