Mão na Lata: Fagner França - Programa Convida

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Saudade de tudo mano, tudo mesmo, saudade até de pegar o 355 lotado pra Madureira, ou voltar da ZS dormindo no busão e perder o ponto de casa.

FAGNER FRANÇA


Eu tinha ido abastecer minha moto, estava voltando

e jogou no coelho. Perguntou se eu queria pão de queijo e

pra casa quando ouvi disparos muito perto. É isso mesmo,

foi embora. Quem sonha com coelho dificilmente vai ganhar

nem a pandemia, que está matando e nos obrigando a ficar

no coelho. O coelho no sonho representa sorte, e se

em casa, fez cessar ou diminuir os conflitos de civis

você acredita nisso aposte na cobra. Meu avô me ensinou

armados. Muito pelo contrário, outro dia vi os “meninos”

isso há muito tempo. Ele também não ganhava muito, mas

de máscara, luva e armados até os dentes. Prevenção é

sempre sabia resolver os sonhos dos outros trazendo um

tudo, até álcool gel na “tenda dos milagres” tem sido

palpite. A vida parece estar tão tranquila. Tudo meio

oferecido para os usuários e compradores. Outro dia uma

desacelerado. Ao mesmo tempo, todo mundo preocupado com

blitz me parou. Dentre as inúmeras perguntas, um policial

os próximos dias.

passou a mão no meu corpo, me revistando sem luva. No

Aqui dentro do quarto, olhando para o teto e para a

mesmo momento e no dia inteiro fiquei com um tipo de

escada que sobe para a laje, vejo um buraco quadrado

paranoia, será que ele estava contaminado e espalhando

na parede, um basculante. Fiquei imaginando o passado,

o vírus? Já vi uma fake news sobre isso. Será que vou me

em quem morou aqui antes de mim. Como eles organizavam

contaminar? E dentro do carro, indo até o meu destino,

a casa? Como era o quarto e a cozinha? Por que tem um

isso não saía da minha cabeça, me perturbando de uma

basculante, com fundo de parede de tijolos, quase em

forma terrível.

frente a minha cama, bem ao lado de uma escada? Olhando

Hoje meu amigo Dé veio aqui, sem entrar na minha casa. Ele trouxe o resultado do jogo do bicho, tava com palpite

para esse teto sem cor, é como se eu estivesse construindo todas essas imagens sem ver.



Daqui da minha janela eu vejo o beco, muros, cacos de

até esquece, se não aparece na TV. Nem tem problema se

vidro e alguns gatos, não vejo o meu, talvez ele volte

a passagem do ônibus vai aumentar de novo a qualquer

ainda hoje. As casas são bem coladinhas aqui, uma janela

hora, a gente é que tem que se preocupar com isso. Eu

virada pra outra. Sem esforço, deitado com uma das

quero entender quem sou eu na quarentena. É como se

pernas para o alto, ouvi que a esposa do André do Beco

tivéssemos ódio e amores repentinos por alguém, por todo

do Coqueiro faleceu com coronavírus. Ela trabalhava no

mundo ou por si próprio. Tanta gente partindo e tanta

CRAS e tinha contato diariamente com inúmeras pessoas.

gente na rua brincando e se divertindo. Às vezes me nego

Outra pessoa que morreu e ouvi, foi a tia do queijo,

a entender, mas entendo bem o que é ser favelado. Não

que já tinha uma idade avançada e estava sendo difícil

precisa ser de fora pra ouvir alguns daqui dizer que

a recuperação. Ouvi isso tudo da casa da Vanda, uma

tomou banho na maré e está imune a tudo isso. Em todas

pessoa que eu nem conheço, mas conversou com alguém o

as favelas uma desculpa diferente.

dia inteiro e nem estava falando tão alto, sei que temos bastante pessoas em comum.

Meus dedos das mãos e dos pés nem dão mais pra contar quantos daqui de pertinho já se foram. No ano passado e

É manhã, daqui a pouco fica claro e eu estou catando

no retrasado, os boletins mostraram o efeito da violência

as roupas do varal. Hoje com certeza está melhor que

aqui. Mostraram também quem realmente estava morrendo.

ontem, ou pior. Minha certeza é que está diferente. Bom

Todo mundo sabe qual a carne mais barata do mercado.

dia! O sol brilha forte lá fora. E mais forte do que

Preciso me manter sadio para continuar e acompanhar os

ontem, porque existe o aquecimento global e a gente

próximos boletins e contar outras histórias.


A rua era o lugar mais lindo, o meu jardim particular e eu tava lá. Minha infância ainda é lembrada por aqui. Eu tenho histórias da minha área, que se repetem entre vários outros amigos. As crianças hoje estão na rua, tá todo mundo lá, entretanto, de uma forma diferente, como se os corpos fossem radioativos. O tempo da pipa chegou mesmo muito cedo, a quarentena adiantou isso. Tenho trabalhado muito na quarentena. O exercício de olhar para si, de enxergar o outro e se ver na multidão tem feito minha cabeça girar de forma contrária. No café com a minha mãe hoje cedo, conversamos sobre como as pessoas podem ser muitas coisas. Lembrei da parte do texto do Jonas que deu o nome ao livro “Cada dia meu pensamento é diferente”. Ela olhava a rua pela fresta da cortina e narrava quem vinha descendo, sempre foi assim depois do café.




O dia parece que não vai começar. Nublado, escuro.

campo, pra ver se consigo lembrar de algo que me inspire.

Acordei de ressaca, mesmo sem beber. Todos os dias tem

Opa, lembrei! Mas normalmente o que vem é uma frase

sido assim. Bate uma vontade de sair abraçando todo

automática e sem muita personalidade. O que te inspira?

mundo, bate uma vontade de tirar a máscara e falar bem

É difícil encontrar a resposta para esta pergunta, mas

pertinho das pessoas, até receber uma salivada da fala

por hora estou feliz com o que tenho em mãos.

molhada do Dé, que vai contando histórias e aumentando os

Essa noite sonhei que tinha um anjo caído aqui na

contos com inúmeros pontos, até terminar numa trovoada

rua. Ninguém ligava pra ele. Alguns não viam, outros

de risadas. Saudade de tudo mano, tudo mesmo, saudade

não queriam ver. E ele me olhava. Negão, olhos grandes,

até de pegar o 355 lotado pra Madureira, ou voltar da

nariz largo e boca cheia de dentes, igual a mim. Ele

ZS dormindo no busão e perder o ponto de casa.

estava caído e quando fui ajudar, ele sumiu. A morte

Cigarro aceso, mas não sou fumante, só queria ver

brutal de mais um negro nos Estados Unidos me feriu

ele queimando enquanto busco a verve para escrever e

bastante. Fiquei parado um bom tempo olhando a luz que

fotografar. Intimidado pelo mundo, preso dentro de mim,

entrava pela porta, pensando por quantas abordagens

me limito como vários dentro de casa. Já fiz histórias

violentas já passei. Um apertão, uma revista pesada

com a escada, com o teto, com a porta e o sofá, mas

e uns palavrões ao pé do ouvido me matam aos poucos,

parece que não tem fim a quantidade de histórias que posso

assim como os policiais que aqui atiram pra depois

criar e recontar sobre o mesmo objeto. Você precisa de

perguntar quem é. Não precisa fazer uma pesquisa muito

desinfetante? Comprei duas garrafas. O cheiro é de flor do

profunda pra saber que os jovens negros das favelas


estão morrendo, assassinados. Inúmeras vezes pra mim,

e responsabilidade com o que temos feito. Como fazer

a tal covid-19 é só um detalhe. Às vezes eu só quero

quarentena nas periferias, como manter “o povo mais

descansar e desacreditar no espelho.

necessitado” em casa? Vai todo mundo pra rua mesmo.

Vasculho as minhas lembranças. Na praça do 18 aqui

Mercado, feira, atividade física, com máscara ou não, a

na Baixa, há uns quinze ou vinte anos atrás, o maior

galera tá na rua porque acredita que mais uma vez a fé

perigo era a tal da Blazer branca, que não fazia muito

vai salvar. E olha, esse povo tem muita fé. Coroninha

diferente do que a polícia faz hoje. Talvez pra mim a

já rodou por aqui, ainda mais com um monte de papo torto

blazer branca foi o começo do entendimento sobre o que é

rolando. A Teixeira cheia todo dia, na Principal uma

a violência do Estado nas favelas. O saneamento e todos

multidão, no Pontilhão aquela movimentação, na Vila do

os outros problemas a gente tirava de letra, nadando na

João nada mudou. O papo que vai rolar baile hoje foi

maré, mas quando eles vinham, todos corriam da praça. No

confirmado. Favela agitada, feira da Teixeira vendendo

ano que disseram que o mundo iria acabar, perdi muitos

três sacos de legumes por cinco. Quando soltam fogos e

amigos para a fome do mundo. Nesse momento, a fome do

não tem polícia com certeza é festa pra alguém, ou gol

mundo está sendo saciada de outra forma.

do Flamengo, mas não tá rolando jogo. Negão, de cabelo

O mês virou e a vida, que já não é doce levar, está azedando. A Maré virou o epicentro da pandemia, comparada à outras favelas. Esse lugar nas pesquisas não é pra se comemorar, mas pra se ter mais atenção

loiro e máscara preta, fui de rolé conferir.




Uma vez perguntei pra minha avó, que todos os dias se

e carvão. Acho muito curioso esses dias de comemorações

sentava no segundo degrau da escada, acendia um cigarro

e de consumismo enlouquecido. Todo mundo esquece de

de palha que tinha um cheiro de terra e folha, como os

tudo, inclusive de uma pandemia e do isolamento social

urubus morriam. Ela me disse que eles voavam tão alto,

que estava rolando por aí... brincadeira, por aqui já

quando estavam velhos ou muito magoados, que as penas e

esquecemos faz tempo, claro que tem algumas exceções.

as partes do corpo iam se soltando, até que eles viravam

Brotei na principal da VJ às 3h da manhã pra comer um

pedaços. Acho que foi daí que comecei a pensar em ser

lanche da Rosinha. Peguei minha moto e desbravei a Maré

uma gaivota, se não fosse gente, para voar igual Fernão

até lá. Estava tudo nas normalidades mareenses, geral

Capelo, buscando um voo perfeito. Lembrei disso porque

na rua, de boa. Alguns com máscara, outros bem pertinho,

vi na escada os chinelos do modo que ela deixava. Muito

curtindo um calor humano em cada sarrada no baile. Quando

do jeito que enxergo a vida veio da minha avó, o resto

piei no beco às 4h30 da manhã, a molecada ainda tava lá

veio com a Maré.

no ping-pong. Dei um salve, fiz uma foto e vazei.

Estou me preparando para ser pai de novo. Acordei, tomei banho de bucha, cortei as unhas, descongelei a geladeira. Marquei hora no barbeiro para dar um tapa no telhado. Parece que todos os pais terão filhos amanhã. Tudo cheio. Subi o morro para comprar umas carnes para passar a semana, e só ouvia pedidos de carnes de churrasco




Parece que esse diário nunca chega ao fim. E eu

Mas tem uma galera, acostumada com tanta maré mansa, que

prefiro que nem chegue mesmo. Dia suave. Copo de café

acha fácil mandar a gente, que não tem, fazer. Maluco

na mesa. Já tomei quatro goles, só pra começar o dia

brancão não saiu de casa nenhum dia, porque tem quem

daquele jeitão. Sentei na porta de casa ainda às 7h30

faça por ele. Aqui, se não trabalhar não tem como viver,

pra ver o povo passar, trabalhar, se exercitar. Bom

não tem como comer, pagar aluguel ou sobreviver. Tem uma

dia aqui, outro ali. O caminhão do lixeiro encostou no

galera branca que vive querendo ensinar pobre, preto e

beco, pra retirar a grande montanha de lixo. E eu

favelado, como se fosse melhor, mais inteligente, mais

observando todos os movimentos. Quando observo, absorvo

foda. Mano, existem saberes e saberes distintos. Brota

para contribuir com o que sou. Caminhando beco adentro,

no beco e troca uma ideia com uma criança, ou com uma

sem muito rumo, encontrei o Jonas tomando um quente já

coroa pra ver o quanto vai aprender. Na verdade, nem

cedo. Ele me contou sobre o falecimento do seu Nenga.

brota, fica aí. Continua acreditando que você aí tem a

Isso me deixou muito triste, inesperado mesmo. O sol

salvação pro mundo, que é a salvação pra tudo.

do dia sumiu na hora. As lembranças gritaram na cabeça.

Escrever não é fácil, escrever bem é mais difícil

Amanhã não tem café, não vai ter contação de história.

ainda. Mas pensar que já escrevi essa frase cinco

O caminho para a morte leva menos de um segundo e dura

vezes de formas diferentes e apaguei é surreal. Hoje

uma vida inteira.

está sendo um dia que estou me cobrando mais, buscando

Nasci pobre mano, não ter dinheiro na maior parte da

uma tal perfeição pra fazer tudo, acho desnecessário,

vida faz a gente encontrar outras formas de se cuidar.

mas até a forma de fritar o ovo no café da manhã foi


diferente, a quantidade de sal que eu coloquei, o tempo

Outra vez acordo dentro do mesmo dia, mesmo sendo

que ficou no fogo, enfim. Não penso em ser escritor e

uma data diferente. Olhando pro nada, ainda deitado na

nem bom cozinheiro, só quero me tornar entendível para

cama, busco meu silêncio interno pra tentar ouvir o mais

quem estiver lendo, ou provando uma receita com ovos

longe possível.

fritos que fiz para o almoço. Brotei lá na rua que sou cria, já estavam começando os preparativos da festa agostina. Cheguei de máscara na área, logo vi uns olhares de estranhamento, olhares se transformaram em críticas. A rapaziada veio cheia de certeza me cantar a pedra, “quem tá de máscara está doente, se tiver doente fica em casa”. Sei que essa informação não é de todo certo, mas não tem muita gente usando máscara por aqui. Na verdade, pouquíssimas pessoas usam, em comparação com a multidão da Maré. As semanas estão passando muito rápido. Da hora de acordar até o almoço, não dura mais de uma hora. Depois da janta, mais meia hora e o dia se acaba. Acho que não sou o único que se perde nesses dias repetidos.




Fagner França Artista visual e educador. Formado pela Escola de Fotógrafos Populares. Participa do Mão na lata desde 2003. Publicou os livros Mão na Lata e Berro d’água e Cada dia Meu Pensamento é Diferente. Ministra oficinas de fotografia artesanal para crianças e coordenou um coletivo de estudantes de audiovisual na Escola de Cinema Olhares da Maré - ECOM. Faz parte da equipe de montagem da Galeria Gentil Carioca.

Fotos e textos Fagner França curadoria, diagramação e edição de imagens Tatiana Altberg edição de textos e revisão Raquel Tamaio

Os ensaios aqui apresentados foram compostos a partir de um extenso material produzido ao longo de quatro meses, entre abril e agosto de 2020. Jailton Nunes, Fagner França, Larisse Paiva, Juliana de Oliveira, Jonas Willame e Christine Jones, jovens moradores da Maré e integrantes do Mão na Lata, fotografaram e escreveram diariamente sobre seus cotidianos na quarentena. Periodicamente toda essa produção foi publicada no site www.amaredecasa.org.br, como parte de uma ação apoiada pela Redes da Maré e a organização Peoples Palace Projects, dentro da pesquisa Construindo Pontes, que estuda os níveis de bem-estar e saúde mental da população da Maré. Para o Programa Convida do IMS, apresentamos os ensaios, re-escrituras imagéticas e textuais da experiência vivida. Olhamos o que se passou como um contínuo processo de reelaboração do presente, na intenção de projetar um futuro outro.


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