Mão na Lata: Jailton Nunes - Programa Convida

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Passo a maior parte dos dias assim no quarto, tentando me isolar de tudo, acaba acontecendo o contrรกrio, estou sendo engolido pelo mundo.

JAILTON NUNES


Os vizinhos colocam música alta e começam a fazer

E vou embora. Mas hoje comentei com ela sobre o “e

churrasco. Como se não fosse o suficiente ter 6 pessoas

daí”. Em casa, ao fechar a janela uma cena me chamou

aqui em casa, que já causam bastante barulho, ainda

atenção: um senhor olhando para a gaiola erguida na

escuto os das outras famílias. Mal consigo ouvir meus

casa do seu vizinho. Nós prendemos os pássaros, que

próprios pensamentos. Não consigo dormir. Me levanto,

são livres por natureza, então a natureza deu um jeito

coloco primeiro o pé direito no chão e depois o esquerdo.

de nos prender.

Dou 23 passos até a cozinha. Pego uma xícara de café e

Está tendo promoção no Guanabara. Fui. Na entrada

volto para a cama com mais 23 passos. Dou o primeiro

eles medem a temperatura das pessoas e proíbem a

gole, seguido de outro. Uma pequena brecha, entre uma

entrada sem máscara. Isso me causa um leve conforto.

cortina e outra, deixa invadir uma brisa fria. Cubro

Vejo que em quase todos os corredores tem pessoas

minhas pernas com um edredom de algodão, que ganhei de

se aglomerando em volta de prateleiras com placas

minha avó há alguns anos atrás. Que saudades dela, já

de promoção, desconto, oferta. Essa situação me fez

faz 13 anos que não a vejo, espero visitá-la em breve

lembrar de uma cena que assisti semana passada na tv:

lá na Paraíba.

leões disputando um pedaço de carne. Pego apenas o

Ligo o computador para me distrair um pouco. Passo a

essencial para fazer a janta e vou para o caixa. Faz

maior parte dos dias assim no quarto, tentando me isolar

alguns dias que as pessoas aqui de casa perderam o

de tudo, acaba acontecendo o contrário, estou sendo

paladar. Não sei ao certo desde quando, mas notei no

engolido pelo mundo. Vi que o presidente respondeu “e

dia que minha mãe preparou o almoço e todos alegaram

daí” quando questionado sobre “o Brasil ter ultrapassado

que ela esqueceu de pôr o sal. Quando provei, a comida

a China no número de mortes por covid-19”. “E daí” é o

estava extremamente salgada. Desse dia em diante passei

que vamos responder para os familiares dessas pessoas?

a cozinhar ou auxiliar, experimentando para ver se o

“E daí” é a resposta para deixar pessoas morrerem,

tempero está bom.

desde que não deixem a economia ferida? “E daí” vamos

Mais um dia. Mais um café feito. Só falta ir comprar

voltar tudo ao normal? Mas não foi por causa do nosso

o pão. Hoje quem me atende é um senhor. Bom dia. 2

“normal” que chegamos a este ponto? “E daí” não passou

reais de pão. Valeu. Antes de ir embora vejo a garota

da hora de ter uma mudança nesse governo?

de cabelos curtos sentada no chão, comendo o que parece

Na padaria sou sempre atendido pela mesma pessoa,

ser um sonho e com a boca cheia de açúcar. Eu sabia,

uma garota nova, de pele clara, cabelos escuros e acima

ela usa aparelho nos dentes. Me viro e vou embora.

dos ombros. Acredito que ela usa aparelho nos dentes,

Em casa, minutos depois, ouço tiros. Estamos vivendo

pelo jeito que as palavras soam quando fala. Nossas

mais um episódio da pandemia que os moradores de

conversas são sempre curtas: Bom dia. Bom dia. 2 reais

favelas enfrentam há anos. Os jornais dizem não ser uma

de pão por favor! Claro, tá aqui. Obrigado! Obrigada!

operação, mas sim uma reação que a polícia teve em cima


da hora. Operação ou reação, qual a diferença? Polícia, bandidos, tiros, correria, balas perdidas que sempre acham o pobre favelado. Medo e confusão. Podem chamar de qualquer jeito, mas é sempre a mesma história. Quando ganhei minha primeira bicicleta aos 7 anos, uma linda bicicleta azul, com alguns adesivos de heróis e duas rodinhas de apoio, fui tentar aprender a andar na rua. Estava indo tudo bem, consegui dar as primeiras pedaladas, claro que tinha a ajuda das rodinhas. Até que escutei fogos e quando olhei para trás vi o carro blindado da polícia vindo em minha direção. Sem saber o que fazer, larguei a bicicleta no meio da rua e corri para a porta de casa. Foi a pior decisão que tomei, diante dos meus olhos a minha primeira bicicleta foi atropelada pelo caveirão. Os moradores já se acostumaram com os tiros, é só parar que em poucos minutos todos voltam a fazer as coisas normalmente. As notícias continuam chegando, vi diversas sobre manifestações, protestos e passeatas que estão acontecendo ao redor do mundo com a bandeira “vidas negras importam”. Mesmo em época de pandemia é necessário que as pessoas se aglomerem para mostrar que já está na hora de dar um basta nisso tudo. Estamos sufocados há tanto tempo que não conseguimos respirar. Quantas Marielles e João Pedros vão precisar morrer para que tenhamos o mesmo direito à vida daqueles com a pele clara? Confesso que é difícil se manter em casa quando falamos dessa pandemia que o negro favelado vive há anos. O mundo não pode mais ser controlado por esses líderes fascistas.




Inquieto e impaciente. Já não consigo mais dormir

a janela e sinto um aroma gostoso vindo de fora, um

direito. Sinto uma ansiedade que não era tão presente

cheiro de terra molhada, é a chuva que acabou com o

antes da quarentena. Passo a maior parte do dia andando

churrasco dos vizinhos. Fico ali observando. Entre

de um cômodo para outro. Antes, quando sentia esse

gotas e gotas, uma tristeza floresce dentro de mim.

turbilhão de coisas ia à praia pôr os pés na areia.

A saudade das sextas-feiras, em que saia para beber

Deixava a brisa que vinha do mar beijar meu rosto,

e dançar com meus amigos, me corrói por dentro. Bom,

escutava os sons das ondas se quebrando, e quando

se não fossem as aulas da faculdade, eu mal saberia

retornavam para o mar levavam todos os meus problemas.

em que dia da semana estamos. Isso está tendo um peso

Vejo pela hora que perdi o capítulo de Caminhos do

maior nessa semana. Com o passar das horas, admirando a

coração. Minha mãe me avisa que Etâ mundo bom começou.

chuva, sem perceber, gotas começam a escorrer dos meus

Hoje o vilão vai ser desmascarado, esse era o capítulo

olhos. Nunca fui muito emotivo, tampouco de chorar, mas

que estávamos esperando a semana toda. Em seguida,

não aguentei. Esse furacão de emoções, que transcende

começa Malhação. Ficamos ali sentados, assistindo.

meu corpo esta semana, está me deixando louco. Mas

Quando termina, já é o fim da tarde, vou tomar banho e

afinal, que mal algumas gotas de lágrimas fazem, perto

minha mãe vai preparar o jantar, antes que Totalmente

desse rio que está caindo do céu?

demais comece. Será que o concurso de beleza vai

Acho que se eu estivesse passando essa quarentena

continuar? Minha mãe está bem feliz por terem mantido.

com meus amigos seria um pouco mais fácil. Sinto falta

Eu fico rindo, vendo a sua empolgação com essa notícia,

de sentar na mesa de um bar e ficar horas papeando

nem parece que é a segunda vez que assiste essa novela.

com eles. Sinto falta de quando a gente se reunia para

No jornal o episódio da vez é a prisão do Queiroz, mas

decidir o que iríamos fazer, na maioria das vezes

para ela não tem tanta importância. Fico sozinho no

acabávamos não decidindo nada e terminávamos o dia

sofá assistindo, enquanto ela toma seu banho antes que

com a Bia bolada. Sinto falta das reuniões na casa da

Fina estampa comece, porque quando a novela acabar já

Julie para assistir filmes e não conseguir achar nenhum

vai estar na hora de deitar. Começou o Corujão e de

para colocar, já que o Brendo gosta de filmes antigos,

novo não consigo dormir.

a Julie de desenhos e eu de romances. Sinto falta até

O tempo está esfriando. Tem um silêncio estranho

das brigas banais por conta da carta +4 do Uno.

lá fora. Estava quase conseguindo dormir quando meus

Maçã é três! Banana é dois! Olha a laranja! Pessoas

vizinhos começaram a fazer mais um churrasco na rua.

gritam e andam por todos os lados. Cheiros e barulhos

Como dormir escutando essas batidas de funk? Isso

tomam conta de toda a rua. Corpos se espremem no meio

acaba com o sono de qualquer um. Levanto. Para não me

do pequeno corredor que é formado entre as barracas.

estressar pego uma cerveja na cozinha e tento aproveitar

A temperatura é elevada nesse ambiente povoado. A

o resto da noite escutando “na raba toma tapão”. Abro

máscara começa a irritar, as mãos a ficarem vermelhas


de segurar tantas sacolas, a perna bambeia, estou cansado. Volto para casa. No caminho passo em frente ao depósito que quando criança sempre comprava doces. Hoje tem um papel colado na porta, a loja está de luto. Jorge, o dono do depósito, foi mais uma vida perdida para esse vírus. E de novo a vizinhança está barulhenta. Homens disputam um torneio de futebol na quadra aqui perto, ouço os gritos das torcidas, parece estar cheio. Marteladas que meu vizinho dá na parede de sua casa assemelham-se a um compasso, pá-pá, marcando o ponto em que vou perder a concentração. Uma criança grita, pedindo ajuda da sua mãe, porque não está aguentando carregar tantas cervejas para pôr no gelo. Pá-pá. Vejo que mais um churrasco está a caminho. Pá-pá. Anoitece, mas os moradores da Maré não estão prontos para dormir, afinal é feriado. A algazarra só acaba quando o sol dá as caras de novo. A quarentena por aqui sempre foi diferenciada, agora ela é quase inexistente. O afrouxamento do resto da cidade soou como o fim dela para os moradores daqui. Vejo as crianças brincando nas ruas, as senhorinhas sentadas do lado de fora de casa fofocando, dois homens sentados na beira de sua porta, cada um com uma tampa de panela e uma colher na mão, fazendo sons e cantando para se divertirem. Pá-pá. Meu estômago está doendo o dia todo. O que será que causou isso? Talvez algo que comi ontem? O Arroz carreteiro, o hambúrguer, o brigadeiro, o pão, o café, ou a cerveja? Tô tão exausto de ficar preso em casa, sair só pro essencial. Percebo que a quarentena está enlouquecendo todos nós.




Sinto como se fosse um dos poucos que continua fazendo

poucas coisas que colocam os moradores da Maré em casa

quarentena aqui na Maré. Diariamente luto contra os

são esses dias de chuva. O cheiro de terra molhada

demônios da minha própria mente, que se criaram durante

impregna meu quarto e age como um sonífero, fazem

essa pandemia e a cada dia que passa ficam mais fortes.

minhas pálpebras ficarem pesadas e meu corpo mole. Ali

Hoje ajudei minha mãe a pendurar um quadro da Nossa

fixado na janela eu fico horas e horas observando o céu

Senhora de Fátima. Questionei ela sobre o motivo de

cinza e pesado. As poucas pessoas que passam pela rua

gostar tanto desse quadro, ela disse que Nossa Senhora

hoje têm pressa, e dão um jeito de diminuir o contato

sempre atendeu todos os seus pedidos: “espero que ela

com a chuva. Exceto alguns garotos, que estão ali em

olhe por nós, para essa situação toda acabar logo.”

seus cavalos sem se importarem que suas roupas fiquem

Percebo em seu tom que está cansada da quarentena.

pesadas de tanta água.

Aquela rotina de trabalhar, pregada nela há anos, está

Vejo um comercial na tv do filme que vai passar na

fazendo falta, deixando-a inquieta, procurando sempre

sessão da tarde. Esse vai ser o ponto chave do meu dia.

algo para fazer.

Quando criança, a maioria das minhas tardes era dessa

São 3 horas da tarde, a campainha toca. Uma criança

forma: deitado no sofá assistindo filmes na Globo.

pede para soltar a sua pipa, que ficou presa na minha

Perdi a conta de quantas vezes assisti Lagoa azul, não

laje. Estamos na época onde todo morador da favela passa

vou nem falar sobre Shrek. Fosse qual fosse o filme eu

horas empinando pipas. Costume passado de geração em

gostava de ver, ainda mais quando meu pai fazia alguns

geração por aqui. Pode se ver desde crianças até os mais

salgados de salsicha para mim e minhas irmãs. O filme de

velhos se divertindo. Já eu nunca soube soltar e nem

hoje contava um pouco sobre a história do Galactus. Um

tive a curiosidade de aprender. Fico na laje sentado,

personagem, também conhecido como Devorador de mundos,

apenas olhando esse céu com tanto movimento das pipas.

tem a necessidade de consumir planetas inteiros para

O sol já está se pondo, as pipas começam a sumir. Minha

sua sobrevivência. Depois vi no Jornal Nacional a

mente está tão longe que nem percebo as horas passarem.

notícia de que enviaram um drone para Marte, diziam

Por um momento até esqueci completamente essa situação

que num futuro próximo os seres humanos poderão deixar

que estamos vivendo. Fiquei pensando naqueles dias que

a terra para colonizar aquele planeta.

ia à praia com amigos, um copo de mate limão na mão e abençoados pelo pôr do sol. Mais um dia termina. Até que não foi um dia ruim. Nessas circunstâncias, isso já significa ser bom. Quando na verdade, foi apenas outro dia. Nuvens pesadas aparecem no céu e aparentemente sem pressa de irem embora. A rua está mais vazia. Uma das





Desperto nessa madrugada escutando alguns barulhos.

para casa há tempo de assistir à novela do Candinho. E

Kapow! Kapow! Logo identifico que são tiros. Não demora

em seguida mandou eu tirar a roupa da corda. Vejo que

muito até que esses sons também acordam minha mãe.

a vizinha está fazendo a mesma coisa. Estranho pensei,

Começamos a questionar. Seria mais uma operação policial?

por mais que a casa dessa vizinha e a minha estejam

Confronto entre facções? Não acho que seja isso. Se

aproximadamente uns 5 metros uma da outra, nós estamos

fosse uma operação cadê o pow, poropow, pow, pow? E não

muito mais distantes do que isso. Não a conheço, não

tem barulhos suficientes para ser uma disputa entre os

sei seu nome, nem sua idade. O pouco que sei sobre ela

rivais. Seja o que for, não parece distante, os barulhos

é devido a observação através de sua janela nesses

estão vindo de algum lugar próximo. Interrompendo nossa

meses. Um metro e 20 por um metro e 20 é a medida

conversa, minha irmã entra reclamando no quarto: “Os

da qual enxergo a sua vida. Sei que em muitas outras

caras estão testando armamento uma hora dessas!”

janelas também existem pessoas que estão olhando para

Está cada vez mais preocupante sair. As ruas estão

fora e imaginando quando tudo irá voltar ao normal. Mas

lotadas. O covid-19 parece que já ficou para trás. É

tudo voltará ao normal? Eu já não sou o mesmo de quando

como se esse ferimento já tivesse calejado. As poucas

entrei na quarentena, muito menos o mundo é o mesmo.

pessoas que carregam máscaras pelas ruas, utilizam como acessório: brinco, colar ou então sem tampar o nariz. De tarde resolvi arrumar o quadro da sala. Passei o resto do dia fazendo isso. Nunca pensei que seria uma tarefa tão difícil, colocar fotos nas molduras. Como escolher apenas 32 fotos para representar a vida das 7 pessoas que moram aqui em casa. As brigas dos vizinhos me acordaram cedo de novo. Pelo o que eu entendi, alguma tv foi quebrada, alguém vai ter que pagar 400 reais e alguém está bêbado. A cada dia essas brigas têm protagonistas novos. Hoje minha mãe volta a trabalhar. O café já tá feito, ela diz antes de ir. É estranha essa sensação de vê-la saindo. O medo desse vírus me transformou de novo naquela criancinha que chorava, todas as vezes que ela saía e me deixava. Mesmo com esse desconforto, acabo soltando uma risada ao ler uma mensagem dela, dizendo que sua maior preocupação era se conseguiria voltar




Os ensaios aqui apresentados foram compostos a partir de um extenso material produzido ao longo de quatro meses, entre abril e agosto de 2020. Jailton Nunes, Fagner França, Larisse

Jailton Nunes Faz graduação em administração na Universidade Estácio de Sá. Participa do Mão na Lata desde 2011. Publicou o livro Cada dia meu pensamento é diferente e participou da realização do curta Caio. Tem fotos publicadas no livro Torcedores um projeto de Thiago Facina. Atuou como professor assistente em oficinas de fotografia do Mão na Lata e do projeto Retrato Falado. Participou de diversas exposições, entre elas destaca-se o 35º panorama da arte brasileira MAM-SP. Tem fotografias pertencentes ao acervo do Museu de Arte do Rio - MAR.

Paiva, Juliana de Oliveira, Jonas Willame e Christine Jones, jovens moradores da Maré e integrantes do Mão na Lata, fotografaram e escreveram diariamente sobre seus cotidianos na quarentena. Periodicamente toda essa produção foi publicada no site www.amaredecasa.org.br, como parte de uma ação apoiada pela Redes da Maré e a organização Peoples Palace Projects, dentro da pesquisa Construindo Pontes, que estuda os níveis de bem-estar e saúde mental da população da Maré. Para o Programa Convida do IMS, apresentamos os ensaios, re-escrituras imagéticas e textuais da experiência vivida. Olhamos o que se passou como um contínuo processo de

Fotos e textos Jailton Nunes curadoria, diagramação e edição de imagens Tatiana Altberg edição de textos e revisão Raquel Tamaio

reelaboração do presente, na intenção de projetar um futuro outro.


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