Mão na Lata: Jonas Willame - Programa Convida

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Manual de sobrevivência de uma quarentena: ter que derrotar um vazio por dia, sair da boca da ansiedade, navegar na angústia, escalar os traumas antigos, tentar esconder as lágrimas que vão cair.

JONAS WILLAME


A noite começa com a programação de insônia. A

logo após. Alguns olhares de pessoas na rua investigam

tradicional queima de fogo de artifício às 0h, aniversário

o que aconteceu. Um segundo depois, o movimento volta.

de alguém. Seguindo, a chuva interrompe a programação,

Um tiro também faz parte do cotidiano, e só faz parar

mas logo que termina, às 3h da madruga, já se escuta um

tudo quando é seguido de muitos outros.

gato miando bem alto, o tradicional gato no cio. Lá por

Tirei um tempo para pensar no que aconteceu essa

volta das 4h20, mais fogos. Finalizando a madrugada,

semana: na segunda estava triste, na terça já estava

às 5h da manhã, o despertador toca alto na rua: hora

até animado, noutro dia da semana, que nem lembro mais,

dos pés irem para o trabalho. Pés descem as escadas e

mudei de humor umas duas vezes. Não sei se é a falta

são ouvidos na madrugada para o amanhecer. Pés lentos

do café, ou o stress, ou a vontade de sair. O dia foi

que acabaram de acordar. Sons de portões e de portas

deitado. A noite levantou e me segurou. Ela se assegurou

trancados, sacos de lixo que são levados. Todos os dias

que eu não dormisse. Hoje foi um bom dia, um belo dia

antes da pandemia, durante e só Deus sabe se depois, os

para viver sem motivos. Hoje foi um dia comum, comi,

sons típicos do amanhecer dos trabalhadores continuam.

bebi, tomei banho, parei para escrever. Sentimos muitas

Escovo os dentes. Levantei de bom humor hoje.

coisas e isso às vezes não é bom, mas também não mata.

No caminho da padaria vejo que as lojas e os comércios estão abertos, cachorros perambulam à solta, gatos reviram os lixos. Muitos “bom dia” de quem acabou de acordar. Uma interrupção. Um tiro é ouvido. Um silêncio

Se não mata, então enche, cresce. Acho que isso é o fôlego de viver.



Quando estava me alongando na varanda, meu amigo

resfriado forte. Como que um toque final, meu irmão

me disse por mensagem que sonhou com caminhões vindo

também pegou. Eu, com medo de ser corona, me isolei no

buscar corpos na favela. Isso me deixou apreensivo.

quarto. Estava eu no lugar que eles deveriam estar, em

Tentei negar a ideia, mas como fazer isso enquanto os

isolamento. Minha mãe perdeu o paladar, meu padrasto não

números crescem, as pessoas saem e os efeitos do corona

se recuperava, meu irmão nem levantava da cama. Então

se modificam? Um carro de som passa na favela todos os

começou minha rotina de comprar pão pela manhã. Lembro de

dias pedindo para que as pessoas fiquem em casa, mas nada

ir na farmácia procurar vitamina C, os estoques vazios.

muda. Quantas vidas perdidas serão o suficiente para

A única que achei estava com o preço de 40 reais e em

as pessoas começarem a colocar a mão dentro da cabeça,

pílula. Voltei chateado pra casa. Estava sem dinheiro,

tirarem a máscara da ilusão e comprarem uma de verdade?

tendo que começar uma vida muito mais econômica.

Diário, hoje vou contar sobre os dias do começo da

Os dias foram bem duros, eu confesso que me neguei a

quarentena. Eles foram mais duros do que é agora, ou

pensar nisso. Não poderia nem imaginar que eles poderiam

talvez seja eu me acostumando com as dores dessa nova

ser ceifados, acho que não aguentaria. Os dias seguiram,

vida. Meu padrasto ficou doente, em seguida, redução

meu irmão voltou a levantar da cama, meu padrasto

salarial no trabalho. Ele ficou com um resfriado forte.

levantava cedo pra pegar sol na cadeira de balanço,

Foi quando a rotina dele, de ir todos os dias ao mercado

minha mãe começou a se sentir bem melhor.

pela manhã, mudou. Comecei a ir no lugar dele. Depois,

Meu padrasto demorou mais dias até se recuperar,

a situação começou a piorar. Minha mãe também pegou um

mas se recuperou. Acho que passei pela pior onda da


quarentena, quando ela demora a ser levada a sério em

navegar na angústia, escalar os traumas antigos, tentar

casa. Depois disso começaram as medidas de cautela, até

esconder as lágrimas que vão cair. Nunca se sabe qual

o galão de água era lavado antes de entrar em casa. Hoje

tristeza está regenerando meu dia. Então, com cuidado,

em dia é muita laranja e água, para manter a saúde e

escolho as lágrimas que podem cair. Bom, hoje foi vencido

evitar o pior.

com sucesso. Amanhã espero que eu domine um pouco mais

Essa também é a cara da quarentena, dos ansiosos, dos tristes, daqueles que já tinham uma vida difícil. Agora confinados, se encontram, se afastam. O dia começa e termina. À noite me faço cama para meus próprios pensamentos pesados. Meus pensamentos tomam meu lugar. Enrolados em lençóis de preocupações, angustiados, ansiosos, esperando que logo tudo acabe, nesse fim do mundo. Os pensamentos giram. Agora eles não contam carneirinhos. Contam quantas pessoas passaram na minha vida, contam quantos erros. Até que deitam no travesseiro da aceitação e aos poucos se tornam novamente eu. Manual de sobrevivência de uma quarentena: ter que derrotar um vazio por dia, sair da boca da ansiedade,

eu e que me encontre com eu.




As luzes da favela invadem meu quarto à noite, junto

o espaço, passou ao vivo na TV. Ele foi levado até o

com o pagode e os gritos de mães que chamam os filhos.

foguete em carros automáticos, sem pilotos. Uma série

Às vezes um Jonas é chamado, mas esse é pequeno e mora

de notícias que bombardeiam meu imaginário. Será que

em outra casa. Meu cachorro atende como se fosse eu e

estamos no fim do mundo? O presidente diz que os leitos

late. As luzes de fora só param quando coloco a cortina

dos hospitais para pacientes com covid estão vazios,

e o barulho quando o ar-condicionado é ligado. Parei

será que ele não sabe que quase todos os hospitais já

para rever um poema chamado Ozymandias de Percy Bysshe.

estavam bem cheios antes do vírus? Pela manhã um pula-

Ele mexe muito comigo porque é aberto a tantas ideias.

pula vazio, ruas cheias de cascos de cerveja, cheiro

Entendo um pouco que é sobre o que vamos deixando de ser

de álcool. Ontem as ruas ficaram fechadas e meu sono

durante nossa vida. Virando a noite conversando com Ela,

tomado. Festas nas ruas. O uso de máscara se tornou

sobre tudo um pouco, fomos de Deuses a Pavões. Assim são

exótico nas ruas pequenas e becos da favela. Sigo meu

as conversas: elas mudam de assunto e você acaba às 4h

dia com surpresas, que mais parecem 1/4 de felicidade

da manhã assistindo vídeos de chás para sinusite.

diluída em tristeza. Apenas decepção.

Em meu sonho, aranhas gigantes, vindas de um horizonte

Me perdi nos pensamentos assistindo às gotas de

escuro, abocanhavam e levavam muitos. Aqui fora uma

água caírem sobre uma bicicleta que estava na rua,

doença viajou o mundo inteiro. O horizonte escuro, aqui

senti como que um passaporte para o passado. Lembrei

fora, é o futuro cada vez mais incerto. Manifestações

da felicidade que tive quando ganhei minha primeira

tomam as ruas. Um homem foi enviado ontem de novo para

bicicleta. Meu pai me deu. Mas ele não podia estar


comigo. Ele juntou dinheiro trabalhando de cozinheiro no

Afinal, ela veio no carnaval já com essa fantasia. Um

presídio, para poder comprá-la. Agora refletindo vejo o

dia curto, nem deixou ser ontem direito, já é quase

quanto ele também deve ter ficado satisfeito. Lembro que

ontem hoje. E durante a noite os velhos falam sobre o

me esforcei bastante, aprendi a andar de bicicleta sem

passado, sobre times de futebol, quase como se fosse

cair nenhuma vez, mas comecei a cair bastante tentando

uma discussão, mas com um tom de quem já se conhece uma

fazer manobras, que nunca aprendi direito. Lembro que

vida toda. Eles falam que o corona vai passar, que logo

andava de bicicleta até minhas mãos doerem, calejarem e

vão poder torcer e jogar contra os times. O assunto dura

as minhas pernas ficarem doendo. Subia e descia a cidade

por mais de 3h. Decidi não sentir raiva pelo barulho.

pequena aonde nasci no Ceará.

Decidi pensar que são histórias contadas de graça em

Conversando com minha mãe sobre as notícias, que

uma rádio na esquina. Meus dedos batem ritmados. Eu olho

em sua maioria são chatas de saber, fiquei sem reação

para o relógio, os velhos têm muito a contar, parecem

quando ela falou que o Jorge, um velho que tinha uma

não ter sono, justo em uma noite fria que me faz querer

distribuidora de bebidas, morreu. Sempre via ele, em

dormir muito.

todos esses anos que moro na Maré. Desde os tempos em que eu trabalhava com meu tio, lá por volta dos meus 13 anos, que eu via o Jorge na distribuidora, que era vizinha da loja do meu tio. Fiquei triste, mas não surpreso, que a morte já esteja fantasiada de corona.




O vilão da semana surge: a dor de cabeça. Não sei se

O dia foi curto demais, quando vi já estava na segunda

é abstinência de café ou o começo de uma gripe. Passo

temporada. As paredes do meu quarto hoje até parecem ser

o dia de molho, até eu me render aos analgésicos, tomo

gigantes, se não fosse a série o tédio com certeza iria

logo dois, a dor incomoda demais. Quase não vejo o dia

me consumir, e essas paredes cairiam, com o tamanho que

passar. Essa dor irritante sequestrou qualquer brilho.

já tem. Bom, melhor não pensar nisso, o que não foi não

Esqueci de falar, mudei novamente os móveis do quarto

é coisa que devo me preocupar.

de lugar. Coloquei uma luz vermelha, já que não gosto

Saí pela manhã. Já na esquina da frente, uma parede

muito de luzes fortes. Tentei mudar os ares do quarto.

com vários buracos de tiros. E na virada da esquina dois

Percebo que toda vez que mudo algo de lugar, fico uns

pula-pulas, com algumas crianças. Voltando da padaria

dias sem sonhar. Será que meu corpo tem que se acostumar

eu lembro que essa noite o gato no cio não fez barulho,

antes de sonhar?

acho que estava querendo deixar espaço para o cachorro.

Hoje foi mais um dia sem café. Agora adormeço bem mais

O cachorro do vizinho, que late para todos que passam,

rápido, diminuiu a ansiedade, mas não quer dizer que

ficou do lado de fora e me avisou quantas pessoas

ela tenha sumido. A dor persiste... entrei em alerta,

passaram na rua, sei que foram todos adultos, ele não

fico no quarto o dia todo, uso máscara quando vou ao

late para crianças.

banheiro e trago a comida para o quarto. Em tempos de pandemia gripe é arauto de más notícias. Mesmo assim, me rendendo aos analgésicos, fico assistindo série.



Nesta sexta levantei até melhor. Como habitual, fui

até uns bons pensamentos. Na padaria às vezes dou azar

na padaria. No caminho vi uma moeda de 10 centavos

de ser atendido pelo novato. Ele demora bastante para

no chão. Me veio de imediato à mente uma senhora que

colocar os pães no saco. Ele sempre me olha com cara

conheci um dia na feira. Ela me contou que nunca pegava

de quem quer falar algo e não diz nada. Isso é rotina.

do chão moedas de 5 e 10 centavos, proferindo que uma

Quando é o outro atendendo, geralmente cobra bom dia de

vez aprendeu isso com um velho. Disse também que sua

gente mal-educada. É engraçado, ele dar um bom dia com

casa é cheia de moedas pelo chão. Quando perguntei por

ênfase no senhor ou na senhora. O dia seguiu. Fiquei

que daquilo ela respondeu: “O velho só me disse para

observando a rua pela janela. Hoje parece ser o dia da

nunca fazer, e vejo mudanças na minha vida por isso.”

contaminação, as pessoas estão comemorando o dia das

Fico pensando no poder das palavras e que alguns velhos

mães em grande circulação, com churrascos. Inclusive o

sabem contar coisas que mudam sua vida. Naquele dia

da frente foi só um, porque existia outro na laje do

também percebi que as pessoas têm facilidade para me

vizinho. O churrasco dos vizinhos da frente tinha pagode

contar seus problemas, até me pergunto se é um dom ou

(não curto esse gênero). Durou o dia inteiro. Estavam

uma maldição.

lá ainda até quase 1h da manhã. Às 4h ouço uma mulher

Mais um dia. Acordei meio dolorido. Devo ter dormido

discutindo com o seu namorado. Ela pede que ele não a

mal com o travesseiro novo. Acordei e fiz um chá de

toque, mas parece que ele acaba a machucando. Lá fora,

camomila para ficar calmo. O dia foi indo, eu fui

na rua, essas coisas. Não há nada que se possa fazer.

pensando bastante, nesse dia o céu estava lindo, tive



Olho pela janela um bêbado falando sozinho e se

se esses aqui no Brasil soubessem o quanto a sua força

segurando em um concreto. Vão passando as horas. Já de

é capaz. Me lembro de um protesto que fez o caveirão

manhã alguns tiros. Semana com um gosto amargo. Ontem

recuar. Uma multidão na rua, sem gritar muito ou se

o presidente desfilou sem máscara. Tudo se alinha para

aproximar, foi o suficiente para mostrar que o poder

ser um dia triste. Me sinto empático. Tantas coisas

é dela e do povo. No dia que as formigas souberem que

acontecendo que não tive tempo para processar. Meio

podem matar os gafanhotos, talvez nesse dia o equilíbrio

sonolento, escrevo para deixar esvair as emoções. Enquanto

volte e o poder seja entendido e dividido entre mulheres

o lixo lá fora é recolhido, vou também recolhendo minhas

e homens justos.

ideias, para não ficar triste, mesmo com as razões que

Não tenho sonhado tanto. Mas meus sonhos sempre têm

tenho. Que foto posso fazer para representar isso tudo,

detalhes que se repetem. Agora sempre caminho pelas

além do breu que 2020 têm impregnado?

paredes. Em algum momento do sonho isso acontece. Nunca

Tomando meu chá da madrugada, fiquei lembrando que

entendo o que quer dizer. Acho que os sonhos fazem

hoje os canais de comunicação se encheram com a notícia

parte de uma série de mudanças que estão acontecendo.

de George Floyd, o homem negro morto sufocado e os

Poderia dizer que meus sonhos são como aberturas de

protestos. Parte de mim sofreu ao ver um homem morrer

temporadas de uma série, que duram alguns meses. Os

sem escolha, algemado, sem poder reagir. Outra parte

primeiros sonhos eram com tentativas de voo, então acho

vibrou quando a delegacia queimou, me senti de alguma

que nessa temporada me sentia muito preso, não fazia o

forma vingado, a luta não parou ou calou. Fico imaginando

que precisava. A segunda temporada era eu apenas voando.


Fiquei muito tempo nela, era uma liberdade incrível. A

pudessem comer. Quando via, elas todas subiam as escadas

temporada de agora ainda não entendo, mas logo vamos

atrás de mim. Descia para ver se tinha algo lá em baixo,

saber, no fim dela.

também não encontrava nada. Logo via elas descendo também.

Saí um pouco. Aqui na esquina tem uma praça. Fui lá.

O sonho termina com elas morrendo de fome. Seis pequenas

Sentei no banco com um amigo e ficamos conversando

aranhas mortas. Quase uma profecia esse sonho. Não posso

sobre o dia a dia. Já era tarde. Saí justamente à noite

explicar. Sonho.

para evitar muitas pessoas na rua. Enquanto a gente conversava, no fundo, um monte de crianças brincavam. Era 11h e tanto, quase meia-noite. A noite estava com um vento agradável. De repente a gente ouve: “O pé do preto tem um prego.” Um garoto que brincava sem sandália logo é carregado pelos amigos, ele tinha um prego preso no pé. Como são as crianças, umas zoam, outras se preocupam. Tive um sonho estranho. Eu ficava com dó de um ninho de pequenas aranhas, que alguém tinha pedido para jogar fora. Escondia o ninho na escada e quando as aranhas nasciam, com fome ainda, eu procurava algo para elas comerem. Subia as escadas, não encontrava nada que elas




Jonas Willame Participa do Mão na Lata desde 2009. Publicou o livro Cada dia Meu Pensamento é Diferente e realizou o curta Caio. Participou como professor assistente em oficinas do Mão na Lata. Fez parte da ECOM e dos Crias, projetos da Redes da Maré. Participou de diversas exposições, entre elas destaca-se o 35º panorama da arte brasileira MAM-SP. Tem fotografias pertencentes ao acervo do Museu de Arte do Rio - MAR.

Fotos e textos Jonas Willame curadoria, diagramação e edição de imagens Tatiana Altberg edição de textos e revisão Raquel Tamaio

Os ensaios aqui apresentados foram compostos a partir de um extenso material produzido ao longo de quatro meses, entre abril e agosto de 2020. Jailton Nunes, Fagner França, Larisse Paiva, Juliana de Oliveira, Jonas Willame e Christine Jones, jovens moradores da Maré e integrantes do Mão na Lata, fotografaram e escreveram diariamente sobre seus cotidianos na quarentena. Periodicamente toda essa produção foi publicada no site www.amaredecasa.org.br, como parte de uma ação apoiada pela Redes da Maré e a organização Peoples Palace Projects, dentro da pesquisa Construindo Pontes, que estuda os níveis de bem-estar e saúde mental da população da Maré. Para o Programa Convida do IMS, apresentamos os ensaios, re-escrituras imagéticas e textuais da experiência vivida. Olhamos o que se passou como um contínuo processo de reelaboração do presente, na intenção de projetar um futuro outro.


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