Às vezes fico me perguntando sobre quando tudo isso vai acabar. E se acabar, como ficará minha vida daqui pra frente? Fico muito ansiosa pensando nessa crise de saúde pública-econômicapolitica-territorialcoronavírus-alienígenaslagartas-tiroteios-queimadas.
JULIANA DE OLIVEIRA
Há dois dias atrás liguei para a central de atendimento
seção terapêutica ano passado. Não julgo. Afinal, se
ao coronavírus, perguntei se deveria ir ao hospital/
está tendo barulho de makita é sinal que a favela está
upa para ser atendida, pois além da febre estava me
tranquila. Recebi uma visita inesperada hoje aqui em
sentindo muito mal. Responderam que só poderia ir à
casa, um rato que roeu o fio da bomba. Eu sei, poderia
uma unidade de pronto atendimento caso eu estivesse com
ser o clássico trava língua “o rato roeu a roupa do
falta de ar. Continuei a perguntar sobre a tosse que
rei de Roma”, mas essa é minha realidade e foi isso que
eu tinha e o que deveria ser feito. A resposta que tive
aconteceu. Tivemos esse estresse e ficamos um período
foi que deveria falar com o farmacêutico da farmácia
sem água, afinal, o rato roeu o fio da bomba. E agora,
mais próxima. Mas a grande questão é, que farmacêutico?
como a água irá subir? Ser pobre é saber que além dos
Se nas inúmeras farmácias no complexo da Maré quase
pets que temos, adotamos involuntariamente em casa os
nenhuma oferece esse atendimento? Fiquei reflexiva sobre
agregados roedores, que quando não são bem alimentados
o acesso à saúde que eu e a comunidade possuímos.
fazem a destruição. O pior é que não temos dinheiro
Tomei bastante vitamina C e meu corpo começou a
para dedetização, da última vez que minha avó tentou
reagir, mas o dia não começou bem. Logo cedo me deparo
exterminar uma das pragas que apareceu, quem quase
com uma notícia triste no Facebook, sobre uma colega que
morreu por intoxicação fui eu.
estudei no ensino fundamental. Ela também era residente
Um número desconhecido me liga. Atendo e uma voz
aqui na Maré. Ela morreu por causa do coronavírus.
automatizada diz: “Olá, somos da central de atendimento
Eu não acredito no que acabei de ler: “jovem de 25
sobre a covid-19, estamos retornando para saber se
anos morta na quinta-feira vítima de covid-19.” O
você ainda apresenta febre?” Para a minha surpresa,
primeiro impacto foi pela morte, o segundo foi por
quando acabei de dizer “não”, simplesmente a voz se
ter descoberto tanto tempo depois, por uma página na
despede, finalizando meu atendimento telefônico. Eu
rede social vinculada ao trabalho dela. Sinto medo:
ainda tinha dúvidas, mas não tive a oportunidade de
“quem será o próximo?” Tomo uma ducha para relaxar o
perguntar. Na madrugada resolvi ir ao hospital, tive
corpo e ver se esqueço desse tempo de quarentena, e os
uma crise de tosse intensa, estava com dor nas costas e
malefícios que ele traz. No banho tento me reconectar,
leve falta de ar. O médico que me atendeu sequer olhou
ser eu mesma, sem preocupação com aceitações, ser só
no meu rosto. Fez perguntas com uma voz muito séria e
meu corpo e eu.
rapidamente me encaminhou para fazer o raio-x do tórax.
Por volta das 14h, meu vizinho que nunca termina a
Gostaria de ser atendida melhor. É muito ruim passar
obra, liga mais uma vez a makita de cortar piso. Fico
por isso, essa tosse me impossibilita de ser mais
me perguntando se o barulho que a máquina faz seja
produtiva, mas quem disse que preciso ser?! Depois de
terapêutico pra ele. Mas na real, fico pensando se
trinta minutos sou chamada por uma médica, o plantão
ele sabe o que é terapia. Eu só tive minha primeira
havia sido trocado. Muito solicita, ela me ouviu com
atenção e me receitou alguns remédios. Mas o hospital não tinha nenhum e nem vaga para fazer inalação, tive que me virar. Sigo firme com as minhas inalações em casa e a cada dia me livro mais da tosse que me persegue. Aos poucos vou me sentindo melhor, consigo ver resultado se comparado com os dias anteriores. E que bom que tenho meus gatos, eles são companheiros de vida, me distraem com suas brincadeiras de caça, fazem massagens no meu corpo com suas manias de amassar pão. A vida deles é curta, comparada com a expectativa da minha. Quer dizer, nem tanto, meu corpo periferizado pode torna-se do tamanho do deles. Mas eles têm sorte, eles não pegam coronavírus e não se preocupam com alimentação. Hoje está parecendo um domingo. Aliais, todo dia parece que é um feriado ou um domingo, um repetitivo feriadão. Até fui lavar meu cabelo para que na hora do almoço já estivesse seco e cheiroso. Motivada pela minha mãe, após a lavagem dos cabelos, fui tomar sol lá na laje, junto com ela. Lá de cima consegui olhar um pouco a rua. Senti o vento bater enquanto o sol me deixava quentinha, aproveitei para conversar com minha mãe sobre muitas coisas. E isso foi muito bom! No fim da tarde minha mãe recebeu uma ligação da patroa dela, dizendo que amanhã a cooperativa de bolsas de couro que ela trabalha voltará ao normal. Na TV, as notícias da abertura gradual do comércio contrastam com o número de infectados e mortos pela covid-19 na cidade do Rio de Janeiro. A volta ao trabalho se contrapõe ao risco à saúde da minha mãe.
Toda vez que eu abro alguma rede social é impressionante
até a cama e se eu acordasse, ela ficava à espreita
o quanto de coisas perfeitas que aparecem. O bolo dá
para me fazer voltar a dormir. Certamente esse cuidado é
certo e não sola. A menina faz maquiagem e não borra.
característico de amor de mãe, que faz o seu melhor pra
Meu colega de classe fez mais cursos em tempos de
ver o sorriso do filho. E que apesar das dificuldades,
pandemia do que eu tive em toda a minha vida. Sabe,
se torna heroína do seu próprio jeito.
a pressão das redes sociais tem me feito muito mal,
Engraçado que mesmo dentro de casa, aprendo as
ao mesmo tempo, é inacreditavelmente viciante. Os
coisas que estão acontecendo lá fora. Meus vizinhos
algoritmos de publicação só são benéficos para aqueles
colocam músicas na casa deles e eu da minha ouço tudo
que tem interesse nos números, não para quem consome.
e aprendo rápido. As canções por aqui são diversas,
Corpos perfeitos, vida perfeita, tanta mentira!
desde brega, funk, até sertanejo. O importante é ter
Acordo cedo, por volta das 8h, com o som do tratorzinho.
animação dentro das casas. As pessoas na faculdade me
Enquanto mexo no computador percebo uma presença diferente
perguntam como eu sou tão eclética. Eu sempre respondo
no meu quarto. O tamanho é pequeno, olhando de longe
a mesma coisa: “o segredo é ter vizinhos como os meus.”
parece se camuflar na porta de madeira. É um passarinho,
Falando da faculdade, precisei rever algumas coisas de
muito fofinho. Quando tinha uns 4 anos meu pai me deu
parasitologia e enquanto estudava ouvi alguns tiros
um passarinho amarelo. Minha mãe diz que o gato comeu.
seguidos. Os caras aqui da região devem estar testando
Na verdade, não tenho memória desse acontecimento.
produto novo. Acho que vivo num mundo paralelo entre a
Histórias de família. Mas falando no tratorzinho que
favela e a universidade. Se por um lado vejo imagens
me acordou, quando você ouve o barulho de um o que te
de microrganismos, que por vezes tem alto poder de
lembra? Vida no campo, obra na construção civil? Pra
letalidade no corpo humano, por outro, vivo uma situação
mim é uma marca simbólica da hora do lixeiro passar.
de instabilidade social, de confrontos com armas de
Toda segunda, quarta e sexta, entre 7h e 9h. A grande
fogo. Então, além da bala perdida, aprendo que posso
questão é que aqui na rua aonde moro não tem espaço
morrer por parasitas oportunistas.
para passar o caminhão do lixo, por isso se adaptou o
Mais uma notícia triste: Miguel Otávio de cinco
tratorzinho. Às vezes penso como seria não ser acordada
anos, caiu do 9º andar de um prédio em Pernambuco. A
pelo barulho do tratorzinho. Acho maior privilégio quem
fatalidade ocorreu a mais de dois mil quilômetros, mas
não é acordado pelo TUMTUMTUM do tratorzinho.
a sensação é de como se fosse do meu lado. O sobrenome
Ao sair do quarto me dei conta que, por algum
dele era Silva, o meu é Oliveira, mesmo que não sejam
motivo, minha mãe havia dormido no sofá junto com
iguais temos algo em comum, minha mãe também é empregada
o Aron, meu gato. Essa cena me lembra quando eu
doméstica e me criou com o fruto desse serviço. Não tem
era pequena e dormia no sofá, bem daquele jeitinho.
como não me colocar no lugar dele, poderia ter sido
A diferença era que minha mãe tinha forças pra me levar
comigo há uns 18 anos atrás.
Semana após semana as coisas parecem piorar, nos Estados Unidos um homem negro, George Floyd, foi morto por um policial branco, ontem o filho negro de uma empregada doméstica morreu ao cair de um prédio luxuoso enquanto estava sob os cuidados da patroa, branca. Alguns dizem que é coincidência, eu digo que é racismo no modo mais nítido que a figura humana pode encontrar. Fiquei espantada com os morangos que comprei, eles são tão lindos e grandes. Parecem aquelas frutas hidropônicas que tive acesso uma vez na vida. Eu amo comer frutas e legumes em geral, mas nem todos eu consigo ter acesso, falam que isso entra no debate da soberania alimentar. Gostaria de comer mais brócolis, mas é difícil ter que pagar 5 reais por um se posso comprar couve, alface e coentro por um real cada. Eu e minha mãe fomos em Bonsucesso outro dia, comemos um PF que custava apenas R$11,90 no “El churrasquito de Bonsucesso”. O arroz estava temperado com louro, que é ótimo para soltar gases. Comemos tanto! De noite, no beco ao lado de casa, minha vizinha grita bem alto “pirulito!”. A princípio pensei que fosse doce de alguma criança, mas era o nome do seu cachorro. Finalmente ouço o que queria: o apito da buzina do motoboy, “graças a Deus!”. Em passos saltitantes desço as escadas. Em sincronia com o entregador, troco o dinheiro pela comida. Volto mais rápido do que fui. Recebi um brinde, um biscoito da sorte que estava escrito: “A noite promete mais que o dia.” Mas que falácia! Minha noite só foi mais uma como qualquer outra dessa semana, dormindo com meu gatinho Caramelo. Podia ser meu namorado, mas é o que temos pra hoje.
Não gosto de acordar de madrugada. Quando vou no
Passei a semana doida para experimentar uma geléia
banheiro nessa hora, sempre ouço barulho de discussão
que a moça aqui do bairro vende. É de manga com maracujá.
e violência dos vizinhos. Quando volto pra cama fico
Minha mãe gosta de experimentar comida diferente de vez
um pouco perturbada com o que eu escuto, geralmente
em quando. Mas isso só acontece quando sobra dinheiro,
não consigo dormir. Dessa vez a mulher em um momento
senão a prioridade fica em colocar o básico dentro de
de desespero bateu com sua cabeça algumas vezes na
casa, tipo arroz e feijão. Falando sobre prioridade,
lataria do carro que estava na rua. Ela dizia: “não
aquela frase de Lavoisier que diz “Nada se cria tudo
aguento mais você me bater, quero morrer.” Vizinhança
se transforma”, nunca fez tanto sentido aqui em casa.
difícil! E o pior é que mudam os vizinhos, mas o costume
Na minha família temos o costume de readaptar potes
continua. Brigas em cima de brigas. Briga por comida.
de produtos já consumidos. Porque além da economia e
Briga pelo latido do cachorro. Briga pelo filho não
baixo impacto no meio ambiente, conseguimos dar os
ter fechado o buraco que o rato costuma passar. Briga
potinhos para as visitas quando querem levar alguma
entre casais. Não sei o que é pior.
comida gostosa para suas casas. Aquele problema de as
O meu sábado mais parece segunda e às vezes minha
pessoas levarem os potes de plástico e não devolverem
segunda parece dia de sábado. Hoje meu sábado está mais
não acontece mais aqui. Esse sistema é antifraude. Outro
para um final da festa, ou para aquela tristeza que
costume que temos é colocar sabonetes para perfumar
bate na noite de domingo, porque logo será segunda.
as roupas. Abrimos os sabonetes e espalhamos pelas
Às vezes fico me perguntando sobre quando tudo isso
roupas e depois utilizamos no banho, às vezes não tem
vai acabar. E se acabar, como ficará minha vida daqui
nem mais cheiro, mas continua a fazer espuma e é isso
pra frente? Fico muito ansiosa pensando nessa crise
que importa.
de saúde pública-econômica-politica-territorial-
Pela janela minha mãe disse em voz alta que tinha
coronavírus-alienígenas-lagartas-tiroteios-queimadas.
uma pipa no beiral de casa. Eu estava na casa da minha
Fico pensando nessa crise que é viver nesse mundo cada
avó, que é em cima da minha. Minha avó tentou tirar
vez mais difícil. Acordei às 4h45 com um barulho que
a pipa com uma ripa de madeira, sem sucesso. A nova
vinha de fora. Naquele momento o barulho era o de menos,
tentativa foi comigo. O pedaço de pau da vassoura antiga
comparado ao sonho que acabei de ter. Ultimamente estou
serviu pra retirar a pipa, que segundo a minha avó já
tendo muitos pesadelos e esse foi mais um. Sonhei que
tinha dono, o vizinho da frente. Depois disso nós três
várias pessoas se jogavam de lugares altos, como por
voltamos para a sala para conversar sobre assuntos
exemplo, de cima da copa de uma árvore. Tem dias que
familiares. Quem não tem aquela pessoa na família que
não acordamos bem e esse dia foi hoje. Já que não
só dá problema? Pois é, aqui não é diferente.
consigo ajeitar as coisas na minha vida, uma coisa posso fazer: dobrar minhas roupas.
Decidi ser mais produtiva. Irei hidratar o cabelo e terminar de ler um pdf que já baixei no celular. Minha mãe pediu pra eu ir na loja de ração. E na rua é o de sempre: quarentena que mais parece um dia comum. Encontro uma planta na calçada, meio escondida, com uma luz sobre ela e cercada por uma grade, que talvez limitasse seu crescimento, ou melhor, limitasse os outros atingirem o seu espaço. Aquela planta parece um pouco com a gente. Mesmo com as dificuldades que nos limitam, aproveitamos os pequenos espaços para crescer. Mesmo quando o ambiente não é favorável, fazemos um esforço de nos adaptar e florescer. Almocei bem, tinha tudo que eu mais gosto, frango assado de padaria, farofa e salada. Depois do pratão, aquele merecido sono de princesa.
Mas não durou muito,
fui acordada pelas músicas de louvor da vizinha. Hora de preparar a janta, encontro uma lesma em cima do alface. Que sorte a minha, sinal que o alface não tem muito agrotóxico. Que azar o dela, irá morrer agora. Nesse tempo de isolamento social a gente acaba percebendo cada coisa. Cortando as batatas, observo que existe um desenho como de uma estrela dentro delas. Eu sempre pensei que dentro as batatas fossem lisas, sem nenhum desenho ou forma. É bom viver e perceber outros detalhes de uma mesma coisa já conhecida. Vira um tipo de novidade. Agora nas minhas próximas conversas eu já posso falar: “Você já reparou que dentro da batata tem um desenho como se fosse o formato de estrela?” Anoitece e termino o dia fazendo o teste no aplicativo da moda para saber como ficarei quando estiver mais velha. Ah, como meu dia foi produtivo, não fiz nada do que foi planejado. Vida que segue.
Os ensaios aqui apresentados foram compostos a partir de um extenso material produzido ao longo de quatro meses, entre abril e agosto de 2020. Jailton Nunes, Fagner França, Larisse
Juliana de Oliveira Faz graduação em enfermagem pela UFRJ. Atua na Maré como articuladora territorial na área da saúde pública. Faz parte do Mão na Lata desde 2011, participou do livro Cada dia meu pensamento é diferente e da realização do curta Caio. Atuou como professora assistente em oficinas de fotografia do Mão na Lata e do projeto Retrato Falado. Participou de diversas exposições, entre elas destaca-se o 35º panorama da arte brasileira MAM-SP. Tem fotografias pertencentes ao acervo do Museu de Arte do Rio - MAR.
Paiva, Juliana de Oliveira, Jonas Willame e Christine Jones, jovens moradores da Maré e integrantes do Mão na Lata, fotografaram e escreveram diariamente sobre seus cotidianos na quarentena. Periodicamente toda essa produção foi publicada no site www.amaredecasa.org.br, como parte de uma ação apoiada pela Redes da Maré e a organização Peoples Palace Projects, dentro da pesquisa Construindo Pontes, que estuda os níveis de bem-estar e saúde mental da população da Maré. Para o Programa Convida do IMS, apresentamos os ensaios, re-escrituras imagéticas e textuais da experiência vivida. Olhamos o que se passou como um contínuo processo de
Fotos e textos Juliana de Oliveira curadoria, diagramação e edição de imagens Tatiana Altberg edição de textos e revisão Raquel Tamaio
reelaboração do presente, na intenção de projetar um futuro outro.