cinema 3.2018
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7 1395 Days without Red (44’) No intenso agora (127’) A música de Gion (84’) Rua da vergonha (87’) sessão seguida de debate com Chika Kinoshita e João Luiz Vieira
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Neste dia não ocorrão sessões de cinema
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1395 Days without Red (44’) Western (119’) Imagens do Estado Novo 1937-45 (227’) Western (119’)
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1395 Days without Red (44’) No intenso agora (127’) Paulistas (76’) Oharu, a vida de uma cortesã (148’) O intendente Sansho (124’)
8 1395 Days without Red (44’) No intenso agora (127’) A música de Gion (84’) A nova saga do clã Taira (108’) O intendente Sansho (124’)
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1395 Days without Red (44’) Visages, villages (90’) Torquato Neto – Todas as horas do fim (88’) No intenso agora (127’) Torquato Neto – Todas as horas do fim (88’)
16 1395 Days without Red (44’) Western (119’) Imagens do Estado Novo 1937-45 (227’) Western (119’)
22 1395 Days without Red (44’) Western (119’) Imagens do Estado Novo 1937-45 (227’) Macbeth (152’)
1395 Days without Red (44’) No intenso agora (127’) Paulistas (76’) A nova saga do clã Taira (108’) A princesa Yang Kwei Fei (98’)
9 1395 Days without Red (44’) Visages, villages (90’) Torquato Neto – Todas as horas do fim (88’) Sessão Cinética: A vida provisória (88’) sessão seguida de debate com os críticos da revista Cinética
15 1395 Days without Red (44’) Visages, villages (90’) Torquato Neto – Todas as horas do fim (88’) No intenso agora (127’) Torquato Neto – Todas as horas do fim (88’)
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1395 Days without Red (44’) Western (119’) Imagens do Estado Novo 1937-45 (227’) Western (119’)
23 1395 Days without Red (44’) Western (119’) Imagens do Estado Novo 1937-45 (227’) Western (119’)
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1395 Days without Red (44’) Senhorita Oyu (96’) Rua da vergonha (87’) Mulheres da noite (71’) Os amantes crucificados (100’) Utamaro e suas cinco mulheres (92’)
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12:30 1395 Days without Red (44’) 14:00 Sessão infantil: O menino que queria ser urso (78’) 16:30 Torquato Neto – Todas as horas do fim (88’) 18:30 No intenso agora (127’) 21:00 A vida provisória (88’)
14:00 Cabra marcado para morrer (120’) 16:30 A família de Elizabeth Teixeira + Sobreviventes da Galileia (90’) 18:30 Vida e verso de Carlos Drummond de Andrade – uma leitura (65’) 20:00 Posfácio (79’)
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1395 Days without Red (44’) Western (119’) Imagens do Estado Novo 1937-45 (227’) Western (119’)
24 1395 Days without Red (44’) Western (119’) Imagens do Estado Novo 1937-45 (227’) Western (119’)
14:00 A vingança dos 47 Ronin – Parte I (109’) 16:30 A vingança dos 47 Ronin – Parte II (109’) 19:00 Crisântemos tardios (142’)
12:30 14:00 16:30 18:30 21:00
14:00 Sessão infantil: O menino que queria ser urso (78’) 16:00 Imagens do Estado Novo 1937-45 (227’) 20:15 Western (119’)
25 1395 Days without Red (44’) Western (119’) A mulher sem cabeça (87’) O pântano (103’) Western (119’)
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14:00 Western (119’) 16:30 Imagens do Estado Novo 1937-45 (227’) 21:00 A menina santa (106’)
14:00 Western (119’) 16:30 Imagens do Estado Novo 1937-45 (227’) 21:00 A mulher sem cabeça (87’)
14:00 Western (119’) 16:30 Imagens do Estado Novo 1937-45 (227’) 21:00 Zama (115’)
14:00 Western (119’) 16:15 Imagens do Estado Novo 1937-45 (227’) 20:15 Zama (115’)
14:00 Western (119’) 16:30 Imagens do Estado Novo 1937-45 (227’) 21:00 Zama (115’)
14:00 Western (119’) 17:45 O pântano - sessão comentada ao vivo por Lucrecia Martel (103’) 20:00 A menina santa (106’)
destaques de março 2018
Rua da vergonha (Akasen chitai), de Kenji Mizoguchi (Japão | 1956, 87’, 35 mm) Exibição no dia 6/3, às 18h30, seguida de debate com a professora Chika Kinoshita Western (Western), de Valeska Grisebach (Alemanha, Bulgária, Áustria | 2017, 119’, DCP)
Capa Zama (Zama), de Lucrecia Martel (Argentina, Brasil, Espanha, França, Holanda, México, Portugal, EUA | 2017, 115’, DCP) Imagens do Estado Novo 1937-45, de Eduardo Escorel (Brasil | 2016, 227’, DCP)
Entre os destaques da programação deste mês, o cinema do IMS Paulista apresenta, em parceria com a Fundação Japão, um ciclo dedicado ao realizador japonês Kenji Mizoguchi (1898-1956), com cópias em 35 mm, 16 mm e DCP. No dia 11/3 (domingo), dentro do projeto Paulista Cultura, o programa Drummond, Coutinho e Nise da Silveira projeta títulos raramente exibidos em tela grande, com entrada gratuita.
Junto à estreia de Zama, o IMS Paulista apresenta uma pequena retrospectiva de Lucrecia Martel. No dia 25/3 (domingo), às 17:45, a sessão de O pântano será comentada ao vivo pela cineasta. A sessão infantil revela a animação dinamarquesa O menino que queria ser urso. Há ainda a Sessão Cinética, com o filme A vida provisória, de Maurício Gomes Leite, cuja exibição do dia 8/3 será seguida de debate com os críticos da revista.
A menina santa (La niña santa), de Lucrecia Martel (Argentina, Itália, Holanda, Espanha | 2004, 106’, 35 mm)
Sobre Imagens do Estado Novo 1937-45 depoimento de Eduardo Escorel, em 2009
Eu queria, na verdade, fazer o documentário sobre o Estado Novo usando apenas imagens de família e cartas. Esse era o meu projeto. Comecei a trabalhar nessa direção, mas rapidamente constatei que seria muito difícil, em parte porque o acervo de imagens de família no Brasil é pequeno, restrito, e em parte porque o conjunto de cartas que conseguimos ler e selecionar não dava conta do assunto. Quando vi e li o material, achei que não daria, tanto que nas primeiras versões ele não foi incorporado, até porque a datação desse material é muito difícil. Já no material de arquivo, tivemos uma preocupação bastante rigorosa de que as imagens se referissem exatamente ao evento do qual se estava falando. Cruzando as informações com o diário de Getúlio, conseguimos datar com bastante precisão quase tudo que havia. Temos uma estrutura, uma organização das imagens de arquivo, deixando as de família de lado, que é bastante rigorosa e precisa nesse sentido. As imagens de família acabaram sendo usadas, claro, mas com total liberdade, já que não
podemos datá-las com muita precisão a partir das informações que temos. Às vezes essas informações são até erradas — trocam década de 1930 por década de 1940 etc. Às vezes, conseguimos datar por elementos que estão na própria imagem: um filme mostra uma partida de tênis na Suíça, você consegue ver o nome dos jogadores, vai lá, pesquisa e consegue saber em que mês e ano aconteceu aquela partida. Mas há liberdade no uso. Com certeza as imagens que usamos são anteriores aos eventos de 1937, mas não há o compromisso de datá-las. Há outro perigo no uso das imagens de família, que é a tendência instintiva e inata que temos de interpretá-las. Quer dizer, se você vê um patrão e um empregado lutando boxe, você toma aquilo como metáfora de alguma coisa. Nós tentamos usar as imagens de família sem essa intenção, e também sem que, quando se fala de alguma coisa, apareça uma imagem que tenha uma relação direta com aquilo. É como se houvesse uma linha em que, com as imagens de cinejornais e similares, se contasse
uma história, e outra linha em que, com as imagens de família e os escritos, se contasse outra. A primeira coisa que aparece no filme, mesmo antes da cena da ressaca, é um trechinho de três palavras de um manuscrito datilografado das memórias da Alzira Vargas, em que ela diz “Eu não vi” — depois descobriu, depois soube. É uma frase muito curiosa, em que ela coloca todas essas questões. E é um documentário sobre o Estado Novo que começa dizendo que você não viu — e realmente nós não vimos nada daquilo. Acho que na montagem existem inúmeras tentativas de solução ou recursos que são derivados diretamente da experiência de montar o Santiago (João Moreira Salles, 2007), por mais diferentes que os dois filmes sejam em temática e assunto. A crítica ao uso da imagem como ilustração foi uma questão permanente durante a montagem de Santiago, uma espécie de autopoliciamento para não nos deixarmos levar pela tendência quase instintiva, pelos hábitos que temos, de usar a imagem de maneira ilustrativa.
Nada é provisório por Pedro Henrique Ferreira
Várias questões do Santiago reaparecem no documentário, como a utilização de cartas, a aproximação de certas palavras, o uso mais sistemático da tela preta. Tudo isso são questões que com certeza têm a ver com essas experiências anteriores. Eu me coloquei o seguinte objetivo: vamos fazer um documentário sem nenhum tipo de depoimento e de entrevista, baseado num recurso que hoje em dia está um pouquinho recuperado, mas que durante uns 10 ou 15 anos foi considerado uma blasfêmia máxima, que é a narração em off. Algum tempo atrás, quem fizesse isso era considerado um ser abjeto. Isso veio também um pouco do Santiago. Curiosamente, o João [Moreira Salles], que era adepto do cinema direto, que fazia filmes sem narração, de repente se propôs a fazer um documentário em que a narração é parte intrínseca e essencial do processo. No caso de Santiago, o texto não foi escrito nem antes nem depois, foi escrito durante a edição; ele tinha um computador na ilha de edição, e nós editávamos e
escrevíamos o texto e gravávamos ao mesmo tempo; editávamos em função da imagem, reescrevia-se o texto e, em função do texto, se reeditava a imagem. Foi um processo muito integrado, que de certa forma foi reproduzido agora no Estado Novo. Embora não seja o mesmo tipo de texto, foi feito assim também, escrito em grande parte na ilha de edição. Tentamos sempre fazer com que o texto viesse das imagens, e não que as imagens resultassem do texto. É um pouco por isso, apesar de ter feito recentemente um documentário que tem um longo trecho de depoimento, que tenho, no momento, certa impaciência e má vontade com todo cinema documental que se baseia em depoimentos e entrevistas. Gostaria que o filme fosse sempre a partir das imagens, mas acho que, na verdade, não conseguimos isso, há segmentos importantes de texto em que certas informações são dadas, muita coisa que vem da historiografia sobre o período está ali. Até gostaria que fosse mais radicalmente só a partir das imagens, mas aí existem outras
implicações, porque o acervo que conseguimos reunir, embora seja extenso, é também lacunar. Há coisas sobre as quais você não tem uma compreensão, e há uma preocupação com certo nível de didatismo, a fim de tornar aqueles episódios e aquelas pessoas minimamente compreensíveis para quem tenha a disposição e a paciência de assistir. Há coisas que não vêm da imagem, mas nós fizemos o tempo todo um grande esforço para trabalhar a partir delas.
Extraído de entrevista a Eduardo Morettin e Mônica Almeida Kornis publicada na revista ArtCultura (Universidade Federal de Uberlândia, v. 11, n. 18, jan.-jun. 2009, disponível em bit.ly/EE_EN).
A vida provisória (1967), Maurício Gomes Leite
O golpe civil-militar de 1964 promoveu uma mudança paradigmática no tipo de cinema produzido pelos cinemanovistas. Dentre as muitas manifestações que surgiram a partir de Aruanda (Linduarte Noronha, 1960) ou Cinco vezes favela (Marcos Farias, Miguel Borges, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman, 1962) até o catedrático ano, a perspectiva do grupo se aproximava de cenários da pobreza (como o Nordeste e a favela) e, em paralelo, defendia a autoria e a originalidade estética do movimento, tão bem descrita por Glauber Rocha como uma “cultura da fome”, cuja “mais nobre manifestação cultural é a violência”. A tríade mais significativa dessa primeira fase é composta por Vidas secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963), Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964) e Os fuzis (Ruy Guerra, 1964). Quando o golpe finalmente mostrou ao que veio – o sertão não virou mar –, a discussão saltou para outros campos. Se a rebeldia, a agitação e o sentimento revolucionário se mostravam impotentes diante do nefasto desenrolar
histórico do nosso país, tratava-se agora de, por um lado, investigar as origens do golpe e, por outro, de expressar a confusão emocional da maioria dos intelectuais de esquerda. O cenário passa a ser urbano, o tema, a envolver mais frontalmente a política e a ditadura, e o protagonista a ser uma mistura de jornalista, poeta angustiado e idealista político. Nesse sentido, o cinema retratava mais diretamente a própria classe. Ao lado de Terra em transe (Glauber Rocha, 1967), o filme emblemático do período, outro punhado de obras caminhava em direção semelhante: O desafio (Paulo César Saraceni, 1965), O bravo guerreiro (Gustavo Dahl, 1969), São Paulo, sociedade anônima (Luiz Sérgio Person, 1965), Garota de Ipanema (Leon Hirszman, 1967), A opinião pública (Arnaldo Jabor, 1966), Copacabana me engana (Antonio Carlos Fontoura, 1968), entre outras. Essa narrativa conhecida da historiografia clássica do cinema brasileiro é, em alguma medida, bem útil para uma aproximação dialética de A vida provisória, um dos filmes mais brilhantes e menos
vistos dessa seara. O longa-metragem trata da vida do jornalista Estevão (Paulo José), redator de um jornal conservador que fará a cobertura do pronunciamento do ministro de Assuntos Exteriores, figura com mais poderes que o presidente da República sobre o destino de uma jazida de minérios em Minas Gerais. Um ministro isolado das forças políticas e prestes a cair, o general Passos (Mário Lago), entrega a Estevão documentos comprovando que as jazidas serão entregues a um grupo estrangeiro. O tema repete o mote de que o golpe representou um entreguismo velado do domínio da nossa riqueza de matéria-prima ao capital externo, uma crítica ao neocolonialismo. A partir dessa premissa, o filme acompanha a jornada solitária do jornalista para fazer a denúncia: ele revisita amores do passado no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte, chega em Brasília com as provas, é violentado e finalmente assassinado por forças do governo. As primeiras imagens de A vida provisória já evidenciam o seu marcante pessimismo. Copas de árvores filmadas
contra um céu branco, acompanhadas por uma trilha clássica; o olhar incerto de uma mulher contra um fundo difuso, sua maneira preocupada de tragar o cigarro, seu andar vagaroso pelas ruas; ou as fachadas carcomidas de apartamentos
residenciais. O diapasão do longa-metragem é o derrotismo diante da perspectiva modernizante do governo por vir, uma referência direta ao projeto político-econômico militar, expresso principalmente na forma como o filme resolve
a dinâmica entre exteriores e interiores. Do lado de fora, estão as visões austeras, em um chiaroscuro quase expressionista, de cidades modernas onde nos sentimos mais encurralados contra as paredes grossas dos prédios do que transitando entre eles; as tomadas aéreas de helicópteros, em que quase só enxergamos telhados; o eterno deslocamento “desdramático” do protagonista em meios de transporte; a banda sonora que enfatiza carros e aviões; e, eventualmente, o comentário de um casal sobre a beleza do novo avião da Air France. Do lado de dentro, um intimismo desolado, a encenação lenta, os cenários esvaziados e silenciosos, os travellings vagarosos e as conversas mais sobre impossibilidades do que sobre esperanças são espectros imagéticos de um sentimento que culminará no movimento de câmera final, ultrapassando a personagem que fala e nos revelando uma ilha solitária em meio a um imenso mar antonionesco. Embora tenha o mesmo esforço de síntese política de um momento que Terra em transe, A vida provisória
abdica por completo do barroquismo, revelando o país não por uma representação imaginária ou arquetípica, mas por uma espécie de drama realista, em que na relação de um casal se desvela o mundo (ou, no caso, as raízes do golpe). Assim, aproxima-se mais do caminho escolhido por Saraceni em O desafio e da nouvelle vague godardiana que Maurício Gomes Leite defendia em suas críticas para a Revista de Cinema. A abordagem do diretor é, nesse sentido, extremamente complexa. De um lado, está Paola (Dina Sfat), a amante do Rio de Janeiro, representante da burguesia nacional, que escolhe o diplomata leitor de Newsweek ao homem que ama. Ou melhor, ama um, mas acredita precisar do outro. De outro, está Lívia, a mineira de mentalidade provinciana, amor da infância do protagonista, que reflete o idealismo dele, mas também a impossibilidade deste concretizar-se em uma Belo Horizonte inerte. O diagnóstico do isolamento do intelectual de esquerda à procura de uma saída para o país recai tanto sobre as alianças de uma classe média quanto sobre o
conservadorismo citadino de Minas Gerais. A vida provisória, no entanto, é mais que isso. É uma espécie de testamento de Maurício Gomes Leite (também nascido em Minas Gerais, mas que só encontrou estrutura para realizar o longa-metragem no Rio de Janeiro), revelado na articulação extremamente autobiográfica e metalinguística da obra, no misto de tese, poesia e lamento. E isso ganha força na montagem elíptica e godardiana, nos belíssimos planos que privilegiam ora uma composição modernista, ora registros mais intimistas que enfatizam o imediato da cena, como nas memoráveis citações feitas pelo jornalista. Tudo isso faz de A vida provisória não apenas um grande filme a ser redescoberto, mas, no cenário atual do país, que por vezes parece persistir imutável, uma obra bem atual. “Sou pessimista quanto ao meu futuro, mas sou otimista quanto ao futuro das minhas ideias”, diz o protagonista exausto, mesmo depois de revelada a sua impotência diante das forças maiores. É um convite a, apesar da descrença, continuar lutando.
O cinema de Lucrecia Martel por Fernando Oriente
Um ponto central para se aproximar do cinema de Lucrecia Martel é o estilo, e o que ele pode significar em termos de autoralidade de um artista em relação a uma obra ou ao conjunto de seus trabalhos. A cineasta impregna seus filmes com uma estética (no sentido mais amplo do termo), uma forma e uma linguagem visual e sonora que saltam aos olhos. Martel é uma realizadora que consegue aliar as estruturas formais de suas composições ao discurso cheio de texturas que confere aos seus trabalhos. Usa complexas estruturas formais que contém, sinalizam e apontam aquilo que costumamos chamar de conteúdo (dramático e narrativo). É a partir desse processo que a diretora argentina é capaz de realizar filmes que estão entre o que de mais relevante o cinema mundial produziu nessas duas últimas décadas. Após nove anos sem um longa-metragem, Lucrecia Martel chega com seu Zama. Um filme que aparentemente se desloca em relação aos seus três primeiros, mas que, se olharmos atentamente, guarda muitas semelhanças
em relação a eles, tanto na forma quanto no conteúdo discursivo. Ao mudar seu tempo de ação para o século 18 na Argentina, ainda colônia espanhola, Martel compõe Zama com planos mais longos, enquadramentos mais abertos e um andamento narrativo mais lento, em que as tensões presentes na dramaturgia se tornam mais depuradas e, mesmo sem perder nada em intensidade, se oferecem de maneira mais contemplativa e menos fragmentária do que nos trabalhos anteriores da diretora. Mas, para se aproximar e analisar melhor o novo filme, é necessário jogar uma luz sobre o que Lucrecia realizou antes. Em seus três primeiros longas, O pântano (2001), A menina santa (2004) e A mulher sem cabeça (2008), encontram-se características comuns que são trabalhadas e depuradas de diferentes maneiras, ao mesmo tempo que se replicam e dialogam entre si de um filme ao outro. Temos o universo de uma classe média argentina que vive em cidades pequenas. Uma classe em decadência, que perde poder e contém, de um lado, adultos angustiados,
incapazes de se comunicar, frustrados, e que veem seus anseios serem invariavelmente abafados e realojados por uma sensação de incapacidade, paralisia, suspensão emocional e física. De outro lado, existem adolescentes que transbordam desejos, erotismo e pulsões em estado bruto, constantemente reprimidos, e cujo futuro é a condenação de serem iguais aos adultos que os cercam. Entre a prostração e esse desejo constante, mas que jamais consegue satisfação, as personagens se inserem em situações paradoxais em que o erotismo e a apatia convivem em um permanente processo de deslocamento pulsional. Desses conflitos dramáticos, surgem relações incestuosas, jogos eróticos entre adolescentes e adultos, aversão, frieza nas relações conjugais, incapacidade de perceber a presença do outro e um alienamento da própria forma com que essas personagens se autodeterminam. Como parte estruturante desse universo social, cada um dos filmes de Martel coloca em destaque o conflito de classes. Essa classe média moribunda e cheia de frustrações se choca com
qualquer representante das camadas mais pobres (bem como de todo aquele que aparente ser diferente), por meio de humilhações, violência, medo ou desprezo. Todo esse contexto discursivo se potencializa e ganha dimensões pelas estruturas formais presentes no estilo de Martel. A partir de um domínio rigoroso da composição de quadro, a mise-en-scéne trabalha sempre para provocar perturbações e tensão no interior dos planos. Os enquadramentos são quase sempre fechados, o que promove, aliado ao posicionamento da câmera, o recorte e a fragmentação dos espaços, fragmentando assim as percepções do espectador e conferindo à dramaturgia uma crescente sensação de desconforto e deslocamento. A construção meticulosa e significante da banda sonora, a organização do que está dentro de campo – com personagens nas bordas do quadro, desfocadas em plano de fundo ou em primeiro plano e o achatamento da profundidade de campo –, a força dramática do extracampo e os planos sempre curtos,
ligados por cortes secos, elevam ainda mais o desconforto e o mal-estar que são onipresentes no discurso dramático-narrativo de Martel. A materialidade dos espaços onde ocorrem as ações, bem como os corpos das personagens e a presença física de objetos de cena e figurinos, são elementos cruciais para que a diretora proporcione ao espectador uma imersão sensorial nos ambientes da diegese. Zama, em suas mudanças na construção formal e evolução narrativa, retoma e atualiza os mecanismos estético-discursivos presentes nos longas anteriores da diretora. O filme acompanha a trajetória do agente da coroa espanhola Diego de Zama em um processo de desmoronamento emocional e corporal. Como as personagens da classe média argentina nos dias de hoje, Zama é representante de um estrato social desimportante que se vê tolhido de poder, incapaz de se relacionar com o outro, deslocado entre seus desejos e atirado a uma existência cada vez mais frágil. Sua ambição de ser transferido para outra localidade – última
chance de tentar se autodeterminar em sua subjetividade – vai desmoronando em meio à rotina anódina, em que é apenas um medíocre servidor burocrático, e às ações e responsabilidades irrelevantes que executa. Fragmentado em suas potências, isolado daquilo que almeja, Diego de Zama segue sua jornada em direção à radical aniquilação física e existencial. Típico personagem de Lucrecia Martel, ele é um ser desprovido de domínio sobre tudo a sua volta, condenado a vagar destroçado por um espaço que não é capaz de lhe satisfazer as pulsões já difusas, e no qual ele sobra apenas como um representante fantasmático do mal-estar que assola toda uma ideia de civilização de origem europeia que se desintegra em solo latino-americano.
filmes Filmes em cartaz No intenso agora
João Moreira Salles | Brasil | 2017, 127’, DCP
Imagens do Estado Novo 1937-45 Eduardo Escorel | Brasil | 2016, 227’, DCP
Recorrendo a vasto material de arquivo, entre cinejornais, fotografias, cartas, filmes familiares e de ficção, trechos de diário e canções populares, o documentário examina a herança do Estado Novo (1937-1945), comandado por Getúlio Vargas. A partir da comparação e da análise desses registros heterogêneos, produzidos para fins diversos, o filme reavalia esse momento histórico em suas fontes de inspiração externas, formas de funcionamento e contradições. Ingressos: terça, quarta e quinta: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia); sexta, sábado, domingo e feriados: R$ 26 (inteira) e R$ 13 (meia)
Feito a partir da descoberta de filmes caseiros rodados na China em 1966, durante a fase inicial da Revolução Cultural, No intenso agora investiga a natureza de registros audiovisuais gravados em momentos de grande intensidade. Às cenas da China, somam-se imagens dos eventos de 1968 na França, na Tchecoslováquia e, em menor quantidade, no Brasil. As imagens, todas de arquivo, revelam o estado de espírito das pessoas filmadas e a relação entre registro e circunstância política. O ponto de partida do filme foram imagens captadas pela mãe do diretor, encontradas por ele na época da finalização de Santiago (2007). “Eu precisava de imagens da casa onde minha família morou, na Gávea, e pedi a alguém para procurar”, conta João Moreira Salles em entrevista ao jornal O Globo. “Encontramos as imagens, mas eu não sabia direito o que eram, qual o sentimento dela durante a viagem. Aí encontrei uma reportagem que ela escreveu sobre a viagem, em forma de diário, para a revista O Cruzeiro. Fiquei muito impressionado com a comoção dela diante de tudo o que viu lá. Minha mãe e a Revolução Cultural são opostos absolutos, seria fácil imaginar uma reação dogmática. Mas não, ela ficou deslumbrada com aquilo. E eu fiquei tocado com o deslumbramento dela e com a intensidade com que o descreveu, porque ela foi perdendo isso com o tempo.” [Leia a entrevista completa de João Moreira Salles para O Globo: goo.gl/PhCNxe] Ingressos: terça, quarta e quinta: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia); sexta, sábado, domingo e feriados: R$ 26 (inteira) e R$ 13 (meia)
Visages, villages
Western
A cineasta Agnès Varda e o fotógrafo e muralista JR têm em comum o fascínio pelas imagens e pela forma como elas são criadas, exibidas e compartilhadas. Quando JR, um fã de longa data, foi à casa de Agnès, na rue Daguerre, os dois decidiram trabalhar juntos em um documentário. Nas palavras da diretora, a proposta partia do interesse em juntar o trabalho do parceiro, “colar grandes fotos de pessoas em muros, empoderando elas por meio do tamanho, e o meu hábito de escutá-las e destacar o que elas dizem”. “E queríamos pegar a estrada juntos”, completa JR, “nem a Agnès nem eu nunca havíamos codirigido um filme antes.” O longa documenta a viagem dos dois artistas pelo interior da França e a amizade que construíram ao longo do caminho. “Às vezes, um de nós conhecia alguém numa aldeia ou tinha uma coisa específica em mente”, conta Varda. “Então íamos ver. Como sempre, em documentários – e eu fiz muitos –, você tem uma ideia, mas logo o acaso entra em jogo – quem você encontra e quem você conhece – e, de repente, as coisas se concentram numa determinada pessoa ou lugar. Na verdade, nós abraçamos o acaso, ele é nosso assistente!”. Indicado ao Oscar de Melhor Documentário.
Um grupo de operários alemães vai trabalhar em uma construção na fronteira entre a Bulgária e a Grécia. Devido à barreira do idioma e às diferenças culturais, precisarão encarar seus próprios preconceitos, desconfianças e rivalidades com os habitantes locais. Terceiro longa-metragem de Valeska Grisebach, Western foi exibido na mostra Un Certain Regard, do Festival de Cannes, em 2017. Em entrevista ao site do festival, a diretora conta: “Cresci com o gênero faroeste, sentada de frente para um aparelho de TV na Berlim Ocidental dos anos 1970. Senti o impulso de retornar a ele: havia me cativado de um jeito muito profundo. Eu queria lidar com os heróis solitários, melancólicos e com a mitologia masculina retratada. Estava entusiasmada com a modernidade do gênero – a despeito dos seus elementos conservadores – na sua tentativa de capturar construção social e responsabilidade individual, mas repleto das próprias contradições. Estava interessada na intimidade do duelo, na inversão do ‘amor à primeira vista’.” [Íntegra da entrevista, em inglês, em: bit.ly/f-valeska]
Visages, villages Agnès Varda, JR | França | 2016, 90’, DCP
Torquato Neto – Todas as horas do fim
Eduardo Ades e Marcus Fernando | Brasil | 2018, 88’, DCP Documentário sobre o piauiense Torquato Neto (1944-1972), poeta, jornalista e integrante do movimento tropicalista. “Torquato é um personagem imenso e se revelou um desafio para a montagem do filme. A gente percebeu que só daria conta de trazer a verdade dele se o colocasse em primeiro plano, como protagonista. (...) Para isso, selecionamos dezenas de textos e músicas dele – era preciso que falasse em todas as sequências, sobre todos os assuntos que abordamos”, conta o diretor Eduardo Ades. Ao todo, 26 textos da autoria de Torquato Neto (poemas, colunas de jornal, cartas e trechos de diários) foram selecionados e interpretados pelo ator Jesuíta Barbosa. O documentário conta ainda com uma entrevista em áudio do poeta, depoimentos de amigos e parceiros e 19 músicas suas interpretadas por nomes como Elis Regina, Edu Lobo, Gil e Caetano. Ingressos: R$ 12 (inteira) e R$ 6 (meia)
Ingressos: terça, quarta e quinta: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia); sexta, sábado, domingo e feriados: R$ 26 (inteira) e R$ 13 (meia)
Western Valeska Grisebach | Alemanha, Bulgária, Áustria | 2017, 119’, DCP
Ingressos: terça, quarta e quinta: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia); sexta, sábado, domingo e feriados: R$ 26 (inteira) e R$ 13 (meia)
filmes Programação Paulista Cultural Como parte do evento Paulista Cultural, no dia 11 de março, o cinema do IMS apresenta uma programação gratuita de filmes raramente exibidos em salas de cinema. Serão projetados A família de Elizabeth Teixeira e Sobreviventes de Galileia, os dois últimos filmes finalizados por Eduardo Coutinho e vinculados à trajetória dos personagens do seminal Cabra marcado para morrer. Filmado por Leon Hirszman e montado por Eduardo Escorel em 2014, Posfácio apresenta uma entrevista com Nise da Silveira pouco tempo após as filmagens de Imagens do inconsciente. Por último, será projetado Vida e verso de Carlos Drummond de Andrade – Uma leitura, que intercala textos escritos pelo poeta com a narração de episódios da vida de Drummond. Todos os filmes apresentados fazem parte da Coleção DVD IMS. Entrada gratuita – Lugares limitados. Distribuição de senhas 30 minutos antes do evento. Limite de 1 senha por pessoa
A família de Elizabeth Teixeira
Eduardo Coutinho | Brasil | 2014, 65’, digital
Cabra marcado para morrer
Eduardo Coutinho | Brasil | 1964-1984, 119’, digital “As filmagens começaram em fevereiro de 1964. Coutinho pretendia contar a história de João Pedro Teixeira, líder da liga camponesa de Sapé, na Paraíba, assassinado em 1962. Não queria atores profissionais: que os personagens fossem interpretados pelos próprios camponeses. Dezessete anos depois, volta à região, consegue encontrar Elizabeth, através do filho mais velho, Abraão, investiga o destino dos outros dez filhos e de todos os envolvidos no projeto. Exibe os originais filmados há tanto tempo, os camponeses se alegram com seus rostos, mais jovens, vivem a emoção do reconhecimento e o jogo de identificações. Vinte anos depois, conclui seu filme, um épico contado com clareza, paciência e perseverança.” [Roberto Mello, Jornal do Brasil, janeiro,1985]
Cinquenta anos depois da ficção interrompida pelo golpe militar, em março de 1964, um reencontro com Elizabeth Teixeira e seus filhos. Filme produzido especialmente como complemento da edição de Cabra marcado para morrer da coleção DVD IMS. “‘Eu sou morta desde a idade de oito anos.” Cortada da imagem em que existe, a frase não transmite seu real sentido. Dor extrema. Na essência mesmo da pessoa. Modo de ser. Viver morta desde os oito anos. No filme, a fala transmite uma dor diferente, não menos intensa talvez, mas de outra natureza. Depois do filme, a radicalidade da afirmação retorna, independente, como condição trágica. Nada define melhor A família de Elizabeth Teixeira: uma das personagens que nos conta a história está morta desde a idade de oito anos.” [Leia o texto de José Carlos Avellar para o Blog do IMS sobre os extras do DVD de Cabra marcado para morrer: goo.gl/z5JdVn]
Sobreviventes de Galileia
Eduardo Coutinho | Brasil | 2014, 27’, digital Em janeiro de 2013, Eduardo Coutinho vai a Pernambuco para reencontrar dois dos personagens de Cabra marcado para morrer (1964 – 1984): Cícero e João José (o Dão da Galileia). Filme produzido especialmente como complemento da edição de Cabra marcado para morrer na coleção DVD IMS. “Terminada a conversa, os amigos se despedem com um abraço. A amizade nasceu do cinema. João José, em 1964, então um menino, guardou o livro esquecido quando o exército invadiu a Galileia e interrompeu as filmagens de Cabra marcado para morrer. Guardou porque a história do livro era como a da gente do filme. O abraço do filme é como o de todos nós. Coutinho filmou João José em janeiro de 1981 e voltou a visitá-lo, em janeiro de 2013, para um novo filme, Sobreviventes da Galileia. O abraço apertado e silencioso na despedida resume o sentimento comum a todos os que participaram de seus filmes como personagens ou como espectadores diante das lições de vida reveladas pelo seu cinema. É a última cena do último filme de Eduardo Coutinho.“ [Texto de José Carlos Avellar, publicado em 2014 no Blog do IMS: goo.gl/4RdxK7]
Vida e verso de Carlos Drummond de Andrade – Uma leitura
Posfácio
Quatro escritores contemporâneos reunidos para apresentar a vida e a obra de Carlos Drummond Andrade. Um narrador – Joca Reiners Terron – conta a vida do poeta, enquanto Antonio Cicero, Alberto Martins e Afonso Henriques Neto pontuam a cronologia com leituras de poemas, trechos de cartas, diários, crônicas e ensaios críticos. Do nascimento à morte, Drummond aparece aqui, de corpo e alma, com humor, ironia e emoção.
Depoimento da dra. Nise da Silveira (1905-1999), psiquiatra e fundadora do Museu de Imagens do Inconsciente, a Leon Hirszman em 1986. Complemento da trilogia Imagens do inconsciente, de Leon Hirszman (1937-1987), o material bruto não editado pelo cineasta tornou-se filme em montagem de Eduardo Escorel. “Mantido parcialmente inédito durante cerca de 30 anos, e sem haver indicações de como Leon pretendia montar a entrevista, o valor documental da versão editada aumenta na razão direta do maior grau de fidelidade ao original. E todo cuidado é pouco ao trazer à luz uma filmagem como essa, cuja matriz em filme negativo foi perdida. O manuseio indevido pode prejudicar, e até destruir, o valioso guardado arqueológico. O interesse da entrevista de Nise da Silveira a Leon Hirszman, como tantas outras, não se restringe ao que é dito. Abrange também a maneira de cada um deles se exprimir. Limpar essa filmagem, eliminando imperfeições técnicas, variações acentuadas da intensidade de luz, danos causados pela ação do tempo ou manuseio descuidado, hesitações, momentos de constrangimento entre entrevistada e entrevistador equivaleria a falsificar o original, eliminando algumas de suas maiores riquezas”, conta Escorel no Blog do IMS. [Leia o artigo completo em: goo.gl/Xm96w8]
Eucanaã Ferraz | Brasil | 2014, 65’, digital
Direção Leon Hirszman e montagem de Eduardo Escorel | Brasil | 2014, 79‘, DCP
Os filmes de Lucrecia Martel Junto à estreia de Zama, o IMS Paulista apresenta uma retrospectiva da obra de Lucrecia Martel. O trabalho da diretora argentina ganhou reconhecimento em festivais como Cannes, Berlim e Sundance, onde, em anos subsequentes, foi também parte do júri. No dia 25/3 (domingo), às 17:45, a sessão de O pântano (2001) será comentada ao vivo pela cineasta.
O pântano
A menina santa
A vida de duas famílias – uma de classe média urbana, outra de produtores rurais decadentes – está entrelaçada no estupor provincial de uma Salta caótica e imutável, onde nada acontece, mas tudo está prestes a explodir. Em entrevista à revista laFuga, Lucrecia Martel comenta seu método de construção narrativa: “Tudo o que se tem que fazer é reproduzir situações da realidade com pequenos ajustes de som e imagem… e então voltar a ver, nessas situações que são muito comuns, voltar a ver alguma coisa. Te dou um exemplo: Quando O pântano estreou no cinema, uma senhora da padaria perto de casa me disse: ‘Me disseram que nesse filme se vê muito bem como nos tratam’. E eu disse: ‘Isso acontece em Salta há séculos, por que alguém precisa de um filme para ver? Se é igual ao que acontece na sua casa, não é enfatizado, por que quando vê em uma tela isso te choca?’ Essa é a força do cinema: aquilo que você não enxerga à sua volta, de repente consegue ver em uma história projetada na tela.” [Íntegra da entrevista, em espanhol, em: bit.ly/f-cienaga]
A jovem católica Amália está entrando na puberdade e se encontra dividida entre o desejo sexual e sua devoção religiosa. Ao ser assediada por um médico de passagem pela cidade, assume para si a missão sagrada de salvar a alma dele do pecado. “A menina santa é uma espécie de conto dentro do universo narrativo de O pântano”, comenta a diretora em entrevista à revista Teína. “Mas gosto de pensar que esse universo que construí é muito próximo da proposta do escritor Horacio Quiroga, na qual as coisas reais se misturam à morbidez das crianças. É como se fosse a percepção de alguém com febre, a percepção desconsolada de uma pessoa doente.” [Íntegra da entrevista, em espanhol, em: bit.ly/f-lanina]
La ciénaga Lucrecia Martel | Argentina, França, Espanha, Japão | 2001, 103’, 35 mm
Ingressos: R$ 8 (inteira) e R$ 4 (meia)
La niña santa Lucrecia Martel | Argentina, Itália, Holanda, Espanha | 2004, 106’, 35 mm
Ingressos: R$ 8 (inteira) e R$ 4 (meia)
A mulher sem cabeça
La mujer sin cabeza Lucrecia Martel | Argentina, França, Itália, Espanha | 2008, 87’, digital Em um momento de distração, Verônica atropela algo com seu carro. Depois de alguns dias, conta ao marido que atropelou alguém na estrada. Juntos, viajam pelo caminho e, cada vez mais obcecada pela culpa de talvez ter assassinado alguém, ela vê sua vida ser destruída. Em entrevista concedida à BBC Mundo em dezembro de 2008, Martel comenta as relações que seu filme estabelece com o período da ditadura argentina: “Os mecanismos com os quais se exime da responsabilidade são os mesmos que operaram durante a ditadura. Além disso, esteticamente, muitas coisas no filme remetem a esse período da Argentina. Estava interessada em explorar como, para uma mesma classe social, é muito mais fácil se proteger, enquanto outras estão totalmente desprotegidas”. [Íntegra da entrevista, em espanhol, em: bit.ly/ lm-lamujer] Ingressos: R$ 8 (inteira) e R$ 4 (meia)
Zama
Zama Lucrecia Martel | Argentina, Brasil, Espanha, França, Holanda, México, Portugal, EUA | 2017, 115’, DCP Don Diego de Zama, um oficial da coroa espanhola, nascido na América do Sul, aguarda uma carta do rei outorgando-lhe a transferência para um destino mais prestigioso. Enquanto isso, aceita, submisso, cada tarefa encomendada pelos sucessivos governadores. Mas a carta nunca chega. Quando perde as esperanças, junta-se a um grupo de soldados para capturar um perigoso bandido. Zama é uma adaptação do romance homônimo, de 1956, de Antonio di Benedetto. Sobre o trabalho de realizar uma adaptação, comenta Lucrecia Martel em entrevista ao portal Omelete: “O pior prêmio dado em várias competições ligadas ao cinema, aquele que melhor expõe a estupidez humana, é o de melhor roteiro adaptado. E eu te digo isso agora, muito antes de saber o que vai acontecer com Zama. Mas, se fosse premiada nessa categoria, me recusaria a receber o prêmio, a menos que fosse um prêmio em
dinheiro. Aí, nesse caso, eu terei mil argumentos para me arrepender dessa bravata. É impossível adaptar um romance. A literatura não pode ser adaptada para o cinema. O que acontece é algo de uma outra ordem, digamos, médica, que se processa da seguinte forma: Dia 1 – O sujeito lê um romance, como, por exemplo, Zama, que é uma obra-prima. Dia 2 – Infectada pela beleza do livro, o sujeito se transforma, revira na cama incapaz de dormir, sedento por fazer parte do mundo ali retratado. Dia 3 – Apaziguada a febre, o sujeito se dá conta da enorme estupidez que é fazer um filme baseado em uma obra-prima. E, geralmente, o sujeito se dá conta também que mais estúpido ainda é fazer um filme de que ninguém precisa. Dia 4 – A cólica volta e também a febre, porque o romance revelou ao sujeito aspectos do mundo que ele não conhecia, revelando fendas abertas na realidade. Ele se dá conta da doença e dorme com ela. Dia 5 – Começa humildemente a escrever um script cuja premissa é assassinar o romance que leu, pois, só assim, pode sobreviver.” [Íntegra da entrevista em: bit.ly/zama-om] Ingressos: terça, quarta e quinta: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia); sexta, sábado, domingo e feriados: R$ 26 (inteira) e R$ 13 (meia)
Sessão Cinética
Sessão infantil
Sessões especiais
A vida provisória
Em parceria com a Fundação Japão, o Cinema do IMS promove um ciclo dedicado ao realizador japonês Kenji Mizoguchi (1898-1956), com cópias em 35 mm, 16 mm e DCP. Mizoguchi realizou 86 filmes, dos quais apenas 30 foram preservados. Entre eles, estão Crisântemos tardios, Oharu, a vida de uma cortesã e Rua da vergonha. Grande parte de sua produção silenciosa se perdeu. Nos meses de fevereiro e março de 2018, 18 filmes do diretor poderão ser vistos e revistos no cinema do IMS neste ciclo.
Maurício Gomes Leite | Brasil | 1968, 88’, 35 mm Paulo José interpreta um jornalista mineiro que coloca sua vida em risco ao viajar para Brasília portando documentos secretos. No caminho, se recorda de dois romances do passado. Maurício Gomes Leite foi crítico na Revista de Cinema (1954-1957 e 1961-1964) e editor do caderno Internacional do Correio da Manhã nos anos 1960; A vida provisória é seu único longa-metragem e foi exibido com cortes da censura no Festival de Brasília em 1968, no qual Joana Fomm recebeu o prêmio de melhor atriz coadjuvante. O longa integra a Sessão Cinética de março, e sua primeira exibição será seguida de debate com os críticos da revista. Ingressos: R$ 8 (inteira) e R$ 4 (meia)
Ciclo Kenji Mizoguchi
O menino que queria ser urso
Drengen der ville gøre det umulige Jannik Hastrup | Dinamarca, França | 2002, 75’, 35 mm | Dublado em português Após perder o bebê que esperavam, um casal de ursos rouba uma criança humana, filha de caçadores. Criado pelos animais, aos poucos o menino aprende a pescar, nadar na água gelada e mesmo a falar como um urso. Até o dia em que o seu verdadeiro pai, o caçador, o encontra. O filme é indicado para crianças maiores de 6 anos. Ingressos: R$ 8 (inteira) e R$ 4 (meia)
1395 Days without Red
Bósnia-Herzegovina, Reino Unido | 2011, 44’, DCP Um filme de Anri Sala em colaboração com Liria Bégéja, a partir de um projeto de Šejla Kamerić e Anri Sala em parceria com Ari Benjamin Meyers © Anri Sala, Šejla Kamerić, Artangel, SCCA/2011. O filme mostra a Orquestra Filarmônica de Sarajevo praticando o primeiro movimento da Sinfonia patética, a sexta e última composta por Tchaikovsky, em 1893. Ao mesmo tempo, uma musicista atravessa a cidade sitiada a caminho do ensaio. O filme faz referência aos 1395 dias do cerco de Sarajevo, entre 5 de abril de 1992 e 29 de fevereiro de 1996, durante a guerra da Bósnia-Herzegovina, quando vestir roupas vermelhas e brilhantes era extremamente perigoso por atrair a atenção dos franco-atiradores. 1395 Days without Red faz parte da exposição Anri Sala: o momento presente, em cartaz no IMS Paulista até o dia 25 de março. Entrada gratuita – Lugares limitados. Distribuição de senhas 30 minutos antes do evento. Limite de 1 senha por pessoa
Ingressos: R$4 (inteira) e R$ 2 (meia)
Crisântemos tardios
Zangiku Monogatari Kenji Mizoguchi | Japão | 1939, 142’, DCP Tóquio, meados da Era Meiji (1868-1912). Kikunosuke Onoe é filho adotivo e sucessor de um mestre do teatro kabuki, mas acredita não estar à altura do pai. A única pessoa a lhe dar uma opinião negativa sobre seu talento é Otoku, uma criada da família. Diante de uma crítica sincera, Kikunosuke apaixona-se por Otoku e a toma como conselheira, mas a relação entre os dois será um constrangimento para a família de Kikunosuke. Crisântemos tardios é o primeiro filme dirigido por Mizoguchi na produtora japonesa Shochiku. Segundo Maria João Madeira, no livro As folhas da Cinemateca ‒ Kenji Mizoguchi, o diretor “é radical em Zangiku Monogatari. É o mínimo que se pode dizer de um filme que é também de celebração do plano-sequência.” Em seguida, a autora cita o comentário de Mizoguchi sobre a prática: “Comecei a utilizar a técnica do plano-sequência em 1936, consistindo ela em nunca alterar o enquadramento durante toda a sequência enquanto a câmera permanece a uma certa distância [...]. Adaptando esse método, não tive a mínima intenção de representar o estado estático de uma psicologia qualquer. Pelo contrário, cheguei a ele espontaneamente, dando prosseguimento à procura de uma expressão mais precisa e mais específica dos momentos de grande intensidade psicológica [...]. Fui naturalmente levado a seguir uma técnica desse tipo pelo simples desejo de evitar o método clássico da descrição psicológica a partir do abuso dos planos próximos.”
A vingança dos 47 ronins [partes 1 e 2]
Genroku Chushingura Kenji Mizoguchi | Japão | 1941-1942, 109’ e 109’, 35 mm No Japão do início do século XVIII, o senhor Asano contraria o código dos samurais ao desembainhar a espada contra o senhor Kira no interior do castelo do Shogun e é condenado a cometer o seppuku ‒ popularmente conhecido como harakiri, um ritual de suicídio praticado por samurais. O castelo de Asano é confiscado, e seu séquito, disperso como ronins ‒ os samurais sem mestre ‒, decide vingá-lo. O roteiro, de Kenichiro Hara e Yoshikata Yoda, foi escrito a partir do romance de Seika Mayama, baseado em uma história real muito popular no Japão, tendo já inspirado obras no teatro, música, cinema, televisão e história em quadrinhos. O filme foi dividido em duas partes, lançadas em dezembro de 1941 e fevereiro de 1942, período deci-
sivo da participação do Japão na Segunda Guerra Mundial. Para o crítico Richard Brody, da revista The New Yorker, “A vingança dos 47 ronins é, simplesmente, um dos grandes filmes políticos de todos os tempos. [...] É um extraordinário ato de equilíbrio de que Mizoguchi lança mão. Para satisfazer às normas de um esforço de guerra de então, ele exalta os clássicos guerreiros japoneses como homens abnegados de princípio inconteste e, no entanto, enfatiza sua fidelidade à própria consciência e espírito de resistência. É um mundo masculino, o mundo dos samurais. Mizoguchi, porém, constrói a história em um crescendo de nobreza e derramamento de sangue por meio da intervenção de uma mulher, a esposa de um dos samurais, cujos interesses românticos ‒ embora temessem ser destrutivos ao espírito samurai ‒ se provam tão nobres, tão dotados de princípios, tão corajosos, tão cívicos e tão grandiosos quanto aqueles dos guerreiros.” [Íntegra do comentário de Richard Brody, em inglês, em: bit.ly/m-ronins]
Utamaro e suas cinco mulheres Utamaro o meguru gonin no onna Kenji Mizoguchi | Japão | 1946, 92’, 35mm
Utamaro é um célebre pintor que busca por cortesãs do bairro de Yoshiwara, região de bares e bordéis em Tóquio, para compor seus retratos. Em seu primeiro filme realizado no Japão ocupado pelas forças aliadas, após o fim da Segunda Guerra Mundial, Mizoguchi contorna as rígidas normas da censura americana, que restringiam a realização de obras históricas ambientadas antes da abertura do Japão ao Ocidente. Segundo a crítica e pesquisadora de cinema japonês Freda Freiberg, o diretor “precisou garantir que o filme não teria duelos de espada e que seu herói era um homem do povo, um democrata à frente de seu tempo”. O longa é uma adaptação do romance homônimo de Kanji Kunieda, inspirado na vida do pintor japonês Utamaro (1753-1806), famoso por seus retratos de cortesãs – bijin-ga. Segundo Freiberg, “o roteirista regular de Mizoguchi, Yoshikata Yoda, que trabalhou com ele (ou para ele) por 20 anos, afirmou em suas memórias que, nesse roteiro, estava ‘quase inconscientemente’ pintando um retrato de Mizoguchi por meio de Utamaro. A equação Utamaro = Mizoguchi foi irresistível para a maior parte dos críticos, uma vez que os dois tinham muito em comum. Ambos trabalharam com meios de comunicação operados por homens de negócios e tiveram atritos sob sistemas opressivos de censura; ambos frequentaram as ‘zonas de divertimento’ e buscaram a companhia de gueixas; e ambos ficaram famosos por seus retratos de mulheres.” [Íntegra do texto de Freda Freiberg para a revista Senses of Cinema, em inglês, em: bit.ly/M-Utamaro]
Mulheres da noite
Senhorita Oyu
No Japão pós-guerra, Fusako, uma jovem viúva de Osaka que perdeu o marido em combate, não tem recursos para tomar conta do filho, que padece de tuberculose e acaba por falecer. Fusako e sua irmã mais nova se verão envolvidas com um contrabandista de ópio. Baseado no romance Joseimatsuri, de Eijiro Hisaita, Mulheres da noite é comumente descrito como um filme de influência neorrealista. Rodado grande parte em locação, na Osaka devastada pela guerra, o longa aborda os efeitos do conflito na vida de suas personagens e no contexto da prostituição.
Oyu-Sama é uma jovem viúva. A sua irmã mais nova, Shizu, é apresentada a Shinnosuke como pretendente, mas o noivo apaixona-se por Oyu. De acordo com a tradição, Oyu está proibida de casar-se novamente, porque tem que criar o filho como o herdeiro da família do marido. O longa se passa na era Meiji (1867-1912) e é baseado na novela Ashikari (1932), de Junichiro Tanizaki. Em seu livro Lembranças de Kenji Mizoguchi, o roteirista Yoshikata Yoda comenta as dificuldades dessa adaptação: “Na literatura, a história é contada a partir da perspectiva de um homem que o autor diz ter conhecido [...]. A construção da história é feita a partir de três movimentos, três retornos ao passado. Era necessário conservar no filme esse caráter onírico da memória.
Yoru no onnatachi Kenji Mizoguchi | Japão | 1948, 71’, 35 mm
Oyu-sama Kenji Mizoguchi | Japão, 1951, 96’, 35 mm
Então, eu insisti sobre esse aspecto narrativo, pois o regresso no tempo reforçava o mistério. Mas os flashbacks sobrepostos foram injustamente recusados pelo sr. Kawaguchi, o diretor do Estúdio Daiei em Quioto. Arriscava um fracasso comercial. Mas lamento muito.” Ele também ressente a escolha de Kinuyo Tanaka para o papel de Oyu: “A sra. Tanaka não era como Oyu. Não que ela não fosse tão bonita quanto Oyu. Mas a astúcia da sra. Tanaka é composta por essa inteligência sensível atrelada à vida cotidiana. Não podíamos matar essa qualidade.” Em seu texto Coreografia do desejo: analisando a atuação de Kinuyo Tanaka nos filmes de Mizoguchi, a pesquisadora Chika Kinoshita comenta essa contradição entre atriz e personagem descrita por Yoda: “A fissura que o olhar opaco de Tanaka abre, na personagem Oyu, não é propriamente desenvolvida e nem reparada pelas demais partes do filme. É uma ameaça constante de levar o filme à contradição. Mas eu acredito que isso torna a personagem intrigante, e não defectiva.”
Oharu, a vida de uma cortesã
Saikaku ichidai onna Kenji Mizoguchi | Japão, 1952, 148’, 35 mm Oharu, interpretada por Kinuyo Tanaka, é uma prostituta de meia idade. Após mais uma noite sem conseguir clientes, ela caminha com suas colegas. Uma delas pergunta sobre seu passado na corte imperial, ela gentilmente se nega a falar sobre o assunto. Mas, ao entrar em um templo budista, uma das imagens no altar lhe transporta para sua juventude. Ela, então, se lembra de Katsunosuke (Toshiro Mifune), sua primeira paixão. Nas palavras de Chika Kinoshita, “a sequência de sedução em Oharu é encenada com extrema elegância, por ambos os atores e pela câmera de Yoshimi Hirano. A coreografia de desejo não é uma expressão crua de luxúria, mas um fluxo refinado de ações e gestos. O que não deve ser ignorado, no entanto, é que todo gesto gracioso registra não apenas o amor do casal, mas também a posição social de cada um. O ignorar de Oharu ao olhar
de Katsunosuke aciona um vetor de movimento constante. Enquanto Katsunosuke expressa repetidamente sua crença no amor romântico livre do sistema feudal de classes, seu amor romântico nunca é realizado na tela. Por que Oharu desmaia? Eu discordo do diagnóstico de Robert Cohen de um desmaio por histeria. Em vez disso, eu argumentaria que Mizoguchi não conseguia imaginar a euforia do amor romântico fora do campo magnético das relações de poder. Alain Bergala resume muito bem a mecânica dessa sequência: ‘Por meio de variações sutis entre o exterior e o interior, com duas mudanças de 180 graus de eixo, a barreira inquebrável de classe que os divide é virada por um abraço tão subversivo que a jovem pode sobreviver apenas com o desmaio’.” Baseado no romance de Saikaku Ihara, Kochoku ichidai onna, escrito no século XVII.
O intendente Sansho
Sansho dayu Kenji Mizoguchi | Japão | 1954, 122’, DCP
A música de Gion
Gion bayashi Kenji Mizoguchi | Japão, 1953, 84’, 35 mm Eiko perdeu a mãe, que era gueixa, e decide seguir a mesma profissão sob a tutela de Miyoko. A professora lhe ensina que as gueixas são, tanto como a cerimónia do chá ou o teatro Nô, uma tradição japonesa, “um patrimônio cultural vivo”. Esta perspectiva de Miyoko entra em conflito com a da pupila. Como observa João Bénard da Costa, “o próprio princípio que levou ao nome e à profissão (princípio do prazer, princípio da mulher como origem e fonte de prazer para o homem) sofreu com a ocidentalização várias inflexões, que, sobretudo depois da guerra, permitiram uma zona em que as fronteiras se restringiram e a gueixa pôde ser levada a prostituir-se, sobretudo com determinado tipo de clientes, como os clientes deste filme. É um jogo com ocultas regras, claras ou escuras, mas é um jogo que muitas gueixas têm que jogar. lsso o sabe Miyoko, mas isso não o sabe a inexperiente Eiko, para quem ser gueixa é, sobretudo, uma forma superior de divertimento, com muitas festas e as belíssimas toiletes e os belíssimos penteados.”
No final do período Heian (entre os séculos XI e XII), um governador é mandado para o exílio por desobediência e por defender camponeses pobres. Sua mulher, Tamaki, e os dois filhos, Zushio e Anju, vão ao seu encontro, mas são enganados durante a viagem por traficantes de escravos. Tamaki é levada para a ilha de Sado, onde é forçada a prostituir-se. Anju e Zushio são vendidos como escravos ao intendente Sansho. Dez anos mais tarde, a memória da mãe retorna na forma de uma triste canção que se popularizou em Sado. “A telepatia instantânea transmitida pela música, unindo mãe e filhos através das águas, resgata Zushio e sua irmã do desânimo e reaviva seus corações para a batalha. Seu desdobramento nos leva de volta às grandes tradições do melodrama silencioso, ao cinema de juventude de Mizoguchi, no qual o acompanhamento musical fazia explícita a emoção contida na imagem”, escreve Mark Le Fanu, autor do livro Mizoguchi and Japan editado pelo British Film Institute. Segundo o autor, “é impossível pensar em O intendente Sansho sem a trilha musical: a pontuação de flauta e harpa do colaborador de longa data Fumio Hayasaka é uma das mais delicadas na obra de Mizoguchi.” O intendente Sansho é baseado em um romance de Ogai Mori que, por sua vez, foi inspirado em uma antiga lenda japonesa. [Íntegra do ensaio de Mark Le Fanu para o selo The Criterion Collection, em inglês: bit.ly/m-sansho]
Os amantes crucificados
Chikamatsu Monogatari Kenji Mizoguchi | Japão | 1954, 100’, 35 mm Quioto, final do século XVII. Ishun, um senhor abastado, acredita que sua esposa, a jovem Osan, está tendo um relacionamento com Mohei, um de seus empregados. Para escapar à punição de execução por adultério, Osan e Mohei fogem juntos. O roteiro foi inspirado em uma peça de bunraku, uma forma de teatro de bonecos japoneses intitulada Koi Hakke Hashiragoyomi. Nas palavras do cineasta português Paulo Rocha (Os verdes anos), Os amantes crucificados “é uma adaptação do Chikamatsu, um gênio, que recriava a forma do teatro de marionetes, na época uma forma popularíssima de Osaka. Havia muitos suicídios, e o público gostava muito dessas coisas de faca e alguidar. Por exemplo, uma gueixa apaixonava-se e depois matava-se: dois ou três dias depois, publicavam uma balada ou um poema, vendiam pelas ruas, e passada uma semana aquilo estava no tea-
tro. O público ia para lá chorar. Depois havia o coro que contava a história de uma maneira mais lírica, os bonecos mimavam a cena, tornavam todas as cenas muito realistas, e a primazia era do narrador, que cantava e chorava. Ora bem, o Mizoguchi, em Os amantes crucificados, pega, portanto, uma história já elaboradíssima e expõe aquilo que se passa num ambiente de burguesia semicapitalista da época ‒ o dono do negócio é um homem que tem o privilégio de ser o único tipógrafo no Japão a poder imprimir os calendários. Estabelecer o calendário era uma função de poder, com um valor quase religioso, e o governo tinha que autorizar, portanto dava imenso dinheiro. [...] Os argumentistas marxistas aproveitam para fazer uma descrição minuciosíssima sobre as estruturas do poder económico. Levam em conta os novos estudos históricos, todas as pistas da historiografia oficial marxista, e, portanto, este é provavelmente um dos argumentos mais solidamente escritos de toda a história do cinema de qualquer país. É um prodígio de carpintaria teatral, de síntese histórica etc. É um prodígio de luz, de construção de décors, mas vai muito mais longe, naquelas cenas no lago com o barco aparece um pouco o ‘amour fou’, o lado voluntarista para além da existência normal. O marxista comum não teria coragem de ir tão longe! Em que medida isso é uma espécie de reacção espontânea, poética, pessoal, política do Mizoguchi? O que é certo é que ele consegue colocar a câmara no set, pegar num assunto violentíssimo e torná-lo mais aceitável para a sociedade japonesa.” [Íntegra do depoimento de Paulo Rocha para Luís Miguel Oliveira: bit.ly/prmizoguchi]
Ópera na tela A princesa Yang Kwei Fei
Yokihi Kenji Mizoguchi | Japão, Hong Kong | 1955, 98’, 35 mm
A nova saga do clã Taira
Shin Heike Monogatari Kenji Mizoguchi | Japão | 1955, 108’, DCP No final da era Heian (794 a 1185), o Japão estava dividido entre dois clãs rivais: Taira e Minamoto. Tadanori Taira e seu filho Kiyomori chegam a Quioto depois de uma campanha contra piratas no mar ocidental. A vitória, no entanto, não é festejada pelos membros da corte, que temem o crescente poderio dos samurais. Por conta da exibição do filme no Festival de Cinema de Nova York, em 1964, Eugene Archer escreve para o The New York Times: “As composições líricas em cores pastel ilustram este conto sobre a ascensão dos samurais. Enquanto a câmera vaga pelas multidões em um mercado medieval, um fluxo de contrastes subitamente dramáticos seduz o olhar. Os monges cruéis, os guerreiros violentos, os fracos e assustados aristocratas são vivamente diferenciados pelas cores de seus trajes e comportamento primitivo.” Este é o segundo e último filme colorido de Mizoguchi. [Íntegra do texto de Eugene Archer, em inglês: bit.ly/m-taira]
Primeiro filme colorido de Mizoguchi, e o único ambientado fora do Japão, A princesa Yang Kwei Fei é baseado em uma história chinesa do século VIII, quando o imperador Hsuan Tsung adotou uma de suas concubinas como esposa. O estúdio japonês Daiei esperava que a coprodução internacional pudesse trazer um maior público ao filme, e os produtores de Hong Kong, os Shaw Brothers, acreditavam no potencial que o nome de Mizoguchi traria à produção. Em suas memórias, o roteirista Yoshikata Yoda conta que Mizoguchi aceitou o convite com alegria: “Mizoguchi era um grande amante da arte chinesa e um profundo conhecedor da estética e dos costumes da era Tang. Eu, pelo contrário, ignorava tudo. Foi Mizoguchi quem tudo me ensinou.” Ele relata como o diretor pesquisou durante meses as obras dessa era para encontrar as cores do filme, mas diz também que o realizador considerava a cor no cinema um elemento artificial. Foi uma imposição do estúdio, que desenvolvera há pouco uma tecnologia própria, a Daiei Colour.
Rua da vergonha
Akasen chitai Kenji Mizoguchi | Japão | 1956, 87’, 35 mm Em uma rua de bordéis em Tóquio, a “Terra dos Sonhos” abriga cinco prostitutas: Hanae é casada com um homem tuberculoso que não pode trabalhar; Yumeko sonha deixar o trabalho e ser sustentada pelo filho; Yorie planeja se casar com um cliente; Yasumi é zelosa com suas economias; e Mickey, de calças justas e rabo de cavalo, é a mais ocidentalizada do grupo. O título original do filme, Akasen chitai, significa em japonês “a zona da linha vermelha”, em referência à prostituição existente na região de Tóquio onde se passa o filme. Rua da vergonha foi realizado em um momento em que a lei da prostituição era discutida no parlamento japonês. Baseado no romance de Yoshiko Shibaki, Susaki no onna, este é o último filme de Mizoguchi, que faleceu em 1956 aos 58 anos. A lei antiprostituição foi aprovada no mesmo ano. A cópia em 35 mm que será exibida faz parte da coleção do National Film Center, do Museu Nacional de Arte Moderna, em Tóquio. Chika Kinoshita, professora da Universidade de Quioto e especialista na obra de Mizoguchi, participará de uma conversa sobre a obra do diretor japonês com o professor João Luiz Vieira (Universidade Federal Fluminense) no dia 6 de março, após a exibição do filme A rua da vergonha, às 18h30, no cineteatro do IMS Paulista.
Macbeth
Macbeth Ópera de Giuseppi Verdi, dirigida por Christof Loy e regida por Giampaolo Bisanti | Espanha | 2016, 152’, DCP Três bruxas profetizam o futuro de Macbeth: ele será o próximo rei da Escócia. Ao saber da premonição, Lady Macbeth se torna obstinada a transformar o prenúncio em realidade. A ópera em quatro atos de Giuseppi Verdi foi encenada pela primeira vez em 1847 e é uma adaptação da obra homônima de William Shake speare, escrita no início do século 17. Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia)
Curadoria de cinema
Kleber Mendonça Filho Produção de cinema e DVD Barbara Alves Rangel
Assistência de produção
Thiago Gallego e Ligia Gabarra
Os filmes de março
Meia-entrada
O programa de março tem o apoio da Shochiku Co., Ltd., da Janus Films, da National Film Center – The National Museum of Modern Art, em Tokyo, da Pilot Film, da Cinemateca do MAM do Rio de Janeiro, do Festival Ópera na Tela, da revista Cinética, do Festival Internacional de Cinema Infantil, da produtora Rei Cine, Lita Stantic Producciones e das distribuidoras Bonfilm, VideoFilmes, Vitrine Filmes, Zeta Filmes, Diamond Films e do Espaço Itaú de Cinema.
Com apresentação de documentos comprobatórios para professores da rede pública, estudantes, crianças de 3 a 12 anos, portadores de deficiência, portadores de Identidade Jovem e maiores de 60 anos. Venda de ingressos
Projeção
Ana Clara Costa e Miciano Manoel da Silva
Agradecimentos
Masaru Susaki, Minori Miyake e Cecília Mieko Suzuki (Fundação Japão em São Paulo), Miki Zeze (Kadokawa Pictures), Paul EI-Medioni (Shochiku), Brian Belovarac (Janus Films), Hidenori Okada, Akira Tochigi e Masaki Daibo (National Film Center – Tóquio), Hitomi Matsuyama, Clarissa Leite, Rubens Gomes Leite, Eduardo Morettin, Adalberto Paranhos e Monica Kornis.
Ciclo Kenji Mizoguchi parceria
apoio
Colaboradores Dirce Miyamura – Dô Cultural (tradução e revisão de listas de diálogos), Débora Butruce – Mnemosine Serviços audiovisuais (revisão de cópias), João Luiz Vieira – Universidade Federal Fluminense (consultoria de programação), Chika Kinoshita (Universidade de Quioto), 4 Estações (legendagem eletrônica).
Ingressos à venda pelo site ingresso.com ou na bilheteria, para sessões do mesmo dia. Desconto para o titular ao comprar o ingresso com o cartão Itaú (crédito ou débito). Ingressos e senhas sujeitos à lotação da sala. Capacidade da sala: 145 lugares. Devolução de ingressos Em casos de cancelamento de sessões por problemas técnicos e por falta de energia elétrica, os ingressos serão devolvidos. A devolução de entradas adquiridas pelo ingresso. com será feita pelo site. Programa sujeito a alterações. Acompanhe nossa programação em facebook.com/cinemaims
O menino que queria ser urso (Drengen der ville gøre det umulige), de Jannik Hastrup (Dinamarca, França | 2002, 75’, 35 mm | Dublado em português)
O pântano (La ciénaga), de Lucrecia Martel (Argentina, França, Espanha, Japão | 2001, 103’, 35 mm)
Terça a sábado, sessões de cinema até as 22h; domingos e feriados, até as 20h.
Visitas mediadas quintas‑feiras, das 12h30 às 13h30. Visitas em grupo com agendamento prévio, de terça a sexta, às 10h e 14h; quintas, às 19h. Exposições e Biblioteca, de terça a domingo, inclusive feriados (exceto segunda), das 10h às 20h; quintas, até as 22h. Última admissão: 30 minutos antes do encerramento. Entrada gratuita
Avenida Paulista 2424 CEP 01310-300 Bela Vista - São Paulo tel: (11) 2842-9120 imspaulista@ims.com.br
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