destaques de novembro de 2024
No Mês da Consciência Negra, uma série de conexões afrodiaspóricas no Cinema do IMS Poços. A cineasta brasileira Ariadine Zampaulo apresenta uma crônica da capital moçambicana em Maputo Nakuzandza. A expoente produtora nigeriana Fiery Film fabula a divindade das águas Mami Wata pelas lentes da fotógrafa brasileira
Lílis Soares. Em mais dois capítulos de Small Axe, Steve McQueen discute os dilemas da comunidade afro-caribenha na Inglaterra ora pelo viés da festividade como resistência, ora pela inflexibilidade da violência policial. Poeta, fotógrafa e cineasta, Raven Jackson faz o retrato sensorial da vida de uma mulher negra no sul dos Estados Unidos através das décadas. Viabilizadas pela Lei Paulo Gustavo, dez novas produções poços-caldenses entre curtas, médias e longas-metragens serão exibidas e discutidas por suas respectivas equipes. Passando pelo documental, ficcional, experimental e musical, são filmes que abordam temas como a condição da mulher, as lutas das mulheres indígenas e o sagrado feminino; a presença negra na formação e em manifestações culturais de Poços de Caldas; o horror no cotidiano, os coachs e falsos profetas da fé e da prosperidade. Três obras premiadas que apresentam os desafios de mulheres em diferentes fases da vida: O quarto ao lado é o primeiro longa em inglês de Pedro Almodóvar e apresenta duas personagens maduras que se reencontram em um momento extremo da vida; em Malu, uma atriz de meia-idade precisa lidar com o ostracismo, o adoecimento e as complexas relações familiares; Avenida Beira-Mar narra a amizade de duas meninas em meio a um mundo que afronta suas identidades.
[imagem da capa]
Wata
especial novembro negro
Em cartaz
Maputo Nakuzandza
Ariadine Zampaulo | DCP
O dia que te conheci
André Novais Oliveira | DCP
Todas as estradas de terra têm gosto de sal (All Dirt Roads Taste of Salt)
Raven Jackson | DCP
Histórias ocupadas: Steve Mcqueen
Small Axe: Lovers Rock
Steve McQueen | DCP
Small Axe: Red, White & Blue
Steve McQueen | DCP
mais filmes
Em cartaz
Avenida Beira-Mar
Maju de Paiva e Bernardo Florim | DCP
Malu
Pedro Freire | DCP
O quarto ao lado (The Room Next Door)
Pedro Almodóvar | DCP
Sessão especial
Mami Wata
C.J. “Fiery” Obasi | DCP
Cinema poços-caldense: estreias
Adorei as almas
Gabriela Acerbi Pereira e
Robson Américo | DCP
Arte nascente: narrativas
da arte e cultura
em Poços de Caldas
Retratar-te | DCP
Cólera
Euler Santi Matos | DCP
Dance!
Anderson Almeida | DCP
Firmamento
Dani Alvisi | DCP
Força da terra: iden-
tidade, território e memória
Évila dos Anjos | DCP
Lua vermelha
Beatriz Castro | DCP
Mobília
Well Bravo | DCP
Puérpera
Marcelo Leme | DCP
SoulSync
Bruno Benetti | DCP
19:00 Malu (103')
19:00 Todas as estradas de terra têm gosto de sal (97')
19:00 Todas as estradas de terra têm gosto de sal (97')
16:00 Malu (103')
19:00 O dia que te conheci (71')
16:00 Mami Wata (107')
19:00 Small Axe: Lovers Rock (70')
16:00 Malu (103') 18:30 O dia que te conheci (71')
19:00 Lua vermelha + Adorei as almas (87'), seguida de conversa com Beatriz Castro, Chiara Carvalho, Débora de Oliveira Romano e Gabriela Acerbi; mediação de Cíntia Murta
19:00 Puérpera + SoulSync (46'), seguida de conversa com Bruno Benetti, Grace Souza, Leidy Nara e Marcelo Leme; mediação de Otávio Augusto da Anunciação
16:00 Cólera + Mobília (51'), seguida de conversa com Carolina Gobatto, Euler Santi, Francisco Della Marra e Well Bravo; mediação de Julia Martins
19:00 Força da terra: identidade, território e memória + Firmamento (105'), seguida de conversa com Dani Alvisi e Robson Américo; mediação de Mariana Alves
16:00 Todas as estradas de terra têm gosto de sal (97') 18:30 Malu (103')
19:00 O quarto ao lado (110')
19:00 Maputo Nakuzandza (71')
16:00 Maputo Nakuzandza (71')
19:00 Avenida Beira-Mar (86')
16:00 Dance! + Arte nascente: narrativas da arte e cultura em Poços de Caldas (63'), seguida de conversa com Anderson Almeida e Sérgio Fernandes; mediação de Ana Carolina 19:00 O quarto ao lado (110')
19:00 Avenida Beira-Mar (86')
19:00 O quarto ao lado (110')
16:00 Small Axe: Red, White & Blue (81')
19:00 Maputo Nakuzandza (71')
16:00 O quarto ao lado (110') 18:30 Todas as estradas de terra têm gosto de sal (97')
16:00 Avenida Beira-Mar (86') 18:30 Maputo Nakuzandza (71')
Histórias ocupadas:
Steve McQueen
Música e dança como hiatos de liberdade negra
em Small Axe
Mariana Queen Nwabasili
O interesse pelas consequências de eventos ou períodos violentos da História nas relações sociais do presente marca parte significativa da filmografia do cineasta britânico Steve McQueen, e possivelmente explica o seu apelo a registros mais realistas em diferentes trabalhos. A forma como o diretor escolhe filmar episódios reais de opressão e resistência de imigrantes afro-caribenhos na Londres das décadas de 1960, 1970 e 1980 na série Small Axe , de 2020, é evidência disso: há um compromisso documental em ficcionalizar o que poucas vezes foi dado a ver sob a perspectiva crítica de artistas negros no cinema ou na TV ocidentais.
A dilatação temporal e a filmagem vertiginosa, com muitos momentos de câmera na mão, escolhidas por McQueen para reconstituir cenas da vivência cultural afro-caribenha e afro-britânica no segundo dos cinco episódios da série (Lovers Rock) têm chamativa e atrativa singularidade em meio aos demais capítulos – todos independentes entre si. Complexidade que ganha inevitável maior espaço de abordagem neste texto.
Carregado de uma trilha sonora que mobiliza ritmos e gêneros, como reggae, dub, rocksteady e disco music, Lovers Rock foi selecionado, ao lado do filme Mangrove, para exibição na edição do Festival de Cannes que aconteceria em 2020 e foi cancelada
devido à pandemia de covid-19. O longa-metragem se tornou obra de abertura do 58º Festival de Cinema de Nova York (realizado online) e foi escolhido o melhor filme de 2020 pela Associação de Críticos de Chicago.
Bem como a maioria dos demais longas que compõem Small Axe , Lovers Rock parte de um caso real. Porém, dessa vez, com origem em uma memória afetiva do diretor, o que talvez o tenha permitido maior liberdade para a inventividade cinematográfica. À revista estadunidense Esquire , McQueen, que é filho de imigrantes caribenhos, contou que queria apenas fazer um filme sobre sua tia Molly. Ela costumava fugir de casa e cruzar bairros de Londres para ir às chamadas blues parties, festas caseiras que a comunidade jamaicana da cidade promovia na década de 1980 a partir da influência do sound system (populares discotecas móveis da Jamaica).
No episódio, acompanhamos os preparativos e o desenvolvimento de uma blues party. Há uma personagem protagonista, Martha Trenton (Amarah-Jae St. Aubyn), que foge de casa para ir ao evento. Entretanto, a centralidade mesmo está nas imagens dos corpos negros dançantes em coletivo. São planos e sequências por vezes longos, que causam um efeito vertiginoso e sedutor em
quem assiste, fazendo o encontro com o tempo do filme dilatar a percepção do tempo que a sessão dura na realidade do espectador (70 minutos).
O título da obra foi nome de um selo musical britânico criado por Dennis Bovell, guitarrista de reggae nascido em Barbados e radicado na Inglaterra, que, por sua vez, foi inspirado em música homônima de Augustus Pablo (1954-1999), artista e produtor jamaicano de dub. Devido ao perfil dos músicos que o selo promovia, seu nome se tornou o de um gênero musical, o lovers rock, que, em termos práticos, pode ser considerado a versão romântica do reggae. O ritmo virou sinônimo da popularização do reggae na Inglaterra, e nomeia o episódio dirigido por McQueen por ser o tipo de música preferido da protagonista Martha.
Se no primeiro capítulo da série (Mangrove) a fisicalidade e a cultura afro-caribenhas tomam a tela de forma mais ambivalente –a corporeidade das personagens permite a elas afirmar sua cultura por meio da culinária, da música e da dança, mas também resistir objetiva e energicamente a violências físicas de policiais racistas –, em Lovers Rock essas instâncias tomam conta do percurso serpenteado da trama, que evidencia as expressividades corporais e musicais presentes nas blues parties como sinônimo de liberdade e
libertação. Algo que, considerando as experiências comuns das afrodiásporas ao redor do mundo, nos faz lembrar uma colocação feita pela historiadora, poetisa e militante negra brasileira Maria Beatriz Nascimento (1942-1995) no documentário ensaístico Orí (Raquel Gerber, 1989). Acima das imagens de um baile black da Chic Show, realizado na cidade de São Paulo na década de 1980, diz a narração de Nascimento: “Não é à toa que a dança para o negro é uma forma de libertação. O homem negro não pode estar liberto enquanto ele não esquecer o cativeiro, não esquecer no gesto que ele não é mais um cativo.”
Nesse sentido, em Lovers Rock, destaca-se a passagem na qual é mostrada uma dança coletiva ao som de “Silly Games”, música de Janet Kay lançada em 1979 e considerada o primeiro grande sucesso do gênero lovers rock. A cena culmina em um lindo momento de canto a capela realizado pelos dançantes em êxtase, e pode ser percebida como uma ressonância, uma vibração, ao ser continuidade de uma das imagens iniciais do episódio: o momento em que as anfitriãs da festa preparam na cozinha a comida a ser servida enquanto cantam, entre gargalhadas, “Sillyyyy gaaames”.
Há também a sequência da dança sensual entre a protagonista e seu par na noite, na
qual o close no encaixe das pelves anuncia a vazão sexual como parte das liberdades emanadas e intrínsecas àquelas festas. Por fim, há uma visceral sequência que evidencia um contraste sexista com as duas anteriores. É o momento em que os homens da festa começam a dançar de forma efusiva: a câmera enquadra em primeiro plano seus corpos e estados de espirito alterados pela música e pelo fumo; alguns deles se contorcem no chão, remetendo a um estado de transe que é reiterado pela instabilidade das imagens. Principais alvos da polícia, homens negros, ao poderem ali estar e sentir-se livres, dançam de maneira literalmente enlouquecida. Transpiram. Transcendem.
Em torno das cenas de dança e da movimentação de Martha no espaço da festa, abrem-se histórias a serem desveladas em meio ao passeio da câmera – uma espécie de “câmera-olho” ficcional – por ambientes internos e externos. Assim, observamos a relação de competição pela atenção dos homens entre as mulheres presentes; um iminente abuso sexual a ser cometido no jardim e corajosamente interrompido pela protagonista; e um tenso reencontro dela com seu primo, Clifton (Kedar Williams-Stirling), jovem rebelde e emocionalmente instável, que consegue acessar
a festa sob tensão com o segurança. Este prefere deixá-lo entrar do que fazer a discussão que estão travando na porta chamar a atenção da polícia que passa na rua. Bem como ocorreu na História, as blues parties se apresentam, então, também como ambiente de acolhimento e proteção frente aos dramas pessoais de cada um dos presentes e à hostilidade racista da polícia na cidade.
Aliás, muitas vezes durante o episódio temos a impressão de escutar a sirene de viaturas. Porém, a todo momento esse som é desestabilizado, ao ser confundido, ou melhor, incorporado como parte da trilha sonora da festa. Num jogo que brinca com a expectativa negativa comumente criada quando são associadas imagens de jovens negros ao som e à luz de carros de polícia, a percepção da sirene como dispositivo de alerta hostil a esse grupo é subvertida por meio do controle musical desse som, não apenas pelos DJs da festa, como também, no âmbito extradiegético, do próprio diretor do filme. Ou seja, expressividades artístico-culturais são assumidas como forma política de transgressão de dispositivos e símbolos que oprimem negros.
A proposta mais experimental de filmagem em Lovers Rock – destaque para a direção de fotografia do antiguano Shabier Kirchner,
vencedor do Bafta pelo trabalho em Small Axe – contrasta significativamente com o retorno a uma reconstituição histórica realista de lapidação comercial no episódio seguinte, que, se assistido conforme a ordem dos capítulos da série, apresenta-se com capacidade muito mais tímida de impacto.
Baseado na história real de Leroy Logan, policial britânico fundador da Associação de Polícia Negra do Reino Unido, o filme Red, White & Blue [Vermelho, branco e azul, justamente as cores das sirenes dos carros de polícia] joga luz e adentra o modus operandi da instituição reiterada como hostil aos negros nos diferentes capítulos.
Logan (interpretado por John Boyega, vencedor do Globo de Ouro pelo papel) interrompeu sua carreira como cientista na área forense para adentrar a reconhecidamente racista polícia metropolitana de Londres, durante o período de tensões raciais do governo de Margaret Thatcher, entre 1979 e 1990. No filme, sua decisão se dá após dois policiais racistas agredirem seu pai, Kenneth (Steve Toussaint), acusado injustamente de ter estacionado seu veículo de forma ilegal, e hospitalizado depois da agressão.
Nesse cenário, a motivação do protagonista – um assumido e solitário idealista – é mudar a instituição policial desde dentro. Mas a aposta tem resultado limitado diante
das explícitas e contínuas violências racistas que os seus sofrem nas ruas e das provocações e espécies de boicotes que ele mesmo sofre no trabalho. O impasse rende cenas de conflito entre o protagonista e seu pai, e também entre o protagonista e os demais membros de sua comunidade negra, que passam a acusá-lo de traição.
A escolha de McQueen em dirigir cenas violentas sutis ou explícitas contra negros em um registro mais realista – o mesmo acontece em Mangrove, e em seu premiado filme 12 anos de escravidão – chama a atenção, possivelmente como forma de instigar no público um tipo de indignação histórica que, então, não deve ser necessariamente superada.
Em um filme que também aposta em imagens do gênero ação, a lapidação estética dessas cenas permite dramaticidade a elas. Mas, à luz dos contemporâneos debates brasileiros sobre representação da violência contra corpos negros na história do cinema e do audiovisual, também nos leva a questionar: até que ponto é possível “envernizar” a violência contra negros nas artes? Até que ponto ou como e quando esse “verniz” suaviza ou potencializa a força realista de imagens audiovisuais que interpelam espectadores tão negros quanto as personagens retratadas?
Espelhando a complexidade dessas questões, canções de artistas como Al Green e Gloria Jones permeiam a apresentação de uma faceta mais desesperançosa da história de Leroy Logan – na vida real, um homem negro que trabalhou na polícia londrina por 30 anos –, e compõem uma trilha sonora que nos permite não esquecer também da beleza intrinsecamente libertária de ritmos e músicas negras (e/ou de origem negra) criados e escutados em concomitância às históricas mazelas do racismo.
Histórias ocupadas:
Steve McQueen
Steve McQueen e Paul Gilroy, um diálogo
tradução: Heitor Augusto
Steve McQueen Oi, Paul.
Paul Gilroy Olá, Steve. Que bom te ver.
SM Digo o mesmo.
PG Ótimo poder falar sobre esse seu trabalho, o Small Axe [Machadinha]
SM Eu tinha 19 anos quando te conheci, você era professor na Goldsmiths [uma das faculdades dentro da Universidade de Londres]. Bati na porta do seu escritório, sentamos, conversamos. A sua generosidade, essa prática de manter as portas abertas, foi fantástica para mim. Passaram-se quase 30 anos, mas você segue assim. De certa forma, tem sido uma longa jornada até o ponto em que estamos hoje, quando te convidamos para atuar como consultor em Small Axe.
PG Fiquei animado desde as nossas primeiras conversas sobre como as vidas negras são vistas na tela, no que tange às transformações geracionais da história das pessoas, especialmente as caribenhas, que se estabeleceram aqui, no Reino Unido, e a história das complexas e difíceis experiências vividas nesse lugar. O que você disse me deixou animado, pois seu interesse era
encontrar uma maneira de trazer à vida essa macro-história. Em vez de apenas devolvê-la para aqueles que a viveram, você almejava ampliá-la, de forma que pudesse ressoar, mesmo em frequências distintas, em qualquer espectador. Isso ficou nítido desde o começo, de que você não aceitaria menos que isso.
SM De certa forma é estranho, pois quando penso nessa longuíssima jornada que experienciamos enquanto negros no Reino Unido... É uma dessas coisas que, quando você é tão invisibilizado na cultura popular, quando você é indesejado, é estranho ocupar a posição daquele que mostra isso. Muitas pessoas se surpreendem, mas não deveriam, porque [essa história de opressão] está em curso o tempo todo, influencia tudo e é tangível.
PG Lembro de uma conversa nossa em 2010 ou 2011, você me falou sobre o que almejava [ao contar essa história]...
SM Aproveitei a oportunidade porque percebi uma lacuna no cânone do cinema –faltava um filme que trouxesse visibilidade às nossas histórias. Porém, um tempo depois, pensei: “Meu Deus, realmente quero fazer esse filme?”. Você sabe, a responsabilidade,
o peso disso. No início, imaginava que seria uma trama ficcional sobre uma família atravessando um desafio, pois, você sabe, seria um filme em seis episódios para a televisão, acompanhando-a desde 1968 a meados dos anos 1980. Com vagar, mas também com convicção, percebi, durante a pesquisa, que aquilo tudo [os fatos reais] era muito interessante. Não podia inventá-los.
PG Fico curioso em saber como os roteiros tomaram forma. Claro, você trabalhou com Alex [Wheatle] e Courttia Newland, ambos escritores... Fico curioso em saber sobre o processo e quais habilidades de ambos o atraiu para esse projeto.
SM O interessante sobre o Courttia é que ele carrega as memórias dessas festas de blues, porque seus pais eram frequentadores. Acho que ele é um pouco mais jovem que eu [Courttia e Steve tem cinco anos de diferença], mas ele testemunhou tudo aquilo quando era um menino. Suas lembranças dos detalhes foram fundamentais para Lovers Rock . Já em Red, White & Blue, Courttia e eu tínhamos conversas bem francas com o Leroy Logan [cuja história inspirou a trajetória do protagonista] sobre os anos em que fez parte da Polícia Metropolitana de Londres. Achávamos que
precisávamos ir a fundo. Claro, na condição de ex-policial, ele olhava positivamente para a polícia. Mas Courttia e eu lançamos bolas rápidas e traiçoeiras em sua direção...
O Leroy tem uma característica firme. Mas eventualmente quebramos um pouco essa rigidez, então certas coisas começaram a escapar e vir para o primeiro plano, de forma que pudéssemos trabalhar com elas. Acho que [o ponto de conexão] veio por meio do seu pai, que o representava. Esse foi nosso objetivo. Conversando com o Courttia, falamos das relações com nossos pais e de como era importantíssimo que isso estivesse presente em Red, White & Blue. Já em Alex Wheatle, o Alex fez parte da nossa sala de roteiro. Ao ouvir sua história, pensava apenas em como essa era a história dele. O Alex dizia: “Minha?”. Eu apontava para ele: “Sim, sua! É você e sua história.” Ele nunca havia escrito sobre ela, nem falado em profundidade. Mas a história é fantástica – e é dele. Mas há também o Alastair Siddons, corroteirista de Alex Wheatle e Mangrove. A pesquisa que ele fez não tem preço.
PG Em que medida era importante para você a veracidade das histórias contadas [na antologia Small Axe]? A sua forma de narrá-las tem uma verdade própria. Por que pessoas reais teriam de ser representadas,
por que não poderia ser um projeto especulativo? O que traz essa verdade?
SM Porque a própria verdade era inacreditável. Ela trazia uma textura e atestava uma verdade sobre nós enquanto humanos, sobre as coisas que temos de fazer para colocar uma perna à frente da outra e simplesmente levantar da cama – sobre como desafiamos a gravidade. Para mim, era importante representar histórias reais, como para dizer: “Olha o que seus pais conseguiram, os seus tios… Olha o que fizeram as pessoas que te antecederam para que você pudesse caminhar, ter dúvidas, tomar seu cappuccino.”
Entendi…
SM Os feitos registrados em Mangrove são gigantescos. Eles têm alguma semelhança com os fatos de Fome [Hunger, 2008], no sentido de que as pessoas não queriam falar sobre eles, ainda que tenham sido fatos cruciais para a história deste país e para as relações entre britânicos e irlandeses. O que aconteceu em Mangrove influencia toda a ideia de formas de se manifestar publicamente e o próprio direito à manifestação.
PG Eu vejo que afirmar uma noção diferente de justiça é algo a se notar, trata-se
de algo nobre. O movimento que [nós negros] fizemos neste país exigiu justiça, ou melhor, exigiu da Justiça algo além do julgamento baseado na cor – que era como a Justiça se apresentava na maioria das vezes. Mas o que seu filme realmente aborda é o que representa viver num espaço democrático ou aspirar a uma democracia mais aprofundada do que aquela que conhecemos.
SM Na minha adolescência, o julgamento de Mangrove era como um caso lendário. Contudo, ele foi empurrado para debaixo do tapete – as pessoas não queriam falar sobre isso. Naquele período, as pessoas não queriam falar porque havia muita dor, muitas pessoas ainda lidavam com o trauma. Acho que o meu filme logrou trazer o assunto à tona de maneira celebratória. Sinto que foi a primeira vez que as pessoas abraçaram o ocorrido dessa forma.
PG Quando eu sentei para assistir a Mangrove na BBC – exibido em horário nobre –, decidi deixar aberto o feed das minhas redes sociais para observar os comentários à medida que as pessoas vissem o filme. Foi maravilhoso ver que o público estava assistindo. A velocidade me espantou. Depois de um tempo, não
consegui mais acompanhar a intensidade da interação entre elas e com o filme, as pessoas estavam vivendo aquilo em tempo real.
SM Muitas pessoas me falaram que diferentes gerações de suas famílias se reuniam para assistir ao filme e poder conversar ao final da exibição.
PG Então você descobriu que as estava encorajando, oferecendo uma oportunidade para falar desses fatos até então impronunciáveis. E o tom das reações entre as pessoas mais jovens era do tipo: “Como assim não sabíamos dessa história? Por que não nos contaram? Por que não tinham condições de nos contar?”
SM Quer dizer, tudo isso coincidiu com o assassinato de George Floyd, o que trouxe mais atenção aos filmes e jogou luz [no racismo]. As pessoas queriam saber o que estava acontecendo, como havíamos chegado até aqui. O Small Axe chegou num momento crucial.
PG Vamos falar sobre a relevância do Massacre de New Cross, o incêndio criminoso ocorrido na New Cross Road que levou a um protesto nacional que anunciou, de
maneira inédita, a presença combativa dos negros britânicos, não apenas no luto pelos mortos ou no indiciamento da inaptidão do governo e do Estado de reconhecer a dor e o sofrimento [das vítimas], mas também na manifestação do poder de um novo corpo político.
SM Inicialmente, pensei em transformar o incêndio na New Cross em um dos episódios da antologia, mas eu não queria transformar o Uprising – bem, o filme que hoje se chama Uprising – num longa ficcional. Quando você tem uma situação na qual crianças morrem numa casa e as circunstâncias ainda não foram esclarecidas, trata-se de algo que tem de ser investigado, em vez de ilustrado... Então pensei em aprofundar, ver o que era. Eu e James Rogan [codiretor de Uprising ] nos dedicamos à investigação que levaria a um documentário. Não cabia integrar essa história à antologia Small Axe , esse episódio tinha de ser investigado.
PG Sim, porque ainda está aqui. Uma coisa dessas é extraordinária... Não direi que foi esquecida, mas, sim, reprimida. A memória foi como que reprimida – de certa forma, tinha de sê-lo para que as coisas seguissem tal como estão.
PG Me ocorrem agora as palavras do W.E.B. Du Bois, famoso escritor afro-americano, no início do século 20. Ele disse que o fator que definia a vida negra nos EUA naquele momento [1903, quando As almas do povo negro foi inicialmente lançado] era a ideia ao redor da pergunta “como é se sentir sendo um problema?”. Quando comecei a escrever acerca das vidas negras no Reino Unido, senti a voz do Du Bois na minha orelha. Para mim, o ponto de partida estabelecido por Small Axe para o debate é uma recusa a essa ideia de se sentir um problema. [Pelo contrário, a pergunta é:] como o racismo se sente sendo um problema? Como a injustiça se sente sendo um problema? Como a desigualdade se sente sendo um problema?
Como é se sentir silenciado? Que tipo de problema é esse, o de ser invisível? Que tipo de problema... Não se trata de se sentir um problema, mas sim desses problemas que convergem e se encontram na intersecção das formas que essas histórias são contadas.
SM Uma porção significativa da motivação para dirigir essa antologia vinha da minha necessidade de ver imagens com as quais eu estava familiarizado no cotidiano.
Essas imagens tinham muitos significados para mim – uma mera conversa entre duas pessoas sobre um corte de cabelo, qual barbeiro frequentar ou coisas do tipo... Essas coisas maravilhosas que lançamos ao mundo todos os dias, coisas engraçadas e que também são sobre um tipo de resistência.
SM Assistir aos filmes individualmente é uma coisa, mas vê-los em conjunto e observá-los em relação traz à experiência uma outra camada de sentimentos. Na minha visão, a característica banal e comum do tom, em especial no registro das famílias negras, das dinâmicas intergeracionais e assim por diante... Essa banalidade é, na verdade, libertadora, pois nos retira dessa condição de problema, de algo que necessita ser resolvido, nos leva para longe dos sentimentos que têm definido em demasia nossa vida coletiva – revolta, vulnerabilidade, trauma e por aí vai.
É a banalidade. Por exemplo, estamos jogando Scrabble, certo? [Paul faz referência a uma cena do filme] Não estamos seguros quanto às palavras que não podemos usar, mas jogamos Scrabble, afirmamos coisas nossas tal como protestamos sobre outras coisas...
Aquela sequência [de dança] em Lovers Rock, o segundo filme... De certa maneira,
foi uma decisão sagaz, pois moveu o debate para longe de uma certa agenda acerca do que é importante na vida negra – justiça, desigualdade, policiamento. O debate foi, então, estabelecido numa outra direção, rumo a questões acerca dos sons, da cultura, do amor e da responsabilidade frente a uma geração observada em relação à primeira retratada em Mangrove. O espectador teve uma perspectiva histórica, foi questionado a partir da tela, que dizia: “Como você vê essa história [retratada na festa Lovers Rock] em relação ao mundo que acabei de te apresentar? Quais conexões criativas e culturais você consegue perceber nas formas em que essas duas histórias ressoam entre si? Creio que isso foi uma conquista da antologia.
SM Lovers Rock foi baseado na tia Molly, que não era permitida pela minha avó a frequentar as festas de blues . Minha avó trancava a porta da frente, mas meu tio deixava a porta de trás destrancada para que minha tia se aventurasse na noite rumo a Ladbroke Grove. Essa é a segurança, a fortaleza da qual você falava, esse entrar e sair dela, um mundo de possibilidades. Mas a juventude tinha de ter a possibilidade de se aventurar nesse mundo de possibilidades. Essa escapada era a forma que eu queria que
entrássemos em Lovers Rock – é como se alguém deixasse a fortaleza.
PG Estou interessado na tensão entre dentro e fora, pois o espectador fica com essa ideia dos espaços internos como lugares não apenas protegidos das violações de um hostil mundo exterior, mas também como espaços que nutrem – lugares de possibilidade, mas encerrados.
SM Lugares encerrados e seguros para se nutrir – a comida é de extrema importância –, para se engajar e debater. Espaços nos quais ninguém fica te observando, onde você sabe que pode ficar fechado sem ninguém te observar ou você ter de devolver o olhar.
Quando abrir a porta, a brisa entrar e você partir, há algo que você terá de colocar sobre sua cabeça.
Quando eu era criança, lembro que um caribenho como meu avô, um homem de sua geração, não poderia sair de casa sem um chapéu sobre a cabeça. Você tinha de pisar nas pontas dos pés, literalmente. Era um peso ter de navegar entre esses dois espaços [interno e externo].
detalhezinhos que você obviamente se esmerou para representar corretamente. Por exemplo, amo aquele momento quando os personagens retiram da porta o mapa de Granada, porque eles não querem que esse item precioso na casa dos pais seja...
SM Meu Deus, “não toque!”... Meu Deus! Dá para imaginar? Uma das coisas das quais tenho memória e que gostaria de ver no filme era a maneira que os rapazes se apresentavam para as moças com quem queriam dançar. Eles sempre as tomavam pelo cotovelo, deslizando a palma da mão e, se estivessem com sorte, ela tomaria sua mão. Se não obtivessem sucesso, os rapazes fariam uma nova tentativa com outra moça. Isso era um detalhe belíssimo que eu via quando criança e queria jogar luz. Era um ritual, um lindo ritual do qual ou as pessoas se esqueceram ou não vislumbravam como algo de valor, interessante. O mesmo pode ser dito do senhor da cruz... Essa sequência foi baseada num camarada que existiu na vida real. Ele costumava andar por Ladbroke Grove e Chelsea com a cruz...
PG Carregando-a.
PG Quando mirei novamente para os filmes, pensei sobre o papel dos detalhes e o que eles provocam [no filme]. Tantas minúcias,
SM Lembro de vê-lo carregando a cruz um dia. Pensei: “Como ele vai levá-la no ônibus?”. E, claro [risos]...
PG Ele dobrava a cruz [risos].
SM Para levá-la consigo. Esses detalhes tão específicos que eu pensava que seriam característicos de um momento em particular se tornaram universais. Talvez a autenticidade [desses detalhes] não houvesse sido reconhecida, mas ainda assim era familiar.
PG Entre os vários aspectos que gosto na antologia, está o papel da música – não apenas em Lovers Rock , mas em toda a série. A música está presente, por exemplo, no reflexo de Leee John [vocalista do trio Imagination] em Leroy Logan. Está lá constantemente, é um constante ponto de referência, mesmo nas representações mais desagradáveis [risos].
SM Uma história baseada em fatos reais [risos].
PG Não duvido [risos], aquela cena em específico [um homem branco assassinando as cordas de um violão] tinha de ser real.
SM Lembro-me que meu pai, todas as manhãs de domingo, colocava para tocar um disco do Jim Reeves [cantor branco e americano do gênero gospel]. Deus do céu! Era um ritual em todos os lares caribenhos...
PG E também nos lares de pessoas originárias da África Ocidental [risos]...
SM Sim, o amplo alcance da música country e do faroeste... Quer dizer, não sei, havia rádios americanas que infiltraram o Caribe, mas esse country religioso... Acho que as pessoas se conectavam com essas músicas porque muitos caribenhos eram agricultores, e as letras sempre falavam da terra,
de Deus e por aí vai. Imagina se as crianças tocassem naquele LP?!
Mas havia também o reggae . Sem ele... O reggae era tudo, aquele baixo, aquele som que te pega antes de você ouvi-lo. Para falar das questões da fisicalidade da música, as caixas de som eram muito importantes. Os tweakers , a possibilidade de visualizar o som, algo obviamente invisível.
PG Também deve ser reconhecida a importância daquelas frequências de som e dos efeitos sobre nosso corpo. É diferente escutar a música com fones de ouvido.
SM Mas a visualização do som foi maravilhosa. Essa coisa de levar as caixas para o andar de cima da casa era tão ritualística. Era como um altar! Dispor as caixas era como montar um altar. E o High Priest era o DJ. Por isso que, quando os filmes foram exibidos na BBC, pedi para o apresentador aumentar o volume. E ele: “O sr. McQueen me pediu para aumentar o volume”.
PG E quando no filme entra aquele hino dos negros britânicos, “Silly Games”... Acho que você reproduziu a música na íntegra, né?
SM Sim, os oito minutos.
PG Me explica por que essa opção era importante para você.
SM Essa música chegou a públicos diferentes, foi número dois nas paradas de sucesso. Me recordo que todo mundo sabia a música e tentava alcançar aquela nota aguda. Durante as filmagens, eu tinha a visão de que os atores iriam cantá-la, mas não sabia por quanto tempo ou o que se passaria de fato.
A atmosfera do set permitiu às pessoas ficarem confortáveis naquele ambiente –elas podiam ser elas mesmas. Os atores estavam interpretando vidas e histórias que se passaram há mais de 30 anos, mas, ao mesmo tempo, conheciam essas pessoas. Foi tão bonito. E o Dennis Bovell, produtor de “Silly Games”, interpreta aquele senhor na cena, e dança. Um acontecimento maravilhosamente espontâneo, hipnotizante e meditativo. De certa forma, o que foi registrado pelas câmeras também estava acontecendo atrás delas. Cena e bastidores se fundiram, a atmosfera perfumou todo o set. Não queria gritar “corta!”.
Acredito do fundo do meu coração que, sem essas festas de blues , haveria uma profunda psicose. Esses lugares foram verdadeiras igrejas para aqueles jovens. Lá não havia a pressão dos pais, das instituições, do trabalho... Os frequentadores precisavam daquilo. Naquelas noites de domingo, o blues era como banhar-se num tipo de som ritualístico – meditação, cura, chame como quiser.
[Steve McQueen passa a comentar acerca dos eventos retratados em Education]
Uma vez, numa conversa com um taxista, mencionei a expressão “escolas para os educacionalmente subnormais”. Ele automaticamente se encolheu, pois [a existência
dessas escolas] foi traumática. Nunca se falou sobre esse assunto. Eu queria que a antologia refletisse sobre essas intersecções: a religião, que atravessa todos os filmes de uma forma ou outra; obviamente, a polícia, o sistema; e a educação veio no último momento, pois era do que eu precisava. Procurava pelo quinto filme e, bingo, educação!
Não frequentei essas escolas para os educacionalmente subnormais. Me livrei dela por causa das mães e dos pais negros que lutaram contra elas num período que antecedeu minha chegada à segunda parte do Ensino Fundamental e Médio. Combateram e foram vitoriosos. Esses heróis, pequenos e banais heróis, nunca haviam sido celebrados, mas eles transformaram os regulamentos educacionais britânicos.
PG Sim!
SM As mães, os pais e as escolas de sábado. Incrível!
PG Tratou-se de um movimento que não se restringiu apenas a Londres, mas chegou a outras áreas de ocupação negra.
pessoal frente a esse contexto precisava ser destacada, penso eu, justamente pela banalidade do que as pessoas podem conseguir quando atuam coletivamente.
PG Sim, o filme Education é muito emocionante. Tem algo sobre a presença do Trevor Laird e seu papel naquela reunião comunitária… Obviamente assistimos ao Trevor interpretando diferentes personagens nos últimos 30, 40 anos... Mas tem ali, naquele extraordinário discurso, um certo rastro do Beefy [personagem interpretado pelo ator em Babylon , longa-metragem de Franco Rosso de 1980, um dos primeiros longas britânicos de ficção a registrar o racismo e a resistência negra britânica].
SM Exatamente. Esses bastidores, essas associações negras, transformaram a lei para todos no Reino Unido. A minha história
Fico pensando sobre como falar a respeito da educação e recuperar a história daquelas intervenções nesse campo que mudaram esse país para melhor. Education conseguiu um feito significativo, pois ofereceu uma correção da memória coletiva acerca da luta ao redor dos nove de Mangrove e das questões de legislação e justiça que resultaram daquela resistência. Ainda que tenhamos sido advertidos sobre manter cautela quanto aos desdobramentos do julgamento de Mangrove, ainda que devamos manter a atenção, pois o processo de assédio e opressão continua ao longo do tempo... Tem algo naquela história
sobre educação... O final aberto do filme é como se dissesse: “Não esqueça desses eventos, a luta continua”.
O elemento cósmico associado à história de Kingsley [protagonista de Education] é fundamental para que haja não necessariamente um otimismo, mas uma esperança no desfecho do filme...
SM Quando colocamos tudo isso em perspectiva, o que é isso? Que diabos é isso? Que diabos é esse negócio de raça? O que é isso? Não existe, o que é essa idiotice? Com que estamos lidando? Trazer para esses assuntos um enquadramento do cosmos transforma-os em algo interessante de ser olhado. Com que diabos estamos lidando aqui? [O racismo] é uma idiotice absoluta –e mesmo assim...
PG ... Tem consequências.
SM Sim, é algo com o qual temos de lidar.
PG E o título da antologia, Small Axe, obviamente faz referência à canção dos The Wailers, a qual representa um verdadeiro chamamento dos fortes e dos fracos, dos pequenos contra essas formas imensas e poderosas de vida – e a machadinha que pode derrubar a árvore gigante. Ou
seja, a letra já traz uma certa dinâmica entre minoria e maioria...
SM: É sobre o coletivo, sobre o que podemos fazer como tal. Juntos podemos mover montanhas. Isso era nítido para mim na Londres da minha infância e adolescência.
As pessoas agiam e seguem agindo.
PG Mas, vem cá, me diz: você comentou sobre a importância de exibir esses filmes no horário nobre da BBC One... Quer dizer, quem não é britânico talvez não entenda o quão central foi essa decisão.
SM A primeira coisa que disse foi: “Esses filmes têm de ser exibidos na BBC”. Eu queria que eles perpassassem a corrente sanguínea do país, e na BBC qualquer um teria a oportunidade de assisti-los. Era importante para mim a existência de um contexto de acesso democrático aos filmes, ao invés de torná-los algo exclusivo. Essa [obra] é uma das coisas que uma pessoa almeja imprimir na memória coletiva de um povo – e se alguém não assistisse, alguém falaria a essa pessoa sobre os filmes. A duração de Mangrove é de 90 minutos, e o filme foi exibido às 21h – ou seja, pela primeira vez na história, o BBC News foi remanejado para as 22h30, e por causa do
Mangrove. Esse é um feito bastante significativo para a cultura aqui do Reino Unido. Cada filme foi exibido por cinco domingos seguidos antes do jornal das 22h – coisas assim não acontecem!
PG Acho importante que as pessoas entendam que isso representou um acontecimento nacional, não ficou localizado apenas nas famílias caribenhas. Foi um evento nacional, mesmo que você estivesse transferindo o jornal nacional do centro da grade noturna no horário de pico.
SM Na verdade, a reação ao filme ficou ainda maior após sua transmissão na televisão. Esses debates [entre as famílias durante a sessão] seguiram, e seguiram, e seguiram...
PG Steven, muito obrigado por me conceder a chance de conversarmos sobre esse relevante trabalho que transformou os termos que ditam os debates acerca da história negra e da vida negra aqui no Reino Unido.
SM Muito obrigado pela entrevista.
PG O prazer foi definitivamente meu.
Avenida Beira-Mar
Maju de Paiva e Bernardo Florim | Brasil | 2024, 86’, DCP (Elo Studios)
Rebeca, uma menina de 13 anos, filha de pais separados, muda-se com a mãe para o bairro litorâneo de Piratininga, em Niterói. Ela passa seus dias espiando a rua por cima do muro. Lá, Rebeca vê Mika, uma menina da sua idade, que desafia as normas de gênero. O encontro das duas meninas desencadeia uma amizade incompreendida pelos adultos e uma série de eventos que abala a tranquilidade da avenida Beira-Mar.
Com um elenco que reúne as jovens atrizes Milena Gerassi e Milena Pinheiro às consagradas Andréa Beltrão e Isabel Teixeira, Avenida BeiraMar foi recebido este ano no Festival Internacional de Cinema de Guadalajara com os prêmios de Melhor Direção da competição geral e a menção
honrosa no Prêmio Maguey. No Festival do Rio, recebeu o Prêmio Félix de Melhor Filme. Tanto o Maguey quanto o Félix são prêmios voltados para produções e narrativas em torno da comunidade LGBTQIAPN+.
“Muitas vezes, quando falam sobre uma criança trans, perguntam: ‘Ah, mas e os pais?’”, comenta a atriz Milena Gerassi, que interpreta Mika. “Acho que o filme tem uma saída para os pais ao mostrar que o que eles enxergam [na criança trans] é somente um ser humano.” Sua parceira de elenco, Milena Pinheiro, que faz a personagem Rebeca, comenta sobre a forma como os preconceitos são abordados na obra: “Eu acho que está no filme de uma maneira bem clara, mas as pessoas deveriam prestar atenção nos momentos que ele aparece velado, escondido na forma de opiniões”.
[Depoimentos extraídos de bit.ly/avenidabeiramarims]
Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia).
Pedro Freire | Brasil | 2024, 103’, DCP (Filmes do Estação)
Malu é uma mulher com um passado glorioso na atuação, mas cuja carreira chegou ao ostracismo. Em um casarão em construção, afastado do centro urbano, vive com sua mãe conservadora e seu amigo Tibira. Eventualmente recebe visitas da filha. A complexa relação entre as três mulheres oscila entre momentos de carinho e ternura e rompantes de ressentimento e agressividade. No terraço de sua casa, Malu quer construir um teatro. Livremente inspirado na vida da atriz paulista Malu Rocha, mãe do diretor Pedro Freire, Malu faz um agudo e nuançado retrato de relações familiares e de uma atriz afastada da profissão. Além de ter trabalhado em filmes de Ruy Guerra, Karim Aïnouz e Marcelo Gomes, o diretor Pedro Freire já havia dirigido curtas-metragens, teatro e novela. Sobre Malu, fala ao Jornal do Brasil: “Eu queria que meu primeiro longa fosse um filme inevitável
para mim. [...] Então me conectei com as coisas mais importantes para mim, busquei o que seria tão profundo que só eu poderia fazer, e me encontrei com a pessoa mais importante e transformadora da minha vida, minha mãe, Malu Rocha. Digo com nome e sobrenome porque ela foi além de uma mãe, ela era mãe e ao mesmo tempo tinha uma persona, ‘a atriz Malu Rocha’, que ela levava para dentro de casa o tempo todo. E aquela personagem dentro da minha casa não era simples, porque ao mesmo tempo era difícil a distância –imagina que a sua mãe está sempre atuando – e também era fascinante, porque era uma personagem maravilhosa, inteligentíssima, humana, corajosa, culta. Enfim decidi que tinha que contar a história dela e entendi que a parte de sua história que mais me marcou foi o momento em que ela ficou mais isolada do mundo, dos amigos, morando com a mãe numa casa semiconstruída numa favela do Rio de Janeiro, sempre dizendo que queria voltar para São Paulo.”
O longa conta com as interpretações de Yara de Novaes, Carol Duarte, Juliana Carneiro da Cunha e Átila Bee. Depois de passar pelo Festival de Sundance, em janeiro deste ano, Malu fez sua estreia brasileira no Festival do Rio, no qual recebeu os prêmios de Melhor Longa de Ficção –junto a Baby, de Marcelo Caetano –, Roteiro, Atriz (para Novaes) e Atriz Coadjuvante (dividido entre Carneiro e Duarte).
Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia).
Maputo Nakuzandza
Ariadine Zampaulo | Brasil, Moçambique | 2022, 71’, DCP (Descoloniza Filmes)
Amanhece na capital de Moçambique. Jovens saem de uma festa e, nos quintais, senhoras iniciam o dia. Um homem corre, uma mulher chega de viagem, um turista passeia, um trabalhador apanha o transporte público, e a rádio Maputo Nakuzandza anuncia o desaparecimento de uma noiva.
Em seu primeiro longa-metragem, Ariadine Zampaulo faz uma crônica em torno de um dia na cidade em que viveu por seis meses, durante um intercâmbio da graduação. Em entrevista a Adriano Garret para o portal Cine Festivais, a cineasta conta: “Eu falo que o filme teve um processo de produção ao contrário, porque normalmente você faz vários anos de pesquisa e escrita de roteiro e depois tem um tempo menor para as filmagens e para a finalização, e comigo foi
o oposto. Quando resolvemos fazer o filme, eu já pensei em um tipo de produção na qual o roteiro fosse se construir mais na montagem. Já sabia que seria o retrato de um dia na cidade de Maputo, do amanhecer até a madrugada, e o título chega também como uma proposta para o filme. Maputo Nakuzandza significa ‘Maputo, eu te amo’, que é uma referência a todos esses filmes de cidade, como Paris, te amo ou Rio, eu te amo.”
“Na maioria desses filmes, você tem uma historinha para cada personagem que vai sendo desenvolvida, e, no caso de Maputo, eu escolhi pegar fragmentos e não aprofundar essas narrativas. Acho que essa escolha foi muito mais pela questão de eu ser honesta com o meu lugar de estrangeira ali dirigindo esse filme. Claro que eu estava sempre dialogando com os atores, com a Maria Clotilde (roteirista e produtora), mas existia um desejo de colocar honestamente o contato que eu tenho com aquele espaço, que se dá mais através de uma curiosidade, de um encantamento, de uma empatia por esses personagens. Então Maputo Nakuzandza acaba tendo mais uma visão de passeio pela cidade, de encontro com esses personagens, do que exatamente de acompanhar uma história fechada sobre determinadas pessoas. A fotografia do filme também assume isso: conversei muito com o David Gross (fotógrafo) sobre ser uma fotografia que passeia, anda pelas avenidas, depois para, olha para a cidade…”
[Íntegra da entrevista em: bit.ly/maputoims]
Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia).
O dia que te conheci
André Novais Oliveira | Brasil | 2023, 71’, DCP (Malute Filmes)
Zeca todo dia tenta levantar cedinho para pegar o ônibus e chegar, uma hora e meia depois, na escola da cidade vizinha, onde trabalha como bibliotecário. Acordar cedo anda cada vez mais difícil, há algo que o impede de manter esse cotidiano. Um dia, Zeca conhece Luisa.
O dia que te conheci é o terceiro longa de André Novais Oliveira, diretor de Temporada (2018), Ela volta na quinta (2014) e uma série de curtas-metragens que circularam o mundo, como Fantasmas (2010) e Quintal (2015). “Desde Fantasmas, meu primeiro curta, de 2010, tento fazer os diálogos
naturalistas e fazer com que as atuações soem as mais legítimas possível”, comenta em depoimento disponibilizado no material de imprensa do filme.
“Esse foi um trabalho muito prazeroso e divertido, e aberto a improvisos. Em cada longa, trago uma nova dosagem de abertura ao inesperado.”
“Sempre tive muita vontade de tentar o humor nos filmes, e tanto a Grace [Passô] quanto o Renato [Novaes] são bons de comédia também.
Eles têm um timing de humor, e equilibrar com o drama foi intuitivo. É muito gostoso ver piadas, ou coisas que nem eram para ser engraçadas, mas acabam com o público. Fico muito feliz.”
Filmado ao longo de dez dias entre o primeiro e o segundo turno das eleições de 2022, o filme de Oliveira dialoga com referências que vão desde os cineastas Abbas Kiarostami e Apichatpong Weerasethakul, o compositor norte-americano William Grant Still e a cena do rap contemporâneo brasileiro: “O rap é muito importante no filme. Eu queria muito evidenciar que o Zeca gosta de rap, e mostrar isso nos mínimos detalhes, como na direção de arte. Tem tudo a ver com a cena do rap em BH, que tem crescido bastante. Não à toa, Djonga, Matéria Prima e o Fabrício FBC estão na trilha, além do FBC fazer uma participação como ator, o que me deixou muito feliz.”
Ingressos: terça, quarta e quinta: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia); sexta, sábado, domingo e feriados: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia).
O quarto ao lado
The Room Next Door Pedro Almodóvar | Espanha | 2024, 110’, DCP (Warner Bros)
Ingrid e Martha eram muito amigas na juventude, quando trabalharam juntas na mesma revista. Depois disso, Ingrid se tornou escritora de autoficção, Martha virou correspondente de guerra, e as duas foram separadas pelas circunstâncias da vida. Após anos sem contato, elas se reencontram numa situação extrema, mas estranhamente doce.
Após experimentar o inglês como idioma principal em seus dois últimos curtas-metragens, Estranha forma de vida e A voz humana, Almodóvar realiza seu primeiro longa-metragem no idioma, com as protagonistas Tilda Swinton e Juliane Moore, e a participação de John Turturro. Vencedor do Leão de Ouro de Melhor Filme no Festival de Veneza deste ano, é livremente inspirado no romance O que você está enfrentando (What Are You Going Through), de Sigrid Nunez, e narra o reencontro de duas amigas no momento
em que uma delas lida com uma doença terminal. Apesar da dureza do tema e de ser reconhecido pela exploração da linguagem do melodrama, em entrevista a Anne Thompson para o portal Indie Wire, o diretor comenta: “Eu não queria fazer sequências melodramáticas, ou ser muito sentimentalista. Então, quando você fala de mortalidade, é fácil cair no melodrama. Eu não queria me inclinar nessa direção. Eu queria permanecer contido e austero.”
“Isso é algo que as atrizes me ajudaram a fazer, a forma como elas atuaram apoiou minha visão do filme. Agora essa não foi a abordagem para as cores. Eu queria que as cores fossem vivas e expressassem vitalidade. Ao contrário de alguns de meus outros filmes, eram apenas flashes de cor. Portanto, poderia ser um vaso ou uma pintura ao fundo.”
“Eu não queria que a história fosse necessariamente uma história triste ou chata, eu queria que a morte também fosse vibrante e viva. Faz parte da vitalidade da personagem de Tilda o fato de ela decidir tomar a morte em suas próprias mãos. Eu queria que essa vitalidade fosse visível, e é por isso que eles estão em um lugar bonito, cercado pela natureza, rodeado de móveis coloridos com vermelhos e verdes. Para mim, foi uma forma de transpor a própria vitalidade da personagem para o registro visual do filme.”
[Depoimentos extraídos e traduzidos do inglês de: bit.ly/quartoaoladoims]
Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia).
Todas as estradas de terra têm
gosto de sal
All Dirt Roads Taste of Salt Raven Jackson | EUA | 2023, 97’, DCP (Pandora Filmes)
Longa-metragem de estreia da premiada poeta, fotógrafa e cineasta Raven Jackson, Todas as estradas de terra têm gosto de sal é uma exploração lírica que abrange décadas na vida de uma mulher no Mississippi.
Com produção de Barry Jenkins, diretor de Moonlight, e filmado em película 35 mm, cada cena representa um momento da vida de Mackenzie, também chamada de Mack por seus amigos e familiares. A infância nos anos 1970, quando aprendeu com seu pai a pescar; a ado-
lescência, em que seu melhor amigo se torna também seu crush; os primeiros anos de vida, embalada pelos braços de sua mãe. O filme se move livremente no tempo, deleitando-se com a beleza da natureza e com as minúcias da conexão humana – um par de mãos entrelaçadas, uma dança lenta e balançante, um abraço demorado –enquanto seus personagens enfrentam o amor, a perda, a tristeza, a alegria e o inesperado.
A cineasta, que foi criada no Tennessee, baseou-se em algumas de suas próprias experiências e em conversas com familiares para contar a história da infância e adolescência de uma mulher negra do sul: “O filme trata muito da linhagem e do que é passado de geração em geração. Minha mãe é do Mississippi, minha avó materna é do Mississippi, então é como se eu estivesse conversando com a família”, declara. “Parece que estou em casa. Parece que estamos em lugares que conheço e de onde venho.”
“Estou interessada em me debruçar sobre as formas como nos comunicamos sem usar palavras, por meio de gestos e silêncios. É uma jornada lírica e sensorial.”
[Depoimentos extraídos e traduzidos do inglês do dossiê de imprensa do filme.]
Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia).
Mami Wata
C.J. “Fiery” Obasi | Nigéria | 2023, 107’, DCP (Filmicca)
Mami Wata é uma divindade adorada pelos habitantes da remota vila de Iyi, na África Ocidental. Mama Efe, sua representante, exerce autoridade espiritual na vila, até que a morte de uma criança perturba a paz da comunidade. O poder da divindade passa a ser questionado por aqueles com diferentes ideologias, e Prisca e Zinwe, filhas de Mama Efe, se unem para salvar sua aldeia e restaurar a glória de Mami Wata em Iyi.
Mami Wata é o terceiro longa-metragem do expoente diretor nigeriano C.J. “Fiery” Obasi, produzido por sua companheira de vida Oge Obasi sob a bandeira da Fiery Film Company. Fundada pelo casal para criar filmes de gênero sob uma perspectiva africana, a Fiery Film estreou no longa-metragem com Ojuju, um filme de zumbis realizado com baixo orçamento, seguido por O-Town, um suspense criminal, e Juju Stories, junto ao coletivo Surreal 16. A ideia para Mami Wata chegou a C.J. Obasi em uma espécie de transe:
“Eu tive uma visão. Literalmente, entrei em um estado de transe, o que aconteceu comigo no máximo quatro vezes em toda a minha vida”, conta a Wendy Mitchell para o portal ScreenDaily. “Quando criança, eu tinha uma imaginação muito vívida e conseguia ver coisas imaginárias. Em 2016, tive uma visão de uma praia em que vi uma jovem mulher caminhando em direção ao oceano, passando por mim e indo em direção à deusa. Ainda posso vê-la claramente agora, fico arrepiado quando falo sobre ela, porque é muito clara. E a visão era em preto e branco. Então, eu sabia qual seria meu próximo filme. E essa é a cena no final do filme.”
A fotografia em preto e branco é assinada pela brasileira Lílis Soares que, entre outros, fotografou também Diálogos com Ruth de Souza, de Juliana Vicente, Um dia com Jerusa e Ó paí, ó 2, de Viviane Ferreira. Em sua estreia no Festival de Sundance, em 2023, Mami Wata recebeu o Prêmio Especial do Júri para a Direção de Fotografia. Na sequência, foi premiado no Fespaco também por Melhor Fotografia, além de Melhor Design de Produção e o Prêmio da Crítica Africana.
“O longa é, em sua maior parte, um filme de imagem escura, e eu sabia que precisávamos dessa escuridão para alcançar a imagem que tínhamos em mente”, conta Lílis Soares ao portal Afrocritik. “Em muitas cenas, trabalhamos principalmente com os movimentos corporais dos atores, que também eram fantásticos. Minha experiência em trabalhar com pessoas de pele negra também foi muito vantajosa. Para mim, era como pintar. Eu só precisava saber onde colocar a luz e onde adicionar volume. Era apenas uma questão de iluminação e de explorar diferentes ângulos para conseguir isso.”
[Depoimentos, originalmente em inglês, extraídos de bit.ly/mamiwataims1 bit.ly/mamiwataims2]
Ingressos: R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia).
Histórias ocupadas:
Steve Mcqueen
Histórias ocupadas: Steve McQueen tem foco na obra recente do diretor britânico. A programação incluiu a estreia brasileira de Occupied City (2023), novo trabalho de McQueen, que investiga as reminiscências da ocupação nazista na cidade de Amsterdã.
A mostra apresenta também os cinco filmes da antológica série Small Axe, exibidos entre outubro e dezembro no IMS Paulista e IMS Poços, em sessões únicas. Eleita em 2020 como a melhor produção do ano pela Associação de Críticos de Cinema de Los Angeles, Small Axe reúne cinco histórias distintas inspiradas em personagens da comunidade afro-caribenha em Londres, entre 1960 e 1980. Os filmes abordam as tensões raciais presentes na cidade e as lutas por direitos em diferentes esferas, dos tribunais às pistas de dança. Após estrear no Festival de Cannes em 2020, Small Axe foi lançado pela Amazon e, no Brasil, ficou disponível apenas em serviços de streaming. Essa é a primeira vez que a antologia é exibida em uma sala de cinema nacional. Para acompanhar a exibição dos filmes, o Cinema do IMS publicará uma série de textos com contribuições de Ashley Clark, diretor curatorial da The Criterion Collection, da pesquisadora Mariana Queen Nwabasili, de Steve McQueen e do sociólogo Paul Gilroy, que atuou como consultor na realização de Small Axe
A programação tem apoio de The Criterion Collection.
Entrada gratuita. Distribuição de senhas 60 minutos antes da exibição. Limite de uma senha por pessoa. Sujeito à lotação da sala.
Small Axe: Lovers Rock
Steve McQueen | Reino Unido, EUA | 2020, 70’, DCP (Turbine Studios)
Uma história de amor entre jovens numa festa de blues em 1980. O filme é uma ode ao gênero de reggae romântico chamado lovers rock e aos jovens negros que encontraram liberdade e amor em seu som nas festas em Londres, em uma época em que não eram bem-vindos nas casas noturnas dos brancos.
Em entrevista a David Olusoga para a revista Sight and Sound, McQueen conta que este episódio é inspirado na juventude de sua tia: “Meu tio costumava deixar a porta dos fundos aberta para ela ir às [festas de blues em] Ladbroke Grove, porque minha avó definitivamente não permitiria
que ela fosse! E, na manhã seguinte, batendo na porta: ‘É hora da igreja’.”
Mais tarde, na mesma entrevista, Olusoga comenta: “A produção dos filmes e o conteúdo dizem: ‘Aqui está a criatividade negra, aqui está o que podemos fazer, aqui está o que podemos criar’. Adorei a duração que você dedicou em Lovers Rock à transformação de uma casa normal de Londres em uma festa de blues – a retirada dos móveis e a construção do sistema de som. Aqui estão pessoas negras fazendo algo por si mesmas, pessoas que não são desejadas em nenhum outro lugar.”
Ao que McQueen responde: “Para mim, tratava-se de um ritual. O processo é tão importante quanto o resultado final. Para te levar a essa jornada que chega a um ponto em que transcende, mesmo além das pessoas na sala. Torna-se culto. Algumas pessoas dizem que foi o Espírito Santo ou algo assim, mas sabe, isso aconteceu. Quando eu estava filmando [as cenas de dança em Lovers Rock], aquilo era de verdade. Eu fui convidado para aquela situação. Foi uma honra estar lá. Como artista, você deseja ser convidado, e foi isso que aconteceu. Eu nunca havia experimentado isso antes.”
[Íntegra da entrevista, em inglês: bit.ly/mangrovesm]
Cinema poços-caldense: estreias
Small Axe: Red, White & Blue
Steve McQueen | Reino Unido, EUA | 2020, 81’, DCP (Turbine Studios)
Depois de ver seu pai ser agredido por policiais, um jovem negro é levado a entrar para a polícia, com a esperança de mudar as atitudes racistas desde dentro. Imediatamente ele se depara com a desaprovação de seu pai e com o racismo nas fileiras policiais.
“Red, White & Blue foi uma história muito difícil de filmar, porque eu não conseguia entender por que um homem negro [o personagem real Leroy Logan, interpretado por John Boyega] queria ser policial nos anos 1980. [...] Quando Boyega (Leroy) vê seu pai ser espancado pela polícia e se junta à polícia para mudar a situação por dentro... É uma atitude bastante heroica. Mas ele não pode porque há um teto de vidro”, comenta Steve McQueen.
[Depoimento extraído de entrevista de McQueen a David Olusoga para a Sight and Sound, em inglês: bit.ly/mangrovesm]
A Lei Paulo Gustavo, sancionada em 2022, é uma iniciativa do governo brasileiro voltada para a promoção e o fortalecimento do setor cultural, que visa a apoiar ações que estimulem a produção artística e cultural em todo o país, priorizando a democratização do acesso à cultura e a valorização de diversas vozes e expressões.
Em Poços de Caldas, foram aprovadas 88 propostas nos editais da Lei Paulo Gustavo, incluindo 24 no Edital 1, voltado ao setor audiovisual. Dentre essas, destacam-se dez propostas de produção audiovisual, uma de apoio a salas de cinema, seis ações de cinema itinerante e sete iniciativas de formação. Junto às iniciativas viabilizadas, está a produção de 10 filmes, entre curtas, médias e longas-metragens com temáticas diversas.
O Cinema do IMS Poços celebra a chegada dessas obras ao circuito com a exibição dos filmes e conversas com as respectivas equipes.
Entrada gratuita. Distribuição de senhas 60 minutos antes da exibição. Limite de uma senha por pessoa. Sujeito à lotação da sala.
Lua vermelha
Beatriz Castro | Brasil | 2024, 16’, DCP (Produção do filme)
Lua vermelha é um filme contemplativo e experimental, em que acompanhamos Maya em uma jornada espiritual guiada por sonhos enigmáticos. Envolta nesse mistério, ela se conecta ao sagrado feminino por meio dos ciclos lunares. Lua vermelha é uma história de cura e reconexão com a antiga força feminina, representada por arquétipos.
Este filme será exibido junto a Adorei as almas.
Adorei as almas
Gabriela Acerbi Pereira e Robson Américo | Brasil | 2024, 71’, DCP (Produção do filme)
O filme registra e discute a presença de pessoas africanas na formação da cidade de Poços de Caldas, principalmente ao longo do século XIX. A obra documental e experimental baseia-se nas narrativas de vida, nas práticas culturais, espirituais, familiares e na pesquisa acadêmica a partir de documentações arquivísticas encontradas na região. A proposta busca apresentar informações sócio-históricas inéditas ao público de maneira acessível e sensível, estabelecendo uma conexão entre Poços de Caldas, Caldas e as propriedades rurais anteriores, onde a população negra habitava e trabalhava. “Território”; “ancestralidade”; “memória”, “espiritualidade e “antepassados” são conceitos centrais a este trabalho.
Este filme será exibido junto a Lua vermelha
Puérpera
Marcelo Leme | Brasil | 2024, 15’, DCP (Produção do filme)
Após se mudar para uma nova casa, uma jovem mãe enfrenta os desafios do puerpério, enquanto ruídos perturbadores da bebê transformam sua ansiedade em um pesadelo crescente, colocando em dúvida sua sanidade e segurança dentro do próprio lar.
Este filme será exibido junto a SoulSync
SoulSync
Bruno Benetti | Brasil | 2024, 31’, DCP (Produção do filme)
Lisa e Raquel, mãe e filha, utilizam um aplicativo chamado SoulSync para reunir memórias do falecido Anderson, um respeitado pastor. O que deveria ser uma homenagem singela acaba revelando segredos inesperados e perturbadores sobre a vida de Anderson. O filme explora os limites da fé, da moralidade e a influência da tecnologia nas nossas vidas mais íntimas.
Este filme será exibido junto a Puérpera.
Cólera
Euler Santi Matos | Brasil | 2024, 28’, DCP (Produção do filme)
O desaparecimento de uma jovem leva a uma série de eventos que revelam a hipocrisia, a contradição e as sombras ocultas contidas na realidade dos coachs e pregadores da Teologia da Prosperidade, em uma mescla de pesadelo e realidade. Aqui, nada é o que parece.
Este filme será exibido junto a Mobília
Mobília
Well Bravo | Brasil | 2024, 23’, DCP (Produção do filme)
Um apartamento. Energias plasmadas naquele ambiente reverberam e influenciam o relacionamento de Júlia e Caio.
Este filme será exibido junto a Cólera.
Força da terra: identidade, território e memória
Évila dos Anjos | Brasil | 2024, 77’, DCP (Produção do filme)
Documentário que narra a vida de três mulheres indígenas de diferentes etnias no Brasil, Sol Terena, Tammy Tupinambá e Maria Flor Guerreira. Cada uma compartilha narrativas de enfrentamento em contexto urbano, processos de retomada de identidade, luta pela preservação da cultura, dos direitos e da terra. Elas nos conduzem a um profundo mergulho na luta por reconhecimento e pertencimento, além de propor uma reflexão sobre a relação íntima entre guiança e memória.
Um testemunho da força e da coragem dessas mulheres e de suas vozes em um cenário de resistência e transformação.
Este filme será exibido junto a Firmamento.
Firmamento
Dani Alvisi | Brasil | 2024, 28’, DCP (Produção do filme)
Um documentário em torno das experiências de religiosidade de integrantes de ternos de congos da cidade de Poços de Caldas, através de tradições e rituais realizados em terreiros de umbanda e candomblé no mês de maio de cada ano, durante as festividades de São Benedito. Firmar significa fixar-se, adquirir estabilidade. Fazer uma firmeza nada mais é do que isso mesmo: fixar energias benéficas e protetoras para o grupo. Os rituais de firmamento são diversos, e neles são utilizados vários tipos de elementos, como velas, pedras, líquidos, flores, fitas, incensos, fumos, guias de contas. A geometria utilizada para ativar as firmezas (triângulo, círculo, cruz) também é importante, pois ativa mistérios da criação e guia os grupos em suas ações coletivas de devoção a São Benedito.
Sem compromisso de traduzir ou explicar essas manifestações, Firmamento tem sua narrativa centrada nas experiências de fé, individuais e coletivas, que identificam cada grupo na sua essência e historicidade. Experiências que se manifestam no espiritual, na beleza do corpo como meio de comunicação com o mundo visível e invisível, e através do terreiro, numa mediação entre o sagrado, a arte e a cultura.
Este filme será exibido junto a Força da terra: identidade, território e memória
Dance!
Anderson Almeida | Brasil | 2024, 3’, DCP (Produção do filme)
Dance! reverencia o breaking e o hip hop.
Este filme será exibido junto a Arte nascente: narrativas da arte e cultura em Poços de Caldas.
Arte nascente: narrativas da arte e cultura em Poços de Caldas
Retratar-te | Brasil | 2024, 60’, DCP (Produção do filme)
Arte nascente é inspirado na experiência
Retratar-te, vivenciada em 2022, pelas histórias de quintal e escuta das narrativas dos artistas locais que se entrelaçam nos encontros, referências e possibilidades de construir junto. Como a água que vem dos lençóis à tona com a força de quem nasce da terra, Poços se transforma – da cidade das águas à cidade das artes – em potência pelo impacto de cura e transformação da arte.
Este filme será exibido junto a Dance!.
Instituto Moreira Salles
Cinema
Curador
Kleber Mendonça Filho
Programadora
Marcia Vaz
Programador adjunto
Thiago Gallego
Produtora de programação
Quesia do Carmo
Assistente de programação
Lucas Gonçalves de Souza
Projeção
Fagner Andrades e Gilmar Tavares
Revista de Cinema IMS
Produção de textos e edição
Thiago Gallego e Marcia Vaz
Diagramação
Marcela Souza e Taiane Brito
Revisão
Flávio Cintra do Amaral
Os filmes de novembro
O programa do mês tem o apoio da Secretaria Municipal de Cultura de Poços de Caldas, da Turbine Studios, das distribuidoras
Descoloniza Filmes, Elo Studios, Filmes do Estação, Filmicca, Malute Filmes, Pandora Filmes, Warner Bros.
Agradecemos a Abbey Lustgarten, Ana Carolina, Anderson Almeida, Ashley Clark, Beatriz Castro, Bruno Benetti, Carolina Gobatto, Chiara Carvalho, Charlotte Andrews, Chloe Huybens, Cíntia Murta, Dani Alvisi, Débora de Oliveira Romano, Euler Santi, Francisco della Marra, Gabriela Acerbi, Grace Souza, Graci Pinto, Heitor Augusto, Julia Martins, Leidy Nara, Marcelo Leme, Mariana Alves, Mariana Queen Nwabasili, Michael Gibbons, Otávio Augusto da Anunciação, Robson Américo, Sérgio Fernandes e Well Bravo.
Venda de ingressos
Ingressos à venda pelo site ingresso.com e na bilheteria do centro cultural, para sessões do mesmo dia. No ingresso.com, a venda é mensal, e os ingressos são liberados no primeiro dia do mês.
Ingressos e senhas sujeitos à lotação da sala. Capacidade da sala: 85 lugares.
Meia-entrada
Histórias ocupadas: Steve McQueen apoio
Cinema poços-caldense: estreias
Com apresentação de documentos comprobatórios para professores da rede pública e privada, estudantes, crianças de 3 a 12 anos, pessoas com deficiência, portadores de Identidade Jovem, maiores de 60 anos e titulares do cartão Itaú (crédito ou débito).
Devolução de ingressos
Em casos de cancelamento de sessões por problemas técnicos e por falta de energia elétrica, os ingressos serão devolvidos. A devolução de entradas adquiridas pelo ingresso.com será feita pelo site Programa sujeito a alterações. Eventuais mudanças serão informadas no site ims.com.br e no Instagram @imoreirasalles. Confira as classificações indicativas no site do IMS.
Maputo Nakuzandza, de Ariadine Zampaulo (Brasil, Moçambique | 2022, 71’, DCP)
Visitação: terça a sexta, das 13h às 19h. Sábados e domingos, das 9h às 19h. Entrada gratuita.
Sessões de cinema: Quintas e sextas, a partir das 19h. Sábados e domingos, a partir das 16h.
Rua Teresópolis, 90 CEP 37701-058
Cristiano OsórioPoços de Caldas ims.pc@ims.com.br
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