Sergio Larrain: um retângulo na mão | Jornal

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Sergio

Larrain um retângulo na mão “Uma boa imagem nasce de um estado de graça”

Ilha de Chiloé, Chile, 1954-1955 © Sergio Larrain/Magnum Photos

vagabundagens Agnès Sire

Fotógrafo pelo gosto da vadiagem, pelo desejo profundo de estar no mundo e na pureza do gesto, o chileno Sergio Larrain, apesar de tudo, passou a maior parte de sua existência em retiro, praticando meditação, ioga, escrita e desenho. Deixou uma obra brilhante, uma espécie de meteorito cujo trajeto ele teve a sabedoria de interromper no momento em que concluiu que já não lhe proporcionava a liberdade esperada. Depois de muito tempo em busca de si próprio, foi num despojamento voluntário que o homem que também aspirou a ser escritor finalmente se encontrou. Pertencente a uma família da alta burguesia chilena, desde cedo Sergio Larrain (1931-2012) se esquivou à vida mundana praticada na casa do pai, um arquiteto e colecionador renomado. Apesar das relações difíceis entre os dois, o filho reconheceria mais tarde que, graças à riqueza da biblioteca familiar, pôde educar o olho e ter acesso à fotografia.


Rua principal de Corleone, Sicília, Itália, 1959 © Sergio Larrain/Magnum Photos

As crianças abandonadas de Santiago seriam objeto do primeiro trabalho consequente do aprendiz de fotógrafo, rebelde a todo tipo de integração social. Essas crianças são ao mesmo tempo o espelho de sua personalidade e a expressão de seu desejo de viver em uma sociedade diferente. Decidido a escapar de seu meio social, em 1958 Larrain conseguiu uma bolsa do British Council para trabalhar em Londres, seguindo os passos de Bill Brandt, que o chileno admirava. O inverno frio e enevoado da antiga capital de um império extinto representava, para o fotógrafo chileno, uma espécie de desolação dominada pelo poder do dinheiro. Foi durante essa viagem pela Europa que suas aspirações se concretizaram: Cartier-Bresson, ao ver seu trabalho, convidou-o a tornar-se membro da cooperativa Magnum. Em pouco tempo, porém, Larrain passou a desconfiar dos malabarismos necessários para encontrar temas que as revistas quisessem publicar. Viajou com frequência, a partir de Paris, fazendo reportagens para a agência; depois tomou rapidamente a decisão de voltar para o Chile e lá permanecer, afastando-se, com isso, do comércio das imagens. Valparaíso, cidade que já havia fotografado muito, ganharia toda a sua atenção. Ao longo dos anos, Larrain produziria na cidade um ensaio fotográfico fundamental, que marcaria seus pares de diversas gerações. 2

Esta exposição refaz seu percurso de forma bastante cronológica: das crianças errantes aos satoris e desenhos que o ocuparam ao longo de quase 30 anos. Os termos que utiliza para descrever o estado de graça no qual é indispensável encontrar-se para “acolher” uma boa imagem são os do misticismo e − por que não? − do espiritismo, como se as imagens já habitassem o cosmos, e o fotógrafo tivesse uma função de médium. Larrain se identifica com a pedra assim como se identifica com as crianças – as das ruas, que perambulam como anjos surgidos de lugar nenhum. Seu olhar magnético decupa fragmentos de realidade; ele não teme o que é externo ao campo, o tempo ainda por vir, as diagonais audaciosas, o impreciso, o sol batido ou a escuridão. Suas imagens não são fechadas; aliás, os personagens muitas vezes saem delas resistindo, como ele, à reclusão. Depois de um percurso sinuoso, de rupturas penosas, a glória ao alcance da mão, Sergio Larrain deitou raízes em uma terra acolhedora para transmitir o que aprendeu, escrever e multiplicar seus alertas sobre a destruição do planeta Terra pelas mãos do homem. Que suas raízes produzam nos outros a consciência que ele invocava com seus votos de vagabundo pacificado. Tradução de Heloisa Jahn


Passagem Bavestrello, Valparaíso, Chile, 1952 Š Sergio Larrain/Magnum Photos


a aventura do olhar Sergio Larrain

TATI, Primeiro de tudo, é ter uma máquina que lhe agrade, a que mais lhe agrade. Porque se trata de estar contente com o corpo, com o que se tem nas mãos. O instrumento é capital para quem exerce um ofício. E que seja o mínimo, o indispensável, e nada mais. Segundo, ter um ampliador a seu gosto, o mais atraente e simples possível, de 35 mm, o menor que a Leitz fabrica é o melhor. Dura a vida toda. A Leitz tem um escritório em Santiago, dá para importar. Depois, é partir para a aventura, como um veleiro, soltar as velas, ir a Valparaíso ou a Chiloé, ou pelas ruas, o dia todo, vagar e vagar por lugares desconhecidos, e sentar-se debaixo de uma árvore quando estiver cansado, comprar uma banana ou uns pães… E, então, pegar um trem – ir para o lugar que der na telha e olhar, desenhar também, e olhar, sair do mundo conhecido, entrar no que você nunca viu, deixar-se levar pelo gosto, ir muito a um e a outro lugar, por onde der na telha… Pouco a pouco, você vai encontrando coisas. E vêm imagens, feito aparições, fotografe-as… De volta para casa, revele, com capricho, no laboratório, como uma cerimônia, tire cópias e comece a olhar para o que você pescou, todos os peixes… Cole com durex na parede, faça cópias em folhas de tamanho postal e olhe para elas. Comece a brincar com os Ls, a testar cortes, a enquadrar, e vá aprendendo composição, geometria, enquadre perfeitamente, usando Ls. E amplie o que enquadrou, e deixe na parede assim. Para ir observando. Vá olhando. Quando tiver certeza de que uma foto é ruim, para a lata de lixo! Na mesma hora. E a melhor você sobe um pouco mais na parede; no final, guarde as boas, e só. Guardar o medíocre faz você estancar no medíocre. É o top, e nada mais, o que se guarda. Jogue o resto fora, porque a gente carrega na psique tudo o que conserva. Depois, faça ginástica, distraia-se com outras coisas, e não se preocupe mais. Comece a olhar o trabalho de outros fotógrafos e a buscar o que é bom em tudo o que encontrar, livros, revistas etc… Pegue o melhor, se puder recortar, pegue o que é bom e vá colando na parede, ao lado do seu trabalho. Se não puder recortar, abra o livro ou a revista na página da coisa boa e deixe aberto, em exposição. Deixe por semanas, meses, enquanto ele te disser alguma coisa – a gente demora muito para enxergar. Mas, pouco a pouco, o segredo vai se revelando, e você vai vendo o que é bom e a profundidade de cada coisa. 4

Continue vivendo sossegado, desenhe um pouco. Saia para passear… E nunca se force a sair para fotografar! Porque você perde a poesia, a vida que existe nisso. Você adoece. É como forçar o amor ou a amizade; não se pode. Quando renascer, pode fazer outra viagem, outro vagabundear. Em Puerto Aguirre, você pode descer o rio Baker a cavalo, ir até o alto das montanhas, partindo de Aisén. Valparaíso é sempre uma maravilha, é se perder na magia, passar alguns dias dando voltas pelos morros e ruas, e à noite dormindo em algum lugar num saco de dormir… E muito envolvido pela realidade, como se nadasse debaixo d’água, nada te distrai, nada convencional. Você se deixa levar pelas alpercatas, devagarinho, como se estivesse bêbado, pelo gosto de olhar… Cantarolando. E o que for aparecendo, vá fotografando, já com mais cuidado. Você já aprendeu um pouco a compor e a cortar, já faz isso com a máquina… E assim se prossegue, se enche de peixes o portfólio, e você volta para casa. E revela etc. Aprenda foco – diafragma – primeiro plano – saturação – velocidades etc… Aprenda a brincar com a máquina e com suas possibilidades. E vá juntando poesia, a sua e a dos outros, pegue tudo o que encontrar de bom nos outros. Faça uma coleção de coisas ótimas, um museuzinho numa pasta. Siga o seu gosto e mais nada, acredite apenas no seu gosto. Você é a vida, e a vida é a que você escolhe. O que você não gosta, não veja, não serve. Você é o único critério, mas veja as coisas de todo mundo. Vá aprendendo… Quando tiver algumas fotos realmente boas, amplie e faça uma pequena exposição – ou um livrinho. Mande encadernar. E, com isso, vá firmando um chão. Ao mostrá-las, você se dá conta do que são, ao vê-las diante dos outros – é aí que você as sente. Fazer uma exposição é dar algo, é como dar de comer, é bom para os outros mostrar-lhes algo feito com trabalho e gosto. Não é se exibir, faça bem-feito, é saudável para todos. E para você faz bem, porque você vai se testando. Bom, com isso você já tem com o que começar. É muita vagabundagem, ficar sentado debaixo de uma árvore, num lugar qualquer… É andar sozinho pelo universo, e você de repente começa a olhar. O mundo convencional põe um biombo diante de você. É preciso sair de trás dele durante o período de fotografar. Tchau. Depois te escrevo mais. Encontrar o que a gente ama de verdade é a chave de tudo. Se você encontrar com quem vagabundear, que goste disso tanto quanto você, não hesite, é bom também.

Sergio Larrain enviou esta carta a seu sobrinho, Sebastián Donoso Larrain, em 1982, do exílio no norte do Chile. Tradução de Eduardo Brandão, publicada originalmente na revista ZUM #5.


Trafalgar Square, Londres, Inglaterra, 1958-1959 Š Sergio Larrain/Magnum Photos


sergio larrain na revista o cruzeiro internacional Miguel Del Castillo

Ao trazer a retrospectiva de Sergio Larrain, organizada por Agnès Sire, para seus centros culturais do Rio de Janeiro e de São Paulo, o Instituto Moreira Salles recupera também a passagem do fotógrafo chileno pela revista O Cruzeiro Internacional, edição em espanhol da publicação ilustrada mais lida no Brasil de meados do século xx. Após seu lançamento em 1928 como revista semanal de variedades, O Cruzeiro incorporou, na década de 1940, “o modelo da fotorreportagem, tornando-se pioneira na implantação do fotojornalismo no Brasil”.1 A nova forma funcionou bem e despertou surpreendente interesse em alguns outros países da América Latina, como Argentina, Chile e México. Na esteira do sucesso, Assis Chateaubriand, dono dos Diários Associados, encampou o projeto de lançar uma versão internacional, visando a concorrer com a Life na região. Contudo, como escreveu Constantino Paleólogo, que participou das conversas e pesquisas prévias à criação da edição internacional, da qual se tornaria chefe de redação, “o que se sabia, naquele momento, da América Espanhola?”. A pergunta, que consta em seu livro sobre a experiência com a publicação, é retórica: Nada. O desconhecimento dos jornalistas era tão profundo quanto o de qualquer brasileiro médio. Havíamos estudado as civilizações antigas, conhecíamos os principais países da Europa com certo luxo de pormenores, podíamos analisar detidamente a

18 países. Circularia quinzenalmente até 1965, quando fechou por não se pagar e por não conseguir atrair mais anunciantes. Foi apontada até mesmo como um dos grandes motivos da falência de O Cruzeiro. Era “uma publicação latino-americana para os latino-americanos”.4 Embora com direção brasileira, foram contratados diversos repórteres e fotógrafos oriundos dos países vizinhos, e havia uma preocupação em adaptar os textos a um espanhol “comum”, compreensível em todos os países aos quais chegava.5 Algumas matérias eram traduzidas, porém muitas delas eram produzidas exclusivamente para a edição internacional. Aos renomados fotógrafos que colaboravam para a versão nacional, como parte da equipe ou contratados por matéria – figuras como José Medeiros, Pierre Verger, Ed Keffel, Henri Ballot, Flávio Damm e Luciano Carneiro –, somaram-se novos nomes internacionais, mais ou menos conhecidos, conformando um conjunto que mereceria estudo mais detido. Um desses colaboradores era o chileno Sergio Larrain, que realizou pelo menos 12 reportagens para a publicação, sobretudo entre 1957 e 1960. Sua atuação na revista se iniciou por intermédio do dramaturgo e jornalista Santiago del Campo, cuja casa, em Santiago, era “local de encontro para extenso grupo de jovens criadores, incluindo os escritores Jorge Edwards, Alejandro Jodorowsky, Enrique Lihn, Enrique Lafourcade, Alberto Rubio e Claudio Giaconi, bem como os artistas Carmen Silva e Carlos Faz”, e, claro, Sergio Larrain.6 Del Campo e Larrain colaborariam em pelo menos cinco reportagens. Se a participação pontual de Larrain na revista não marcou época como a dos outros fotógrafos mencionados, suas contribuições têm a preciosidade revelada quando relacionadas a sua breve e explosiva obra fotográfica. Esse foi, afinal, seu primeiro emprego como fotógrafo freelance; são seus anos de formação, quando criou o gosto pelo fotojornalismo, que o levaria, mais tarde, a se aproximar de Henri Cartier-Bresson e, em seguida, a se associar à agência Magnum.7

evolução da sociedade norte-americana desde os seus primórdios, mas dos nossos irmãos latinos, dos nossos

IMAGEM, TEXTOS DA IMAGEM

companheiros de raça do Novo Mundo, tínhamos apenas

Há nas fotos que Larrain publicou em O Cruzeiro Internacional todos os elementos que definem, por assim dizer, seu “estilo”, marcado por composições nada óbvias: a forte presença do chão, ocupando muitas vezes a maior parte da composição, fruto do ponto de vista de cima para baixo, que parecia ser seu predileto; as figuras desfocadas em primeiro plano, fazendo as vezes de observador da foto, enquanto a cena principal ou paisagem se desdobra ao fundo; os horizontes inclinados; as pessoas em movimento, que ele flagrava tão bem. As fotos em cor são um bônus para quem já tem familiaridade com sua obra: pouquíssimo vistas, aparecem em diversas matérias sobre lugares como Valparaíso, Chiloé, Potosí e a Patagônia chilena. Contudo, ainda que traga essas características, todas fruto de seu olhar vivaz e despreocupado das convenções, sua obra não se resume a elas e

informações vagas, imprecisas e sempre confusas. Não foi difícil concluir que éramos tão ignorados por eles quanto os ignorávamos.2

O próprio Chateaubriand, no editorial do primeiro número, reconhecia a dificuldade da empreitada: “O Cruzeiro em espanhol é um desafio ao deserto que nos separa uns aos outros na América Latina. Poderemos combater, hoje, as consequências desse deserto?”. Assim, com uma velada vontade imperialista3 e uma busca por compreender esses povos vizinhos e dar-se a conhecer a eles, ele lança em 1957 O Cruzeiro Internacional, que chega a ter 307 mil exemplares impressos por edição, distribuídos em praticamente toda a América Latina, incluindo Cuba e algumas partes dos Estados Unidos, em um total de 6


As duas primeiras duplas de páginas da matéria “La ciudad colgada en los cerros”, para O Cruzeiro Internacional, com texto e fotos de Sergio Larrain (ano III, n. 1, 01.01.1959, pp. 92-97). Acervo Instituto Moreira Salles © Jornal Estado de Minas

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Aberturas de fotorreportagens de Larrain para O Cruzeiro Internacional: “El pie frio de America” (texto de Santiago del Campo; ano II, n. 21, 16.11.1958, pp. 38-45); “Magallanes: donde el sur se hace nórdico” (texto de Santiago del Campo; ano II, n. 20, 01.11.1958, pp. 70-73). Acervo Biblioteca Mário de Andrade © Jornal Estado de Minas

“El marco es una ventana” (texto de Larrain; ano II, n. 23, 16.12.1958, pp. 80-83); “Chiloé, isla de leyendas” (texto de Santiago del Campo; ano II, n. 22, 01.12.1958, pp. 48-53). Acervo Biblioteca Mário de Andrade © Jornal Estado de Minas

“El Atomium gana una guerra” (texto de Larrain; ano III, n. 2, 16.01.1959, pp. 20-25); “Sudafrica reina en el mundo” (texto de Larrain; ano III, n. 6, 16.03.1959, pp. 48-51). Acervo Instituto Moreira Salles © Jornal Estado de Minas

“El mercado de las pulgas” (texto de Larrain; ano III, n. 7, 01.04.1959, pp. 76-81); e “Pablo Neruda y el mar” (texto de Santiago del Campo; ano III, n. 8, 16.04.1959, pp. 52-55). Acervo Biblioteca Mário de Andrade © Jornal Estado de Minas


segue, de alguma maneira, nos escapando. Como resumiu o escritor Roberto Bolaño, seu conterrâneo: “Parece o fotógrafo acidental. Parece o fotógrafo brincalhão. Parece o menino chileno solto, livre de amarras. Parece muitas coisas que não é. Em alguns momentos, penso que ele busca a harmonia, ou um substituto da harmonia: o instante em que tudo se detém e os homens e as coisas se assemelham.”8 Parece, neste nosso recorte, um fotógrafo em formação, que acidentalmente se tornou fotojornalista, produziu uma obra magnífica em pouquíssimos anos e depois, no auge, se retirou. É curioso pensar que, mesmo hoje, muitas dessas marcas das fotos de Larrain “desqualificariam” um fotojornalista, no entendimento de alguns veículos; a redação de O Cruzeiro Internacional, entretanto, parecia não se incomodar, aceitando e publicando seu trabalho dessa maneira. Em reportagem que poderia ser extremamente prosaica e sem graça, sobre a visita a Londres da sul-africana Penelope Coelen,9 miss Mundo de 1958, ele até realiza um retrato mais tradicional, em close-up, da modelo. A imagem de maior destaque, porém, é outra, em que ela aparece agachada no meio da cena, cercada por transeuntes, um menino curioso olhando para a câmera e pombos ciscando e levantando voo. No texto, Larrain escreve que, naquele dia, “a fleuma britânica afrouxou o nó da gravata para saudar a nova rainha da beleza, [...] que chegou radiante como o sol do sul”. E aqui aparece outro aspecto interessante dessas suas contribuições: em diversas matérias, o fotógrafo também ficava responsável pelo texto, procedimento que já era por vezes adotado em O Cruzeiro.10 Com a palavra escrita, Larrain, que dizia também querer ser escritor, mostra aqui e ali suas percepções poéticas e seu olhar marginal para a vida. Além disso, diversas vezes comenta as próprias fotos, extraindo delas sentidos para a reportagem. Enviado à Feira de Bruxelas, a primeira grande “exposição internacional” a ocorrer depois da Segunda Guerra, abre o seu texto comparando-a a uma “miniatura de um mundo sem guerra”.11 A matéria é sobre o Atomium, construção monumental em forma de átomo feita para a feira, que, no entanto, só aparece na primeira e na última imagens, e ainda assim visto de ângulos inusitados. As outras fotografias são sobretudo instantâneos dos visitantes e “refletem o espírito da Feira de Bruxelas em seu último dia. O público permaneceu nela até os momentos finais, como se quisesse perpetuar aquela terra de ninguém”. Como em toda a sua obra, o destaque para o ser humano é marcante, mesmo em reportagens sobre transformações urbanas na Europa e na América do Sul – tema que, por sinal, era recorrente na revista.12 Há nas fotos de Larrain uma vontade de humanizar as cidades que, ademais, surge discretamente em meio a textos mais informativos. Um mercado de pulgas que logo deixará de existir é o pretexto para falar de Paris, cidade que “está sempre se reformando”.13 Nas imagens, as pessoas se confundem com os objetos, as esculturas e velharias – como se elas também

fossem passar por uma renovação ou deixar de existir. Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, é uma “antiga cidade que agora começa a despertar do sono” e que vê o progresso chegar, assim como, na imagem que abre a matéria, as duas figuras em primeiro plano observam a construção da linha do trem e a locomotiva já posta sobre os trilhos.14 O ponto alto talvez seja a matéria sobre Valparaíso, pela relevância do tema em relação a sua obra, pela montagem das páginas na revista e pelo texto.15 Nessa cidade da costa chilena, grande musa do fotógrafo, ele faria, entre 1952, quando tinha apenas 21 anos, e os primeiros anos da década seguinte, sua maior e mais conhecida série de fotografias. São imagens que aparecem em El rectángulo en la mano (1963), pequeno e precioso livro de artista publicado em uma coleção chamada Cadernos Brasileiros, realizada pela embaixada brasileira no Chile e editada pelo poeta Thiago de Mello; Chili (Éditions Rencontre, 1968), em que ilustra esse volume de uma coleção de viagem; e no tardio Valparaiso (Hazan, 1991), organizado por Agnès Sire. A reportagem, que ganhou o sugestivo título de “A cidade pendurada nos morros”, foi publicada em O Cruzeiro Internacional em 1959, sendo, portanto, anterior à matéria de mesmo tema publicada na revista suíça Du Atlantis, sete anos mais tarde, com texto de Pablo Neruda. O poeta chileno, amigo do pai de Larrain, fora fotografado por ele anos antes para O Cruzeiro Internacional, em sua casa de Isla Negra.16 Na página dupla que abre essa matéria, em duas fotos o poeta contempla o horizonte do mar – através do binóculo, em uma, e munido de seu cachimbo, na outra. Anos mais tarde, Neruda encomendaria ao fotógrafo imagens para Una casa en la arena (Lumen, 1966), livro com um texto do poeta sobre a própria residência costeira. O texto da matéria sobre Valparaíso, assinado pelo fotógrafo, foi dividido em pequenos blocos que funcionam como longas legendas – ou, nas palavras dele, “epígrafes” – para as imagens, a que se referem diretamente. Sobre a primeira foto, que se estende por duas páginas, diz: Esta fotografia mereceria um texto melhor e mais destacado do que esta simples epígrafe. Eis o cais de pedras, onde as pombas parecem esperar pelas mãos generosas que lhes oferecerão grãos de milho dourados. O cenário é composto por um banco e dois personagens que dramatizam a velhice; as lâmpadas dependuradas dos postes de concreto e o panorama de gruas na penumbra do fog ao fundo fazem lembrar o aspecto do amanhecer em Londres. Contudo, este instantâneo foi tomado a milhares de milhas da capital londrina. É apenas um aspecto do porto de Valparaíso, sacada chilena para o Pacífico, cidade que também tem amanheceres claros e meios-dias plenos de sol.

A seguir vem uma página dupla com um jogo de imagens inteligentíssimo.17 À esquerda, uma ladeira de pedras rústicas com construções mais antigas, em 9


Abertura de “Santa Cruz de la Sierra”, matéria para O Cruzeiro Internacional com texto e fotos de Larrain (ano III, n. 5, 01.03.1959, pp. 72-77). Acervo Instituto Moreira Salles © Jornal Estado de Minas

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sentido descendente; à direita, outra ladeira, de pavimento mais uniforme, que, por sua vez, sobe e é cercada de prédios modernos. A legenda diz, de um lado, “aqui, sobem pela encosta” e, do outro, “aqui, pelos elevadores”. Na “epígrafe”, lê-se: Em contraste com o passado, Valparaíso se contagiou com a febre das dimensões verticais. Outeiros e arranha-céus disputam as alturas na cidade, enquanto os Andes, atrás deles, contemplam as audaciosas empreitadas do homem [...]. O lema “renovar-se ou perecer” não vale para Valparaíso; com ou sem os soberbos edifícios, a cidade sempre foi e sempre será uma joia cuja beleza é inata [...]. Valparaíso é bela de verdade, e por direito próprio.

Passando a página, vemos outra foto marítima, uma a exibir uma estátua e, à direita, outra, com uma imagem famosa do bordel e bar Los Siete Espejos, no qual Larrain faria uma detida série de fotografias. “Valparaíso é um quadro saído da paleta de um pintor ingênuo”, escreve. Como se não bastasse, termina a matéria com uma aberta declaração de amor ao lugar: “Não é apenas uma das cidades mais belas do Chile e mais interessantes da América Latina; é também o mais belo poema entre o oceano Pacífico e os Andes”. Muito ainda se poderia falar de suas fotorreportagens: das crianças correndo, desfocadas e eufóricas, na ilha de Chiloé, outro local que parece mágico para Larrain;18 da procissão da Virgem de Carmen, em que a luz das velas ilumina e revela os rostos de fiéis e, em seguida, em uma tomada de cima, transforma a procissão de pessoas em um grande e belo borrão;19 do movimento das ovelhas saltitantes e dos cavalos correndo em fila, na reportagem sobre Magallanes;20 das carcaças enferrujadas de barcos que se misturam à enferrujada paisagem da Patagônia chilena;21 das lhamas sentadas no meio da rua em Potosí e também de pé, encarando o fotógrafo.22 Há, certamente, outras conexões prováveis entre essas fotos e a vida e a obra de Sergio Larrain que morreram com ele e com outros envolvidos nessas histórias ou na própria O Cruzeiro Internacional. Em um pequeno perfil da pintora chilena Carmen Silva,23 com quem tinha amizade, Larrain arrisca breve crítica de arte: “Sua pintura é como sua vida, vigorosa, vital e torturada, e lembra Van Gogh”. O mesmo poderia, talvez, ser dito da vida do fotógrafo. Em anotação sobre o dia a dia da artista, Larrain deixa entrever seus próprios desejos latentes, que apontam para a reclusão na qual mergulharia mais tarde ao optar pela via contemplativa: “Enxergamos nela algo que nós mesmos desejamos: passar o tempo sem horários estabelecidos, gozar das coisas simples, como o sol”. Nas fotos, a pintora, como Neruda, está quase sempre contemplando algo, o horizonte do mar visto de uma janela, os estudos a lápis para pinturas ou os filhos brincando. Na última imagem da matéria, a única em cores, Carmen encara diretamente a objetiva do fotógrafo; está sentada no chão, descalça. 12

1. costa, Helouise e burgi, Sergio. “Introdução”. In: costa, Helouise e burgi, Sergio (orgs.). As origens do fotojornalismo no Brasil: um olhar sobre O Cruzeiro, 1940-1960. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2012, p. 7. Para mais informações sobre a revista O Cruzeiro, ver esse catálogo. 2. paleólogo, Constantino. O Brasil na América Latina: uma experiência de jornalismo internacional. Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1960, p. 14. 3. Sobre isso, ver: meyrer, Marlise Regina. “O imaginário pan-americanista e O Cruzeiro Internacional (1957-1965)”. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 8, n. 17, jan./abr. 2016, pp. 154-179. “Em artigo publicado na edição comemorativa do primeiro aniversário de O Cruzeiro Internacional, Assis Chateaubriand escreveu: ‘[...] Nosso imperialismo não se choca com os vizinhos, é de uso doméstico, não dá medo de nada…’. A defesa explícita de um imperialismo brasileiro na América Latina, pelo proprietário da revista, e os discursos em prol da criação da edição internacional são esclarecedores acerca do modelo proposto, ou seja, a união hemisférica, sob a hegemonia econômica, política e cultural do Brasil em âmbito regional, e dos Estados Unidos em escala mundial.” 4. silva, Eugênio. “O Cruzeiro: por que acabou – depoimento”. Revista de Comunicação, ano 5, n. 20, 1989. 5. Ver o verbete da revista no site do cpdoc-fgv, disponível em: www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/cruzeiro-o. 6. quijada, Gonzalo Leiva. Sergio Larrain: biografía, estética, fotografía. Santiago: Metales Pesados, 2012 (e-book). 7. Em entrevista em abril de 1958, Larrain é apresentado como “colaborador de O Cruzeiro, mas tem o propósito de entrar para o grupo da Magnum”. Ibidem. 8. bolaño, Roberto. “Los personajes fatales”. In: bolaño, Roberto. Entre paréntesis. Barcelona: Anagrama, 2006, p. 260. 9. Larrain, Sergio. “Sudáfrica reina en el mundo”. O Cruzeiro Internacional, ano iii, n. 6, 16.03.1959, pp. 48-51. 10. Ver: costa, Helouise e burgi, Sergio (orgs.), op. cit., p. 37. 11. Larrain, Sergio. “El Atomium gana una guerra”. O Cruzeiro Internacional, ano iii, n. 2, 16.01.1959, pp. 20-25. 12. Ver: casadei, Eliza Bachega. “Las imágenes fotográficas de América Latina en O Cruzeiro Internacional”. Comunicación y Medios, Santiago, n. 29, 2014, pp. 37-51. “Havia, no projeto editorial de O Cruzeiro Internacional, uma intenção de mostrar que a cultura latino-americana estava em sintonia com as ideias de desenvolvimento econômico, material e cultural das civilizações de primeiro mundo. De modo que eram frequentes fotorreportagens que destacavam o crescimento urbano, industrial, científico e tecnológico da região. Nesse sentido, era comum encontrar fotos de indústrias, maquinário e laboratórios, que eram tidos como ícones de desenvolvimento e tecnologia.” 13. Larrain, Sergio. “El mercado de las pulgas”. O Cruzeiro Internacional, ano iii, n. 7, 01.04.1959, pp. 76-81. 14. Idem. “Santa Cruz de la Sierra”. O Cruzeiro Internacional, ano iii, n. 5, 01.03.1959, pp. 72-77. 15. Idem. “La ciudad colgada en los cerros”. O Cruzeiro Internacional, ano iii, n. 1, 01.01.1959, pp. 92-97. 16. Larrain, Sergio [fotos] e del campo, Santiago [texto]. “Pablo Neruda y el mar”. O Cruzeiro Internacional, ano iii, n. 8, 16.04.1959, pp. 52-55. 17. Segundo Gonzalo Leiva Quijada, Larrain se encarregou pessoalmente do leiaute dessa matéria. Ver: quijada, Gonzalo Leiva. “Lights in the Labyrinth”. In: sire, Agnès (org.). Sergio Larrain: Vagabond Photographer. Nova York: Aperture, 2013, p. 348. 18. Larrain, Sergio [fotos] e del campo, Santiago [texto]. “Chiloé, isla de leyendas”. O Cruzeiro Internacional, ano ii, n. 22, 01.12.1958, pp. 48-53. 19. Idem. “La tirana”. O Cruzeiro Internacional, ano i, n. 15, 01.11.1957, pp. 28-33. 20. Idem. “Magallanes: donde el sur se hace nórdico”. O Cruzeiro Internacional, ano ii, n. 20, 01.11.1958, pp. 70-73. 21. Idem. “El pie frío de América”. O Cruzeiro Internacional, ano ii, n. 21, 16.11.1958, pp. 38-45. 22. Larrain, Sergio [fotos]; tredinnick-abasto, Felipe [texto]. “Potosí”. O Cruzeiro Internacional, ano iv, n. 20, 16.10.1960, pp. 7-13. 23. Larrain, Sergio. “El marco es una ventana”. O Cruzeiro Internacional, ano ii, n. 23, 16.12.1958, pp. 80-83.


Dupla central da matéria “Chiloé, isla de leyendas” (texto de Santiago del Campo; ano II, n. 22, 01.12.1958, pp. 48-53). Acervo Biblioteca Mário de Andrade © Jornal Estado de Minas

Duas duplas da matéria “La tirana” (texto de Santiago del Campo; ano I, n. 15, 01.11.1957, pp. 28-33). Acervo Instituto Moreira Salles © Jornal Estado de Minas

Duas duplas da matéria “Potosí” (texto de Felipe Tredinnick-Abasto; ano IV, n. 20, 16.10.1960, pp. 7-13). Acervo Instituto Moreira Salles © Jornal Estado de Minas

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A diablada, ou dança dos demônios, Independencia, Bolívia, 1958. © Sergio Larrain/Magnum Photos


Ilha de Chiloé, Chile, 1957 © Sergio Larrain/Magnum Photos

Ocultamento e incompletude Jorge Schwartz

O mínimo que se pode dizer de Sergio Larrain é que ele seguiu de modo infatigável seu instinto de artista e de ser humano que busca respostas. O poeta e conterrâneo Pablo Neruda, seu amigo próximo, lhe deu o apelido de “fotógrafo vagabundo”, por enxergar nele uma espécie de flâneur da fotografia. Em uma das fotos mais surpreendentes de Larrain, quatro crianças ocupam um terço da parte superior do fotograma, três delas de costas. Foi tirada em 1957, na ilha de Chiloé, no sul do Chile. Muito intrigante, mais pelo que oculta do que pelo que revela, é uma imagem que faz com que o leitor seja levado a pensar num sentido a ser completado. Um leitor cúmplice (conforme o batizara o escritor argentino Julio Cortázar em

O jogo da amarelinha), convidado pelo fotógrafo a preencher os vazios imagéticos e semânticos decorrentes do inusitado corte feito pelo artista. Me atreveria a afirmar que Larrain foi um gênio do enquadramento. Só um olhar mais atento permite decifrar a horizontalidade predominante, cortada por um tenso fio vertical à direita do fotograma. Trata-se de uma linha de pesca. A descoberta é da ordem da revelação: as três figuras principais estão debruçadas numa viga de madeira, por certo uma doca, pescando num rio, ou mais provavelmente nas águas do oceano Pacífico. Estamos diante de uma imagem em que prevalece o ocultamento, que é a chave da atração. Pés, mãos e anzóis ocultam e ocupam o lugar dos rostos infantis. Uma perna direita está pendurada no ar, em paralelo com a linha. Só que, ao contrário da tensão do anzol, o menino da perna no ar parece estar dormindo, numa lassidão que contrasta com os outros três corpos que se ocupam da pesca. Nunca saberemos se o fotograma de 35 mm de sua Leica já tinha esse recorte desde o momento de fotografar ou se o enquadramento foi feito no processo da ampliação. Seria da ordem do excepcional o fotógrafo capturar a imagem da forma 15


como ela é apresentada, e não faz diferença sabermos se sofreu ou não cortes posteriores. Nos dois casos, o da captura espontânea ou o do recorte subsequente, a decisão de “empurrar” os meninos para cima, decepá-los pela cintura, destacar pernas e pés faz lembrar uma colagem cubista, em que os índices corporais fazem do fragmento a estética predominante. A incompletude dessa foto caminha em dois sentidos: no do corte e no da chamada ao leitor para completá-la. É uma foto decupada, um convite para que o leitor preencha os vazios semânticos: quem são essas crianças? Sem dúvida de baixo extrato social, eventualmente filhos de pescadores, que têm na pesca um elemento lúdico ou até mesmo uma fonte de alimentação. Uma curiosidade é que a parte inferior dos corpos constrói a parte superior da imagem. E o preto, que ocupa dois terços do espaço, transforma-se em suporte da viga, como se a mantivesse suspensa no ar. O preto, que poderia ser o “fundo” unidimensional da imagem, acaba tendo por função sustentar a parte superior. Sua densidade, única parte não realista da fotografia, confina a imagem na parte superior e tem a força de prensar os corpos decepados. Em vez de se conformar com uma paisagem natural marinha embaixo da viga de sustentação, criando uma perspectiva de horizonte infinito, Larrain inverte o efeito, introduzindo o preto na forma de um vazio espacial muito forte. É quase uma intervenção digna do pintor francês Pierre Soulages, reconhecido pelas densas superfícies pretas em sua pintura. A foto faz parte de um enorme corpus de retratos de crianças muito pobres, quando não abandonadas. A elas se dedicou Larrain. Mais tarde, percebeu que seu trabalho fotográfico e filantrópico em nada modificara a condição social desse grupo. Isso explica, ao menos em parte, sua opção por viver retirado nas montanhas de Tulahuén, no norte do Chile, de 1978 até sua morte, em 2012, a fim de procurar respostas por meio da ioga e da meditação.

O peso e a graça Samuel Titan Jr.

A esta altura, a lenda já é bem conhecida: em 1959, o jovem e desconhecido Sergio Larrain torna-se membro da agência Magnum, ungido por ninguém menos que Henri Cartier-Bresson. Este terá visto no jovem chileno um sucessor ou, senão, uma alma irmã. Uma fotografia de 1956, As filhas do pescador, realizada numa aldeia à beira-mar no litoral chileno, parece explicar por quê: duas meninas, razoavelmente maltrapilhas – uma delas exibe um rasgo na blusa –, mas nem aí para o fato, brincam de cabeça para baixo, penduradas em traves que, supõe-se, estão lá para secar redes de pesca, como a que está à direita. A menina da esquerda prende-se à trave superior com a ponta dos pés; suas pernas estendidas desenham uma linha perfeitamente paralela ao poste vertical que sustenta a estrutura de madeira. A outra menina, mais temerária, mais acrobática, equilibra-se com a cintura, desenhando com o corpo um arco, que se adivinha graças às pontas dos pés, discerníveis à contraluz. À esquerda, uma terceira criança, da qual só se vê o vulto, contempla a cena, fazendo contraponto à rede estendida do outro lado da foto, ao mesmo tempo que funciona como um duplo, em cena, do fotógrafo que registra o todo. Capturadas nesse momento efêmero, as tais filhas do pescador se tornam protagonistas, sem saber, daquele “instante decisivo” que, para Cartier-Bresson, estava no coração da grande fotografia. Mas não se tratava apenas, para o mestre francês, de estar em perpétuo estado de alerta: era preciso ser capaz de, num átimo, organizar tudo numa conformação geométrica perfeita. Na foto do jovem chileno, esse desenho abstrato encontra seu correlato concreto no varal de madeira, que contracena com a linha do horizonte, com as pernas da menina à esquerda e com o lado da rede de pesca que cai a pique. Essa grade feita de verticais e horizontais é temperada pelo arco insinuado pelo braço esquerdo da mesma menina e pelo outro lado da rede de pesca, que desce (ou sobe, tanto faz) em ângulo próximo a 45o. Tudo está no enquadramento, parece dizer Larrain, que anos depois cunharia sua própria fórmula lapidar: fotografar é sair pelo mundo com um “retângulo na mão”. Mas talvez haja mais coisa em As filhas do pescador. Há, por exemplo, a linha do horizonte,

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As filhas do pescador, Los Horcones, Chile, 1956. © Sergio Larrain/Magnum Photos

fora de prumo, deixada assim, sem correção posterior, do mesmo modo que as muitas fotografias de Chiloé dessa época. Há também o primeiro plano de areia, fora de foco, que faz pensar no fotógrafo sentado no mesmo nível da menina à extrema esquerda, menos à caça que à disposição – em contraste com os rodopios de Cartier-Bresson ao redor de seus temas. Há, finalmente, nessa e noutras fotografias da época, um começo de resistência ao veio narrativo que organizava o ensaio fotojornalístico de então – e que sugere, aliás, um paralelo com o Robert Frank de Os americanos, publicado dois anos mais tarde, em 1958. Em vez de perseguir a pauta mais canônica – documentar a vida dos pescadores, à maneira, por exemplo, do brilhante ensaio de Marcel Gautherot na vila cearense de Aquiraz, na década anterior –, Larrain se põe à mercê de um espetáculo gracioso e gratuito. Graça e gratuidade – impossível não pensar em outra fórmula cunhada por Larrain, para quem a fotografia nasce de um “estado de graça”. No caso, a graça está nos dois lados da objetiva: no olhar do fotógrafo, que a recebe, como no corpo das meninas, que a encarnam. Submetidas à gravidade, ao peso, elas contribuem, em sua queda

controlada, para a composição geométrica do todo; surpreendidas em estado êfemero de levitação, elas anulam por um instante – decisivo, mas em outro sentido – toda gravidade e todo peso, tornando quase invisível a estrutura abstrata e concreta que as sustenta. São como putti, os anjinhos esvoaçantes da pintura italiana, só que dispensadas de enquadrar uma cena ou personagem qualquer, entregues por inteiro a seu adejar alegre, à gratuidade risonha de seus gestos. De fato, As filhas do pescador dizem muita coisa: o entusiasmo de Cartier-Bresson, a ascensão meteórica de Larrain, mas também as reticências deste quanto à carreira de fotojornalista e ao destino da imagem no âmbito da imprensa massificada. A foto sugere que, para esse fotógrafo, a visão e a aparição talvez contassem mais que a imagem impressa, materializada. E, por essa via, o curso da vida de Larrain ameaça ganhar uma coerência que o lugar-comum da carreira brilhante, mas precocemente interrompida, não saberia exprimir: interromper, abdicar, renunciar, recolher-se, talvez tenham sido outras tantas maneiras de preservar a visão para a graça e a glória de que o mundo, aqui e ali, é capaz. 17


Bar Los Siete Espejos, Valparaíso, Chile, 1963 © Sergio Larrain/Magnum Photos


biografia de sergio larrain

23 de novembro de 1960 _ Casa-se, em Lima, com

a peruana Francisca Truel. 22 de agosto de 1961 _ Nasce sua filha Gregoria. Maio de 1963 _ É publicada sua primeira obra:

El rectángulo en la mano. Trabalha intensamente em Valparaíso, com Pablo Neruda. 1964 _ Funda a agência de comunicação artística Tecni-Kalyas. 1965 _ Exposição Photographs by Sergio Larrain, apresentada no Art Institute de Chicago, e publicação de En el siglo xx, depoimento sobre crianças de rua, com projeto gráfico e fotos de Larrain. 1966 _ Publicação, na revista Du Atlantis, de ensaio

5 de novembro de 1931 _ Nasce em Santiago do Chile. 1941-1949 _ Estudos primários e secundários no

colégio Saint George, em Santiago. 1949 _ Viaja para os Estados Unidos com o objetivo de estudar engenharia florestal na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Compra sua primeira Leica. 1950 _ Estuda na Universidade de Michigan,

em Ann Arbor. 1951 _ Morre em um acidente o irmão mais moço, em Santiago; abandona a universidade para viajar pela Europa e pelo Oriente Médio com a família. Na volta, passa um ano enclausurado em La Reina, no Chile. 1952 _ Presta serviço militar na Infantaria de Montanha. 1953 _ Apresenta suas primeiras fotografias de crianças abandonadas no Hogar de Cristo e na Fundação Mi Casa, para os quais começa a trabalhar. 1954 _ Envia algumas fotos para Edward Steichen,

no moMa, em Nova York, que compra algumas delas. O fato estimula Sergio Larrain a prosseguir na fotografia. 1956 _ Torna-se fotógrafo da revista O Cruzeiro Internacional ao mesmo tempo que frequenta o meio artístico e intelectual chileno. 1957 _ Viaja constantemente pelo Chile e pela

América Latina; colabora com a jovem companhia teatral Teatros de Mimos. Exposição de sua obra acontece na Sala del Ministerio de Educación, em Santiago. Abril de 1958 _ Expõe em companhia de Sheila Hicks no Palacio de Bellas Artes de Santiago, depois em Buenos Aires, na galeria Galatea. Inverno de 1958-1959 _ Recebe bolsa do British Council, que lhe permite trabalhar em Londres. Janeiro de 1959 _ Primeira publicação de suas fotos de Valparaíso, em O Cruzeiro Internacional; o texto também é de sua autoria. 1959 _ Conhece René Burri e Henri Cartier-Bresson; ingressa na cooperativa Magnum Photos, em Paris. 1960 _ Faz inúmeras reportagens, especialmente no Irã, na Argélia e na Sicília.

sobre Valparaíso acompanhado de texto inédito de Neruda. Lançamento do livro Una casa en la arena, sobre a casa do poeta. Decide afastar-se da Magnum e trabalhar por conta própria. 1967 _ Publicação de Nosotros, suplemento dedicado à agricultura chilena, para o jornal La Nación. 1968 _ Publicação da obra Chili, pelas Éditions Rencontre. Fevereiro de 1969 _ Muda-se para Arica com o objetivo de acompanhar os ensinamentos de Oscar Ichazo, fundador do Instituto Arica. Lá conhece, em 1970, Paz Huneeus, que será a mãe de seu filho Juan José, nascido em 5 de julho de 1973. 1972 _ Afasta-se da comunidade de Arica; de volta a

Santiago, trabalha para as revistas Paula e Vea. 11 de setembro de 1973 _ Integra um grupo de fotógrafos encarregado de cobrir o golpe de Estado no Chile. 1978 _ Instala-se definitivamente em Tulahuén, com o

filho; lá, pratica ioga, meditação e desenho, levando vida de asceta. 1991 _ Publicação, na França, da obra Valparaiso; exposição no Festival Rencontres de Arles. Na ocasião, diversos artigos são escritos a seu respeito. A exposição Valparaiso terá ampla circulação na Europa. 1998 _ Publicação da obra London 1958-59 e exposição em Paris e Londres. 1999 _ Exposição no Ivam de Valência (Espanha), acompanhada de catálogo prefaciado por Roberto Bolaño; decide parar de expor seu trabalho. 2005 _ Publicação da obra Things as They Are, Photojournalism in Context Since 1955, na qual a revista Du Atlantis, dedicada a Valparaíso, é inteiramente reproduzida. 2008 _ Publicação da obra Magnum Magnum, comemorando os 60 anos da agência. Cada fotógrafo escolhe outro fotógrafo e comenta sua obra. 7 de fevereiro de 2012 _ Morre em Tulahuén. 2012 _ Publicação de Fotolivros latino-americanos, de Horacio Fernández, uma história dos livros de fotografia latino-americanos, em que Larrain está representado com duas obras. Lançamento, no Chile, do estudo de Gonzalo Leiva a respeito de Sergio Larrain. Tradução de Heloisa Jahn

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Estação de metrô de Baker Street, Londres, Inglaterra, 1958-59. © Sergio Larrain/Magnum Photos Publicado por ocasião da exposição Sergio Larrain: um retângulo na mão, realizada no IMS Paulista, de 27 de abril a 25 de agosto de 2019.  © Instituto Moreira Salles, 2019  Curadoria Agnès Sire  Coordenação editorial Miguel Del Castillo e Samuel Titan Jr.  Assistentes editoriais Denise Pádua, Flávio Cintra do Amaral  Preparação e revisão de textos Rafaela Biff Cera e Rita Palmeira  Projeto gráfico Mayumi Okuyama  Produção gráfica Acássia Correia  Digitalização e tratamento de imagens Joanna Americano Castilho (coordenação), Carolina Filippo, Nrishinro Vallabha Das Mahe e Renato Parada  Produ­ç ão Magnum Photos Emmanuelle Hascoët e Marion Schneider  Impressão Pigma Gráfica  Jornalista responsável Marília Scalzo (MTb 15.444)  Agradecimentos Xavier Barral, Yseult Chehata, Jordan Alves e Gonzalo Leiva Quijada.

larrain.ims.com.br #expoLarrain


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