MÚSICA E MODERNISMOS NEGROS
MÚSICA E MODERNISMOS NEGROS
FORMAÇÃO A PARTIR DO ACERVO IMS
RAFAEL GALANTE
RENATA BITTENCOURT organizadores
APRESENTAÇÃO
Música e modernismos negros – Formação a partir do acervo ims foi inicialmente uma série de palestras concebida em uma parceria da área de educação com Rafael Galante, e que agora é complementada por este conjunto de ensaios. Galante selecionou pesquisadores, em sua maioria negros, a elegerem temas representados nas coleções do ims, apropriados para trazer para o centenário da Semana de Arte Moderna perspectivas alternativas e contemporâneas acerca da experiência negra no país, bem como sobre a história da cultura brasileira.
Os textos desses pensadores constituem uma contribuição para a reflexão acerca da revolução cultural ocorrida no Rio de Janeiro no início do século xx, geradora do samba carioca. Ao reconhecer o poder subversivo que emerge naquele momento, capaz de transformar modos de sociabilidade e expressão, as reflexões aqui reunidas perseguem também aspectos de permanência e transformação, o destacado papel de mulheres e a constante confluência entre dimensões espirituais e artísticas. Por um lado, somos convidados a celebrar a imensa construção que resulta da potência de indivíduos criadores e articuladores em suas vivências afroatlânticas. Outro flanco nos requisita a manter na memória a força repressora que se deitou sobre corpos, mentes e comunidades, com violência sistemática, e que ainda hoje nos faz ver seu legado. O
flanar dançante de corpos negros atestou possibilidades de modernidade para o espaço urbano, ocupado como ambiente de convivência e paradoxalmente imposto como espaço de segregação. As novas formas culturais daí resultantes requisitam exames capazes de ponderar sobre sua complexidade.
Acreditamos que, assim como os encontros, disponíveis no YouTube, esta publicação será de interesse e utilidade para alunos e docentes do ensino superior, pesquisadores e interessados. Professores, em especial aqueles atuantes na escola pública, poderão lançar mão de informações e imagens disponíveis no site do ims como ferramentas para o cumprimento da lei 10.639/03, que determina a abordagem da história e da cultura afro-brasileira no ensino.
Por fim, vale registrar que as questões tratadas aqui dialogam com a exposição Pequenas Áfricas: o Rio que o samba inventou, apresentada no ims Paulista de outubro de 2023 e abril de 2024. Essas ações evidenciam o empenho do Instituto Moreira Salles em apurar continuamente seu olhar sobre o patrimônio do qual é guardião, valendo-se de visões renovadoras para se reafirmar como instituição comprometida com a diversidade, a pesquisa e a construção de conhecimento.
Diretoria do Instituto Moreira Salles
8 Música e modernismos negros
RAFAEL GALANTE
ENCONTRO 1
VOZES PRETAS E FORMAS
MUSICAIS AFRICANAS
18 78 rpm: revoluções pretas macumbistas
FABIANA COZZA
28 Os sambas e a modernidade negra no Brasil de Mario de Andrade
SALLOMA SALOMÃO JOVINO DA SILVA
ENCONTRO 2 RACISMO, GÊNERO E VISUALIDADES
56 Modernismos, modernidades negras e racismos na história da música brasileira
MARTHA ABREU
70 A construção histórica do privilégio branco no ofício de carnavalesco na cidade do Rio de Janeiro
VINÍCIUS NATAL
78 Artistas negras, teatro de revista e o modernismo carioca
JULIANA DA CONCEIÇÃO PEREIRA
ENCONTRO 3 POLÍTICA E RELIGIOSIDADE
90 Poéticas afro-brasileiras na obra de Heitor dos Prazeres
GLAUCEA HELENA DE BRITTO
100 As gravações de macumbas por Mano Eloy e o modernismo negro da década de 1930
ALESSANDRA TAVARES
110 Getúlio Marinho da Silva e o pioneirismo das macumbas em discos
FERNANDA EPAMINONDAS SOARES
ENCONTRO 4 LIDERANÇAS E INVISIBILIDADES
120 Religiosidades e (in)visibilidades de mulheres negras no processo histórico dos sambas: de Tia Ciata de Oxum a Madrinha Eunice da Lavapés
CLAUDIA REGINA ALEXANDRE
130 Nosso Sagrado, o acervo afro-carioca em diálogo com instituições: as casas de umbanda e candomblé como espaço de ensinamentos
EDUARDO POSSIDONIO
MÚSICA E MODERNISMOS NEGROS
RAFAEL GALANTE
Foi com alegria que recebi ainda no final de 2021 o honroso convite de Renata Bittencourt, diretora de Educação do Instituto Moreira Salles, para o organizar o ciclo de conversas virtuais Música e modernismos negros: formação a partir do acervo ims. Nesse ciclo, tive oportunidade de convidar dez colegas pesquisadores que admiro, de áreas como artes visuais, antropologia e história, para, juntos, apresentarem parte de suas pesquisas sobre as múltiplas experiências culturais negras no Brasil do período pós-abolição, tendo como ponto de partida o acervo mantido pelo Instituto Moreira Salles. Ao longo do mês de outubro de 2022, após um semestre de trabalho dos pesquisadores convidados, foram realizadas quatro mesas virtuais, das quais fui mediador, com os seguintes títulos:
1 “Vozes pretas e formas musicais africanas”, com Fabiana Cozza e Salloma Salomão Jovino da Silva 2 “Racismo, gênero e visualidades”, com Martha Abreu, Vinícius Natal e Juliana da Conceição Pereira;
3 “Política e religiosidade”, com Glaucea Helena de Britto, Alessandra Tavares e Fernanda Epaminondas Soares;
4 “Lideranças e invisibilidades”, com Eduardo Possidonio e Claudia Regina Alexandre. As gravações resultantes das palestras veiculadas em maio de 2022 estão disponíveis no canal YouTube do Instituto Moreira Salles.
Agora, é com grande satisfação que apresento este ebook com os textos produzidos como resultado final desses projetos de pesquisa comissionados pelo ims.
A despeito de todas as tentativas contínuas de silenciamento, a história do Brasil, o maior país da chamada diáspora africana, foi indiscutivelmente moldada pelas trajetórias de vida de africanas e africanos, que, assim como seus descendentes afro-brasileiros, enfrentaram e derrotaram aqui formas de exploração e violências inimagináveis ao longo dos séculos de escravidão e colonialismo.
A abolição formal da escravidão em 1888, duramente conquistada por meio das greves, rebeliões e resistências cotidianas dos próprios escravizados, assim como por intermédio das diversas formas de associativismo organizados também por pessoas negras livres, nos entrelugares da escravidão e da liberdade, em quilombos, comunidades de terreiro, irmandades, zungus, maltas, sindicatos, jornais, companhias artísticas, grupos carnavalescos e comitês abolicionistas, gerou a esperança da conquista da igualdade e da liberdade, mas infelizmente a realidade que se seguiu para as comunidades negras no Brasil estava muito longe de refletir essas promessas do ideal republicano Ocidental.
O golpe militar que instaurou a República trouxe consigo uma ampla agenda política de restrição dos direitos de toda a população de origem africana, o maior grupo populacional do país, bem como a imposição ao longo das três décadas seguintes de um ideário nacional branco-supremacista organizado em torno de políticas de segregação racial e perseguição policial, higienismo social, eugenia e racismo científico, financiamento público da imigração europeia e incentivo estatal ao branqueamento cultural e biológico de toda a população negra e indígena. É nesse contexto de extrema perseguição e violência do imediato pós-abolição que os artistas negros emergiram mais uma vez como agentes de resistência cultural e catalisadores dos processos de articulação política de suas comunidades, desafiando continuamente os estereótipos e as narrativas dominantes do racismo à brasileira que tentavam apagar sua contribuição e centralidade política para a produção cultural no Brasil.
Ainda que parte do pensamento social brasileiro produzido por intelectuais brancos em espaços de poder ao longo do século xx tenha se dedicado a discutir as várias formas de violência a que foram submetidas principalmente pelo Estado brasileiro as populações negras no período pós-abolição, essas reflexões raramente alcançaram as questões em torno do próprio protagonismo negro no enfrentamento ao racismo e a violência racial no Brasil, e principalmente o seu lugar de centralidade na produção cultural brasileira Ao mesmo
tempo, a intelectualidade negra, desde figuras heroicas como Luiz Gama, André Rebouças e Manuel Querino, ainda durante a vigência do período escravista, sempre situou sua produção intelectual em torno dessas questões fundamentais. Enquanto, por um lado, principalmente a partir dos anos 1930, o pensamento social (branco) brasileiro passou a endossar, tanto à esquerda quanto à direita, o chamado mito da democracia racial, que, a partir do Estado Novo, se tornaria a ideologia oficial do Estado brasileiro, a intelectualidade negra nunca deixou de apontar, mesmo com diferentes matizes ideológicos, a falácia e os limites desse discurso. Da mesma forma, por meio de seus movimentos políticos e culturais, em diferentes conjunturas históricas, como, por exemplo, na Frente Negra Brasileira ou, posteriormente, no Teatro Experimental do Negro, na Associação Cultural do Negro ou a partir da fundação do mnu, os intelectuais afro-brasileiros sempre reivindicaram seu lugar de protagonismo na história e na cultura brasileira e no enfrentamento organizado ao racismo e ao supremacismo branco. Um exemplo notável disso é o discurso do pintor afro-gaúcho Miguel Barros, “porta-voz da Frente Negra Pelotense”, do qual destaco um trecho a seguir, proferido durante o 1º Congresso Afro-Brasileiro, organizado por ninguém menos que Gilberto Freyre na cidade do Recife em 1934, apenas um ano após o lançamento de seu livro mais famoso, Casa-grande e senzala , obra fundamental para a consolidação do mito da democracia racial no Brasil:
Muito debatida tem sido a existência ou não do preconceito. Nós que o sentimos, combatemos juntos e principalmente contra o atraso da descendência afro-brasileira. A cada passo, vem contra nós a demonstração chocante da seleção racial. Temos ainda, no Sul, a proibição da entrada em certos lugares públicos, teatros, cafés, barbeiros, colégios etc. Em todas as classes, desde o proletariado, onde no ganha-pão diário se misturam todos os trabalhadores, o preto será esquecido, ou irá para a cozinha em alguma festa que o branco improvisar; até a classe alta, onde o intelectual negro teve de ingressar, contribuindo com seu esforço, para o meio onde vive, afastado de seus irmãos, que como ele também sofrem, párias do cancro preconceituoso. No comércio, no funcionalismo, o preto vegeta em porteiros, contínuos etc. Surge sempre a expressão do pistolão que, ao solicitar emprego, diz: “É meu sobrinho rapaz inteligente e… é branco”. A mulher é a ama, doméstica, costureira. Atualmente, onde a mulher pode exercer sua atividade é no funcionalismo, no professorado. Muitas jovens etíopes, que se diplomam educadoras, lutam para conseguir lecionar e tem que o fazer particularmente, na impossibilidade de trabalhar para o Estado. A maioria desiste, vendo os
exemplos dolorosos, e vão para a costura, condição máxima que pode desejar a mulher que possui os “considerados” característicos da descendência africana. “A campanha para a raça e nacionalidade deve ser de organização e também de reverência para com nossos antepassados.” A maioria brasileira tem em suas veias o sangue afro, dos construtores de nossa terra. Com honestidade, sinceridade, devemos ter amor filial para com nossos avós, que tanto sofreram. Sejamos dignos aceitando nossa herança.1
A despeito dessas (contra)narrativas continuamente produzidas pelas sucessivas gerações de artistas e intelectuais negros, o discurso historiográfico brasileiro permaneceu durante quase todo o século xx hegemonizado por essa espécie de cegueira branca que invisibilizava tanto as trajetórias de liberdade negra durante o período escravista quanto o protagonismo cultural e político da população negra e de suas lideranças em todos os principais debates públicos e culturais brasileiros do período pós-abolição. Esse fenômeno inviabilizava tanto a recuperação das trajetórias biográficas de artistas e ativistas afro-brasileiros ao longo de nossa história como também a compressão do lugar dos próprios movimentos negros como os principais construtores e promotores da cidadania e da educação no Brasil, pelo menos nos últimos dois séculos de nossa história. Nesse sentido, foi a própria pressão dos movimentos negros reivindicando o direito ao ensino da história afro-brasileira, após a recente reconquista da democracia, que vêm nas últimas três décadas derrubando esse véu de invisibilidade e pautando a nova agenda de pesquisa das ciências humanas, principalmente com o ingresso de uma grande quantidade de novos pesquisadores negros nas universidades públicas brasileiras, a partir da lei de cotas, outra conquista histórica do mesmo movimento. Sem dúvida, este livro também é resultado desses processos de transformação recente (ainda que infelizmente graduais) de nossa sociedade. Nos últimos anos, também tem ganhado força no debate historiográfico brasileiro, a partir de uma aproximação com o campo de estudos das relações raciais nos eua, sempre muito influente no Brasil, a ideia dos chamados “modernismos negros”. Grosso modo, essa noção se abre como um campo de estudo multidimensional que se dedica a explorar as expressões artísticas e culturais produzidas por comunidades negras em diversos contextos globais, especialmente durante os períodos de intensa mudança social, política e cultural da virada do século xix e xx. Os modernismos negros são caracterizados por uma
1 Estudos Afro-Brasileiros – Trabalhos apresentados ao 1o Congresso Afro -Brasileiro realizado no Recife, em 1934. Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Massangana, 1988, pp. 270 -271 (grifo meu).
ampla gama de expressões artísticas, incluindo literatura, música, artes visuais, teatro e dança, que refletem as experiências e as lutas dos povos negros em todo o mundo. Essas expressões artísticas e intelectuais emergiram nesse período como uma forma de resistência e afirmação de novas identidades negras, desafiando as narrativas dominantes e redefinindo as perspectivas sobre a história, a estética e a cultura da diáspora africana no interior do mundo ocidental. Nesse sentido, Paul Giroy, no seu livro clássico O Atlântico negro, pensando a partir dos circuitos negros do mundo anglófono do Atlântico Norte, definiu essas expressões culturais negras diaspóricas como sendo a “contracultura da modernidade” ocidental. Esses movimentos não podem, no entanto, ser reduzidos a uma única forma de expressão ou a um único ponto geográfico, uma vez que surgiram em diversas partes, desde as comunidades afro-americanas nos Estados Unidos até os movimentos artísticos na África e em outras partes da diáspora africana, como Cuba, Haiti e Jamaica. Provavelmente a maior expressão cultural do modernismo negro nos eua seja a chamada Harlem Renaissance, um movimento cultural e intelectual que floresceu no bairro de Harlem, na cidade de Nova York, durante as décadas de 1920 e 1930. Servindo de plataforma para que artistas e intelectuais afro-americanos expressassem suas identidades culturais e experiências únicas em meio a um contexto de segregação racial e discriminação sistemática, por meio de literatura, música, arte visual e teatro, a Harlem Renaissance trouxe à tona temas de identidade racial, orgulho cultural e resistência, desafiando as representações estereotipadas e caricatas frequentemente atribuídas às comunidades negras Esse movimento não apenas redefiniu a expressão cultural e artística das comunidades afro-americanas nos Estados Unidos como teve um impacto profundo, estabelecendo laços culturais e intelectuais com outros pontos da diáspora, incluindo o Brasil e comunidades na própria África. A ideia do chamado “New Negro” e suas “Políticas de respeitabilidade” (Respectability politics), como se convencionou chamar nos eua, especialmente a partir da renascença do Harlem, exerceram grande influência ideológica em comunidades afro-diaspóricas de todo o mundo ocidental. Se, por um lado, esse conceito norte-americano de “políticas de respeitabilidade” pode nos ajudar a entender os diferentes projetos de modernismos negros que se estabeleceram no Brasil do pós-abolição, no que tange às tentativas de negociação dessas comunidades afro-diaspóricas na economia política e nos signos dos imaginários da dominação branca ocidental em todo mundo Atlântico, por outro lado, creio que aí também o conceito de “modernismo negro” começa a apresentar os seus limites quando aplicado à historicidade das expressões culturais das comunidades amefricanas, como denominou a intelectual afro-brasi-
leira Lélia Gonzales, comunidades fundadas a partir do continuum civilizatório africano. Em recente entrevista feita por Fernanda Souza a historiadora estadunidense Saidiya Hartman, ambas intelectuais negras, quando perguntada sobre sua leitura comparada entre as experiências históricas de formação das culturas negras no Brasil e nos eua, Hartman, além de enfatizar em sua análise a brutalidade da supremacia branca no Brasil, destacou:
Eu não diria que a África está perdida na América do Norte, mas muito da inovação e do brilhantismo da cultura negra foi marcada, no espaço da América do Norte, sobretudo nos Estados Unidos, pela quebra de formas ocidentais, fazendo delas algo mais. No Brasil, por sua vez, eu experienciei o que significa habitar profundamente formas africanas e testemunhar sua transformação, como são refeitas e recalibradas.2
Nesse sentido, se por um lado podemos aproximar os fenômenos de surgimento, por exemplo, do samba carioca e da rumba cubana ao jazz a partir de suas respectivas dimensões transatlânticas de negociação com os signos da modernidade ocidental, por outro lado, não podemos perder de vista que de um ponto de vista interno as suas respectivas tradições, o samba e a rumba são compreendidos até hoje por suas comunidades produtoras, à diferença do jazz (pelo menos a princípio) como parte integral do continuum civilizatório africano. Nesse caso, expressões culturais como o samba urbano carioca só puderam ser compreendidas como uma “contracultura da modernidade” ocidental no Brasil
2 No trecho imediatamente anterior ao citado, Hartman responde: Eu descreveria o paradoxo do Brasil como estruturado por uma ordem dominante branca e antinegra, por um lado, e um texto cultural africano/negro incrivelmente rico, de outro. […] A elite governante no Brasil não é apenas ‘branca’ da forma como podemos entender em outras partes das Américas, mas realmente europeia. Isso é impressionante, especialmente em um país de maioria negra. Eu já estava familiarizada com a questão da violência de Estado direcionada à população negra no Brasil por causa de pesquisadores como Denise Ferreira da Silva e João Costa Vargas, e ativistas como Marielle Franco. Entretanto, ao entrar no país, há ainda assim a experiência de surpresa, a dissonância cognitiva com o fato de que o Brasil é 54% negro. Isso é tão estranho porque, ao interagir com instituições intelectuais e culturais, é possível imaginar que a população negra é uma população minoritária e que há menos pessoas negras no Brasil do que nos Estados Unidos se nos basearmos em uma representação pública. No final da viagem, eu fui à Festa de Santa Bárbara, no Pelourinho, que foi muito linda e poderosa. Ela me fez pensar nas múltiplas dimensões e contornos da África na diáspora. No Pelourinho, eu lembrei muito de algo que a artista cubana Maria Campos Pons disse sobre viver na diáspora: ‘Em Cuba, nós não precisávamos ir para a África porque a África estava muito perto. Estava bem ali. Estava em nosso quintal.’ E foi assim que eu me senti naquela manhã em Salvador. Eu senti: ‘Uau, a África está realmente aqui. Está mesmo.’” sousa, Fernanda Silva e. “‘Eu não sou uma nota de rodapé para o pensamento de grandes homens brancos’: uma entrevista com Saidiya Hartman”. Odeere, v. 8, n. 1, 2023, pp. 1-23. Disponível em: doi.org/10 22481/odeere.v8i1 12538
do início do século xx, na medida em que, como disse Hartman, foram capazes de “refazer” e “recalibrar” as suas formas africanas matriciais e não apenas a partir dos seus processos de “quebra e readaptação” das formas culturais ocidentais. Nessa perspectiva, é o grande intelectual igbo, Chinua Achebe que nos ensina que, de um ponto de vista civilizatório africano, a ideia de tradição cultural não é, como no seu respectivo paradigma ocidental, compreendida como fixação, rigidez e permanência, mas sim a partir de uma lógica dialética em que a mudança/ transformação/adaptação é também um imperativo de sua própria preservação.3
Ao trazer à luz essas narrativas e abordar essas e muitas outras questões, as autoras e autores deste livro desafiam a invisibilidade que por muito tempo obscureceu o protagonismo histórico dos artistas negros no Brasil. Seus ensaios nos convidam a refletir sobre as complexas camadas de discriminação racial que moldaram a história do país, bem como a reconhecer a resiliência, a criatividade e a determinação desses artistas em face das adversidades mais terríveis. Ao longo dos capítulos deste livro, os leitores serão convidados a conhecer não apenas o impacto artístico de indivíduos notáveis mas também a compreender as complexas questões enfrentadas pelos artistas negros em um país que em grande medida ignorou (ou silenciou) suas vozes e suas contribuições. Nele somos levados a um exame crítico das experiências multifacetadas desses sujeitos históricos na interseção entre a construção das experiências de modernidade no Brasil e as realidades cotidianas enfrentadas por esses artistas negros no interior de uma sociedade ainda colonial e branco-supremacista, cujas trajetórias de vida não refletem apenas as lutas e os triunfos individuais mas também a resiliência coletiva das comunidades negras continuamente violentadas em seus direitos humanos no Brasil. Assim, espero que a análise dessas trajetórias de vida e suas criações para a música, a arte e o pensamento social brasileiro, exposta aqui por essas autoras e autores, abra caminho para uma apreciação e consciência crítica mais profunda sobre a centralidade da diáspora africana e de seus agentes para a formação do nosso país na contemporaneidade, assim como em seu futuro.
3 “Devemos falar da tradição não como uma necessidade absoluta e inalterável, mas como metade de uma dialética em evolução – sendo a outra parte o imperativo da mudança.” achebe, Chinua. “Continuity and Change in Nigerian Education – A Jubilee Essay”. In: The Umuahian. Enugu: Nwamife, 1979, pp. 57-66. Disponível em: static.cambridge.org/content/ id/urn:cambridge.org:id:article:S 0001972014000990/resource/name/ S 0001972014000990sup001.pdf (Traduzido em: feuser, Willfried F. “Entre a tradição e a modernidade: impressões sobre a literatura nigeriana, 2a parte”. África: Literatura – Arte – Cultura , Lisboa, v. 1, n. 3, jan.-mar., 1979, p. 248. Apud pereira, Edimilson de Almeida e gomes, Núbia Pereira de M. “Inumeráveis cabeças: tradições afro-brasileiras e horizontes da contemporaneidade”. In: fonseca, Maria Nazareth Soares. Brasil afro-brasileiro. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, pp. 41-59).
ENCONTRO 1
VOZES PRETAS E FORMAS MUSICAIS AFRICANAS
78 RPM: REVOLUÇÕES PRETAS MACUMBISTAS1
FABIANA COZZA
1 O título do artigo é uma licença poética emprestada do amigo, filósofo carioca e professor André Mendonça, que fez uma das leituras do texto original. Junto a ele e ao cientista social Rogério Família, a autora atua como professora convidada da (in)disciplina Saber-Samba, dentro do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública do Instituto de Medicina Social da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro).
No acervo discográfico do Instituto Moreira Salles (ims), fui seduzida pelo catálogo que identifica canções pelo gênero “macumba”.2 Eram faixas interpretadas por Zé Espinguela, Elsie Houston, J.B. de Carvalho, Zaíra de Oliveira, Getúlio Marinho “Amor”, João da Baiana (entre outros) e seus respectivos grupos acompanhadores. Dediquei-me a fazer uma segunda triagem e ouvir, especialmente, gravações que datam de 1930 a 1932, cujas faixas trazem a voz humana em consonância com a voz do tambor e, eventualmente, poucos instrumentos de percussão (chocalhos, pandeiros).
2 Faz-se necessária uma pequena ressalva sobre o termo “macumba”. Socialmente, a palavra era utilizada de forma pejorativa e escondia uma disputa político-social de cunho racista por parte de precursores e simpatizantes da chamada umbanda, cuja origem data da primeira década do século xx. À parte da evidente influência afro-indígena em seus rituais, a prática incorporava (incorporou) traços do catolicismo e do espiritismo de Allan Kardec, motivada pelo desejo de uma religião essencialmente brasileira. Tais aspectos eram alimentados dentro de um contexto cultural que corroborava o ideário de Estado-Nação, com políticas eugênicas tanto de branqueamento social, quanto de mestiçagem, em que, segundo o historiador Luiz Antônio Simas, negros e indígenas teriam uma “inclusão subalterna”. Um dos mitos fundantes da umbanda diz respeito ao Caboclo das 7 Encruzilhadas, entidade do médium Zélio, um dos criadores da “umbanda pura” ou “umbanda branca”, como seria difundida e defendida a religião a partir da Era Vargas.
Vamos explorar uma concepção de música cujo conhecimento e saber edificam-se no fato, ou seja, numa prática. A teoria estruturada e estruturante de uma ação concreta, de uma experiência. Sobre esse assunto, o etnomusicólogo nigeriano Meki Nzewi diz:
A teoria já é sempre intrínseca ao intelecto, à lógica e ao vocabulário das artes musicais africanas indígenas. Mas a África reivindica a teoria-na-prática, que estipula que o verdadeiro conhecimento deriva da experiência real e interativa de qualquer cogitação intelectual; ao passo que teorias flutuantes sobre qualquer assunto podem nunca chegar a um saber e fazer factuais. Assim, o verdadeiro legado africano prioriza metodologias originais e factuais de educação humana – um bebê ao nascer agarra na prática o peito da mãe para obter, na origem, o conhecimento teórico sobre o fato de a alimentação ser essencial à manutenção da vida. A intencionalidade é básica para a criação e o intelecto do conhecimento humanizador. Fundamentalmente, na África indígena, a ênfase no intelecto e na produção musical foca na funcionalidade. Como tal, a intenção criativa (propósito) dá início e compõe configurações criativas que geram elementos e realidades de produção performativos.3
Escutar José Gomes da Costa, conhecido jornalista, sambista e pai de santo nos idos de 1920 e 1930, popularmente chamado por Zé Espinguela, ou ainda o pandeirista e compositor João da Baiana, expõe-nos um legado de canto que é forja (e não repetição mecânica ou cópia de algo) e, portanto, absolutamente singular. A esse respeito, gostaria de já tracionar uma ideia de “voz corporificada”, seja esta: uma vocalidade encarnada, um canto que se arquiteta holisticamente e é vinculado à experiência, é veículo de memória, munição de saberes que se acumulam de forma gregária, sensível, enquanto desdobramento de outras vozes e corporeidades. Voz que funda uma humanidade e, assim, é depositária de uma ética. Tal como a pele que respira pelos poros, sedimentando percepções e emoções no corpo, essa voz herda outros comportamentos sonoros, outros hálitos. O medievalista e crítico literário Paul Zumthor afirmava ser a voz não somente um carreador de som ou veículo sonoro da palavra, mas algo a mais: ela existiria como manifestação dos sentidos, reverberando aquém e além da palavra. Isso nos permite considerar que a voz não responde
3 Entrevista com Meki Nzewi. Revista Claves, dossiê Matizes Africanos na Música Brasileira, v. 9, n. 14, 2020, pp. 118-119
necessariamente e univocamente a uma linguagem específica, mas que a ela atribui-se o não materializável, o não verbalizável. O corpo (histórico, psíquico, social, biológico, antropológico) seria, então, seu espelho e matriz, superfície dessa “voz corporificada”.
Na gravação do grupo Filhos de Nagô,4 por exemplo, precisamente em Canto de Exu/Canto de Ogum e Oduré/Eriuá (1931), a primeira evidência que salta aos ouvidos é o cantar que revela uma coletividade. Trata-se de um espaço de convocação do outro, de celebração, sociabilidade facilitada pelos tambores que também cantam e escutam. O solista funciona como alguém que enuncia a liturgia para que coro e tambores façam a confirmação e a afirmação da palavra, vocalizando o sentimento da comunidade, reforçando o axé, 5 invocando a espiritualidade. No caso da primeira canção, após pedir licença a Exu, entidade e força de comunicação e dinamização do universo, a voz solista entoa: Bará ó bebe/ Tirirí l’ònòn, ao que o coro responde: Èsú Tirirí, Bará o bebe Tirirí l'ònòn/Èsú Tirirí. Sobre esse aspecto, Meki Nzewi explica:
A música vocal africana é fortemente baseada em coros. O protocolo de comunalidade africana ordena que o coro seja mais importante que o solo. Assim, a formulação da música africana não compactua com o pensamento e definição de solo-coro. Ao contrário, a África reconhece a ordem do coro-solo, na qual um solista apenas emerge e faz sentido musical no contexto de uma comunidade de coro estabelecida como fundamento para tal emergência e ação solo. Se o solo parar por qualquer razão, a performance musical permanece estável e segue em frente; se, por outro lado, o coro parar de soar, o solo iria se debater, sem base, sem uma plataforma. O mesmo acontece com a expressão de vozes solo na vida comunitária. Esta filosofia performativa de humanidade ancora-se na filosofia da vida cultural africana, na qual o indivíduo nunca é mais importante do que a comunidade/grupo.6
A síntese da mensagem em pequenos versos também destaca outro aspecto importante nas cantigas: o papel imperativo da oralidade, seu poder
4 A cantora solista não é identificada no fonograma (pesquisa realizada no site do ims), o que, infelizmente, corrobora o apagamento histórico sofrido pelas mulheres ao longo da música popular brasileira.
5 “A força que permite a realização da vida; que assegura a existência dinâmica; que possibilita os acontecimentos e as transformações”.
Ver: lopes, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. São Paulo: Selo Negro, 2004, p. 83.
6 Entrevista com Meki Nzewi. Op. cit., pp. 123-124
de transmissão e propagação. O conteúdo e sentido dos mesmos funcionam como princípios essenciais da comunidade, trazendo a temporalidade no bojo de suas palavras.
A extensão da melodia em uma oitava também pode ser pensada como uma herança africana acolhida e propagada dentro dos terreiros e do universo cultural sagrado afrodiaspórico. Tal característica reforça o traço ético e filosófico iluminado pelo pensamento ubuntu do “eu sou porque nós somos”, como explica Nzewi:
A construção melódica na música africana é deliberadamente concisa, geralmente dentro de uma oitava. A filosofia de inclusão-de-todos que marca a imaginação criativa requer que a extensão de uma construção melódica esteja dentro da capacidade vocal que permita a participação de qualquer cidadão. Por outro lado, há casos em que indivíduos capazes atingem uma tessitura vocal de três oitavas, quando especialmente necessário no lilting – vocalise melismático africano –, por exemplo. Outra razão para construções melódicas de curta extensão é assegurar uma articulação clara das palavras de um texto melódico. A linguagem melódica não vocal em instrumentos melódicos como a flauta talhada não tem restrições de extensão melódica.7
A comunicação com os tambores agrega outros valores a essa escuta, visto que não se trata de instrumentos de acompanhamento, mas de vozes que protagonizam o acontecimento da encantaria. Em Macumba de Oxóssi e Macumba de Inhansã , interpretadas por Zé Espinguela e o Grupo do Rae Alufá (1940), o chamado fica a cargo de Espinguela. Tanto a inflexão melódica quanto o canto sincopado do babalorixá funcionam como combustível, fricção para os tambores, que respondem às provoc(a)ções do canto. Ao levar consigo o coro, dialogando com ele, os tambores “acendem” o chão com sua ressonância e suas bocas projetadas para o solo, lançando, feito capoeiras, o canto-resposta da comunidade. As vozes agudas e metalizadas lembram aves nordestinas, estabelecem ligação de terra e céu, furam o ar com sua intensidade e altura, instaurando o desejo comunal e uma certa intencionalidade performática. Ao mesmo tempo, movimentam diferentes harmônicos, criando uma teia pluritonal e uma atmosfera que é, em grande medida, terapêutica, de cura, pois instaura moção: transmutação de um sentimento a outro.
7 Ibidem. p. 124
Os tambores de membrana africanos não são concebidos e construídos para se tocar percussão, isto é, uma rítmica musical exuberante sobre um só nível tonal. Os materiais e construções musicais melorrítmicas dos tambores de membrana-mãe, bem como outros níveis tonais tocados por outros instrumentos, foram concebidos e configurados principalmente para realizar especiais missões humanizadoras musicais. Como tal, os materiais e o acabamento técnico dos instrumentos de dois ou mais tons devem infundir sutilmente a saúde da mente e do corpo. As manipulações sonoras tamborísticas [drummistic] em situações de conjunto comandam a consciência humana compartilhada.8
À ideia de moção explorada por Didi-Huberman,9 tal qual descrita acima, agrega-se a de temporalidade, em que os próprios tambores são instrumentos dilatadores e concentradores de tal percepção. Nas palavras da dramaturga e escritora Leda Maria Martins:
Proponho como possibilidade epistemológica a ideia de que o tempo, em determinadas culturas, é local de inscrição de um conhecimento que se grafa no gesto, no movimento, na coreografia, na superfície da pele, assim como nos ritmos e timbres da vocalidade, conhecimentos esses emoldurados por uma certa cosmopercepção e filosofia.10
Imprescindível sublinhar que a síncopa, enquanto pensamento estruturante das expressões musicais negras, instaura dança nos corpos, criando música. Também abre portas para a negociação do viver, o enfrentamento dos obstáculos e desafios cotidianos, graças à não fixidez desses corpos-pensamento, e à sua ginga, o molejo, o requebrado, o miudinho. Nessas malemolências sincopadas, nascem os sambas, a capoeira, o coco, o congado, o maracatu, o caboclinho, o boi, a marujada, o carimbó e dezenas de outras expressões negro-indígenas brasileiras. Em relação às gravações em pauta neste artigo, ouvi-las torna possível imaginar corpos vibrantes e criadores, resilientes, dribladores, inventivos, “bailarinos”,11 que atuam na alteridade impulsionados pela vibração da pele e da madeira do tambor.
8 Ibidem, p. 127
9 didi-huberman, Georges. Que emoção! Que emoção?. São Paulo: Editora 34, 2013
10 martins, Leda Maria. Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo -tela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021, p. 22
11 A professora e escritora Leda Maria Martins utiliza a expressão “corpo bailarina” em seu livro Performances do tempo espiralar (op. cit.).
Aliás, é a pele dos pés que escuta e recepciona o diálogo com os tambores. Para o filósofo e compositor Tiganá Santana, a relação pessoa-tambor/ tambor-pessoa é responsável por gestar experiências profundas.
O que produz os acontecimentos complexos são as relações estabelecidas entre ntu-pessoa e ntu-tambor; ntu-tambor e ntu-corpo-flutuando-sobre-o-chão; ntu-cântico e ntu-performance-da-presença. O estabelecimento das plataformas para os acontecimentos transtemporais a reunirem instante e ancestralidade saboreada dá-se porque pessoa toca tambor e tambor toca pessoa… As ressonâncias emitem-se do meio, dimensão que não se demarca ou vê propriamente. É de lá que ganha carnalidade a rítmica, fazendo emergir certas estéticas do tempo; trata-se da rítmica como chão que segreda uma relação entre temporalidades, vivências e agências. Já havia dito que o chão-terra segreda ancestrais, forças incorpóreas, já que a cavidade é vestida pela ocupação. No caso do chão-rítmica, há similitudes poéticas fundamentais: todo chão, ainda que movediço, é a última borda experimentada pelo grave dos corpos, ao tempo em que é a primeira oferenda doada pela ausência. É sobre esse tecido que variam, erram e giram as proposições do que vive – com sangue, clorofila, mineral, energia, átomo ou inapreensibilidade. Atentar à dinâmica entre variantes e alicerce poético das narrativas percutidas que deslocam frequências é estar numa determinada hermenêutica do mundo que celebra a pulsão criativa do que se engasta.12
Em “O terreiro e a cidade”, Sodré verticaliza sua exploração por uma filosofia do corpo, dilatando a questão da espacialidade e afirmando que o pensamento e o saber dos povos afrodescendentes não ocupam necessariamente a cabeça, já que é no corpo, pela via da corporeidade, que potencializamos a experiência da vida, do viver e do conviver.
Nós temos aqui, portanto, uma outra lógica, uma lógica que põe o corpo em primeiro plano, uma lógica da corporeidade em que o pensamento atravessa o corpo. É um tipo de pensamento, é um tipo de filosofia que eu chamo “a toque de tambor”. Entra a questão da espacialização, a questão da música que é vital, da música com a tecnologia de agregação de gente, é
12 santana, Tiganá. “Ensaio inclinado ao tambor”. Revista Claves, op. cit., p. 157
fundamental. E tudo isso parte, principalmente aqui no Brasil – no Caribe, em Cuba, em outros lugares tem outras instituições, mas no Brasil, isso tudo parte do terreiro. O terreiro, portanto, é, do ponto de vista espacial, um núcleo civilizatório.13
No samba-maxixado Quilombô (1932), de Getúlio Marinho, conhecido por “Amor”, o trombone assume o papel do futebol musical, dos dribles contrapontísticos e do improviso, conversando com percussão e demais instrumentos harmônicos. O caráter coloquial do texto preserva os traços de oralidade à revelia do arranjo complexificado. Antecipando a chamada do refrão, o intérprete João Quilombô acentua sincopadamente a rítmica da palavra “qui-lom-bô” numa menção à clave do tamborim, tornando o cantar mais “sacudido”, “tamborilado”, o que, tal qual os exemplos anteriores, instaura uma técnica peculiar e sofisticadíssima do cantar. Nele, o jogo musical se faz “por dentro”, inesperado, sorrateiro, e não pelas bordas, seguindo a quadratura e as regras da música ocidental europeia.
As artes negras em performance inscrevem outros capítulos do ser, do saber, do existir, do se comunicar, através da corporeidade e da oralidade. A transmissão oral do conhecimento inspirou a escritora e intelectual Leda Maria Martins, no destacado livro Afrografias da memória , de 1995, a sumarizar tal convicção no conceito de “oralitura”, primordialmente utilizado para explorar o legado de saberes no universo do congado e do reinado mineiros. “Oralitura” também enquanto “hálito, como ancestralidade”. Por meio da cisão com o cânone da escrita, a “oralitura” é chave de acesso, nos auxiliando a adentrar tais saberes via performance, e cristalizando heranças e memórias ancestrais dos povos em diáspora.
Conceitual e metodologicamente, oralitura designa a complexa textura das performances orais e corporais, seu funcionamento, os processos, procedimentos, meios e sistemas de inscrição dos saberes fundados e fundantes das epistemes corporais, destacando neles o trânsito da memória, da história, das cosmovisões que pelas corporeidades se processam. E alude também à grafia desses saberes como inscrições performáticas e rasura da dicotomia entre a oralidade e a escrita. A oralitura é do âmbito da performance,
13 Transcrição feita a partir de entrevista de Muniz Sodré, “O espaço da África no Brasil”, disponível em: www.youtube.com/ watch?v=8asUpAkFbu 4&list=PLuN2wVy_VEtbBpMW7 xXmJh-4qSsGddkR&index=30
seu agenciamento, e nos permite abordar teórica, e metodologicamente, os protocolos, códigos e sistemas próprios da performance, assim como o modus operandi de sua realização, de sua recepção e afetações, assim como suas técnicas e convenções culturais, como inscrição e grafia de saberes.14
É importante ressaltar que a concepção de ancestralidade negra não abarca um tempo estático, sequencial, tampouco um tempo pretérito. Nas dinâmicas artísticas e epistêmicas dos povos afrodiaspóricos, a temporalidade não acontece de forma cronológica, fraturada entre passado-presente-futuro, mas, como propõe Martins (2021), de forma espiralada, inclinando-se, curvando-se, movente, tal qual se edifica a memória.
As culturas africanas transladadas para as Américas encontravam na oralidade seu modo privilegiado, ainda que não exclusivo, de produção do conhecimento. Assim como para os povos das florestas, a produção, inscrição e disseminação do conhecimento se davam, primordialmente, pelas performances corporais, por meio de ritos, cantos, danças, cerimônias sinestésicas e cinéticas. Por meio delas, uma pletora de conhecimentos se retransmitia através do corpo em movimento e por sua vocalidade, desde comportamentos mais simples, expressões práticas e hábitos do cotidiano até as mais sofisticadas técnicas, formas, processos cognitivos, pensares mais abstratos e sofisticados, entre eles a cosmopercepção ou filosofia.15
A audição do acervo, em cruzamento com a experiência e o cotidiano artístico da autora-cantora e sua herança no samba, reforça a convicção de que a prática do cantar deve ser um anúncio para uma “ética do cantar” que reforce princípios humanizadores e humanizantes – tal qual a ação dos tambores, tal qual as liturgias e belezas cultuadas nos terreiros negros contemporâneos.
14 martins, Leda Maria. Op. cit., p. 41.
15 Ibidem, p. 36
OS
SAMBAS E A MODERNIDADE NEGRA NO BRASIL DE MÁRIO DE ANDRADE
SALLOMA SALOMÃO JOVINO DA SILVA
Através das sobrevivências, estamos agora habilitados a compreender o historiador paulistano, quando relata as festas das Irmandades do Rosário em São Paulo, no século passado. Estamos habilitados sobretudo a descontar os zelos preconceituosos ou pruridos de esnobismo, os relatos desnaturados de certos outros escritores, que não procuraram entender, na sua simplicidade, os anseios dos pobres negros nas suas comemorações religiosas e, obstruídos, tais escritores, no seu entendimento, apenas enxergavam “barbarismos”, “feitiçarias”, emprestando a essas solenidades os mais lúgubres e funéreos desígnios.
— Raul Joviano do Amaral. Os pretos do Rosário de São Paulo: subsídios históricos, 1954
Em 1933, na terça-feira gorda, por indicação dum amigo, soube que na rua Manuel Paiva estavam dançando samba rural, e fui lá, Era a mesma rua, mesmo lugar. Os negros, não sei si eram os mesmos, que me afirmaram que eram gente do interior, não me lembro mais si de Sorocaba ou de Botucatu, perdida a nota que tomei na ocasião.
— Mário de Andrade. O samba rural paulista. Arquivo Municipal de São Paulo, 1941
O Brasil precisa ser corretamente conhecido. Especialmente a sua situação política. E, já que vai estudar os negros, devo dizer-lhe que o nosso atraso político que tornou essa ditadura necessária, se explica perfeitamente pelo nosso sangue negro. Infelizmente, por isso estamos tentando expurgar esse sangue, construindo uma nação para todos, limpando a raça brasileira.
— Oswaldo Aranha, segundo relato de Ruth Landes, 1967 1
1 landes, Ruth. Cidade das mulheres. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. Oswaldo Aranha é o nome da escola em que frequentei parte do ensino básico na Zona Sul de São Paulo. Diplomata e político brasileiro de proeminência, Aranha atuou na política externa e interna orientando temáticas de imigração.
Osamba, gênero musical 2 urbano carioca, reconhecidamente de origens africanas, tem sido uma coisa só (com pequenas variações) nas interpretações jornalística, musicológica e histórica de viés nacionalista nesse “mulato inzoneiro”, no transcurso dos últimos 40 anos. Essa leitura monolítica torna obscuro o entendimento da complexidade das culturas musicais de origens africanas. Um gênero musical definido pelo timeline bantu e uma gravação feita em 1916 no Rio de Janeiro. Por vezes, se abre um debate sem fim quando se tenta mostrar que samba é muito mais do que as canções gravadas em disco ou levadas ao espetáculo, difundidas no rádio e televisão a partir do Rio de Janeiro.
Os sambas, aqui neste texto, além de musicalidades negras, são algo mais amplo e delicadamente fugidios, e por vezes confusos, cuja historicidade não pode ser desvelada plenamente. Nas culturas negras, muitas vezes por estratégia de sobrevida, estamos aprendendo agora, seus agentes preferem as condições de opacidade àquelas de plena visibilidade. Mas os sambas também poder ser interpelados, entre outras coisas, como um projeto estético político de emancipação cultural dos descendentes de africanos, no interior da modernidade reacionária concebida pelas elites brancas.
Os sambas são percebidos nessa reflexão como sendo nossas contramodernidades, ou se se quiser ouvir uma voz negra advinda do hemisfério norte, nossa modernidade negra da afrodiáspora no Brasil. Nem sempre brasileiras, porque as vezes exóticas, noutras arcaicas, ou mesmo estranhas, quase sempre recusadas e, noutras vezes, em recusa à própria brasilidade, como proposição unificadora e autoritária das elites culturais brancas.
Desde a década de 1940 do século passado, observamos os descaminhos das várias práticas culturais negras e como elas têm sido alvo de inúmeros mecanismos de seleção, confinamento, apagamento e nacionalização violenta por parte da indústria cultural e das políticas culturais, conquanto os sambas antes fossem muitas coisas próximas e outras distantes e paradoxais. Uma unificação que talvez tenha sido um fruto de um jogo ou artifícios, de negociações
2 Utilizei o termo gênero musical, embora sabendo que conceitualmente não há consenso entre as diversas vertentes dos estudos sobre música e musicalidades. Nem mesmo dicionários renomados de música o definem. No Dicionário Grove de música , ele nem sequer aparece. Talvez não por ser desimportante, mas porque, diante da dificuldade de fazê-lo, os especialistas preferiram evitá-lo. Veja: sadie, Stanley. Dicionário Grove de música. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994
produzidas em algum lugar na capital da República, antes que a transferissem para o planalto central. Essa negociação entre diferentes desiguais é que se transformou no “maior espetáculo da terra”, onde o samba urbano carioca hoje é apenas a memória frágil e delicada da Praça Onze. Já discuti em outro texto que samba na África durante o tráfico de pessoas negras era concomitantemente verbo, nomes de lugares, divindades e nomes próprios masculinos e femininos. Também a palavra “samba” é, ainda hoje, raiz de inúmeras outras no contexto das sociedades africanas ditas da matriz linguística banta, localizadas na África Central. Trata-se também de um verbo empregado tanto como significado de rezar como de curar. É ainda empregado como topônimo. Por exemplo, Adriano Parreira em seu dicionário toponímico extraído de documentos sobre Angola nos séculos xv e xvii, indica Samba-a-Ngombe, como “designativo de uma kitanda, nos Dembo ou Ndembu, que foi reativada em 1625”. Sim, “kitanda” nesse texto significa feira ou mercado de produtos variados.
Antes, eu pensava ser uma palavra exclusiva e circunscrita às regiões de línguas bantas ao sul do continente africano, mas nesse momento já tenho dúvida. Entre outras coisas, pelo fato de poder ter lido registros dela no delta do rio Níger, ou seja, na parte noroeste do continente, com indicações de uso em tempo bem remoto. Aquela temporalidade do início do escravismo e já reportado por viajantes e indicado em narrativas míticas recolhidas por Leo Frobenius3 na região. Entre Wolofs, Sarakoles, Mandinques, ela também aparece como nome próprio. Samba Diop é um senegalês de origem Wolof que conheci nos anos 1990, um reconhecido professor de literatura africana que lecionou em Harvard e hoje mora e trabalha em Oslo.4
Este não é um artigo escrito para contestar outras autorias sobre o tema “samba”. Contudo, alguns “funérios designíos” não podem passar em branco, como escreveu há mais de 50 anos Raul Jovino do Amaral, escritor e memorialista, ativista e advogado negro paulistano. Tais autorias desabonadoras de culturas negras não são ignoradas ou meramente desqualificadas. Meu
3 frobenius, Leo e fox, Douglas. A gênese africana. São Paulo: Martin Claret, 2003.
4 Após uma suposta polêmica causada pela denúncia do cantor Seu Jorge, comunicando a imprensa ter sido impedido de aplicar o nome Samba ao registro de pessoa natural de seu último filho nascido, o jornalista Vinicius Assis, correspondente independente da Radio France Internacional, me entrevistou juntamente com outros artistas pesquisadores. assis, Vinicius.
“‘Incomum’ no Brasil, Samba é nome popular entre pessoas de países africanos”. rfi, 19 02 2023. Disponível em: www.rfi.fr/br/podcasts/brasil%C3%A1frica/20230219-incomum-no-brasil-samba-%C3%A9-nomepopular-entre-pessoas-de-pa%C3%ADses-africanos. Acesso em: 02 04 2023
objetivo é outro, isto é, verificar até que ponto certos cânones da cultura brasileira suportam perguntas postas por intelectuais dissidentes afro-indígenas. Até onde a hegemonia cultural branca poderá ser sustentada num devir democrático da sociedade brasileira?
Samba rural paulista é um conceito manifesto cunhado por Mário de Andrade na década de 1930. Gostaria de entender por que esse intelectual delicadamente complexo e difuso utilizou tais termos. Por que “samba”? Em que medida seria ele rural, e quais as determinações que o identificam como paulista? Conquanto o poeta fosse simpatizante das teorias de superioridade racial em voga, aliás, como a maioria dos intelectuais brancos de seu tempo, Andrade, de forma geral, mostrou-se meticuloso demais nos usos de termos e conceitos para ter feito tal afirmação de maneira leviana ou inadvertida.
O autor de Macunaíma tanto se interessou pelas práticas negras como também dicionarizou vários verbetes relacionados às muitas culturas musicais de origens africanas no estado de São Paulo5 e intentou fazer o mesmo em todo o país. Andrade, hoje é sabido, era poeta e político, músico e etnólogo. Vou dizer o que ele viu e nos apontou. E, naquilo que nós estamos seguindo seus rastros, seria para enxergar com mais nitidez a Sampa Negra, a qual já nos referimos em textos anteriores. A produção cafeeira fez do estado de São Paulo o local da mais densa população negra em fins do século xix. Os escravagistas praticaram o tráfico clandestino em larga escala até por volta de 1885. Ernani da Silva Bruno escreveu e publicou, no começo da década de 1950, um ensaio designado Café e negro: contribuição para o estudo da economia cafeeira de São Paulo na fase do trabalho servil. “Trabalho servil” foi um eufemismo utilizado pelos escravagistas brasileiros no século xix para não dizer o nome da coisa: escravidão negra. Silva Bruno sustenta que os empreendimentos dos cafeicultores do Rio de Janeiro, de São Paulo e de Minas Gerais começaram a deslocar grandes contingentes de capturados diretamente na África e deslocar pessoas escravizadas em áreas de economia decadente no norte do império. Vinham em média de 30 mil por ano, da Bahia e do Maranhão, substituindo gente preta que antes vinha diretamente do Congo e de Angola.6 Os fazendeiros sudestinos em linhas gerais combinaram alta racionalidade no controle das pessoas escravizadas, tecnologias produtivas semimecanizadas, tráfico clandestino e trabalho escravo em larga escala para obter lucros fenomenais. A essa combinação temos chamado
5 Ver, por exemplo: andrade. Mário de. Danças dramáticas do Brasil. 2. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002
6 bruno, Ernani Silva. Café e negro: contribuição para o estudo da economia cafeeira de São Paulo na fase do trabalho servil. São Paulo: Atlanta Editorial, 2005
de modernismo reacionário. Francisco Peixoto de Lacerda Werneck tinha deixado escrito um roteiro desse padrão da racionalidade escravagista.7
Importante lembrar que as culturas negras dominantes no território hoje chamado Sudeste, não obedeciam às fronteiras políticas do Império, e não o fizeram na República. Então parece haver certa artificialidade ou arbitrariedade em nomear as musicalidades negras como mineiras, fluminenses, capixabas ou paulistas, sobretudo aquelas feitas em quilombos, disseminadas em roçados de gentes negro-mestiça livres, ou mesmo gentes pretas escravizadas em grandes roças. Escravismo não é ausência de mobilidade. Aliás, o próprio sistema escravagista é um agente de mobilidade populacional, ao contrário do que se prega. Sobretudo após 1850, houve no país escravagista uma verdadeira revolução de mobilidade demográfica, com três agencias simultâneas: o tráfico clandestino, o tráfico interprovincial e a imigração massiva europeia. justamente por conta da larga presença populacional negra derivada do tráfico e da escravidão
Silva Bruno relata “sambas de pretos” em algumas fazendas por meio de registro de viajantes e faz alguma distinção com outra prática: o jongo como musicalidade-dançada por pessoas escravizadas. Traz também um conhecido relato da filha de um fazendeiro, dona Maria Pais de Barros, que descreve uma dança de umbigada acompanhada de música e cita vagamente um tambor: “zambumba”. Os termos que os viajantes europeus empregavam para adjetivar as práticas culturais negras no século xix ainda ecoam no texto de Silva Bruno ao descrever memórias de brancos que residiram no Vale do Paraíba, na parte do território da Real Província de São Paulo: “O jongo era dança monótona”. Contudo, nada há no texto que distinga aquilo que é chamado de jongo de outras práticas negro-mestiças definidas de forma igualmente vaga como batuques. O samba descrito como “rural” e “paulista” por Mário de Andrade talvez tenha sido categorizado como tal devido a um conflito com a intelectualidade situada na capital da República, portanto mais próxima do poder do Estado que foi contestado pela elite paulista na guerra civil, conhecida como Revolução
Constitucionalista, um evento de luta intestina entre as elites nacionais, mas que entrou para memória histórica, local e provincial paulista, como tendo sido feita em defesa da ordem republicana legítima, contra a usurpação do poder central, no governo de Getúlio Vargas. Uma tinta confederada numa outra paisagem, abaixo do Equador, um escravagismo saudoso, melancolia de plantation. Minha hipótese é que, mesmo sabendo dos trânsitos dos sambas feitos por pessoas negras, que se deslocavam entre zonas intermediarias, cidades
7 Cf. Ibidem, p. 121
e vilarejos, roças e a metrópole nascente, Mário de Andrade introduziu um adjetivo para evidenciar as diferenças com o tipo de samba que se fazia no Rio de Janeiro, em termos de discos gravados, espetáculos e veiculação radiofônica. “Rural” e “paulista” era o samba que se diferenciava dos sambas dos compositores Herivelto Martins e Grande Otelo, por exemplo. Mário se mostrava interessado em duas vertentes específicas de culturas musicais feitas no Brasil na década de 1930, a música letrada e erudita das classes superiores e a música dita “autêntica” das populações das áreas menos urbanizadas. Para fazer um registro dessas musicalidades em “perigo irreversível de contaminação” com “elementos estrangeiros”, programou e iniciou um registro do Brasil sonoro, naquela mesma década.
Quais sambas se ouvia nos bairros negros e nos arredores da cidade de São Paulo na década de 1930? Que tipos de musicalidades negras foram classificadas como sambas rurais nas cidades de Sorocaba, Tietê, Piracicaba? Que sambas Andrade e Lévi-Strauss dançaram numa residência de família preta na cidade de São Paulo e quais se ouviram na Festa de Pirapora? Quais suas diferenças ou semelhanças?
Ambas as festas negras foram fotografadas e relatadas pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss. Delas podemos tirar ao menos três perspectivas diferentes: uma festa familiar na qual se dançavam aos pares, mas não sabemos que tipo de conjunto tocava e qual música se executava; uma festa pública ligada ao calendário religioso, na qual as diferentes populações se deslocavam de carro, de trem, de carroça e caminhando a pé, do centro para a cidade de Pirapora do Bom Jesus, a oeste da região metropolitana de São Paulo; por fim, um desfile carnavalesco no qual se encadeiam organizadamente batalhões de músicos e foliões. Segundo Caetano Veloso na canção “O estrangeiro”, o que parece ser fato dado e registrado é que o antropólogo, na verdade etnólogo, não gostou da baía de Guanabara, “pois pareceu-lhe uma boca banguela”. Ele deixou fotografias mais artísticas do que de importância etnológica, e o mesmo se aplica a suas observações pobres de detalhes e rica de imprecisões sobre a população negra que vivia em São Paulo no tempo de sua estadia, em meados da década de 1930. Contudo, foi Lévi-Strauss quem primeiramente apontou a sobreposição de tempos imposta pela modernidade na paisagem arquitetônica da cidade. A máquina da modernidade tropical.
Vamos retomar o conceito de modernismo reacionário de Jeffrey Herf 8 e aplicá-lo por um momento ao contexto paulistano do começo do século xx.
8 herf, Jeffrey. Modernismo reacionário. São Paulo: Ensaio, 1993
Herf, que estudou tecnologia, cultura e política da República de Weimar e a modernização alemã, argumenta que um aspecto paradoxal dos circuitos culturais e de pensamento entre as elites intelectuais alemãs aceitava a noção de modernidade tecnológica e produtiva, mas rejeitava a noção moderna advinda do Iluminismo de igualdade e solidariedade entre as classes sociais. Essa modalidade conceitual parece adequada para entendermos a revolução produtiva brasileira e a manutenção da exclusividade colonial branca em todos os campos da nossa vida nacional.
Modernismo e racismo cultural antinegro em São Paulo, esse é o mote do nosso samba. Aqui não tem crioulo doido saído da caneta de poeta branco, posto que muita gente negra foi encarcerada em manicômios e morta lá desde finais do século xix. Agora estamos mais conscientes da faxina racial, com ares de ciência médico-psiquiátrica. Siga os relatos de Bispo do Rosário e Lima Barreto e procure saber sobre Franco da Rocha e Barbacena. Eram dezenas de instituições similares fazendo o mesmo serviço em todo o país.
Muita tinta foi empregada para discutir sobre o samba (no singular) e sua incidência na identidade una brasileira, sua importância para a projeção internacional da cultura “genuína” brasileira. Sim, o samba, chamado assim no singular, é um signo confirmado de brasilidade. Penso que em parte devemos isso a um produtor cultural e locutor de rádio de origem italiana, conhecido por Osvaldo Sargentelli.9
Por musicalidade, defino o pensar e o saber fazer musical com todas suas implicações subjetivas e intencionalidades. Não são nada inatas as capacidades humanas para a música, mas, sim, a transformação dos sons em signos que podem ser diferentemente combinados e emitidos por corpos sonoros, objetos fônicos e objetos mecânicos pelo mundo também tem fonte na África, de onde vieram meus ancestres. Sociedades humanas sistematizaram diferentes tipos de musicalidades e as transmitiram no tempo/espaço. Aqui é evocado algo que se pode classificar como valores civilizatórios das sociedades africanas, tomadas de assalto pelo colonialismo expansivo europeu. Para onde foram, pessoas africanas levaram consigo pensamentos musicais, culturas musicais, tecnologias para construir e tocar objetos fônicos, além de seus próprios corpos.
9 O poeta Vinicius de Moraes falava abertamente sobre sua preferência sexual por mulheres negro-mestiças em tom debochado e misógino, como era comum em seu tempo, mas foi Osvaldo Sargentelli que criou e internacionalizou um espetáculo de exibição dançante-musical, com profundas conotações sexuais, o show de mulatas. A música de fundo era samba, em uma das modalidades do gênero suburbano carioca.
Portanto, aquilo que explica nossa negra presença nesse território é um holocausto que ainda não cessou. Sim, o colonialismo como procedimento e mentalidade ainda está em expansão, e não sem violência racionalizada e virulência cotidiana. No caso brasileiro, ele é promovido por um novo bandeirantismo outorgado pelo mercado e pela política econômica em várias frentes. Para explorar as terras ainda intocadas dos povos originários, mas também empregado no controle e na trituração dos afro-indígenas semiurbanos, assim gerando altíssima lucratividade das novas elites globais. Tudo que aparece como tragédia é efetivamente racionalidade e planejamento, redução de custo e efeitos colaterais, enquanto nós outros lidamos constantemente com a redução de danos. A destruição da vida, do ambiente natural e cultural é extrativismo. A cultura e as práticas artísticas também entram no mercado de commodities.
Desde a invenção dos equipamentos mecânicos de captura e difusão sonora, o saber fazer musical e as musicalidades mais diversas têm sido paulatinamente atraídas por algo que se convencionou chamar de indústria do entretenimento. A música, sim, a música, sem sujeito humanamente localizável, já não é mais musicalidade, pode ser difundida, copiada, vendida e comprada na forma de algoritmo. Uma música que prescinde do/a sujeito/a humano/a e sua cultura musical, suas criatividades e inteligências musicais. Há ainda algum grau de sociabilidade que caracterizava a musicalidade até o século xx. Contudo, o símbolo do sujeito musical contemporâneo parece uma cabeça com aspecto robótico, com um caríssimo fone de ouvido. Digamos: a individualização da audição e uma seleção realizada por inteligência artificial. Eu nada tenho de saudade, mas sim história e visão retrospectiva da modernidade.
Neste texto, gostaria de introduzir uma reflexão sobre uma modalidade específica de racismo antinegro no Brasil: o racismo cultural. E também tentar mapear as maneiras pelas quais ele tem se manifestado na cidade de São Paulo ao longo desse tempo de modernizações contínuas. Por outro lado, quero desde já enfatizar que, apesar da modernidade branca, as populações negras em São Paulo aprenderam estrategicamente a escapar do racismo antinegro e a frustrá-lo em todos os campos de sua experiência cotidiana.
Por racismo antinegro, penso sobretudo em ideologias e práticas de exclusão social, mas são também complexas negociações e, sobretudo, inclusões simbólicas seletivas. O samba reduzido a uma única forma e significância musical tem sido um dos itens mais manipulados social e politicamente para dizer do nosso “caráter nacional”. Esse era o termo empregado por Mário de Andrade para tratar da questão da identidade cultural brasileira. A nacionalização da cultura teve que lidar com o fato da presença e da fundura das formas estéticas,
linguísticas e religiosas dos imaginários negros presentes em todo o território, com maior ou menor incidência. Em algumas regiões, sobretudo onde a eliminação física e simbólica não era possível, foi necessário estabelecer pactos desiguais de convivência ou coabitação.
Uma história cultural negra e crítica do Brasil pode ser feita recuperando os caminhos das mudanças semânticas do samba e os caminhos filosóficos e práticos das culturas carregadas de sambas. A política de nacionalização cultural iniciada em 1822 parece ter se reconfigurado em 1922, e novamente encerrado um novo ciclo em 2022. Não são simples efemérides, são ajustes de módulos da máquina colonial no interior do território. O Estado-nação é o engenho, do centro da plantation, da casa-grande se opera a máquina de moer coisas, “gados e gentes”.
“Samba rural paulista”. Quais os limites entre o mundo rural e urbano na ex-colônia portuguesa das Américas na década de 1930, quando a industrialização e a urbanização eram, em sua maioria, ainda um sonho? E, vivendo hoje o caos da urbanização e o refluxo da desindustrialização, como interpretamos aquele tempo?
Não trago um texto sobre o samba no singular, como tem sido comum nos estudos sobre a musicalidade supostamente nascida na Pequena África do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século xx. Avento a hipótese de haver nesse padrão narrativo uma retórica nacionalista provinciana, que recaiu sobre a cidade que foi a capital da República. Retórica pouco histórica, mas replicada sem problematização nos dutos de alto prestígio acadêmico. Dutos exclusivos, geralmente ocupados por homens brancos sudestinos, que fazem negócios acadêmicos com seus próprios pares. Essa versão sumária e simplista tem cunho bairrista e nacionalista. Ela já não pode mais se sustentar diante das inúmeras pesquisas recentes, que apontam para o fato de que diferentes práticas culturais daquele mesmo período podiam ser igualmente identificadas como sambas.
Gostaria de convidar minha leitora eventual ou imaginária para seguirmos os passos do intelectual paulista Mário de Andrade pelas ruas centrais da capital de São Paulo e arredores entre 1930 e 1940, numa época em que a cidade pouco tinha a ver com a megalópole que temos hoje em dia. Entretanto, poderemos verificar que muitos embriões dos elementos que caracterizam a megacidade de hoje já estavam potencialmente definidos lá. Parece ter havido um questionamento sobre a origem única do samba. Justamente quando ele recebia o carimbo de brasilidade na capital da República. Mas Mário de Andrade não foi o único a fazer isso.
A modernidade e a diversidade, a velocidade e as desigualdades, a pujança econômica e as violências, em proporções bem menores, já habitavam São Paulo naqueles inícios dos anos 1930. A concentração de poder, prestígio e renda nas mãos dos eurodescendentes caracterizava a cidade promessa, a Canaã da modernidade tropical daqueles anos. O racismo antinegro paulista já estava bem definido antes mesmo de 1930. Mas quem o viu assim e nos contou? Quem nos legou um registro próximo do real daquilo que se percebeu?
Lilia Moritz Schwarcz, nos anos 1980, já nos indicou promissores caminhos para recuperar parte dessa história, em seu livro Retrato em branco e negro. 10 Ela mesma, renomada e controversa professora, que, no início da década de 2000, assinou documento da elite intelectual branca contra as políticas afirmativas, e depois reviu posição, “desassinou” e se desculpou publicamente. Recentemente, ela criticou superficialmente num decadente jornal impresso o videoclipe da cantora negra estadunidense Beyoncé e supostamente quase foi “cancelada” pelo ativismo antirracista nas redes sociais. Deu tremendo chilique diante das telas e, depois de se recompor e se desculpar novamente, voltou a ser o que é.
Que seja contraditória porque branca, brasileira e humana, Schwarcz tem sido uma observadora perspicaz, uma crítica privilegiada dos movimentos erráticos da sociedade brasileira contemporânea. Nos últimos anos, uma das principais apoiadoras da aplicação de cotas raciais para alunes negres e indígenas no controlado e discriminador ingresso via vestibular na universidade pública, onde ela se formou e trabalha, a usp. Então, senta, que lá vem estória, história, História.
O último censo do império, de 1872, dava conta de que 15,87 por cento da população total negra era escravizada no país naquele momento.11 Aproximadamente 3.828 pessoas eram escravizadas, para 27.557 pessoas livres que viviam na cidade de São Paulo no mesmo período. A população total era de 31.385 pessoas.
No nível nacional, o primeiro projeto de branqueamento foi induzido por José Bonifácio no começo do Império, mas somente tomou vulto a partir de 1860. A província e depois estado de São Paulo manteve uma política de incentivo à colonização europeia até a década de 1960, segundo Reid Andrews.12
10 schwarcz , Lilia Moritz. Retrato em branco e negro. São Paulo: Companhia das Letras. 1987.
11 “Território brasileiro e povoamento”. In: Brasil 500 Anos. ibge. Disponível em: brasil500anos.ibge.gov.br/en/territorio-brasileiro-e-povoamento/negros/ populacao-negra-no-brasil. Acesso em: 11 04 2023
12 andrews, George Rei. Negros e brancos em São Paulo (1888-1988). Bauru: Edusc, 1998
Nesse caso, modernizar era também fomentar o embranquecimento biológico e cultural gradual da população. O estado de São Paulo levou essa política até onde pôde. Tal fim foi perseguido de diferentes maneiras, como veremos a seguir. Sobre a população do estado, Andrews nos apresenta a seguinte percepção:
À medida que o café e o açúcar se disseminavam por São Paulo, levavam com eles a escravidão. Em 1811, os escravos africanos e faro brasileiros eram responsáveis por 23% da população de São Paulo, proporção que se elevou para 28% na década de 1830 e permaneceu nesse nível por toda a década de 1850, antes de cair para 19% em 1872. Em termos absolutos, entre 1811 e 1836, a população escrava de São Paulo, duplicou em tamanho – de 38.542 para 78.858 – e depois tronou a duplicar em 1872, atingindo 156.612. Em meados da década de 1870, São Paulo abrigava a maior população escrava do país, excedido apenas pelas províncias de Minas Gerais e Rio de Janeiro.13
Diferente do que se pensa, os maiores contingentes populacionais de pessoas negras no Brasil escravista, no fim do século xix, não se concentravam no norte, mas no Sudeste. A razão para isso foi o tráfico “clandestino” de pessoas africanas, patrocinado e organizado pelos modernos produtores de café. Mas o motor dessa mudança populacional drástica foi, principalmente, o tráfico interno, administrado pelos cafeicultores, cuja documentação inexiste e estudos específicos são absolutamente raros, ainda hoje. Foi a compra massiva e o deslocamento indocumentado de “pretos/as” africanos/as velhos/ as e afro-brasileiros/as “pretos/as novos/as”, por vezes grafados crioulos/as e ladinos/as, que drenou de forma rápida e eficaz boa parte da população negra do norte açucareiro decadente para as “reais províncias” de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.
Foi também o estado de São Paulo, com recursos próprios, por meio de seus dirigentes empresariais/políticos, que empreendeu o maior projeto regional de importação de mão de obra europeia. Esse movimento não passou desapercebido pelas lideranças negras na cidade e no estado de São Paulo. Mas o pesquisador desavisado ou de má-fé, pelo seu compromisso com a história política de exaltação das elites, pode interpretar tais críticas ou denúncias de boca negra selada, como sentimento de xenofobia. Aliás, foi isso que fez Antônio Sérgio Guimarães ao tentar explicar os argumentos da Frente Negra Brasileira em favor do trabalhador negro, eufemisticamente chamado nos documentos da
13 Ibidem, p. 55
época de “elemento nacional”. Antes, nós, ou nossos ancestrais, éramos denominados “elementos servis”. Veja a definição de Guimarães:
A modernidade negra é o processo de inclusão cultural e simbólica dos negros à sociedade ocidental, mas, sob a palavra negra se escondem personas muito diversas: o escravo e o liberto das plantações; o africano, o crioulo, o mestiço e o mulato das sociedades coloniais americanas; o norte-americano, o latino-americano, o africano e o europeu do mundo ocidental pós-guerra.14
A modernidade ocidental é uma tentativa de aceleração artificial do tempo, uma visão mística formulada na crença na capacidade sem limites dos humanos europeus de redenção pela tecnologia de produção industrial e das chamadas ciências positivas. Um imaginário etnocêntrico projetado como futuro, mas não um devir da humanidade como um todo. É também um tempo de vitória da eugenia e da crença absoluta da hierarquia entre as raças. Era, sim, futuro do mundo europeu expandido e suas conquistas econômicas, políticas e tecnológicas. O Pacto de Berlim, ato político e militar pelo qual os impérios europeus antigos e os novos estabeleceram uma cartografia geopolítica dos “tempos modernos”.
A modernidade negra é mais do que sua antítese. Recebeu o estímulo da modernidade ocidental, daquilo que havia de mais promissor em seu núcleo, as ideias de igualdade, liberdade e humanidade. Mas foi além dela, na prática e nas teorias, revelando suas contradições. Diferentemente do que argumenta
Antônio Sérgio Guimarães, se desprendeu dela ainda em fins do século xviii na revolução do Haiti, e até o presente segue seus próprios desígnios. Uma permanência do racismo acadêmico brasileiro consiste em negar, minimizar e apagar os efetivos protagonismos das pessoas negras em quaisquer áreas de atuação. Há certos aspectos internacionalistas do ativismo político- social-artísticos negros no Brasil que têm sido muito mal interpretados ou reconhecidos como meramente alienantes ou alienígenas por avaliadores nacionalistas.15
Uma resposta intelectual e política vasta, contudo vigorosa, porque desproporcional. Os ativistas negros/as nas Áfricas, Caribe, eua, além de Lon-
14 guimarães, Antônio Sérgio. “A modernidade negra”. Teoria e Pesquisa , n. 42-43, jan./jul. 2003, p. 42.
15 Correia Leite disserta longa e saborosamente em suas memórias sobre as estratégias de publicação dos jornais negros paulistas a partir de artigos vindos de seus congêneres nos eua. Especificamente sobre o movimento pan-africanista, suas ideias são muito negras, nítidas e críticas, não há qualquer sinal de transposição mecânica de ideias ou análises. leite, José Correia e cuti, Luís da Silva (orgs.). …E disse o velho militante José Correia Leite: depoimentos e artigos. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992
dres e Paris, vão desvelando com nitidez um a um os embustes da dominação racial e colonial. Os limites das promessas do Iluminismo. Para tanto, produziram uma filosofia mundial negra e roteiros práticos de embate simultâneo ao colonialismo e ao racismo pseudocientífico que domina as instituições. Teria sido diferente no Patropi?16
Um signo um tanto trágico e complexo da modernidade negra no Brasil tem sido a figura do engenheiro negro André Rebouças. Ele formulou a emancipação total de escravizados/as e sua integração ao Estado-nação. Ao fim da linha desesperançada, numa ilha atlântica remota, lançou seu corpo num despenhadeiro, depois de ter indicado que o futuro da humanidade estaria na África. Essa espécie de profecia-utopia negra se encontra também, em tons, ênfases e formas diferentes, em Marcus Garvey e Manuel Querino, Martin Delany e Luiz Gama, Edward Du Bois e Frederick Douglass. Modernidade negra, na reflexão que aqui faço, é um confronto indireto com a dominação branca no mundo, propiciada pelas filosofias negras que emergiram no bojo das novas dominações do ocidente expandido. Quais foram suas caraterísticas no Brasil nos embates com o colonialismo interno?
Antônio Sérgio Guimarães, tido como importante parceiro do ativismo negro do fim do século xx, produz um olhar de profundo desprezo pelos movimentos negros no Brasil entre as décadas de 1930 e 1980, percebidos como isolados e inautênticos, ingênuos e ideologicamente dependentes de seus pares no norte. Intelectualmente desonesto, empresta o conceito de modernidade negra de Paul Gilroy17 sem fazer nenhuma referência a ele. Certos pesquisadores profetas18 que enfileiraram junto com a mídia de viés conservador contra a implementação das políticas afirmativas, no mesmo período em que Antônio Sérgio publicava sua interpretação sobre modernidade negra no Brasil, são portadores dessa mesma percepção sobre a inautenticidade do ativismo negro no Brasil.
16 “Patropi” é abreviação livre de “país tropical”. Termo cunhado pelo cantor-compositor Jorge Ben Jor na canção que mistura o ritmo de samba em síncopa de jazz, no formato 4 x 4. Após seu primeiro álbum alcançar sucesso de execução radiofônica, o cantor foi enviado aos eua pelo Itamaraty em 1966, no começo da ditadura, numa espécie de diplomacia cultural, representando o Brasil. “País tropical” é uma apologética e ufanista canção, contudo criada no momento posterior ao seu retorno dos eua, e foi gravada primeiramente por um astro do show business, Wilson Simonal, alguns meses após a decretação do Ato Institucional número 5. “Jorge Ben Jor”. In: Enciclopédia Itaú Cultural de arte e cultura brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2023. Disponível em: enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa13998/jorge-ben-jor. Acesso em: 25 04 2023
17 gilroy, Paul. Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro/São Paulo: Ucam/Editora 34, 2001
18 Refiro-me especificamente a Peter Fry, Yvone Maggie, Lívio Sansone, Paula Montero, Ruth Cardoso e Demétrio Magnoli.
As elites intelectuais e sociais desde tempos coloniais importam modas, modelos teóricos, padrões estéticos, visões de mundo, textos constitucionais, estruturas organizacionais. Mas inautênticos sãos os “outros”. A brasilidade autêntica cabe aos subalternos reduzidos ao território e a critérios de nacionalização daquelas mesmas elites nacionalizadoras.
A senhora Moritz estudou certas mudanças nos padrões de construção social de estereótipos negativos de pessoas negras na cidade de São Paulo, tendo como fonte os jornais impressos. Trouxe documentos que atestam o fato de que havia algo que os letrados paulistas identificavam como “coisas de pessoas e coletividades negras”, e genericamente grafavam como o nome de samba, como você lerá nos fragmentos documentais abaixo.
No dia 13 de maio, o próprio dia da libertação. Deu-se um conflito entre libertos que assistiam a um samba de pretos resultando sahirem alguns com a cabeça quebrada e hum deles ferido com 3 faccadas.
Foi ante-hontem barbaramente espancado um moço que assistia a um samba de pretos no largo da Liberdade.
A província de São Paulo, 4 de junho de 1889.”19
Samba em São Paulo em 1889.
O que seria?
Me interessa menos saber sobre a autenticidade desses sambas, se são ou não genuinamente paulistas, e assim podem confirmar a paulistanidade sambística. Não é meu objetivo. Na verdade, a essa altura do texto, nem sei ao certo qual é. Mas garanto que debates intelectuais feitos em torno de regionalismos provincianos não me mobilizam.
Sobre o fragmento documental, penso que o mais provável é que qualquer ajuntamento público ou privado de pessoas negras com a presença de musicalidade e dança fosse chamado de “samba”, já naquela época. Mas como esse termo circulou pelas províncias do Império? O tráfico clandestino e o tráfico interprovincial ou interno de pessoas negras aparentemente foram o motor, pondo em circulação, numa ampla geografia escravagista, também práticas culturais, imaginários, valores civilizatórios africanos antigos e novos, gerados na afrodiáspora.
19 A Província de São Paulo, 16.05.1889 e 04.06.1889. Apud schwarcz , Lilia Moritz. Op. cit., p. 230
Como antes se aplicava de forma genérica o termo “batuque” pelos observadores desinteressados, agora (no alvorecer de 1900) era o “samba”? Como se poderia deduzir hoje a especificidade de cada coisa musical ou musicalidades negras de ontem?
Bastante presente nas redes sociais, a pesquisadora nos formulou ao menos duas hipóteses dissonantes sobre o racismo praticado pelas elites letradas na passagem do século xix para o xx em São Paulo, capital, no início daquela que foi chamada de “República dos Fazendeiros”, que por vezes vem grafada como oligarquia.20 Traduzindo aqui oligarquia como governo dos donos de terras, plantation, engenhos ou grandes fazendas. Schwarcz, mulher branca paulista de origem judaico-alemã, filha dileta de um curso de antropologia implementado em São Paulo por um homem judaico-francês, Lévi- Strauss, demitido da Universidade de São Paulo, a usp, quando o antissemitismo fez suas vítimas na cidade na década de 1930. O governo paulista esteve em consonância com o racismo antijudaico recorrente na Europa. As políticas oficiais e oficiosas de discriminações raciais da ditadura implementadas por Getúlio Vargas e seus ministros mais próximos após 1937 apenas recentemente têm chamado a atenção de pesquisadores/as.21
Os estudos e práticas políticas da pesquisadora poderiam ser identificadas como uma expressão cabal de solidariedade interétnica expressada por ela e outros intelectuais de origem judaico-alemã no Brasil, não fossem suas opções de natureza conservadora publicizadas em outros momentos importantes do ativismo antirracista em São Paulo e no Brasil.
Em Retrato em branco e negro, estudo fruto de sua pesquisa de mestrado realizado na Unicamp, uma instituição pública pertencente à população do estado e instaurada em 1966, dois anos após o início da ditadura civil-militar, a senhora Moritz se aproxima bastante das formulações teóricas do historiador negro britânico Stuart Hall, cuja produção é uma pouco anterior à sua, contudo só entra no Brasil em língua portuguesa em traduções realizadas na década de 1990. Ela utiliza, sobretudo, a noção de que uma parte do que chamamos de racismo é um sistema de representação racializada. No seu caso, os jornais pau-
20 Ver, por exemplo: schwarcz , Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870 -1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993
21 As pesquisadoras Anita Novinsky e Maria Luiza Tucci Carneiro abriram um amplo campo de estudos sobre antissemitismo no Brasil. Contudo, naquilo que se restringe à chamada Era Vargas, entre 1930 e 1945, ainda são poucos os trabalhos. A exceção continua sendo: carneiro, Maria Luiza Tucci. O antissemitismo na Era Vargas (1930 -1945). São Paulo: Brasiliense, 1995. Embora possa apontar algumas contribuições de pesquisas feitas entre pesquisadores negres e de origem judaica, até o presente não me lembro de ter lido um único artigo sobre isso.
listas são abordados como suportes materiais de expressão do pensamento das elites brancas, cafeicultoras, “republicanas e modernizantes”.
Schwarcz nos alertou sobre uma mudança sistemática e contínua nos padrões de representação das pessoas negras e, por conseguinte, de seus costumes, suas atitudes e suas práticas, que vão se tornando cada vez mais estigmatizadas e inadequadas a uma cidade que se moderniza, quer dizer, que assume uma aparência de cidade europeia nos traçados das ruas, na arquitetura dos prédios, nos comportamentos tidos como civilizados, em contraposição àqueles outros incapacitados para os novos valores de urbanidade e cultura. Essa febre de modernização tópica não passará desapercebida para Raul Joviano do Amaral, 22 ativista/memorialista negro ligado à Irmandade do Rosário dos Pretos de São Paulo, citado na epígrafe deste texto. Nos seus termos, “estamos habilitados sobretudo a descontar os zelos preconceituosos”, quer dizer, as discriminações raciais daquela época, que somente mais tarde podem ser definidas pelo seu nome e sobrenome: racismo antinegro.
Muitas vezes estamos presentes, mas somos ausentados na produção das memórias e/ou histórias únicas sobre a cidade. Não podemos entrar na categoria povos indígenas, nem nos bandeirantes, menos ainda nos imigrantes, embora também os sejamos, imigrantes compulsórios. Mas essa categoria não se aplica para efemérides e eventos oficiais citadinos. Como não há uma categoria que nos visibilize no quadro, inexistimos.
Aqueles pretos vindos de alguma cidade do interior do estado, observados por Mário de Andrade (ver a epígrafe), por onde andavam?
Em que viela haviam desaparecido quando a cidade recebeu o honroso título de “Túmulo do Samba”? Esse termo é atribuído ao diplomata/poeta/compositor Vinicius de Moraes (autointitulado capitão do mato e predador de mulatas em letra da canção “Samba da bênção”23) e eternizado pela canção “Sampa”, de Caetano Veloso, lançada em 1978. Trata-se de uma percepção reiterada do processo de invisibilidade cultural negra, aquela registrada por Caetano 40 anos depois. O próprio Mário de Andrade estabelece uma tese:
22 amaral , Raul. Joviano do. Os pretos do Rosário de São Paulo: subsídios históricos. São Paulo: João Scortecci Editora, 1991, p. 33 23 Ver este interessante estudo de: kuehn, Frank Michael Carlos. “Estudo sobre os elementos afro-brasileiros do candomblé em letra e música de Vinicius de Moraes e Baden Powell: os ‘Afro-sambas’”. In: Anais do 3º Colóquio de Pesquisa em Música. Rio de Janeiro: ppgm/ufrj, 2012 (2002), pp. 94-103. Disponível em: www.academia.edu/685708/estudo_ acerca_dos_elementos_afro_brasileiros_do_candombl%c3%89_nas_ letras_e_m%c3%9asicas_de_vin%c3%8dcius_de_moraes_e_baden_powell_ os_Afro_Sambas. Acesso em: 12 04 2023
A festança estava fraca, este ano e aquele dia, e em vez dos pelo menos três grupos de samba que esperava encontrar, um só reinava. A principal razão do fracasso derivou da reação dos padres e excesso de repressão policial contra a parte profana dos festejos. Ainda o ano passado, conforme informação que obtive de um morador de Pirapora, confirmada pelo depoimento de Mário Wagner, dois barracões grandes existentes na vila, pertencentes aos padres e devolutos, eram entregues aos festantes que não tinham onde se alojar. Aí dormiam, comiam, brincavam etc. E aí também realizavam os sambas. Este ano os barracões, por determinação dos padres, de mãos dadas com a polícia, só serviam de dormida, sendo proibido sambar neles. Os sambas foram expulsos pro ar livre (aliás seu lugar tradicional), e para as entradas da cidade.24
Mário de Andrade, paradoxal como humano, não deixa de reclamar de suas dificuldades para anotar as letras das rodas de sambas e conta do alto consumo de cachaça de festantes negras e negros. Mas esta observação tem passado um tanto desapercebida de estudiosos de culturas negras paulistas: uma possível ação combinada da polícia e do clero católico para limpar a cidade. Essa prática política, verificada em todo o país por pesquisadores de culturas negras que observaram essas mesmas décadas entre 1900 e 1940, é que chamamos racismo cultural. Mais misterioso que o túmulo de Vinicius/Caetano verificado décadas depois é o fato de os negros paulistas não terem desaparecido após cinco séculos, embora nos anos 1950 as estatísticas oficiais já os dessem como inexistentes. É um mistério que estejam presentes produzindo cultura e movimentos culturais na cidade após inúmeros processos de limpeza racial e cultural empreendidos pelas elites brancas, em suas ideologias e sua violência material e simbólica cotidiana. Suas renovadas práticas de colonialismo interno, na maioria das vezes aplicam altas tecnologias, revestidas de discursos que velam o ato real, pelo uso difuso e sem sentido dos termos modernização/modernidade/ modernismo.
Este texto deverá ter um desdobramento, com pesquisa estendida para acervos do Arquivo do Estado de São Paulo no sentido de verificar se há registros documentais da repressão sociocultural antinegra, apontada por Mário de Andrade no período de 1930-1940.
Eu, como pesquisador de história cultural, gostaria de saber quais modalidades de práticas culturais negras ou de origem africanas se desen-
24 andrade, Mário de. Aspectos da música brasileira. 2. ed. São Paulo/ Brasília: Martins/inl , 1975, p. 147
volviam na cidade naquele tempo. Para quem devo perguntar? Historiadores brancos, filhos e netos dos fazendeiros? Para antropólogos europeus, franceses especificamente, que visitaram ou deram aulas na cidade de São Paulo naquele tempo? Devo interrogar artistas que fizeram carreira a partir do evento ocorrido em 1922 no famoso Theatro Municipal de São Paulo?
Observo imagens guardadas pelos Moreira Salles e publicadas em dois livros a partir de memórias do antropólogo Claude Lévi-Strauss, quando recém-chegado ao Brasil em princípio da década de 1930, para ministrar aulas na Universidade de São Paulo. Acesso também fotogramas de transeuntes negros/as anônimos/as capturados pelas lentes de funcionários qualificados do jornal O Estado de S. Paulo. De onde eu posso percebê-los, estão aparentemente emudecidos para sempre.
Será que não nos podem dizer nada? Será apenas questão de método? Como interpelar gente incógnita do passado para entendermos a cidade hoje? Quais musicalidades fizeram no passado e que musicalidade fazem hoje nessa cidade murada?
Modernismo reacionário ou modernidade perversa? Pergunto ao geógrafo negro, renomado e simultaneamente desprezado pelas novas elites intelectuais, um professor afro-baiano cuja cidadania foi cassada pelo regime militar nos anos 1960. Milton Santos se aprofundou no estudo da urbanização brasileira e daquilo que era chamado de “terceiro mundo” até o final do século xx. Falando sobre São Paulo, sustenta que:
A modernização contemporânea libera e repele mão de obra menos qualificada nos espaços que especializam (com a atividade industrial e agrícola) e encaminha grandes levas de pobres para as grandes cidades, onde se defrontam com enormes problemas para subsistir. As grandes cidades do terceiro mundo são repositórios, ao mesmo tempo, dos elementos da modernidade e de uma grande massa de deserdados, gerados, em boa parte, como função dessa mesma modernização que, assim, vê acentuado seu caráter perverso.25
Modernização perversa pode ser cidadania para poucos, reservada para brancos.26 Penso ser nos desvãos dos silenciamentos históricos que po-
25 santos, Milton. Por uma economia política da cidade: o caso de São Paulo. São Paulo: Edusp, 2019, p. 47
26 Estudos recentes sobre desigualdade na cidade de São Paulo apontam para diferenças abissais sobre expectativa de vida nas áreas nobres, como nos bairros da Zona Oeste, como Jardins e Pinheiros, em contraste com zonas extremas nas zonas Sul e Leste. A discrepância é de 20 anos entre negros e brancos.
deremos encontrar nossos antepassados negros e negras, ouvir seus sons, seus ruídos e murmúrios. Sentir e sorver suas musicalidades de forma indireta por meio de textos, imagens, grafismos e, talvez, alguns registros técnicos acústicos mecânicos, próprios da modernidade tecnológica da primeira metade do século xx. Aqui, vamos ficar apenas com os textos.
Talvez ainda suportando o peso de séculos de cultura escravagista e o impacto das riquezas obtidas em sua canga, por meio dos potentados, pais e avós dos modernistas, aqueles que investiram em tráfico e venda de peles/mentes negras e simultaneamente na monocultura das grandes fazendas de café, nós somos literalmente resultado do lucro obtido com aquilo tudo que eles desumanamente produziram com terra e sangue. Os teóricos filhos deles importaram o termo de um homem de cultura germânica vivendo em Londres, e chamaram de “acúmulo primitivo de capital”.
Vamos conversar um pouco com o autor do Macunaíma:
Por quatro vezes tive ocasião de ver o samba rural de São Paulo. Embora nunca fizesse estudo perfeitamente sistemático me creio em condições de dar uma discrição dele. […] As primeiras observações foram devidas ao simples acaso, pelos carnavais paulistanos de 1931, 33 e 34. Já neste de 1937 parei propositalmente em Pirapora, na noite de 4 de agosto, com intenção determina de assistir aos sambas.27
Andrade estava presente em várias frentes de ativismo cultural e político nesse período, era funcionário da prefeitura, estando à frente de um recém-criado Departamento de Educação e Cultura do município, para o qual desenvolveu um ambicioso programa educacional, de pesquisa e criação artística. Simultaneamente, fundava a Sociedade de Etnografia e Folclore, em 1937, em colaboração com Claude Lévi-Strauss e Dina Dreyfus.28 Esse clima de festa cosmopolita de certa maneira confirmava o projeto político cultural concebido entre o pequeno comitê paulista da Semana de Arte de 1922 e estendia o clima de descobertas criativas, aproximações intelectuais apaixonantes. Uma cidade voltada para o mundo, mas, a partir dos meses finais de 1937, o caldo começou a entornar ou esfriar. Das memórias deixadas por Claude Lévi-Strauss sobre esse período, uma me tem chamado muito a atenção, desde que a li numa dessas
27 andrade, Mário de. “O samba rural paulista”. Revista do Arquivo Municipal , São Paulo, Departamento de Cultura, ano 4, v. 51, 1937.
28 valentini, Luísa. Um laboratório de antropologia: o encontro entre Mário de Andrade, Dina Dreyfus e Claude Lévi- Strauss (1935-1938). Dissertação de mestrado em antropologia. Universidade de São Paulo, 2010
publicações que valorizam mais as imagens que os textos. Nela, o renomado antropólogo se recorda:
Meus colegas e eu havíamos chegado a São Paulo em pleno carnaval. Na mesma noite saímos em exploração através da cidade. Num bairro popular, uma casa baixa com janelas deixava ouvir uma música tonitruante e viam-se pessoas dançando. Aproximamo-nos e um negro alto que guardava a porta disse que podíamos entrar e dançar, mas não para olhar.
Dançamos portanto com aplicação, receio que sem a menor habilidade, e causando muitos incômodos às mulheres jovens, negras também, que, numa total indiferença, aceitavam nossos convites.29
Esse pequeno texto parece que abre uma janela enorme sobre a paisagem humana da cidade de São Paulo e, se for acrescido das fotografias publicadas nas páginas seguintes do mesmo livro, caso tenham sido tiradas naqueles mesmos anos entre 1934 e 1937 citados acima por Mário de Andrade, confirmam a existência de uma cidade negra, ou ao menos um quadro referencial marcado por práticas culturais negras na cidade de São Paulo.
Que seria esse adjetivo “tonitruante”? Quase sempre os viajantes se referem às musicalidades negras que presenciam com alguma forma de adjetivação. Quase sempre é negativa, quase sempre indicam algo que se aproxima do antiestético, ou antitético, em relação à cultura musical ocidental, que define a cultura dos outros e estabelece os parâmetros de bom gosto.
Há boa identificação das fotografias feitas por Lévi-Strauss, e amplamente conhecidas entre pessoas que pesquisam culturas negras em São Paulo.
A saber, Iêda Marques Brito, 30 Olga Von Simsom, 31 Marcelo Manzatti, 32 entre tantas e tantos. Contudo, tais imagens e textos nem sempre são entrecruzados para se entender o contexto e suas partes interditas.
Podemos, sim, situar um bloco de carnaval na rua Brigadeiro Galvão, no bairro de Campos Elíseos, já identificado por pesquisadores e pesquisadoras
29 lévi-strauss, Claude. Saudade de São Paulo. São Paulo: ims/Companhia das Letras, 1996, p. 43.
30 britto, Iêda Marques. Samba na cidade de São Paulo (1900 -1930): um exercício de resistência cultural. São Paulo: fflch-usp, 1986.
31 simson, Olga Von. Brancos e negros no carnaval popular paulistano (19141918). Tese de doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 1989
32 manzatti, Marcelo Simon. Samba paulista, do centro cafeeiro à periferia do centro: estudo sobre o samba de bumbo ou samba rural paulista
Dissertação de mestrado, Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2005
Claude Lévi-Strauss, Desfile de blocos carnavalescos na rua Brigadeiro
Galvão, Barra Funda, São Paulo, sp, c. 1937
Acervo Instituto
Moreira Salles
negras da cidade como berço de um cordão de Carnaval chamado da Barra Funda e das escolas de samba Camisa Verde e Branco e do grupo carnavalesco também denominado Campos Elíseos. Teria sido nesse bairro que Lévi-Strauss entrou numa casa de pessoas negras e dançou com mulheres jovens.
A inserção das fotografias teria sido feita de forma intencional pelo editor do livro?
Pelas imagens de Lévi-Strauss e descrições de Mário de Andrade, ambas produzidas na década de 1930, somos estimulados e perceber ao menos três diferentes modalidades de sociabilidades musicais empreendidas criativamente por pessoas negras. Quais sejam: a) rodas informais de canto-dança realizadas nas ruas principais da cidade; b) festas realizadas em barracões improvisados por foliões no período carnavalesco; c) festas em barracões improvisados por participantes da festa de Pirapora. Isso reitera e complementa uma ideia já apresentada acima.
Mário de Andrade percebe a diminuição gradual das folias negras na cidade de São Paulo e seus arredores e levanta a suspeita que a motivação seria simultaneamente a repressão de costumes pela ação da Igreja Católica e a coibição da rua como espaço de sociabilidade de setores de pessoas urbanas trabalhadores negros e negras. Se de fato for exata essa hipótese, de onde partiam
as ordens para baixar a repressão? Eram ações fortuitas ou estavam associadas a uma política sociocultural pública?
Nossa modernidade negra no Brasil, ou nossa contracultura à modernidade branca, está associada a um outro fato cultural. Ele ainda é pouco conhecido, porém teria se dado em fevereiro do mesmo ano do evento coorganizado por Mário de Andrade, no Theatro Municipal em São Paulo, também ocorrido em 1922. No evento da viagem internacional dos Oito Batutas, um grupo musical composto em sua maioria por músicos negros e/ou de origem africana, a imprensa da elite letrada de São Paulo se dividiu nas opiniões entre o elogio e o desprezo. Na de lá, ao que parece, foi unânime em empregar termos racistas antinegros para considerar a viagem um grande fiasco, um verdadeiro demérito contra a cultura nacional.
Vou perguntar algumas poucas coisas a apenas um dos artistas da Semana de 1922, e que supostamente inaugurou o Modernismo no Brasil. Essa escolha não é fortuita. Há certa malícia que orienta a investigação. Nada tem a ver com o aspecto étnico ou racial. A mim não importa que Mário fosse percebido como pessoa negra, amarela ou vermelha. Muito pelo contrário, a perspectiva dele seria ordinária, não fosse um dissidente nato, hipersensível e difuso, multiversado, abundante e complexo. Interessado em artes e política, história e antropologia e muito mais, formulou e implementou no país as primeiras políticas públicas de cultura e educação, com fins objetivamente republicanos e percepções democráticas, conquanto elitistas.
No caso brasileiro, parece evidente que a modernização produtiva adveio justamente dos produtores de café em suas relações com o Estado e experiências no mercado importador/exportador. Modernizadores que apenas algumas décadas antes eram os principais defensores do trabalho escravo e da violência inerente à manutenção do escravismo. Também aqui a sociedade se modernizou topicamente sem que a maioria da população pudesse desfrutar de tal processo modernizante ou pudesse de alguma forma usufruir dos seus benefícios técnicos e sociais.
Sim, você tem razão, já ia quase me esquecendo. Mário de Andrade era amante de musicalidades em primeiríssimo lugar, amava sobretudo aquelas das classes populares onde percebesse os embriões identitários da nacionalidade brasileira. Amava-as verdadeiramente, desde que pudessem ser “aproveitadas” pelo compositor erudito tão comprometido quanto ele com o projeto de nacionalização da cultura, que ele idealizava e tentou implementar nas instâncias governamentais que ocupou brevemente na capital, uma vez da província e noutra da República. Na superfície e no fundo, combinava romantismo tardio,
futurismo italiano e ideologia nacionalista paulistana para olhar a suposta unidade cultural do Brasil. Enxergava também por essas lentes as províncias de São Paulo, Minas Gerais e o mundo. Quando ele procurava por musicalidades negras, quase sempre enxergava as Áfricas ao fundo. Áfricas que se negava a ver em si mesmo.
Mário de Andrade teve a intenção de definir o samba de São Paulo como rural, em contraste com o “outro” samba carioca ou fluminense, aquele urbano. Seria um tipo de especificidade/singularidade da cultura musical negra brasileira nesse território paulista bandeirante. Uma Paulistânia? Andrade grafou tintas bandeirantes, vendo os brasis com um olhar ainda marcado por um sentimento de revanche em relação à capital da República, sede do poder político. Poder republicano e autoritário, contestado por uma parte da elite paulista constitucionalista e aderido por outra parcela dessa mesma classe. O samba rural paulista é texto e pretexto, recalque e desejo de reconhecimento. Na luta contra o racismo, ativistas das fnb, ou Frente Negra Brasileira, sediados em São Paulo procuraram aproximação de agendas com Mário de Andrade, sem sucesso. Sem esconder sua frustração, José Correia Leite, líder da Frente Negra, fala sobre isso em suas memórias, coligidas por Luís Silva Cuti.33
As musicalidades de origens africanas na cidade de São Paulo tornaram-se temas de pesquisas acadêmicas e diletantes, principalmente aquelas realizadas desde finais da década de 1970, por pesquisadores e pesquisadoras negras, especificamente aquelas que esboçaram certo engajamento do ativismo sociopolítico que chamamos de Movimento Negro. Elas também ressurgiram em trabalhos ligados a memória e identidade negras na capital e seus arredores. Embora enfocando o Rio de Janeiro, Clóvis Moura, em Sociologia do negro brasileiro, num certo ponto de sua reflexão, se volta para uma abordagem do fenômeno cultural negro moderno, conhecido como escolas de samba.34 Esboça uma crítica à entrega das práticas negras no mercado de consumo de bens culturais no Brasil e o possível esvaziamento do potencial de resistência e organização comunitária e manutenção de valores africanos contidos nessas organizações. Em 1978, em São Paulo, Wilson Rodrigues de Moraes35 publicou um belíssimo livro nomeado Escolas de samba de São Paulo (capital), que cobre uma temporalidade larga desde o início do século xx até a década de 1970. Esse livro grafa imagens de processos e personagens, sociabilidades negras várias,
33 leite, José Correia e cuti, Luís da Silva (orgs.). Op. cit
34 moura, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Ática, 1988.
35 moraes, Wilson Rodrigues de. Escolas de samba de São Paulo (capital)
São Paulo: Conselho Estadual de Artes e Ciências Humanas, 1978. Coleção Folclore.
que hoje se encontram quase subsumidas do imaginário cultural da metrópole. É um tesouro criptografado, porque traz rastros da experiência e do vivido. Narra o fato de que tem havido uma luta constante entre o apagamento das vivências negras urbanas e a produção da memória hegemônica, no interior das mudanças e permanências da sociedade brasileira, no que diz respeito às populações negro-mestiças e indígenas. Nos parece que a cidade e seus arredores comportavam diferentes práticas culturais negras, chamadas de sambas, desde o final do século xix e que elas não cessaram, mas migraram, fugiram da vista da polícia, da municipalidade, do sistema religioso hegemônico e, sobretudo, se camuflaram de forma tal que os inimigos não lhes puderam simplesmente seguir e prender. O nome disso é astúcia cultural.
ENCONTRO 2
RACISMO, GÊNERO E VISUALIDADES
MODERNISMOS, MODERNIDADES NEGRAS E RACISMO NA HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA
MARTHA ABREU
Em trabalhos anteriores, busquei entender o crescente interesse pelas canções escravas1 em circuitos artísticos comerciais (partituras para piano, indústria fonográfica e teatros de revista, por exemplo) e em trabalhos de intelectuais preocupados com a construção da nação no campo cultural, entre as últimas décadas do século xix e as primeiras do século xx. No presente texto, discuto alguns aspectos desse crescente interesse, salientando as operações de silenciamento do protagonismo dos músicos negros no que havia de mais moderno – e, como provocação, modernista – nas expressões da cultura brasileira entre 1910 e 1930: o campo musical urbano, especialmente na cidade do Rio de Janeiro.
Evidentemente, intelectuais acadêmicos, músicos e folcloristas, muitos deles diretamente ligados ao movimento modernista da Semana de Arte Moderna de São Paulo de 1922, valorizaram o talento dos músicos negros cariocas. Mas não reconheceram a profunda transformação que os descendentes
1 Desenvolvi esta expressão/conceito no livro Da senzala ao palco: canções escravas e racismo nas Américas (Campinas: Unicamp, 2017). Para além das canções produzidas por escravizados nas senzalas, as “canções escravas”, definidas como “danças de negros”, batuques, lundus, sambas ou jongos, foram presentes nos circuitos comerciais musicais atlânticos desde o século xix
de africanos realizaram na história cultural e musical do Brasil.2 Os músicos negros, num caminho próprio de busca de visibilidade e acesso à cidadania, inovaram no campo artístico, estabelecendo diálogos entre antigas tradições culturais e as moderníssimas invenções musicais que transitavam no Atlântico negro.3 Por que não foram considerados representantes de um dos vários modernismos que se criavam no Brasil nesse momento?4
Como eixo para a resposta e a discussão, escolhi dois episódios ocorridos no Rio de Janeiro: o primeiro, um encontro entre intelectuais e músicos negros, ocorrido em 1926, narrado por Hermano Vianna; o segundo, a gravação do samba carnavalesco Pelo telefone, no início de 1917, oito anos antes do referido encontro.5
Um encontro entre intelectuais e músicos negros
Hermano Vianna abre seu famoso livro, O mistério do samba, de 1995, com a notícia, narrada no diário de Gilberto Freyre, de um encontro que teria acontecido numa noitada de violão com algumas cachaças, em 1926., Estariam presentes o próprio Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Prudente de Morais Neto, Villa-Lobos e Luciano Gallet, e os “brasileiríssimos” músicos negros Pixinguinha, Patrício Teixeira e Donga.6 Em um artigo de jornal publicado no Diário de Pernambuco, com o sugestivo nome “Acerca da valorização do preto”, também em 1926, Gilberto Freyre acrescentou que “ouvindo os três sentimos o grande Brasil” numa noite “cariocamente brasileira”.7
2 A despeito do sucesso dos gêneros musicais negros urbanos, sempre houve uma tendência dos chamados músicos modernistas a valorizar a música rural, eleita a mais nacional. Ela é que deveria ser protegida da influência do urbanismo, da cultura popular e negra que emergia. Ver: wisnik, José Miguel. “Getúlio da Paixão Cearense”. In: squeff, Ênio e wisnik, José Miguel. Música: o nacional e o popular na cultura brasileira. 2. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 2004, pp. 131-133
3 gilroy, Paul. O Atlântico Negro, modernidade e dupla consciência. São Paulo/Rio de Janeiro: Editora 34/Universidade Candido Mendes, ceao, 2001
4 Sobre modernismos e modernidades no Rio de Janeiro, ver: cardoso, Rafael. Modernidade em preto e branco. São Paulo: Companhia das Letras, 2022
5 A discussão sobre Pelo telefone está presente no texto que escrevi com Luciana Fagundes, “Modernismos musicais e músicos negros” (in: casa nova, Andrea e fagundes, Luciana (org.). Independências e modernidades. Rio de Janeiro: Telha/Faperj, 2022).
6 “Diário de adolescência e primeira mocidade”, publicado no livro Tempo morto e outros tempos (Rio de Janeiro: José Olympio, 1975), apud vianna, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Zahar/Editora da ufrj, 1995, p. 19.
7 Apud vianna, op. cit., p. 27
Além da nacionalista narrativa de Freyre na década de 1920, o encontro é fundamental para a tese de Hermano Vianna 40 anos depois, pois serve para o autor qualificá-lo como uma “alegoria” da “invenção de uma tradição, aquela do Brasil mestiço, onde a música samba ocupa lugar de destaque como elemento definidor da nacionalidade”.8 Para os objetivos deste texto, essa forma de Vianna explicar a nacionalidade em termos culturais, e eleger o referido encontro como alegoria da mestiçagem (imagino, porque ali estão reunidos músicos populares negros e intelectuais brancos ligados à literatura e à música acadêmicas), revela muito bem uma antiga interpretação da história da música e da cultura no Brasil. Sem dúvida, uma interpretação poderosa e racista, com profundas ressonâncias no imaginário dos brasileiros até hoje.9
Segundo pesquisa de Dalton Sanches, Freyre se recordava, em publicação de 1987, das saídas boêmias com Sérgio Buarque de Holanda e Prudente de Morais Filho, quando viravam a noite em bares com muito chope, ouvindo os que eram para eles os
brasileiríssimos e como que nossos mestres, além de amigos, de cultura brasileira, Donga, Patrício e Pixinguinha. Fontes, para nós três, de uma cultura autenticamente popular e extraeuropeia, nas suas bases, que estava, em grande parte, na música de que eles eram mestres.10
Ora, se a visão de Freyre parece valorizar o “brasileirismo” e o papel dos músicos negros como mestres de “cultura brasileira”, “representantes de uma cultura autenticamente popular e extraeuropeia”, ela revela uma postura hierarquizante e discriminadora ao considerá-los “fontes” e informantes. Nas palavras de Freyre, os “brasilianíssimos” tornam-se objetos de investigação para seus próprios projetos de “descoberta” da verdadeira cultura popular e das coisas brasileiras (ou dos “sentimentos” de um “grande Brasil”), ainda que cordialmente considerados “amigos”. Mais ainda, Freyre não reconhece que esses músicos negros estavam criando artisticamente algo de ruptura e modernidade na música e cultura brasileiras.
8 Ibidem, p. 20.
9 Para uma excelente crítica sobre os paradigmas de Hermano Vianna, ver lima, Lurian. “O mistério d’O mistério do samba: o paradigma da mediação e a produção racializada de silêncios na memória hegemônica da Música Popular Brasileira (1960-2017)”. Opus, v. 27, n. 3, set./dez. 2021. 10 freyre, Gilberto. “Sérgio, mestre de mestres”. Revista do Brasil, Rio de Janeiro, ano 3, n. 6, 1987, p. 117, 1987, apud sanches, Dalton. Agonística buarquiana: Sérgio Buarque de Holanda em combates com Gilberto Freyre e Alceu Amoroso Lima. Tese de doutorado. ppgh/Universidade Federal de Ouro Preto, 2019, p. 50
Pixinguinha, Patrício Teixeira, Donga e muitos outros músicos negros não podem mais ser simplesmente considerados representantes de uma “cultura autenticamente popular” ou “extraeuropeia”. Não eram “recipientes pacíficos” das ações dos chamados músicos e intelectuais da “alta” cultura, como salientou Micol Seigel.11 Muito pelo contrário, músicos negros estavam realizando, com sua vasta produção, a mesma operação artística que propunham os herdeiros da Semana de 1922. Inventavam e registravam musicalmente o novo, ao ressignificarem tradições negras, rurais e urbanas, e renomearem práticas festivas e musicais, como o lundu, o cateretê, o choro, o maxixe e o samba, em novos gêneros, musicais, dançantes e comerciais. Buscavam suas próprias fontes para
11 Para o autor, faz parte de uma retórica acadêmica a percepção de que os músicos populares são “recipientes pacíficos” com relação à ação de músicos, artistas e intelectuais da “alta” cultura (Uneven Encounters, Making Race and Nation in Brazil and the United States. Durham: Duke University Press, 2009, p. 115).
negociar com a indústria fonográfica, o mercado de partituras e os bailes de carnaval. Aliás, Donga teria sido o compositor (e não a fonte) do que é considerado o primeiro samba de sucesso gravado, em 1917, sobre o qual falaremos a seguir. Sobre serem vistos como “fontes de uma cultura extraeuropeia”, estamos diante de uma avaliação no mínimo irônica. Em 1922, um pouco antes do referido encontro, e no mesmo ano da famosa Semana de Arte Moderna, alguns desses músicos negros, como Donga e Pixinguinha, estavam em Paris, comunicavam-se com músicos modernistas europeus do porte de Darius Milhaud e Blaise Cendars e conheciam muito bem, até mesmo tocavam, todas as novidades sonoras eruditas e afrodiaspóricas, como cakewalk, rag, jazz, two-step, fox-trot, charleston e tango.12 O conjunto musical que Donga e Pixinguinha estrelavam, os Oito Batutas, depois de abrir mão da postura de grupo “regional ”, exibia, a partir de 1922, a postura de um moderníssimo grupo de jazz, embora sem deixar de se identificar com a música popular brasileira.13
A postura e visão de Gilberto Freyre criaria raízes entre músicos modernistas acadêmicos, diretamente ligados à Semana de Arte de São Paulo, e nas histórias da música brasileira que escreveram: História da música brasileira , de Renato Almeida, 1926, e Ensaio sobre a música brasileira, de Mario de Andrade, 1928. Maiores lideranças musicais do modernismo, Renato e Mario estabeleceram os anos de 1920 e 1930 como marcos dos “novos tempos”, em função da valorização das “coisas nacionais” e “populares” que promoviam (muito mais rurais que urbanas).
Em suas avaliações, o verdadeiro nacionalismo musical, ideal canônico dos modernistas, só foi construído a partir desses marcos temporais, e era diretamente associado à tomada de consciência do compositor erudito em relação ao que entendiam como o correto aproveitamento das fontes folclóricas do “povo brasileiro”. Nessas versões, teriam sido músicos brasileiros do porte de Heitor Villa-Lobos, Luciano Gallet e Francisco Mignone que teriam descoberto “um novo Brasil fortemente ligado ao chamado primitivismo e nacionalismo musical”.
Sabemos que esses princípios foram coroados na década de 1930 com a ação do Estado Novo e seus agentes políticos e culturais (muitos vinculados
12 Sobre a relação entre Donga e os músicos franceses, ver também meu artigo com Luciana Fagundes, op. cit.
13 Sobre jazz e modernidade no Rio de Janeiro dos anos 1920, ver: labres filho, Jair Paulo. Que jazz é esse? As jazz-bands no Rio de Janeiro da década de 1920. Dissertação de mestrado. Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2014; sobre a transformação dos Batutas, ver: mara, Luiza. Os Oito Batutas: uma orquestra melhor que a encomenda. História e música brasileira nos anos 1920. Tese de doutorado. Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009
A imagem clássica do grupo pode ser encontrada em: www.facebook.com/ institutomoreirasalles/photos/a.147243798636553/150072831686983/?type=3
ao movimento da Semana de 1922), ao valorizarem a música popular, o samba (qual?) em particular, e o folclore como símbolos nacionais. O período anterior, da Primeira República, mais conhecido como “República Velha” (em oposição ao novo), com sua belle époque, seria condenado como uma época de domínio do europeísmo e não valorização do que era genuinamente popular e brasileiro.
Se músicos eruditos, como Henrique Alves Mesquita ou Alberto Nepomuceno, foram esquecidos, pois não estariam dentro do novo cânone estabelecido pelos músicos modernistas, não é difícil imaginar o apagamento de grupos musicais e músicos negros urbanos que divulgavam lundus e procuravam forjar um estilo sertanejo, regional ou popular. Sucessos como a toada Cabocla do Caxangá no carnaval de 1913, como os grupos de chorões descritos por Alexandre Gonçalves Pinto e como os concertos de Catulo da Paixão Cearense em casas de intelectuais folcloristas ou no Instituto Nacional de Música, em 1908, são tidos como exceção ou sinais do gosto das elites intelectuais pelo exótico. Essas histórias da música no Brasil também não procuram entender, em seus próprios termos e sem julgamentos, a presença do público dos teatros de revista ou dos clubes chiques de carnaval, interessado em gêneros musicais populares e tidos como nacionais. Muito menos a expressiva vendagem de partituras e de livros, como os de Eduardo das Neves,14 que, até mesmo nos títulos, revelavam o interesse pelas coisas do Brasil, pela mestiçagem e pela divulgação do que entendiam por música popular brasileira. Na chamada belle époque, o mercado editorial e fonográfico da cidade do Rio de Janeiro oferecia, respectivamente, publicações com coletâneas de “canções populares”, identificadas como “brasileiras”, e discos com modinhas, choros, lundus e sambas gravados por músicos negros, como o próprio samba carnavalesco Pelo telefone, registrado em 1917. O variado público das cidades, antes das ondas do rádio e da política cultural do Estado Novo, já parecia estar disposto, havia muito tempo, a ouvir músicas e poesias distantes dos gostos academicistas. A “descoberta” do Brasil cultural parece ter tido muitos outros atores sociais e protagonistas.
Apesar das muitas perseguições e estigmatizações que marcaram a vida cultural da Primeira República, as músicas populares e o samba certamente não precisaram esperar intelectuais de peso, como os modernistas de 1922, para ganhar projeção e público, ou para ter reconhecidos seus talentos e expressões como brasileiros. A produção das manifestações populares rela-
14 Dudu das Neves, como era mais conhecido, foi o primeiro músico negro a gravar na indústria fonográfica, em 1902. Ver abreu, Martha e vianna, Carolina. Eduardo das Neves e Monteiro Lopes – Histórias não contadas do pós-abolição. Niterói: eduff, 2020
Capa de Trovador da malandragem, de Eduardo das Neves, 1926
Acervo Instituto
Moreira Salles / Coleção
José Ramos Tinhorão
ciona-se com a dinâmica política e artística de seus músicos em busca de afirmação e visibilidade diante de diferentes públicos, num mercado cultural em grande expansão.15 A indústria fonográfica dava, então, passos importantes, até mesmo em locais consagrados da música erudita. Como não considerar todos esses editores, empresários fonográficos e artísticos, músicos populares sujeitos ativos da construção de muitas ideias de Brasil e de muitas modernidades bem distantes dos cânones europeus? E como não considerar a presença fundamental de artistas negros em todo esse movimento?
15 Ver nepomuceno, Eric Brasil. Carnavais atlânticos: cidadania e cultura negra no pós-abolição. Rio de Janeiro e Port-of-Spain (1838-1920). Tese de doutorado). Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016; pereira, Leonardo. A cidade que dança. Rio de Janeiro/Campinas: Editora da Uerj/Editora da Unicamp, 2020; pereira, Juliana. A era do maxixe, uma história social da dança. Tese de doutorado. Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2022
Um pouco de samba antes do Estado Novo (ou por que Pelo telefone não foi considerado um marco da modernidade musical?)
A exaltação da música popular e do(s) samba(s) como genuinamente nacionais, a partir dos anos 1930, relaciona-se evidentemente com a estratégia política getulista de se aproximar dos setores populares.16 Através de programas de rádio, publicações e eventos públicos, eram divulgados artistas nacionais e suas criações.17 A valorização da “música popular”, pós-1930, está fartamente documentada. Ao lado dos modernistas de 1922, o governo Vargas representaria, numa consagrada e divulgada historiografia, um momento de ruptura com o passado cultural e musical brasileiro, e de conciliação de classes e integração nacional no campo cultural e simbólico.18
O que ainda chama a atenção é a presunção um tanto quanto esquemática de que em períodos anteriores, correspondentes às imagens divulgadas da belle époque, a música popular teria sido perseguida e não valorizada – uma imagem invertida ou preparatória do que viria depois. Essa é só uma parte da história. Como já evidenciei neste próprio texto, o campo musical do primeiro período republicano é muito variado e complexo.
Nesse sentido, a fim de desafiar versões consolidadas da história da música popular e mostrar o papel fundamental dos músicos negros na consolidação de seus gêneros e na inovação musical (incluindo danças, ritmos, gêneros e canções), escolhi trazer para o centro do debate a composição Pelo telefone, divulgada no final de 1916 e início de 1917. Donga é considerado o compositor desse primeiro samba de sucesso gravado na internacionalmente poderosa Odeon, representada no Brasil pela Casa Edison.
A capa da partitura (para piano), editada pelo Instituto de Artes Gráficas e vendida pela Casa Mozart na importante avenida Central, divulgava
16 Por outro lado, se o apoio dos órgãos culturais e políticos do Estado Novo valorizou expressões culturais populares, não se pode esquecer que as operações de escolha do que seria o verdadeiro “popular” e “nacional” nunca deixaram de ser seletivas e de envolver uma boa dose de perseguição, repressão ou de censura aos candomblés, às organizações de lazer populares e às letras de samba. Mário de Andrade, inclusive, reclamava da perseguição aos xangôs, maracatus e bois no Nordeste, na época do Estado Novo. Ver sandroni, Carlos. Feitiço decente. Transformações do samba no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/Ed. ufrj, 2001, p. 113
17 paranhos, Adalberto. “O Brasil nasceu cansado? Entre o louvor e o horror ao trabalho na música popular (1930/1940)”. opsis, Revista do Departamento de História e Ciências Sociais, ufg, v. 8, n. 11, 2008.
18 quintero-rivera, Mareia. A cor e o som da nação. A ideia de mestiçagem musical do Caribe hispânico e do Brasil (1928-1948). São Paulo: Annablume/ Fapesp, 2000, pp. 202-203
Capa e quarta-capa da partitura de “Pelo telefone"”, 1926
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o respeitável registro na Biblioteca Nacional feito em 16 de dezembro de 1916 (imagens 1 e 2). A ilustração trazia desenhos de pierrôs e colombinas decoradas em art nouveau, mostrando um carnaval afinado com a moda moderna e elegante por onde Pelo telefone começaria a circular. Na contracapa, de janeiro de 1917, anunciava-se de forma chamativa a venda de “Discos Duplos ‘Odeon’ Nacionais” (interessante essa adjetivação), com preços razoavelmente superiores às acessíveis partituras para piano. Partituras e discos apareciam, assim, conjugados neste exemplar de Pelo telefone, evidenciando que os negócios musicais poderiam ter muitos desdobramentos, inclusive nas filiais regionais de São Paulo, Pará e Bahia. Entre as canções anunciadas, ao lado dos sambas, destacavam-se valsas, polcas e maxixes. Um dos sambas, Desabafo carnavalesco, era interpretado por Eduardo das Neves; os maxixes, algumas polcas e canções apresentavam temáticas afro-brasileiras, como Morro do Pinto e “Morro da Favela”, tocados na flauta, violão e piano, ao lado das sempre cobiçadas “iaás” e os suspeitíssimos urubus. Pelo telefone não havia sido o primeiro, não estava sozinho, nem era uma exceção.
A história da produção de Pelo telefone é até hoje controversa, como já analisaram vários autores.19 A criação é atribuída a uma noitada musical na Casa de Tia Ciata, onde se reuniam muitos músicos baianos e cariocas, entre eles Sinhô, Pixinguinha, João da Baiana e Hilário Jovino, com suas tradições musicais. Donga chegou a admitir, numa entrevista ao O Globo, ainda em 1917, que ele não era propriamente o autor da faixa, pois havia desenvolvido o samba a partir de um “tema melódico que não pertencia a ninguém”.20
Mas a melhor afirmação de Donga, para nossos propósitos, foi aquela em que declarou ter consultado Hilário Jovino (figura de destaque na comunidade negra baiana), como costumava fazer, sobre o que de melhor poderia sair de “nosso repertório folclórico” para ser “introduzido na sociedade”.21 O que poderia significar “introduzir na sociedade”? Algo que não mais iria pertencer às suas tradições? Algo para circular além da casa de Tia Ciata (local do “repertório folclórico”?), atingindo valor comercial e o grande público? Um público moderno e nacional?
Se as respostas a todas essas perguntas podem ser respondidas positivamente, vale destacar que a consulta a Jovino e a operação intelectual realizada por Donga não eram nada diferentes das produções dos reconhecidos músicos modernistas. Eles também pesquisavam repertórios folclóricos como inspiração, tema e ritmo, para criar algo que entendiam como nacional, novo e moderno.
Considero Pelo telefone um ícone da “modernidade negra”, nos termos definidos por Antonio Sérgio Guimarães. Para o autor, a “modernidade negra”, fruto dos contatos entre brancos e negros, foi um processo de “inclusão cultural e simbólica dos negros à sociedade ocidental”, iniciado, de uma forma mais evidente, a partir dos processos de abolição da escravidão nas Américas (na segunda metade do século xix).22 Mesmo que a real incorporação, em termos políticos e sociais, ainda estivesse muito distante em função do recrudescimento do racismo, renovava-se nesse período a diversidade (e os conflitos) em torno das representações dos negros, especialmente no campo das artes:
19 As controvérsias giram em torno da autoria e do gênero (samba, maxixe, tango?), mas não entrarei nesse debate. Ver sergl , Marcos Júlio. “Pelo telefone: polêmicas a respeito do primeiro samba gravado”, Veredas, Revista Interdisciplinar de Humanidades, v. 1, n. 1, 2017. Ver também: cunha, Maria Clementina Pereira. “Não tá sopa”: sambas e sambistas no Rio de Janeiro, de 1890 a 1930. Campinas: Editora da Unicamp, 2016 (Coleção Históri@Illustrada, ebook).
20 Na gravação do samba ainda consta, como autor da letra, o jornalista e figura importante dos carnavais Mauro Almeida, que também declarou não ter sido realmente “autor” da faixa, mas tê-la retirado de “trovas populares como vários teatrólogos…” (apud sandroni, Carlos. Op. cit. p. 119).
21 Ibidem
22 guimarães, Antonio Sérgio. Modernidades negras. A formação racial brasileira (1930 -1970). São Paulo: Editora 34, 2021, pp. 67-78
representações sobre si, “dos negros pelos ocidentais”, e de si, “feita dos negros para si e para os ocidentais”, tanto na Europa como nas Américas.
A “modernidade negra” estaria, então, ligada a combates em torno de uma nova expressão da identidade do “ser negro”, a partir do início do século xx, especialmente com o movimento Novo Negro (New Negro), mais conhecido nos Estados Unidos.23 Esse movimento foi definido pela historiografia como uma renovada manifestação literária, artística e política com a atuação de intelectuais negros como Alain Locke, Langston Hughes, James Weldon Johnson, Claude McKay, Zora Hurston, Du Bois, entre outros. De forma intensa e articulada, eles buscavam o rompimento com as tradicionais imagens e representações identificando a população afrodescendente com os estigmas e estereótipos da escravidão e da inferiorização racista no campo cultural e artístico.24
Se a matriz desse movimento tinha base nos Estados Unidos, especialmente em Nova York, no pós-abolição, como afirmou Kim Butler, o movimento possuía uma visão internacional, diaspórica e global dos conflitos raciais, e incluía também a própria África. O ideário do Novo Negro articulou-se de várias formas no Brasil, em associações fundadas por negros, de cunho cultural, artístico, religioso ou político, como clubes de dança, carnaval, esporte, grêmios literários, candomblés, sindicatos e jornais. Essas associações evidenciavam a busca por espaços de autonomia e proteção, muitas vezes em diálogo com as discussões políticas e estéticas negras internacionais.25
Nesse sentido, é possível pensar também que, no Rio de Janeiro, a produção de Pelo telefone na imprensa, no mercado de partituras e na indústria fonográfica, agenciada por Donga, é exemplo de um movimento maior de renovação das representações dos negros, feitas para si e para os outros. Tal movimento fazia parte de um conjunto de ações de músicos negros26 que colocava em
23 The New Negro foi o título de uma antologia literária organizada em 1925 por Alain Locke, em que podem ser encontrados os principais escritores do movimento artístico que ficou conhecido como The Harlem Renaissance
24 Em meu livro Da senzala aos palcos (op. cit.), discuti as imagens estereotipadas nas capas de partitura, nas representações negras nos teatros e nas canções publicadas e gravadas.
25 butler, Kim. “New Negro”: negritude e movimentos pós-abolição no Brasil e na diáspora africana. In: abreu, Martha, dantas, Carolina V., mattos, Hebe, loner, Beatriz e monsma, Karl. Histórias do pós-abolição no mundo atlântico. Cultura, relações raciais e cidadania. Vol. 3. Niterói: Ed. uff, 2014; domingues, Petrônio. Cidadania por um fio: associativismo negro no Rio de Janeiro, rbh, v. 34, n. 67, 2014.
26 Importantes trabalhos têm mostrado que Donga não estava sozinho. Para alguns exemplos, ver Alessandra Tavares e Sormani Silva sobre Mano Elói, Caroline Viera sobre Patrício Teixeira, Fernanda Soares sobre Getúlio Marinho, Eric Brasil sobre Moysés Zacharias, Rebeca Natacha sobre De Chocolat, entre outros.
diálogo tradições afro-brasileiras, rurais ou urbanas, com o que havia de mais moderno em termos musicais e tecnológicos atlânticos, criando possibilidades de novos gêneros musicais, novas estéticas, novas danças, novos ritmos e novas forma de expressão. Sambas e maxixes circulavam por todo o Atlântico negro, ao lado do cakewalk, ragtime, jazz, charleston, calypso, de rumbas e tangos, revolucionando os paradigmas musicais existentes.
O sucesso e a constante inovação dos gêneros musicais associados à população negra não podem ser, até hoje, apenas pensados a partir do interesse de intelectuais modernos e modernistas; ou apenas partir da intervenção de políticos e de empresários mediadores.27 Muito menos a partir da existência de áreas mais flexíveis ou mais possíveis para a visibilidade e mobilidade social dos descendentes de escravos. Nas palavras do pesquisador Marcos Júlio Sergl, Donga “realizou uma série de ações para fazer da música [Pelo telefone] um sucesso”.28 Tocou-a para a imprensa, imprimiu a sua partitura e a distribuiu gratuitamente para bandas e teatros; conseguiu gravar, encontrou aliados na imprensa e criou polêmicas, aumentando a curiosidade sobre a composição. Enfim, assumiu os papéis de intelectual mediador, inovador e protagonista do modernismo musical.
Se as desigualdades raciais continuavam a se reproduzir no campo musical, se os músicos negros nunca chegavam ao reconhecimento artístico e financeiro, a criação do novo e da modernidade musical precisa ser investigada a partir da ação de sujeitos sociais, como Donga, que investiram na luta pelo direito de cantar e dançar. Em última instância, essa luta também significava acesso à cidadania e à igualdade racial de homens e mulheres negras no pós-abolição.
27 Para essa discussão, ver: lima, Lurian. “Essa História você precisa ouvir!”: memórias do circuito de música negra do Rio de Janeiro (1872-1972). Tese de doutorado. pppgh/uff, Niterói, 2022. 28 sergl , M. Júlio. Op. cit., p. 26
A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO PRIVILÉGIO BRANCO NO OFÍCIO DE CARNAVALESCO NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO
VINÍCIUS NATAL
Otermo “carnavalesco”, para Luiz Antônio Simas e Nei Lopes no Dicionário da história social do samba , 1 seria a expressão reduzida do termo “artista carnavalesco”, oriunda dos ranchos. É o profissional que lidera uma equipe de trabalho e é responsável pela execução do enredo, “que nem sempre é de sua autoria”. Dessa maneira, o carnavalesco seria o profissional responsável por liderar o processo de confecção do carnaval na perspectiva visual e narrativa, sendo o personagem-chave midiático da escola de samba durante o ano de preparação do carnaval. É, também, um mediador cultural, 2 aquele que conecta mundos e realidades sociais distintas em torno de sua atuação artística – mesmo que com fronteiras difusas e borradas, ligam uma cultura “erudita” e “popular”. É de se notar que o espaço do carnavalesco é uma profissão exclusivamente brasileira. Um termo que, a princípio, resumiria quem era adepto do carnaval, folião ou brincante, delimita-se e passa a caracteri-
1 lopes, Nei e simas, Luiz Antônio. Dicionário da história social do samba. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015, p. 55
2 santos, Nilton. A arte do efêmero: carnavalescos e mediação cultural no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009
zar o lugar profissional do “grande artista” responsável pelo espetáculo visual apresentado nos dias de carnaval. 3
No cenário dos carnavalescos do Grupo Especial do Rio de Janeiro em 2023, havia 17 profissionais assinando os projetos para 12 escolas. Desses, é possível constatar que apenas três se autodeclaravam negros – Guilherme Estevão, do gres Estação Primeira de Mangueira, André Rodrigues, do gres Beija-Flor de Nilópolis, e João Vitor Araújo, do gres Paraíso do Tuiuti – mesmo assim, os três assinavam com parcerias, e não em trabalho solo, com Anik Salmon, Alexandre Louzada e Rosa Magalhães, respectivamente. Da mesma maneira, dos 17 carnavalescos do grupo especial, apenas três mulheres assinaram como carnavalescas: Anik e Rosa, já citadas, além de Márcia Lage, que dividiu o trabalho com seu marido e cenógrafo, Renato Lage. Nenhuma dessas mulheres é negra. Também é um fato que há uma disparidade salarial entre os profissionais, bem como não há nenhum tipo de regulamentação em torno de uma associação dos profissionais do carnaval. Na lógica da contratação das escolas de samba, a palavra dada e o acerto “de boca” são premissas válidas na hora das negociações.4 Isso posto, a profissão do artista carnavalesco reflete, sobremaneira, problemas estruturais de desigualdades sociais no Brasil. Se, de alguma forma, é exclusiva, por ser um espaço de trabalho “nosso”, por outro, se mostra como um dos locais de perpetuação do racismo e do sexismo como premissas de reprodução de desigualdades no campo artístico. E isso não é algo novo. Nos mais de 100 anos de escolas de samba, houve a construção de um espaço privilegiado em torno dos homens cis brancos, que, ao utilizar o carnaval das escolas de samba como forma de projeção artística para um cenário mais amplo da cena da indústria do entretenimento carioca, lançaram seus nomes para o mundo apoiando-se no samba como meio de destaque individual. É importante salientar, contudo, que o cenário apresentado até aqui diz respeito, diretamente, aos carnavalescos pertencentes à realidade do Grupo Especial do Rio de Janeiro, no qual as escolas são dotadas de um aporte financeiro por parte dos poderes municipal e estadual e pelo capital privado, o que não é a realidade da maior parte das escolas de samba da cidade. No último carnaval, excetuando as escolas de samba mirins, que desfilam na terça-feira de carnaval da Marquês de Sapucaí, 110 agremiações competiram no carnaval carioca, em diferentes grupos. Dessas, somente 12 escolas pertencem ao seleto
3 guimarães, Helenise Monteiro. Carnavalesco, o profissional que “faz escola” no carnaval carioca. Rio de Janeiro: ufrj/ppgav, 1992
4 cavalcanti, Maria Laura Viveiros de Castro. Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile 3. ed. Rio de Janeiro: Ed. ufrj, 2006
grupo televisionado para todo o mundo, sobrando 98 agremiações que possuem profissionais carnavalescos produzindo seus desfiles em condições insalubres.
De qualquer forma, fica marcado que a posição profissional de carnavalesco faz parte do cotidiano da cidade – e do Brasil, se pensarmos o alcance e o grande número de escolas de samba existentes em diversas cidades –, mas há, de fato, um privilégio de homens brancos no topo da hierarquia salarial e de prestígio dentre os carnavalescos da cidade.
Para entender o privilégio do espaço social do carnavalesco, é necessário observar a construção da figura do artista visual na cidade do Rio de Janeiro, que, desde o século xviii, já ensaiava seus primeiros cenários. De onde se tem notícia, data do século xviii o primeiro registro de desfile com alegorias na cidade. Com motivos religiosos, as procissões católicas, tanto em Portugal quanto no Brasil, utilizavam-se de artifícios cênicos para melhor retratar datas festivas em comemorações de santos e outros festejos. Da mesma forma, as datas cívicas eram palco de apresentações em que a cênica era valorizada, como os festejos da morte de Marquês de Pombal, onde, em Portugal e no Brasil, diversos eventos em homenagem à memória pombalina eram organizados em praças e carros alegóricos.5 Entretanto, desses primeiros momentos, pouco se tem notícia dos artistas responsáveis por realizarem a idealização visual das festas. Com o desenrolar do século xix e um intento em moldar o Brasil aos modelos europeus, a corte portuguesa instaurou a Academia Imperial de Belas Artes, com o objetivo de ensinar a visualidade artística a partir dos padrões europeus – principalmente aos que remontavam à arte clássica grega e romana. Junto à criação do Liceu de Artes e Ofícios – que era mais voltado à prática artística, enquanto o primeiro era mais ligado ao “pensar” –, criou-se uma base estrutural de ensino e reprodução artística voltada diretamente para um modelo de ensino europeu. As missões artísticas francesas e o grande número de artistas estrangeiros vindos ao Brasil para lecionarem nas escolas de arte são fortes indícios do quanto se formou um modelo artístico que considerava “arte” o que se conectava ao modelo europeu.
Nesse período, o ofício de cenógrafo crescia cada vez mais na cidade. Com a proliferação das companhias de teatro,6 o número de montagens crescia
5 silva, Gustavo Pereira. “Consoante às ideias do seu tempo, mas rasgando com vistas de águia os mistérios do futuro: solenizações pombalinas de 1882 e discursos sobre o passado”. Anais da xi Jornada de Estudos Históricos Professor Manuel Salgado, ppghis/ufrj, v. 2, Rio de Janeiro, 2016.
6 freire, Vânia Bellard. “Magia no cenário teatral: as mágicas e o teatro musical do século xix”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 174, n. 460, jul./set. 2013
vertiginosamente, servindo não só como entretenimento, mas como ferramenta política de mensagens contestatórias ao regime monárquico, à instituição escravista e às péssimas condições de vida da população. Para tal feito, o cenógrafo possuía um importante papel na confecção da visualidade do palco, no trabalho com a iluminação cênica – primeiro com os lampiões a gás e, mais tarde, com a luz elétrica – e com a profundidade e a dimensionalidade da cenografia.
Esses artistas possuíam grande destaque na cena local, estampando os principais jornais como “artistas cenógrafos” responsáveis pelos espetáculos.
Suas posições profissionais, portanto, possuíam grande destaque na cena artística da cidade. Nomes como Carrancini, Angelo Lazary, Velloso Braga, Chrispim do Amaral, Jayme Silva e Publio Marroig – personagem sobre o qual me debrucei em minha tese de doutorado –7 formavam um grupo de cenógrafos que ganharam bastante projeção na cidade entre o final do século xix e o primeiro quartel do século xx, participando da decoração de ruas da cidade, festejos religiosos e mesmo as Festas Venezianas, que eram desfiles de embarcações pela enseada de Botafogo decoradas com iluminação e emolduradas por fogos de artifício no céu.
Ao observarmos as trajetórias familiares dos artistas, a grande maioria possuía ascendência europeia, lecionava em escolas de arte afamadas, e era composta por homens brancos, seguindo um padrão do artista desejado pelo modelo colonial. E foi esse mesmo grupo que, a partir da segunda metade do século xix, começou a atuar nas visualidades dos festejos carnavalescos, notadamente nas grandes sociedades.
As grandes sociedades eram cortejos de carros alegóricos que, prezando pela visualidade dos carros, desfilavam no carnaval carioca pelas ruas do centro do Rio de Janeiro ao som de grupos de clarins e outros ritmos – até mesmo o samba! Atraindo grande público, elas tiveram no grupo de artistas cenógrafos teatrais uma base para sua produção visual e, ao mesmo tempo, legitimação social. Essa modalidade carnavalesca, portanto, era valorizada por possuir artistas ligados às esferas das artes eruditas, que traziam ao carnaval temas ligados à mitologia greco-romana e às ditas “altas artes”, e seriam fundamentais para a formação da categoria carnavalesco contemporânea no contexto das escolas de samba.
As escolas de samba foram criadas a partir da década de 1920 – o gres Portela reivindica seu centenário a partir do ano de 1923 –, majoritariamente
7 natal , Vinícius. Cenografia carioca: Carnaval e outros fragmentos. Rio de Janeiro: Morula, 2021
por filhos e netos de escravizados e libertos que, a partir da busca de cidadania, inserção social e luta por direitos, fundaram essas associações não só com o objetivo de desfilarem no carnaval mas também de criarem espaços de sociabilidade reunindo o canto, a dança e a visualidade como premissas de luta política.
Farta bibliografia carnavalesca aponta que, até a década de 1960, o desfile das escolas de samba possuía, ainda, um tímido visual em fantasias e alegorias, que possuíam uma dimensão bem menor do que as atuais. A partir da chegada de Fernando Pamplona e seu grupo de alunos da Escola de Belas Artes, a narrativa visual passaria a ter maior importância, deixando o samba e a musicalidade como pano de fundo para o espetáculo visual a ser apresentado.8
Primeiramente, é preciso ter em mente que a categoria “carnavalesco” é fruto de um processo histórico que se desenvolve, como vimos, desde o início do século xix com as premissas europeias artísticas implementadas no Brasil. E, quando entendemos que a visualidade começa a ser valorizada, sobremaneira pela imprensa e uma classe média cultural, nos questionamos sobre quem eram os responsáveis por exercerem essa função antes do “Paradigma Pamplona”. Outros caminhos se abrem para nossa reflexão, levando-nos a questionar outros nomes que uniram o samba enquanto ritmo musical e modo de vida com as artes visuais na primeira metade do século xx. Por que não conhecemos, devidamente, suas trajetórias?
Nascido na região da Pequena África no final do século xix, vindo de família baiana, Heitor dos Prazeres cresceu em meio a um centro do Rio de Janeiro em profunda transformação. Já com uma predisposição para a arte, desde pequeno compôs e exprimiu, a partir da musicalidade, sua visão sobre o Rio de Janeiro e a sociedade. Mais tarde, a partir da década de 1930, começou a pintar quadros e, após conquistar o terceiro lugar na Bienal de Arte Moderna de São Paulo, em 1951, explodiu na cena artística, mesmo que categorizado como “naïf ” e sofrendo duras críticas de artistas visuais ligados a um modo europeu de fazer arte.
Na tela Sambistas, percebemos características particulares do pintor, já abordadas por alguns estudos, como em sua biografia, escrita por Alba Lirio e Heitor dos Prazeres Filho.9 Os pés calçados dos personagens, os olhares sempre altivos das figuras e o movimento implícito em torno da dança do samba são características da pintura do artista, que buscava retratar em seus quadros não
8 guimarães, Helenise Monteiro. A batalha das ornamentações. Rio de Janeiro: Rio Book’s, 2015
9 lirio, Alba e prazeres filho, Heitor dos. Heitor dos Prazeres: sua arte e seu tempo. São Paulo: Primeira Linha, 2003
só um estilo artístico mas também uma atitude política de enfrentamento ao racismo institucional das artes visuais e chamar atenção sobre as condições do negro na sociedade brasileira.
O “mano” Heitor, como era conhecido por seus familiares, que não podiam não ser de sangue, mas sim por uma estima intensa, foi também importante articulador carnavalesco da cidade, frequentando a Festa da Penha – local de lançamento de sambistas e trocas importante no Rio de Janeiro do início do século xx –, andando por Vila Isabel e compondo “Pierrô apaixonado”, em parceria com Noel Rosa, fundando escolas de samba, como o Estácio de Sá, a Vizinha Faladeira, na região Central, o gres Mangueira e o gres Portela. Aliás, em 1929, Heitor foi um dos campeões do primeiro concurso de samba do Brasil, realizado na casa de Zé Espinguela, em Engenho de Dentro, junto com o Conjunto de Oswaldo Cruz, em parceria com Paulo da Portela e Antônio Caetano. As andanças de Heitor por diferentes bairros do Rio de Janeiro ajudaram a fortalecer o samba na cidade e a transformá-lo no principal produto cultural do país.10
O caso de Heitor dos Prazeres é excelente para pensarmos a multiplicidade de artistas existentes no período e que, por conta de um modelo artístico adotado como “oficial” ligado à Europa, acabaram sendo deixados de lado e sofrendo por conta do preconceito e da exclusão do campo. Mesmo com um grande sucesso internacional, Heitor dos Prazeres, durante toda sua visibilidade como artista visual, sofria duras críticas a respeito de seu “inacabado”, não condizente com as artes eruditas. Ficaria marcado como “artista popular”, e é sintomático que não conheçamos, a fundo, o tamanho de sua obra, tanto como conhecemos outros pintores do modernismo, como Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti e Portinari. Aliás, não seria Heitor dos Prazeres um dos expoentes de um modernismo negro afro-carioca?
Um outro exemplo de sambista que unia o samba enquanto musicalidade e as artes visuais é o ainda desconhecido pintor Miguel Moura, que usou das tintas para expressar suas vivências nos morros e mas favelas do samba da cidade. Categorizando seu estilo como “verdade simples”, o artista buscava retratar o cotidiano dos morros da cidade, envolvendo aspectos da cultura negra, como o samba, a capoeira e o samba.11 Aliás, Moura possuía um amplo contato com o mundo das escolas de samba: foi um dos fundadores da escola de samba Depois eu Digo, uma das predecessoras do Acadêmicos do Salgueiro, e
10 Ibidem
11 natal , Vinícius Ferreira e ferreira, Felipe. “Miguel Moura: negritude, pintura e carnaval nas artes cariocas”. In: barone, Ana Cláudia Castilho, silva, Gleuson Pinheiro e santos, Maria Gabriela Feitosa dos (orgs.). Samba e cidade. São Paulo: Intermeios, 2021, pp. 93-114
também atuou no gres Unidos de Vila Isabel, entre 1947 e 1957, na elaboração narrativa visual da escola.
Por que não associamos, diretamente, a construção visual de Heitor dos Prazeres com o próprio fazer das escolas de samba? Por que não conhecemos – e reconhecemos – Miguel Moura como um dos precursores do ofício profissional carnavalesco nas escolas de samba? Quantos nomes foram “jogados para debaixo do tapete” em privilégio de um modelo artístico branco e racista?
São questões importantes que nos obrigam a admitir que o racismo e o sexismo na cena atual dos carnavalescos enquanto profissionais das escolas de samba não é mero acaso, havendo uma sólida construção histórica da desigualdade. A boa notícia é que, cada vez mais, a sociedade civil, atenta às escolas de samba, tem chamado atenção para a questão e pressionado as direções das agremiações a diversificar esse quadro.
ARTISTAS NEGRAS, TEATRO DE REVISTA
E O MODERNISMO CARIOCA
JULIANA DA CONCEIÇÃO PEREIRA
Entre meados do século xix e o início do século xx, a cidade do Rio de Janeiro viu crescer a oferta de modalidades de lazer. Várias casas de espetáculo começaram a funcionar, e companhias nacionais e estrangeiras se apresentavam nelas por preços acessíveis à população que estava em busca de diversão.
Nesse sentido, o teatro de revista foi se configurando como um pilar do entretenimento de massas carioca. Herdeiro das antigas pantomimas das feiras comerciais francesas, o gênero, que já vinha fazendo sucesso nos palcos mundiais, chegou com força aos palcos brasileiros.1 Com algumas sessões diárias e um público diversificado, as várias revistas apresentadas a cada ano nos teatros da praça Tiradentes transformaram aquele espaço em um reduto das artes teatrais.
Foi essa indústria que permitiu que homens e mulheres de diferentes origens sociais conseguissem se inserir, como trabalhadores, no campo artístico, construindo carreiras de relativo sucesso. E, além disso, por ser um gênero muito musical, o teatro de revista também foi um importante espaço para a
1 mencarelli, Fernando Antônio. A voz e a partitura: teatro musical, indústria e divertimento cultural no Rio de Janeiro (1868-1908). Tese de doutorado. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2003
divulgação de canções e de seus compositores, se tornando um local de convivialidade no qual as pessoas se divertiam, obtinham seu sustento, mas também discutiam sobre temas diversos da atualidade.2
O teatro de revista era, assim, um difusor cultural. As canções ali apresentadas muitas vezes eram gravadas em discos pela recém-criada indústria fonográfica, e aquele também foi um espaço privilegiado para que as corporalidades negras estivessem representadas no palco. Muitos artistas e músicos negros conseguiram ascensão social ao se inserirem nessa indústria. Isso faz com que vários trabalhos atuais tenham voltado o olhar para o teatro de revista, e dentre as muitas possibilidades de pesquisa apresentada, tem-se cada vez mais percebido esse teatro como expressão do modernismo carioca.
Cabe ressaltar que diferentes pesquisadores vêm produzindo um importante movimento de desconstrução da ideia do modernismo como um modelo único para se pensar o Brasil. Os marcos temporais e geográficos que se concentravam, principalmente, na Semana de 1922 têm sido problematizados, e as pesquisas têm demonstrado cada vez mais que a produção modernista se deu em diferentes contextos, envolveu vários sujeitos e está muito longe de uma suposta homogeneidade com contornos bem delimitados.3
Nesse sentido, quando voltamos a análise para o Rio de Janeiro, fica evidente que alguns intelectuais procuravam construir a história da cidade, e, por extensão, do país, por meio do olhar para o cotidiano das ruas.
Mônica Pimenta Velloso sugere que a modernidade carioca deve ser desvinculada da “ideia de um movimento cultural organizado e com marcos temporais definidos”. Os intelectuais ligados às rodas boêmias cariocas, ao refletirem sobre a modernidade e a nacionalidade, ainda que olhassem para o cotidiano das ruas, não deixavam de percebê-las a partir de um ponto de vista de superioridade.4
Na produção artística carioca, podemos apontar diferentes sujeitos sociais que, na disputa pelo sentido da modernidade, expressaram de diferentes modos suas visões de brasilidade. E fica cada vez mais evidente a presença ativa de artistas negros nos modernismos, além do fato d que os mesmos fi-
2 gomes, Tiago de Melo. Um espelho no palco: identidades sociais e massificação da cultura no teatro de revista dos anos 1920. Campinas: Editora Unicamp, 2004.
3 gomes, Ângela Maria de Castro. “Essa gente do Rio… Os intelectuais cariocas e o modernismo”. Revista Estudos Históricos, v. 6, n. 11, 1993, pp. 62-77
4 velloso, Mônica Pimenta. Modernismo no Rio de Janeiro. Petrópolis: kbr, 2015
zeram das artes um espaço para contarem e recontarem suas histórias de vida, seus cotidianos, sua ancestralidade e sua luta contra o racismo.5
Essas trajetórias artísticas são fundamentais para o entendimento da complexidade da história dos processos formativos dos imaginários de nação no Brasil contemporâneo. Entretanto, ainda que esse movimento seja de relevante importância, porque esses sujeitos foram por muito tempo silenciados, a maioria das abordagens ainda se concentra na trajetória masculina.
A exclusão histórica de mulheres negras no espaço do entretenimento, seja por meio das poucas abordagens sobre suas trajetórias nas ciências humanas, ou da não menção das artistas nas enciclopédias musicais, contribui para a consolidação do silenciamento e apagamento das artistas negras como agentes políticos e produtoras de saberes.
As artistas negras, em suas performances, também refletiram com profundidade sobre os sentidos da modernidade. E atentar para essas trajetórias de forma interseccional nos ajuda a perceber as dinâmicas de dominação presentes na formação do próprio Estado nacional.
Com o objetivo de contribuir com os novos estudos sobre os modernismos, este artigo se volta para as trajetórias de três artistas negras atuantes no circuito de entretenimento carioca entre o final do século xix e início do xx, observando o modo como as mesmas, em suas performances, já enfocavam a relação entre as práticas culturais populares e a identidade nacional.
Artistas negras no mercado do entretenimento
Antonina Teixeira, conhecida pelo apelido de Nina Teixeira, nascida em Porto Alegre, provavelmente no final do século xix, foi uma artista com uma carreira efêmera e meteórica. Poucas informações têm-se sobre a sua vida pessoal. No início do século xx, foi parceira do barítono Geraldo Magalhães na dupla Os Geraldos. O duo fez sucesso nos palcos do Rio de Janeiro, e também na Europa, cantando e dançando modinhas nacionais. Nos periódicos brasileiros, fotografias e elogios a eles eram publicados constantemente. Os retratos abaixo, enviados primeiramente como cartão postal à amiga Francisca Gonzaga, foram publicados na revista O Malho juntamente com uma matéria de três páginas sobre a dupla.
5 gilroy, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34, 2001
Nas duas imagens, Geraldo e Nina se mostram elegantemente trajados. Escolhem o modo como querem ser retratados, se posicionando em frente à câmera como importantes artistas que eram. As fotografias narravam possibilidade de outros modos de existência para a população negra.6 Na segunda figura, também chama atenção Nina Teixeira estar trajada com roupas de baiana. Certamente, a performance da artista envolvia danças bem requebradas enquanto cantarolava modinhas nacionais. A baiana era uma personagem que constantemente aparecia nos palcos. Ela era caracterizada com sobreposições de panos coloridos, colares com muitas voltas no pescoço, assim como outros adereços de miçangas, além do clássico turbante na cabeça. Nos palcos do teatro, a mulata e a baiana eram figuras bem próximas, quase se confundindo às vezes, e ambas funcionavam como tipificações “altamente erotizadas da mulher afrodescendente”.7
Esses papéis faziam sucesso, e artistas como Nina Teixeira tinham a real proporção disso. Essas artistas aceitavam personagens construídos de modo estereotipado e os transformavam em suas performances, a partir de suas próprias estratégias e visões de mundo, com sucesso de público, ganhando assim espaço no universo artístico.
Além de se apresentar nas casas de espetáculo, Nina Teixeira foi uma das primeiras cantoras negras a gravar discos pela Odeon. O acervo do Instituto Moreira Salles possui várias gravações da artista entre os anos 1905 e 1915. Dentre elas, vários discos solo, mas também parcerias com os artistas Eduardo das Neves e Geraldo Magalhães. Na coleção, pode-se encontrar, por exemplo, a canção Tango da quitandeira , com música de Chiquinha Gonzaga e letra de Vicente Reis e Raul Pederneiras. A faixa fazia parte da revista O Esfolado e era um dos grandes sucessos da época. Nina também gravou Vem cá, mulata!, Fado Liró e Corta Jaca. Entre as canções registradas, algumas abordavam temas da atualidade, enfocando muitas vezes o cotidiano da cidade, como O preço da passagem, A crítica ao maxixe francês e Os automóveis. Outras davam ênfase a outros temas, como Vatapá, Baiana e capadócio e Rapsódia. Todavia, o sucesso de Nina Teixeira muitas vezes foi apagado pelo de seu parceiro, que nas notícias tinha sempre destaque em relação à artista. Tanto que se pode considerar sintomático o desaparecimento da artista dos holofotes
6 pereira, J.C. Da Cidade Nova aos palcos: uma história social do maxixe (1870 -1930). Tese de doutorado). Instituto de História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2021.
7 seigel , Micol e gomes, Tiago de Melo. “Sabina das laranjas: gênero, raça e nação na trajetória de um símbolo popular, 1889-1930”. Revista Brasileira de História , v. 22, n. 43, 2002, pp. 171-193
Nina Teixeira (à esquerda) e Os Geraldos (à direita), em cartões-postais autografados e com dedicatória a Chiquinha Gonzaga, 1908
Acervo Instituto
Moreira Salles / Coleção
Chiquinha Gonzaga
quando a parceria é encerrada, por volta de 1910. Ainda assim, o sucesso da gaúcha Nina Teixeira permanece registrado nas muitas canções gravadas pela artista. A gravação de discos tinha significado importante para músicos negros: era uma oportunidade de garantir sua sobrevivência, conquistar prestígio e, para as mulheres, permitia ainda uma pequena liberdade.
Assim como Nina Teixeira, um outro nome adquiriu destaque na então recente indústria fonográfica: Júlia Martins. Multiartista, a jovem nasceu na cidade de Niterói, entre os anos de 1884 e 1888 (as fontes divergem sobre sua idade), e começou a atuar ainda criança em peças do teatro de revistas. Integrou várias companhias teatrais, conseguindo posteriormente a posição de “primeira” atriz da Companhia São José, o que lhe garantia lugar de protagonista em
várias revistas e fazia dela uma artista de prestígio. Sua fotografia, por exemplo, estampou duas capas de revistas teatrais e teve uso publicitário, o que não era comum para mulheres negras.
No palco, além de atuar, ela cantava e dançava, e o destaque que adquiriu a levou para a indústria fonográfica. Foram vários discos gravados entre os anos 1907 e 1914: canções que fizeram muito sucesso, como Cabocla de Caxangá, gravada em companhia de Eduardo das Neves e Bahiano, A viola está magoada , com Bahiano, e a faixa Caraboo.
A autoria de Cabocla de Caxangá foi atribuída a Catulo da Paixão Cearense e a João Pernambuco em 1913. Vejamos uma estrofe:
Queria vê se essa gente também sente
Tanto amor como eu senti
Quando eu te vi em Cariri
Atravessava um regato no Patáu
E escutava lá no mato o canto triste do urutáu.
(esquerda) Julia Martins, 1908
Reprodução de Comédia Jornal de Theatro (rj), ano iv, 1919, n. 100, p. 41 | © Biblioteca Nacional (direita) disco Caraboo (Alfredo Albuquerque / Sam Marschall), de Julia Martins, 1913 Acervo Instituto Moreira Salles / Discografia Brasileira
De acordo com Uliana Ferlim, o mote principal das modinhas de Catulo era a representação “do tipo de vida e hábitos do homem do sertão”. 8 E fica evidente na letra certa valorização da vida no campo e de uma ingenuidade presumida do mundo rural. A música foi um sucesso, alcançou grande circulação e esteve no centro de polêmicas referentes à autoria e ao registro em discos fonográficos.9 Mas, para além disso, foi na voz de Júlia Martins e Eduardo das Neves que a canção ficou conhecida – e, durante muitos anos, a artista foi citada como a “criadora incomparável da Cabocla de Caxangá ”.10
O sucesso na indústria de entretenimento não garantiu a Júlia Martins uma ascensão financeira. A artista precisou se afastar dos palcos na década de 1920 e não voltou mais. Faleceu em outubro de 1932 e, embora estivesse longe dos palcos havia anos, os jornais trataram de prestar várias homenagens a ela.11 Os textos póstumos elogiavam sua atuação no teatro de revista, mas nenhum se referia à sua atuação na indústria fonográfica.
Ainda que esse fosse um mercado concorrido e marcado pelas várias opressões que estruturavam a sociedade brasileira, as atrizes que atuavam no teatro de revista negociaram cotidianamente, dentro do que era possível, com noções de raça, idade, gênero, sexualidade e nação.
Nesse sentido, se tornam interessantes as estratégias acionadas pela artista Plácida dos Santos para garantir sua presença nos palcos. Plácida nasceu na cidade de Bagé, no Rio Grande do Sul. Não sabemos ao certo quando ela veio para o Rio de Janeiro e quais foram os motivos, mas, no ano de 1877, já se encontram fragmentos de sua presença na cidade. Diferentemente das outras artistas, Plácida dos Santos chegou à velhice – prova disso é a entrevista no jornal A Noite, no ano de 1933, em que ela afirmava ter 70 anos.12
Nessa entrevista, a artista afirmou que o trabalho no teatro foi uma oportunidade para “viver honestamente”, após a falta de “sorte no primeiro matrimônio”. Sua fala deixava evidente o desejo de viver com certa
8 ferlim, Uliana Dias Campos. “Catulo da Paixão Cearense e os embates cancioneiros na virada do século xix ao xx no Rio de Janeiro”. Revista Brasileira de Música , v. 24, n. 1, 2011, pp. 171-192
9 santos, Luana Zambiazzi dos. A “Casa A Electrica” e as primeiras gravações fonográficas no Sul do Brasil: um estudo etnomusicológico sobre a escuta e o fazer musical na modernidade. Dissertação de mestrado. Instituto de Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.
10 D. Quixote, 24 12 1919, p. 43
11 pereira, J.C. “O protagonismo da artista Júlia Martins: questões de raça e gênero no teatro de revista carioca (1890-1932)”. In: carloni, Karla e magalhães, Lívia (orgs.). Mulheres no Brasil republicano. Curitiba: crv, 2021.
12 A Noite, 12 04 1933, p. 28
(abaixo) Plácida dos Santos, Revista da Semana , 10 06 1900
© Biblioteca Nacional (direita) Capa da partitura de “D. Adelaide”, Buschmann Guimarães & Irmãos, 1909. Acervo Instituto Moreira Salles
independência financeira após o casamento desfeito. Plácida declarava ainda ter sido a “primeira brasileira” a fazer “furor” em Paris, dançando por lá o maxixe em 1889. E essa é uma memória que constantemente vai ser acionada nas narrativas sobre a artista, apesar de a viagem não ter ganhado destaque nos jornais do período.
No Brasil, embora tenha feito turnês para vários estados, foi no Rio de Janeiro que ela se estabeleceu se apresentando em cafés cantantes e fazendo participações em espetáculos de variedades, no intervalo das peças. O repertório da artista era formado por muitas canções de Chiquinha Gonzaga e Patrocínio Filho. Dentre os estilos musicais, lundus com letras picantes e maxixes recheados de requebros corporais eram cantarolados por ela.
Em uma fotografia publicada pela Revista da Semana, no ano de 1900, temos indícios de como eram realizadas as performances de Plácida dos Santos. Trajada de baiana, sua indumentária é muito parecida com a utilizada por Nina Teixeira, com exceção de seu turbante. Embora não estivessem totalmente livres dessas imagens estereotipadas das mulheres negras, as artistas
em questão souberam manipular esses cânones, “arduamente negociados, ressignificados e subvertidos” por elas13
As performances de Plácida dos Santos cantando e dançando sempre eram descritas nos jornais. Mas, embora fosse elogiada como cantora, nós não encontramos registro de gravação das canções de seu repertório musical por ela mesma, apenas por outros artistas. Há, no entanto, uma fotografia sua na capa da partitura da música D. Adelaide do ano de 1909, editada pela Buschmann Guimarães & Irmãos.
O suposto sucesso de mulheres negras, todavia, tem seus limites. Plácida chegou a alcançar uma ascensão financeira, conseguindo envelhecer com certa estabilidade, mas caiu no esquecimento. Não temos informação de quando ela morreu, e até hoje pouco espaço ela tem nas narrativas sobre música popular, sendo lembrada principalmente nas narrativas memorialísticas de autores como Jota Efegê e Alexandre Gonçalves14
Apontamentos finais
Nina Teixeira, Júlia Martins e Plácida dos Santos se inseriam no lugar comum do universo de entretenimento carioca, pensado e produzido exclusivamente a partir da perspectiva e da lógica masculinas e brancas. Essas multiartistas negras tiveram que lidar com várias opressões permeando a indústria de entretenimentos carioca, Mas, ainda assim, tiveram protagonismo no campo cultural e fizeram do palco um caminho de luta por visibilidade, respeitabilidade e reconhecimento através da sua arte.
Em suas apresentações, as mulheres negras atuantes no teatro de revista dialogavam e disputavam os sentidos da modernidade, valorizavam a cultura popular e construíam novas formas de se verem representadas, a partir de seus próprios termos; uma imagem cosmopolita que contrastava com as representações históricas delas mesmas. Ainda que tenham sido silenciadas, suas performances permanecem eternizadas pela indústria fonográfica e pelos jornais do período, e deixam evidente a sua participação como produtoras de saberes e como parte dos modernismos negros do Brasil.
13 abreu, Martha. Da senzala ao palco: canções escravas e racismo nas Américas, 1870 -1930. Campinas: Fundação de Desenvolvimento da Unicamp-Funcamp (Unicamp), 2017.
14 Ver: efegê, Jota. Maxixe: a dança excomungada 2. ed. Rio de Janeiro: Funarte, 2009; pinto, Alexandre Gonçalves. O choro. Rio de Janeiro: Edição Funarte, 1978
ENCONTRO 3
POLÍTICA E RELIGIOSIDADE
POÉTICAS AFRO-BRASILEIRAS
NA OBRA DE HEITOR DOS PRAZERES
GLAUCEA HELENA DE BRITTO
Apotência criativa de Heitor dos Prazeres – sambista, compositor e artista plástico nascido no Rio de Janeiro, em 1898, e falecido na mesma cidade, em 1966 – nos apresenta, de modo crítico e poético, uma pesquisa visual relacionada aos espaços de sociabilidade negra e expressões da cultura brasileira de matriz africana firmadas em solo carioca no início do século xx. As músicas, letras e cenas criadas pelo artista refletem sua elaboração crítica e poética sobre as experiências que ele próprio vivenciou ou pôde observar nos arredores da Praça Onze, criando uma narrativa própria dentro das histórias da arte brasileira. Nessa perspectiva, o presente texto tem como proposta destacar os múltiplos sentidos e chaves de leitura operados na produção de Heitor dos Prazeres através de duas obras de sua autoria no acervo do Instituto Moreira Salles (ims): a letra da música Pai Benedito, do álbum Macumbas & candomblés (1955), e a composição utilizada como imagem de capa do mesmo.
Para compreender os principais elementos que fazem parte do processo artístico de Heitor dos Prazeres, se faz necessário dar especial atenção à trajetória do artista durante o período anterior ao seu início na pintura, que se deu somente a partir de 1937. Filho de Eduardo dos Prazeres, marceneiro e
clarinetista que tocava na banda da Guarda Nacional, e Celestina Gonçalves Martins, costureira, ainda na infância aprendeu os ofícios da marcenaria e alfaiataria com os pais. O gosto pelos festejos do carnaval também se desenvolve em ambiente familiar: Heitor era sobrinho de Hilário Jovino Ferreira, conhecido como “Lalu de Ouro”, pioneiro e fundador de mais de dez agrupamentos carnavalescos, conhecidos como “ranchos”, na então capital do país. Hilário, responsável por dar de presente ao sobrinho aquele que seria o seu principal instrumento musical, o cavaquinho, era assíduo frequentador dos encontros musicais que aconteciam na casa da Tia Ciata, yalorixá muito bem relacionada e grande matriarca do samba carioca. A sua casa localizava-se na Pedra do Sal, região central do Rio de Janeiro também chamada de “Pequena África”. Tal alcunha demonstra a dimensão da potência criativa desse lugar que era ocupado física e artisticamente pela população negra marginalizada, sendo uma espécie de “umbigo” da cidade para o nascimento de diversas expressões de nossa cultura de matriz africana, como o samba e a macumba.
Heitor dos Prazeres, além do aprendizado como sambista e compositor – junto a outros jovens negros que frequentavam a casa de Tia Ciata e se tornariam os mais ilustres músicos da época, a exemplo de Pixinguinha (1897-1973), Paulo da Portela (1901-1949) e Donga (1890-1974) –, tinha o cargo de Ogã Alabê-Nilu no terreiro da matriarca. A sólida trajetória como sambista e suas habilidades musicais, reconhecidas desde a juventude, se estenderam à participação ativa na organização e fundação das primeiras escolas de samba do Rio de Janeiro na década de 1920, como a Portela. Todas as etapas do desfile, desde a confecção dos instrumentos e fantasias até a composição das letras de samba, passavam pelas mãos do artista. Vários dos recursos expressivos mobilizados nos diferentes campos de atuação foram adquiridos em seu núcleo familiar e comunitário, tornando-se fundamentais para a análise da produção pictórica que viria a seguir, em termos técnicos e temáticos. O ano de 1937 foi um divisor de águas na vida de Heitor dos Prazeres. A epidemia de tuberculose havia vitimado sua esposa, Glória, e, durante o processo de luto, o respeitado sambista começou a esboçar suas primeiras pinturas. Inicialmente, os temas abordados foram o universo dos sonhos e da poesia, assim como cenas da roça. Posteriormente, o samba, as danças brasileiras, as festas populares, as brincadeiras infantis e a religiosidade afro-brasileira passaram a figurar em suas telas. Partindo do mundo interior e subjetivo do artista, gradualmente as pinturas passaram a destacar as manifestações coletivas da cultura popular. Uma das características fundamentais de sua poética é o deslocamento das diversas experiências relacionadas ao
fazer artístico e do domínio de alguns ofícios, adquiridos no período anterior à carreira de pintor, para a produção visual: o tratamento minucioso dado às vestimentas e acessórios dos personagens – um conhecimento vindo da costura; a relação íntima com a música por meio da presença constante de instrumentos musicais eruditos e populares; e a habilidade nas danças populares, representada pelo movimento ritmado dos corpos em cena.
Foi a partir de 1943 que a obra de Heitor dos Prazeres obteve notoriedade na mídia, após ganhar destaque durante uma exposição internacional realizada na Royal Air Force, em Londres. A família real inglesa adquiriu um de seus quadros na mostra, intitulado Festa de São João. Tal fato fez com que Heitor fosse aclamado como representante da chamada Art Naïf (“ingênua” em francês) e, apesar da categoria estética na qual sua obra foi classificada, passasse a integrar uma série de exposições nacionais ligadas ao modernismo no Brasil. Uma das principais características da produção dos artistas modernistas foi a busca pela renovação das linguagens e a tentativa de ruptura com as influências do modelo europeu na arte. De acordo com os propósitos do movimento, para criar uma arte que pudesse ser reconhecida como genuinamente brasileira, as obras deixariam de lado os temas e métodos da tradição clássica para se voltar para o povo brasileiro, suas tradições culturais e demandas sociais. Cabe destacar que as questões tratadas pelo modernismo não são novidade na obra de Heitor. Conforme novas leituras feitas pela crítica contemporânea, apesar de ter sido definido como naïf, Heitor dos Prazeres demonstrava uma postura artística moderna ao se utilizar de algumas convenções da história da arte, porém a partir de leituras próprias. No sistema de arte, a crítica tem um papel fundamental. Ela atua no reconhecimento e criação de definições sobre objetos artísticos, através de um processo de análise que envolve interpretação, avaliação, julgamento e construção de gosto. A ação da crítica está diretamente relacionada à criação de entendimentos sobre determinadas produções e seus respectivos artistas, e a partir de tais definições torna-se possível encaixá-los em movimentos ligados a um conceito, estilo, localidade e período. No caso de Heitor dos Prazeres, a crítica definiu sua obra como pertencente à chamada arte naïf brasileira. Uma das consequências dessa classificação foi ter-se conferido status de inferioridade à sua produção, lida como “ingênua”, “inocente”, “primitiva”, “popular” e outros termos que indicam uma posição marginalizada dentro da estrutura hierárquica (e hierarquizante) da historiografia oficial da arte, como se nela não houvesse qualidade técnica ou formulação crítica, racional e criativa.
De modo sucinto, serão apresentadas a seguir algumas ferramentas de análise que poderão abordar a dimensão estética, política e simbólica da poética de Heitor dos Prazeres em contraponto ao lugar de naïf que o artista ocupou nas histórias da arte. Para isso, é preciso considerar não apenas referenciais da arte de tradição europeia – comumente colocada como o padrão a ser alcançado –, mas principalmente referenciais das culturas africanas em diáspora. Se nas diferentes linguagens artísticas através das quais Heitor se expressava é reconhecida a centralidade da matriz africana, seria interessante questionar o motivo pelo qual tradições não ocidentais têm sido negligenciadas nas análises sobre sua obra pictórica, em específico. Na intenção de produzir chaves de leitura alternativas e mais próximas do universo criativo do pintor e compositor, serão analisadas a letra de Pai Benedito, composta por Heitor dos Prazeres e Kaumer Teixeira, e a imagem de capa do álbum em que a música foi gravada, Macumbas & candomblés, na sequência.
Pai Benedito
Mora, mora, mora
No fundo do mar
Meu Pai Benedito
Que reza Bendito
Na terra de branco
Que diz o mucamo
Que não sabe ler
Que não sabe ler
Ganga, olha a Ganga
No fundo do mar
Ganga, olha a Ganga
No fundo do mar
Ganga morou morou morou
Ganga morou no fundo do mar
A presença de termos de origem africana na letra em questão pode indicar caminhos de reflexão para duas leituras possíveis. A primeira delas está relacionada ao significado da palavra “ganga” enquanto versão de “munganga” – espécie de panela de assentamento utilizada em determinadas práticas religiosas, principalmente as centro-africanas, que ao longo dos processos de assimilação e ressignificação de culturas distintas, na diáspora, foi associada a
um tipo de caldeirão de ferro. A segunda interpretação diz respeito à associação do objeto físico, a ganga, com a noção de fundamento. Nesse caso, ganga pode ser um título recebido por pessoas consideradas sábias, mestras, com profundo conhecimento sobre certas dinâmicas, principalmente aquelas ligadas às religiosidades afrodiaspóricas. O ganga é um ancestral – e, nessa condição, ele é o próprio fundamento. Em outras palavras, se o ancestral é aquele que possui o conhecimento, o ganga é quem realmente sabe “ler”. Assim, a música de Heitor dos Prazeres também apresenta uma crítica social (e racial) a partir do sentido simbólico do “Pai Benedito” como um ganga, o ancestral, o mais velho, o preto velho que virou referência para sua linhagem e que agora está rezando nessa “terra de branco” ao mesmo tempo em que é acusado, assim como o “mucamo”, de não saber ler. A crítica é direta e nada simples, uma vez que a questão levantada é: o que significa saber ler nesse contexto? Esse questionamento e postura de enfrentamento está presente no discurso da resistência escrava no Brasil: vocês sabem ler o papel, mas nós sabemos ler o mundo.
Na letra, os personagens supostamente não sabem ler. Mas e o fundamento, quem sabe ler? Esse jogo de palavras poderia ser um indicativo da agência da população negra em diáspora. Como seria ler o mundo no contexto de uma sociedade escravocrata ou no período pós-abolição? Negociar com quem não considera a capacidade de leitura para além do papel? Como seria manter suas práticas, disputar o papel de enunciação, de sujeito histórico que produz a crítica, afirma suas tradições e mantém seu legado vivo? Quais conhecimentos precisariam ser mobilizados? Quais tipos de leitura funcionariam estrategicamente? A crítica é colocada de modo tão sofisticado por meio de expressões e figuras de linguagem que o poder bélico da construção discursiva do compositor quase se camufla por trás do deboche. Entre outras contribuições dos modernismos negros, estão as reflexões e estratégias de ação sobre como ler esse mundo e agir sobre ele, principalmente a partir do nosso legado ancestral. Tal qual Pai Benedito, esse ganga que “morou no fundo mar”.
O caráter multifacetado da produção artística de Heitor dos Prazeres permitiu ao público acessar sua poética através das letras, dos ritmos e das imagens. As apresentações musicais do conjunto Heitor dos Prazeres e Sua Gente, idealizado pelo artista, eram consideradas uma verdadeira performance. O grupo tinha como repertório os ritmos brasileiros populares naquela época, e se distinguia pelo coro de vozes femininas e composições inspiradas nas religiões afro-brasileiras. Grande parte das letras tinha autoria de Heitor dos Prazeres, assim como a criação dos figurinos trajados por seus componentes e das capas dos lps gravados pelo grupo.
Em Macumbas & candomblés (1955), a imagem de capa mantém a mesma indagação presente na composição analisada anteriormente: quem consegue “ler” essa imagem? Nessa etapa, cabe propor mais um passo na linha de raciocínio: quem poderia produzir essa imagem? Nela, temos a representação do preto velho, um verdadeiro ganga, responsável pela manutenção do fundamento e das práticas ritualísticas do terreiro. Outros elementos – como o pentagrama, um desdobramento da escrita gráfica africana conhecida como ponto riscado; a garrafa de marafo; a mulher iniciada que aparentemente estaria passando pelo processo de “incorporação”, ou seja, de manifestação da vibração das entidades sagradas através do próprio corpo; o ogã, responsável pelo ritmo e abertura do mundo não visível dos ancestrais através da música; e, principalmente, a ave sacrificada pendendo das mãos do preto velho – são evidências de um fazer artístico consciente e politicamente comprometido com a experiência individual e coletiva do artista em sua unidade social. Representar detalhes fundamentais das religiosidades afro-brasileiras, como o sacrifício de animais presente na umbanda e no candomblé – religiões criminalizadas até a segunda metade do século xx e sujeitas aos ataques produzidos pelo racismo religioso até hoje –, justamente na capa de sua obra fonográfica, pode ser considerada uma ação contundente de afronta, de revide, de questionamento sobre a noção de quem saberia ler ou não naquele contexto.
A própria noção de visualidade expressa na pintura de Heitor dos Prazeres é um tipo que surge a partir da experiência do corpo em movimento e das memórias ali contidas; ela não acontece de modo isolado. Na sua produção pictórica como um todo, aspectos ligados à representação do movimento têm papel preponderante e poderiam vir de uma memória corporal: a técnica de pintura está mais próxima de um meio do que uma finalidade. É isso o que Heitor traz de inovação para pintura ocidental. Analisando-se suas composições, é possível observar que um dos recursos de movimento utilizados é a divisão do eixo do corpo de seus personagens em cinco direções diferentes: partindo do topo da cabeça até o queixo, do pescoço até o quadril, do quadril até o joelho, do joelho até o calcanhar, e do calcanhar até a ponta dos pés. Outro aspecto que merece destaque é a representação das pessoas quase sempre em grupos, dançando, tocando, brincando, celebrando ou simplesmente vivenciando cenas comuns do cotidiano. Não existe hierarquia aparente entre elas, nenhuma sugestão de violência ou subalternidade, qualquer tipo de característica negativa associada às figuras retratadas, em sua maioria pessoas negras em diferentes tonalidades. Entre outras características estilísticas, temos a centralidade da figura humana, com o rosto de perfil e o corpo posicionado de modo frontal, e
o emprego de cores vivas e chapadas, sem uma gama variada de misturas ou sombreamento, assim como a utilização de contorno preto como delimitação de espaço e o uso livre da perspectiva.
Em meados de 1950, o pintor deu início à utilização do decalque –técnica que consiste na criação de imagens a partir de moldes prontos – para atender a alta demanda por quadros com motivos recorrentes. A participação de assistentes durante o processo não foi bem-vista pela crítica. Entretanto, uma forma de ampliarmos a leitura sobre o legado pictórico de Heitor dos Prazeres é não perder de vista o caráter multimídia e de referências múltiplas de suas produções. Se tomarmos como base o referencial afrodiaspórico de arte, faz sentido a aplicação de formas preestabelecidas, como moldes e afins, uma vez que, assim como acontece na produção da chamada arte tradicional africana, o conceito que se pretende trabalhar não pressupõe necessariamente uma intenção de individualidade criativa, mas de complexas estruturas de pensamento visualmente compartilhadas pelo coletivo. Heitor se aprofunda em um tipo de visualidade típica do artista multimídia, daquele que está pensando não só nas especificidades técnicas de determinada linguagem mas no repertório visual/ gestual/sonoro que se experiencia na vida, na tridimensionalidade, no movimento. Quando a crítica de arte contemporânea se propõe a revisitar a obra de Heitor, ela destaca sua postura moderna a partir da liberdade que o artista apresenta em relação aos temas da historiografia oficial da arte. Nesta análise vamos além: Heitor dos Prazeres tem uma liberdade inclusive no próprio domínio da linguagem. A utilização de moldes nas composições denota uma autonomia e intencionalidade oriundas de outras maneiras de se pensar a pintura, não apenas a partir do conhecimento técnico dos materiais, mas a partir de conceitos diversos de visualidade, que se experimentam através do corpo, pelo movimento, ritmo e repetição.
Considerações finais
A trajetória de Heitor dos Prazeres tem como base o pioneirismo nas diversas manifestações da cultura nacional, hoje reconhecidas como um legado e fundamentais para o nosso viver brasileiro, portanto afro-brasileiro. Ao se lançar luz sobre os múltiplos sentidos e chaves de leitura operados na sua produção, a partir da análise de duas obras que fazem parte do acervo do Instituto Moreira Salles (ims) – a composição Pai Benedito, realizada em parceria com Kaumer Teixeira, e a capa do álbum Macumbas & candomblés, no qual a música
em questão foi gravada –, foram encontradas estratégias de criação e enfrentamento estético, histórico e político, tendo como referência elementos próprios das culturas africanas e afrodiaspóricas. O pensamento moderno de Heitor foi criticamente elaborado por meio do desenvolvimento de uma poética multifacetada e afrocentrada, classificada inicialmente como naïf por estar inserida na lógica de um sistema de arte estruturalmente racista, que negligencia sistematicamente regimes de visibilidade diversos. Por isso, a urgência na produção de novas leituras sobre acervos de museus e instituições. Heitor dos Prazeres é um dos nossos gangas, e o que se propõe a partir dos resultados encontrados é o reposicionamento desse artista e sua obra nas histórias da arte brasileira.
AS GRAVAÇÕES DE MACUMBAS POR MANO ELOY
E O MODERNISMO NEGRO DA DÉCADA DE 1930
ALESSANDRA TAVARES
Em 1930, Eloy Antero Dias, em parceria com Getúlio Marinho, gravou, acompanhado do Conjunto Africano e suas filhas de santo Rosa e Maria, os pontos de Iansã e Ogum, divindades do panteão afrorreligioso no Brasil. O disco 10.679, produzido pela Casa Edison em parceria com a Odeon, figurou como um marco histórico da resistência cultural negra, num diálogo entre saberes ancestrais e o que havia de moderno à época. Uma produção que evidencia a presença dos músicos negros na incipiente indústria fonográfica brasileira e, por conseguinte, assinala aspectos do modernismo negro.
O acervo do IMS e o modernismo negro
Os cotidianos marcados pelas experiências culturais negras estiveram presentes na indústria fonográfica desde seus primórdios.1 No entanto, a produção de músicos negros foi amplamente secundarizada em nome da valorização desse exotismo, a fim de atrair o mercado consumidor, esvaziando seu o caráter moderno.
1 abreu, Eric Brasil, monteiro, Lívia e xavier, Giovana. Cultura Negra –Novos desafios para a História e os historiadores. Vol. 1. Niterói: eduff, 2018
O acervo fonográfico do Instituto Moreira Salles nos permite revisitar artistas negros e suas produções em atenção aos movimentos que desvalorizaram e silenciaram o caráter moderno de suas obras. Um convite ao revisionismo que confere visibilidade a artistas que, em suas épocas, fizeram parte da vanguarda artística negra no Brasil.
Chamo atenção aos fonogramas da coleção José Ramos Tinhorão referentes aos discos 10 679, com os pontos de Iansã e Ogum, e 10 690, com os cantos de Exú e Ogum, gravados pela Casa Edison, em parceria com a Odeon.2 Esses dois álbuns marcaram a história das gravações de afromacumbas no Brasil, uma vez que foram os primeiros a carregar o título de “macumba”. São álbuns que deixaram registrados aspectos da religiosidade afrodiaspórica experimentada pelas pessoas negras no Rio de Janeiro. Considero-os como expressões da vanguarda modernista negra que dialogou com agentes externos para a produção e salvaguarda de seus saberes.
Analisar as produções artísticas através da categoria “modernismo negro” é um caminho para conferir o lugar de pioneirismo às produções e, sobretudo, entender as agências e o protagonismo dos músicos negros no cenário musical brasileiro. Entender que os artistas negros estiveram presente na história, e que suas produções construíram ritmos fundamentadores do que entendemos como música brasileira. Para tanto, vamos acompanhar um pouco da trajetória de Eloy Antero Dias, o Mano Eloy, e as articulações de alguns aspectos sobre os álbuns de “macumba” gravados por ele em 1930 e 1931.
Eloy, o mano
Para além do destaque às trajetórias de sujeitos ditos excepcionais por alcançarem visibilidade em suas ações na vida pública, a análise do envolvimento de Mano Eloy no movimento de gravação de afromacumbas insere-se em um contexto de valorização de coisas “typicas da nossa cultura”. Estamos falando do contexto de transformações nas estruturas políticas, sociais e culturais da década de 1930, no qual a cultura dita popular, ou seja, moderna, no sentido reivindicado pelos intelectuais envolvidos no movimento modernista de 1922, entrou na pauta do Estado. No entanto, é importante considerar que a música feita pelas pessoas negras e/ou artistas populares não surgiu a partir do interesse de intelectuais,
2 Itens encontrados no acervo de músicas do Instituto Moreira Salles. Disponível em: ims.com.br
Mano Eloy, sem data
Publicado em Figuras e coisas da música popular brasileira , de Jota Efegê. 2 ed. Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. Rio de Janeiro: Funarte, 2007
da indústria fonográfica ou das políticas do incipiente Estado varguista – ela se desenvolveu nos cotidianos partilhados por aqueles indivíduos.
O Rio de Janeiro, capital da República, havia experimentado um intenso processo migratório, sobretudo de pessoas negras egressas do Nordeste e do Sudeste, compondo-se ali uma geografia cultural atravessada pelo trabalho, religiosidade e lazeres. Eram mulheres e homens que carregavam em suas bagagens o arcabouço cultural afrodiaspórico, cujos saberes seriam ressignificados e postos em diálogo com outros elementos ao longo da construção musical brasileira.3
Eloy Antero Dias foi um dos homens que chegou à capital no contexto da Primeira República. Negro, nascido em 1889 no distrito de Engenheiro Passos, no vale do rio Paraíba do sul, estado do Rio de Janeiro, ele teria migrado para a capital com seus 15 ou 16 anos de idade, entre 1904 e 1905, tendo sido recebido por um tio que tinha um grupo de meninos baleiros no Campo de Santana. Sua trajetória foi marcada por um circular em diferentes frentes da luta das pessoas negras por cidadania no pós-abolição.4
3 lopes, Nei. Partido alto: samba de bamba. Rio de Janeiro: Pallas, 2005. 4 tavares, Alessandra. A escola de samba “tira o negro do local da informalidade”: agências e associativismos negros a partir da trajetória de Mano Eloy (1930 -1940). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2022
O menino baleiro Eloy conquistou o apelido de “mano”, talvez por conta das suas relações de trabalho na beira do cais do porto do Rio de Janeiro, local onde foi respeitado como trabalhador e líder sindical de uma das associações mais antigas e longevas da região, o Sindicato da Resistência ou Cia dos Homens Pretos. Fundado em 1905 com a denominação de Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café, a associação controlava a prestação de serviços dos arrumadores por meio de negociações diretas com o patronato da região. O título de Companhia de Homens Pretos tem a ver com as memórias que sobrevivem através da oralidade e resgatam experiências históricas do trabalho exercido por homens negros, escravizados ou não, no cais do porto do Rio de Janeiro.5 Em seu Novo dicionário Banto do Brasil, 6 Nei Lopes, define “mano” como “um tratamento respeitoso entre os sambistas cariocas”, os pioneiros do samba. O “mano” de Mano Eloy assinala esse lugar de pioneiro, um título possivelmente adquirido na interface entre o trabalho, o lazer e a religiosidade.
Na Primeira República, a região portuária do Rio de Janeiro recebeu o título carinhoso e poético de “Pequena África”. Uma observação feita por Heitor dos Prazeres,7 morador da região, que destacava muito mais o protagonismo de uma espécie de cultura negra do que uma pureza étnica e/ou geográfica.8 Por meio da observação das sociabilidades dos trabalhadores portuários, Erika Arantes entende a região como “Porto Negro”, identificando nas redes de trabalhadores predominantemente negros um arcabouço cultural forjado nos atravessamentos entre trabalho, lazeres e religiosidade.9
Embora o circular de Mano Eloy tenha sido marcado por diferentes geografias da cidade, como o morro da Mangueira, Madureira, morro da Serrinha, Dona Clara e Oswaldo Cruz, suas experiências como trabalhador do “Porto Negro” do Rio de Janeiro determinaram suas redes de relações. Segundo
5 Ver: galvão, Olívia Maria Rodrigues. A Sociedade de Resistência ou Companhia dos Pretos: um estudo de caso entre os arrumadores do porto do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: ufrj/ifcs, 1994; cruz , Maria Cecília Velasco. “Tradições negras na formação de um sindicato: Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café. Rio de janeiro, 1905-1930”. Afro-Ásia , n. 24, 2000, pp. 243-290
6 lopes, Nei. Novo dicionário Banto do Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2006.
7 Nasceu na lendária região da Cidade Nova, em plena Praça Onze, berço do samba carioca, segundo a maioria dos pesquisadores. Foi pintor, cantor e compositor. “Heitor dos Prazeres”. In: albin, Ricardo Cravo. Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira. Disponível em: www.dicionariompb.com.br.
8 moura, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal Cultura, 1995.
9 arantes, Erika Bastos. O porto negro: cultura e trabalho no Rio de janeiro dos primeiros anos do século xx. Dissertação de mestrado). Unicamp –Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, 2005
Rubens Confete, Mano Eloy fez parte de um grupo de pessoas consideradas referências da “herança africana na região portuária”, ao lado de personalidades como Dom Obá ii, André Rebouças e Hilário Jovino.10
Embora a Pequena África tenha sido polo irradiador de uma espécie de cultura afro-carioca, não podemos desconsiderar a existência de núcleos culturais em diferentes espaços da geografia do Rio de Janeiro. São mulheres e homens que partilharam e ressignificaram saberes afrodiaspóricos, experimentados de maneira fluida em seus cotidianos. Criaram ritmos que não podem ser entendidos como separados, uma vez que são fundamentados em saberes herdados por visões de mundo atravessadas pela religiosidade, lazeres e o trabalho de pessoas negras.
No depoimento de Carlos Cachaça,11 músico e compositor do morro da Mangueira, ao Museu da Imagem e do Som, pode-se encontrar um exemplo sobre como a cultura afrodiaspórica foi experimentada de maneira espontânea. Segundo Carlos, ele teria ouvido pela primeira vez, em sua juventude, um ritmo que identificara como samba, tocado no morro da Mangueira por Mano Eloy, após uma macumba na casa de Tia Fé. Esse episódio teria acontecido por volta de 1915/1916; Mano Eloy, nessa época, contava com seus 25 ou 26 anos e já era conhecido como Ogã e partideiro.12
A casa de Tia Fé pode ser entendida como um exemplo de como as manifestações culturais se faziam presente em um mesmo espaço, e de que as pessoas não as vivenciavam de maneira separada: no terreiro se cultuavam suas divindades, faziam-se encontros de lazeres “profanos”, com comidas e diferentes ritmos etc. Inclusive, nesse mesmo endereço, funcionava o tradicional rancho carnavalesco Pérolas do Egito.
Ultrapassando os debates a respeito do pioneirismo e veracidade das memórias que atribuíram a Mano Eloy esse lugar “produtor da negritude”,13 quero chamar atenção aqui a como os sujeitos sociais não estão isolados. As identidades e agências de Mano Eloy, assim como as dos demais sujeito sociais, são vivenciadas de maneira fluida e em coletividade, como no terreiro/ samba de Tia Fé.
10 confete, Rubem. Entrevista concedida à autora, 11 05 2017
11 “Carlos Cachaça”. In: albin, Ricardo Cravo. Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira. Disponível em: www.dicionariompb.com.br
12 castro, Carlos Moreira de (Carlos Cachaça). “Depoimentos para a posteridade”. Museu da Imagem e do Som, Rio de Janeiro, 26 02 1992
13 cabral , Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lumiar, 1996
Exotismo × modernismo negro
Permeadas de estereótipos marcados pelo racismo, as macumbas apresentadas na forma de pontos das divindades Iansã e Ogum figuraram como “dignas” da “música popular” brasileira, e marcaram o interesse do mercado pelo exotismo. O lançamento do disco 10.679 teve divulgação nos periódicos da época como um dos “grandes sucessos do momento”, em meio às faixas lançadas por artistas como Aracy Cortes, Lucy Campos e Vicente Celestino, intérpretes consagrados da chamada música popular da época. Dentre os “sucessos” que receberam resenhas críticas na sessão “Músicas em discos” do jornal Correio da Manhã, o referido disco recebeu a seguinte apresentação:
“Macumba”. Ponto de inhassan e Ponto de Ogun – Eloy Antero Dias e Getúlio Marinho com conjunto africano. Número 10 679
Nas extranhas cerimonias dessa perturbadora religião do elemento negro do nosso povo, na qual a base é uma mistura de crendices africanas com superstições africanas com superstições do catholicismo deturpado, encontra-se uma infinidade de assumptos de natureza musical que são dignos de observação para estudiosos e constituem optimo prazer para os apreciadores da verdadeira musica popular.14
Embora o papel pioneiro seja de grande contribuição para a salvaguarda do patrimônio cultural afrorreligioso, quero chamar atenção ao que Carolina Vieira15 denominou de “negociações e ambiguidades” nas gravações das afromacumbas. Registrar canções em disco, figurar entre os “sucessos do momento”, ser divulgado nos jornais com o selo “macumba”; tudo isso pode ser compreendido como um movimento de resistência. No entanto, não podemos perder de vista a ambiguidade de se fazer presente em ambiente nitidamente racista, que entendia os pontos às divindades como “crendices” e “superstições”. Estamos falando em um contexto no qual as práticas religiosas de matriz africana eram amplamente perseguidas, consideradas como feitiços. O que parece ambíguo pode ter sido uma negociação diante das contingências daquele contexto que se descortinava, no Brasil, desde a década de 1930.
14 Correio da Manhã , 24 08 1930
15 vieira, Caroline Moreira. “Ninguém escapa do feitiço”: música popular carioca, afrorreligiosidades e o mundo da fonografia (1902-1927). Dissertação de mestrado. Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Faculdade de Formação de Professores, Rio de Janeiro, 2010
Não estou desqualificando o fato de alguns desses homens reivindicarem para si o papel de pioneiros em determinados ritmos ou feitos. Essa é uma das faces da compreensão crítica que eles tinham do contexto, do agenciamento de imagens de si e das relações que podiam alçar a partir desses lugares que estavam construindo. Se, por um lado, havia o interesse das gravadoras em explorar o apetite do público pelo exótico, por outro, não podemos desconsiderar o interesse dos músicos negros por visibilidade e, possivelmente, pelos ganhos econômicos que as gravações em disco podiam trazer.
Saliento o papel político das redes culturais de pessoas negras que marcaram presença desde os primórdios da instalação da indústria fonográfica, gravando diferentes ritmos, com maior visibilidade aos homens, por questões nitidamente atravessadas por gênero. Um mesmo artista podia gravar sambas, polcas, macumbas, maxixes, jongos, sem, no entanto, ser classificado como compositor e/ou intérprete de um ritmo específico. Mano Eloy, por exemplo, além dos pontos de macumba, gravou os jongos “Galo macucu” e “Liberdade dos escravos”, também pela Casa Edison e a Odeon, em 1931.
As pessoas negras sempre foram produtoras ativas de diversas manifestações culturais pelo Brasil afora, e na cidade do Rio de Janeiro isso não foi diferente. O perfil cultural carioca foi, e ainda é, imensamente atravessado por saberes forjados pela diáspora negra. Os músicos negros estiveram presentes em diferentes espaços culturais e participaram ativamente da novidade moderna das gravações em disco, na Primeira República e posteriormente. No entanto, a pergunta que faço é: onde estavam os músicos negros na época dos debates sobre o modernismo?
A resposta é simples: estavam construindo a música popular brasileira, emprestando seus saberes magistralmente, em forma de ritmos, enquanto os intelectuais que tomaram para si o lugar de rotular o que era moderno simplesmente não os enxergavam – ou, quando muito, os enxergavam a partir das lentes do racismo que desqualificava, silenciava e apagava as produções dos músicos negros.
Considerações finais
Considerar as gravações, produzidas pela parceria entre a Casa Edison e a Odeon, dos pontos de Iansã, Ogum e, posteriormente, de Exú feitas por Mano Eloy e seu grupo, tendo como perspectiva o modernismo negro, é um caminho para entendermos as agências negras e os atravessamentos culturais afroatlânticos na construção da música popular brasileira. Trata-se de registros físicos da
produção cultural negra tradicional, que fizeram parte de movimentos sociais de preservação e construção de diferentes ritmos de matriz afrodiaspórica.
As afromacumbas gravadas no Brasil marcam um movimento da indústria fonográfica diante da demanda pelo que era considerado “exótico” e próprio à “cultura popular”. No entanto, o impulso do mercado não esteve isolado de um importante posicionamento explorado pelas redes de pessoas negras, que enxergaram tal impulso como oportunidade de visibilidade para si e suas práticas culturais. Foram os músicos negros que promoveram o diálogo entre as modernas gravações em disco e as faixas com registros do patrimônio cultural ligado à diáspora africana nas Américas.
Mano Eloy foi testemunha, protagonista e um dos pioneiros desse movimento complexo de se fazer presente social, cultural e politicamente, através das manifestações culturais de matriz africana. Pode-se identificar, em sua trajetória, a participação no desenvolvimento de festas e associações, e na salvaguarda de ritmos como as afromacumbas, os jongos e o partido alto. Dessa forma, alguns eventos de seu percurso auxiliam na análise de questões em torno da produção e do desenvolvimento cultural de negros pobres no pós-abolição, em direção à conquista de espaços de autorrepresentação.16
16 tavares, Alessandra. Op. cit.
GETÚLIO MARINHO DA SILVA E O PIONEIRISMO DAS
MACUMBAS EM DISCOS1
FERNANDA EPAMINONDAS SOARES
1 Este texto é fruto de parte da minha pesquisa de mestrado, defendida em 2016, pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, e publicada em livro no ano de 2021 pela editora crv, com o título: “Fui o criador de macumbas em discos”: protagonismo negro e a trajetória de Getúlio Marinho da Silva no pós-abolição carioca (1895-1964)
Compositor, instrumentista, dançarino e servente da saúde municipal, Getúlio Marinho da Silva, ou “Amor”, apelido de infância que se tornou nome artístico, nasceu em Salvador em 15 de novembro de 1889 e faleceu no Rio de Janeiro, em 31 de janeiro de 1964. Veio para a capital carioca aos seis anos de idade, com seus pais: Paulina Teresa de Jesus e Antônio Marinho da Silva, ou “Marinho que Toca”, nome pelo qual era conhecido como sambista.2
Ainda criança, assim que chegou ao Rio de Janeiro, passou a integrar o rancho Dois de Ouros como porta-machado, e desfilava também no rancho Concha de Ouro. Com Hilário Jovino Ferreira, aprendeu a coreografia dos mestres-salas dos ranchos, tornando-se deles um grande especialista.3 Segundo Roberto Moura, Amor e Hilário foram considerados os criadores da impostação e da coreografia dos mestres-salas como uma versão negra dos códigos corporais de elegância das elites.4
2 albin, Ricardo Cravo. Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira. Disponível em: www.dicionariompb.com.br/amor. Acesso em: mar. 2012
3 Ibidem.
4 moura, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro 2. ed. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Dep. Geral de Doc. e Inf. Cultural, Divisão de Editoração, 1995, p. 90
No mundo do carnaval, para além das festas que organizava e dos amigos que fazia, Getúlio Marinho explorou outros campos. Em setembro de 1934, o Correio da Manhã , 5 O Paiz, 6 o Diário Carioca , 7 o Jornal do Brasil, 8 A Noite, 9 e O Globo10 noticiavam que uma nova diretoria havia sido eleita para administrar a União das Escolas de Samba (ues).11 Entre os cargos de presidente, vice-presidente, secretários, tesoureiros e procuradores, Getúlio Marinho da Silva foi eleito primeiro secretário.12
Como membro da diretoria da ues, Getúlio Marinho era presença em diversas festas e homenagens relacionadas ao carnaval, mas foi em 1940 que ele ganhou ainda mais as páginas dos periódicos ao ser eleito o “Cidadão Samba”.
Segundo Jota Efegê, em matéria de O Jornal, a eleição se sucedia a cada ano, e o escolhido era a figura que representava o samba. Para ganhar a disputa, era preciso fazer um “verdadeiro teste”: tocar pandeiro, tamborim, saber sambar etc.13
Amor ganhou o título por cinco anos consecutivos e, por onde quer que ele passasse, estava cercado de carnavalescos, jornalistas e outras figuras que, em diferentes momentos de sua vida, ajudaram a ampliar suas redes de sociabilidade através do samba, do carnaval e da indústria fonográfica.
Getúlio Marinho, inclusive, iniciou sua carreira artística como dançarino na revista Dança de Velho, apresentada no Teatro São José em 1916. No ano seguinte, desfilou como mestre-sala no rancho Flor do Abacate e, dois anos depois, também como mestre-sala, no rancho Quem Fala de Nós Tem Paixão. Em 1921, Getúlio Marinho passou a atuar no rancho Reinado de Siva e, segundo o Diário Carioca, 14 foi empossado como conselheiro fiscal do rancho Quem Fala de Nós Tem Paixão.
5 “A vida social: directorias”. Correio da Manhã , 16 09 1934
6 “Associações: União das Escolas de Samba”. O Paiz , 16.09.1934.
7 “Recreativas: União das Escolas de Samba”. Diário Carioca , 18 09 1934
8 “Sociedades recreativas: completas informações da reportagem do Jornal do Brasil: União das Escolas de Samba: foi eleita a nova diretoria”. Jornal do Brasil , 18.09.1934.
9 “União das Escolas de Samba”. A Noite, 19 09 1934
10 “Na União das Escolas de Samba”. O Globo, 17.09.1934.
11 A ues era uma entidade fundada para congregar as escolas de samba e incentivá-las a se registrar como “sociedades civis recreativas sem fins lucrativos”. oliveira, José Luiz. “A relação do poder do Estado com as escolas de samba do Rio de Janeiro. 1930-1945” (1985) apud soihet, Rachel. A subversão pelo riso: estudos sobre o carnaval carioca da belle époque ao tempo de Vargas. 2. ed. Uberlândia: Edufu, 2008, p. 186.
12 Em 1935, houve nova eleição para a diretoria da União das Escolas de Samba, mudando-se seu presidente para João Canali. Getúlio Marinho permaneceu como primeiro secretário, mas, anteriormente, ele havia sido eleito segundo secretário da mesma instituição.
13 “João Canali, um quase desconhecido entusiasta do samba”. O Jornal , 12.07.1964.
14 “Clubs & festas: quem fala de nós tem paixão”. Diário Carioca , 07 07 1932
(direita) Getúlio Marinho, O Jornal , 1965
(abaixo) Getúlio Marinho, sem data
Acervo Instituto
Moreira Salles / Coleção
José Ramos Tinhorão
Getúlio também era instrumentista e teria sido grande tocador de omelê, antiga cuíca.15 Na indústria fonográfica, ao longo dos anos de 1930 e em diante, registrou diversas músicas de variados gêneros musicais.16 Amor também foi criado frequentando as casas das tias baianas, como Bebiana, Gracinda, Calu Boneca e a famosa Ciata. Além disso, frequentava terreiros e conheceu pais de santo famosos, como João Alabá, Assumano e Abedé.
Assim, a partir dos anos de 1930, registrou em disco várias cantigas rituais da tradição afro-brasileira. Apesar das afrorreligiosidades já estarem presentes no disco desde antes de Getúlio Marinho, a inovação estava no estilo e no novo gênero musical.
Ponto de Inhassan e Ponto de Ogum foram os primeiros “pontos de macumba” registrados em disco no Brasil. Diferentemente do que fora gravado anteriormente,17 esses pontos foram documentados sem a interferência de instrumentos que não aqueles integrantes do universo dos rituais afro-brasileiros, rico em percussão e outros elementos comuns dos cultos, como clamores e palmas.
Ponto de Inhassan18 é para “salvar nossa mãe”. Na ocasião, Inhanssan19, a orixá guerreira, é quem recebe a homenagem. Inicia-se com um louvor a Jesus
15 Sobre o instrumento musical, Marc Hertzman aponta que é trabalhoso encontrar informações sobre o omelê, e, inclusive, suas referências no Brasil são raras. Ver: hertzman, Marc. “Um contrapeso brasileiro: música, propriedade intelectual e a diáspora africana no Rio de Janeiro (anos 1910-1930)”. In: gomes, Flávio e domingues, Petrônio (orgs.). Políticas da raça: experiências e legados da abolição e da pós-emancipação no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2014, p. 333.
16 Parte da obra de Getúlio Marinho na indústria fonográfica encontra-se no acervo do ims e pode ser consultada em texto e áudio em: discografiabrasileira. com.br/artista/21057/getulio-marinho-amor Acesso em: fev. 2023.
17 Foi realizada busca nos acervos de músicas, entre outros, dos colecionadores Humberto Franceschi e José Ramos Tinhorão, localizados no Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro, e não foram encontrados pontos de macumba ou “de corima” gravados antes de Getúlio Marinho e Eloy Dias. Na dissertação de mestrado de Caroline Vieira, que aborda as canções afrorreligiosas da fase mecânica da indústria fonográfica, desde seu início (1902), não há menção ou análise de pontos anteriores aos de Getúlio Marinho. Inclusive, os pontos de macumba que a autora destaca e analisa são os que foram gravados em 1930 por Getúlio Marinho da Silva e Eloy Antero Dias. Ver: vieira, Caroline. “Ninguém escapa do feitiço”: música popular carioca, afrorreligiosidades e o mundo da fonografia (1902-1927). Dissertação de mestrado. Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Faculdade de Formação de Professores, 2010. 18 Macumba (Ponto de Inhassan). Gênero: Ponto de Inhassan – Domínio Público – Intérpretes: Elói Antero Dias e Getúlio Marinho – Acompanhante: Conjunto Africano – Gravadora: Odeon – Lançamento: setembro de 1930 – Número do álbum: 10679 – Lado a – Coleção José Ramos Tinhorão – Instituto Moreira Salles. Disponível em: discografiabrasileira.com.br/fonograma/30424/macumba-pontode-inhansan. Acesso em: fev. 2023. No livro de Humberto Franceschi. Samba de sambar do Estácio: 1928 a 1931 (São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2010), o nome da música é Ponto de Inhassã e o gênero musical, “macumba”. 19 Inhanssan aparece grafado na documentação de diferentes formas: além desta, pode aparecer também como Inhassan, Inhãssan, Iansã e outros. Todas as formas de grafia se referem à orixá.
Cristo, seguido do pedido de bênção acompanhado de coro. A música apresenta apenas instrumentos de percussão, como atabaques, e, em alguns momentos, chocalho, acompanhados sempre de palmas.
Os coros trazem vozes femininas e masculinas, e em vários momentos palavras são pronunciadas em línguas africanas, talvez em banto, entre as frases cantadas pelo coro. Clamores de saudação, como “Epahey!”, são enunciados em diversos instantes, seguidos de outros clamores como “Ei!” e “Oió!”. Logo em seguida ao pedido de bênção, a música segue apenas com os cantares “Macumbembê, macumba lirá… Viva a rosa macumbembê” alternados pelo cantor e pelo coro. Nota-se que “macumbembê” nos remete a uma derivação de “macumba”, palavra também empregada nesses versos.
Já em Ponto de Ogum, 20 assim como no ponto anterior, é possível notar a presença de falas e respostas em coro, dando a ideia de culto, evocando a celebração e pedindo a bênção ao orixá Ogum. O som de atabaques, chocalhos e palmas faz a instrumentação. O coro é composto por vozes femininas ao fundo. Algumas palavras, possivelmente em banto, são pronunciadas entre as frases da música, assim como clamores de saudação característicos do orixá homenageado, como “Ogunhê!” e “Ogunhê, meu pai!”. Conforme a canção avança, o som da percussão e das palmas aumenta, assim como algumas expressões em tom de clamor e em sinal de celebração.21
As obras gravadas pela Odeon registravam, pela primeira vez em chapa fonográfica, pontos rituais de cultos afro-brasileiros. Uma das interpretações para esse fenômeno inovador está em entender que a indústria fonográfica assumia nova etapa frente à produção musical de diversos músicos, nesse caso, de músicos negros.
No entanto, o fato também denota uma conquista, negociada e disputada por eles, e, assim como nas canções do músico Eduardo das Neves, o repertório musical de Getúlio Marinho, mesmo no alvorecer nos anos 1930, pode sinalizar “alguns possíveis caminhos construídos pelos afrodes-
20 Macumba (Ponto de Ogum). Gênero: Ponto de Ogum – Domínio Público – Intérpretes: Elói Antero Dias e Getúlio Marinho – Acompanhante: Conjunto Africano – Gravadora: Odeon – Lançamento: setembro de 1930 – Número do álbum: 10679 – Lado b – Coleção José Ramos Tinhorão – Instituto Moreira Salles. Disponível em: discografiabrasileira.com.br/ fonograma/30429/macumba-ponto-de-ogum. Acesso em: fev. 2023. No livro de Franceschi, Samba de sambar do Estácio: 1928 a 1931 (São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2010), é admitido que a canção tinha o nome de Ponto de Ogum e o gênero musical, de “macumba”.
21 Reginaldo Prandi destaca que ponto de Ogum “é claramente um ponto de terreiro” e que, nos anos de 1930, o processo de formação da Umbanda já caminhava para sua etapa final. prandi, Reginaldo. Segredos guardados: orixás na alma brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 191
cendentes para incluírem-se numa Nação, que não estava muito disposta a aceitá-los”. 22
Além da conquista na indústria fonográfica e das mensagens das letras e da música, todo o significado da música dentro das religiões afro-brasileiras poderia ser compartilhado em mais um canal de comunicação, o disco comercial, e o sob o termo genérico “macumba”, uma novidade também dos anos 1930
Nesse contexto, assim como a dupla Getúlio Marinho e Eloy Dias, outros músicos registraram canções com o gênero musical “macumba” e foram também amplamente divulgados pelos jornais. No entanto, nem sempre a classificação “macumba” pode designar as músicas como “ponto de macumba”, mas, certamente, ela deixa explícito para o público que elas contêm elementos religiosos afro-brasileiros.
A inovação de Getúlio Marinho e Eloy Antero Dias está não somente nas canções que traziam a “macumba” como gênero musical, mas também no fato de terem levado para o disco os “pontos de macumba”, o que deixava ainda mais evidente que ali estavam presentes cantigas tocadas e/ou inspiradas em rituais afro-brasileiros. Essas, por sua vez, reforço, estavam sendo amplamente divulgadas não apenas no disco, mas também nos jornais.
Aproveitando o contexto de efervescência cultural que vivia o Rio de Janeiro, com novas linguagens por conta das tecnologias que compunham o clima de modernidade da época, como os novos meios de comunicação (telefone sem fio, telefone, aviação, imprensa ilustrada, rádio, cinema, indústria fonográfica etc.)23, o gênero “macumba” foi uma conquista desses músicos negros, que tiveram suas “macumbas” e/ou “pontos de macumba” reconhecidos como tais.
Vale lembrar que, além do contexto das novidades tecnológicas, é fundamental atentarmos à conjuntura política e jurídica do tempo em que Getúlio Marinho compunha canções com letras e ritmos embebidos nas religiões de matriz africana e ousava com o novo gênero musical.
Segundo Yvonne Maggie, foram criados documentos jurídicos específicos em relação à magia que fez com que se oficializassem acusações em torno das religiões de matriz africana. Com o passar do tempo, instituições iam sendo criadas na polícia para legitimar o combate e identificar/punir aque-
22 abreu, Martha. “Cultura política, música popular e cultura afro-brasileira: algumas questões para a pesquisa e o ensino de história”. In: soihet, Rachel, bicalho, Maria Fernanda Baptista e gouvêa, Maria de Fátima Silva (orgs.). Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: Mauad, 2005, p. 416. 23 vieira, Carolina. Op. cit., pp. 36-37
les que produziam “malefícios”. Segundo a autora, pelo menos de 1890 a 1940, o aparato jurídico se institucionalizou e, no combate aos “feiticeiros”, passou a ser requisitado com mais intensidade.24
De todo modo, mesmo que o Estado se especializasse nos temas sobre a magia a fim de criminalizá-la, ela estava no espaço público, e as religiões afro-brasileiras eram uma realidade nas vidas privada e pública da cidade, assim como nas “macumbas” e “pontos de macumba” de Getúlio Marinho da Silva.
A inovação do estilo musical “macumba” configura, portanto, uma vitória política, pois se criou um termo específico para identificar aquelas canções compostas com elementos e performances do universo afrorreligioso. Essa conquista certamente foi fruto das negociações de músicos negros com a indústria fonográfica, nas quais Getúlio Marinho teve papel fundamental, movimentando esse setor de maneiras diversas: desde a sua atuação no carnaval até, por exemplo, o apadrinhamento e a apresentação de novos intérpretes à indústria, para cantar suas macumbas. Alguns exemplos são o próprio Eloy Antero Dias, J.B. de Carvalho, lembrado como o “Rei da Macumba”, e Moreira da Silva, que depois da fama se dizia criador do “samba de breque”.
É importante pensar, portanto, que a trajetória de Getúlio Marinho não pode ser pensada isoladamente, mas em conexão com outros músicos e personagens inerentes à sua história, e fundamentais não apenas no campo artístico do entretenimento, do carnaval e da música, mas também na construção de sua identidade e de suas culturas.
As ambiguidades entre o estrelato e a vida de homem negro comum à época, tendo ele falecido esquecido, foram destino comum a diversos outros músicos negros famosos de seu tempo. Nesse sentido, é importante que resgatemos sua memória para que ela saia, finalmente, do silenciamento.
Getúlio Marinho da Silva foi uma importante e fundamental liderança negra, uma vez que se inseriu na modernidade de seu tempo, extraiu o que sua época podia oferecer e se beneficiou disso, ocupando o espaço disponível, principalmente no que se refere ao carnaval e à indústria fonográfica.
Amor atribuía a si mesmo o advento de criação das “macumbas” em discos, se posicionando, ao mesmo tempo, como o intelectual criador de músicas que era, frente à conjuntura de sua época, trilhando seu caminho com protagonismo diante dos desafios do período histórico no qual viveu e trazendo para si, ainda, o protagonismo de sua própria história.
24 maggie, Yvonne. Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Arquivo Nacional, Órgão do Ministério da Justiça, 1992, p. 23
ENCONTRO 4
LIDERANÇAS E INVISIBILIDADES
RELIGIOSIDADES E (IN)VISIBILIDADES DE MULHERES NEGRAS NO PROCESSO HISTÓRICO DOS SAMBAS: DE TIA CIATA DE OXUM A MADRINHA EUNICE DA LAVAPÉS
CLAUDIA REGINA ALEXANDRE
Os sambas e as religiosidades negras são expressões ancestrais entrelaçadas. No entanto, no percurso da constituição das organizações carnavalescas e do próprio samba como gênero musical, observa-se a falta de entendimento dessa relação como forma de empoderamento das tradições afro-brasileiras. É através do protagonismo de mulheres negras, que se tornaram personagens importantes nas disputas culturais no início do século xx – resistindo pelo sagrado e usando valores culturais negro-africanos como musicalidade, religiosidade, sociabilidade e axé –, que vamos acessar algumas memórias ocultas na literatura da música popular brasileira. A participação criativa de mulheres no processo histórico do samba revela humanidades aglutinadoras de seus pares e o fazer artístico de cantoras, compositoras, sambadeiras e instrumentistas, além de líderes religiosas, que também foram desprezadas pela indústria cultural.
Esse foi o tema central da pesquisa realizada e apresentada no quarto encontro do Ciclo Música e modernismos negros: formação a partir do acervo ims, com foco em “Lideranças e invisibilidades”. O objetivo foi trazer à tona a questão das mulheres negras, alinhadas com suas tradições de matrizes afri-
canas, e problematizar as violências interseccionais1 enfrentadas no segmento da música nacional. Observamos o processo do movimento modernista brasileiro em diálogo com uma breve pesquisa no acervo fotográfico e de programas da Rádio Batuta, rádio de internet do Instituto Moreira Salles, abordando algumas cantoras e compositoras negras como Clementina de Jesus, Clara Nunes, Ivone Lara, Elza Soares, Alcione e Leci Brandão. Porém, usando uma análise crítica sobre visualidades e visibilidades, 2 destacamos como outras mulheres negras anônimas não foram lidas como protagonistas, mas reduzidas a simples figurantes do processo histórico, como é o caso das primeiras mulheres de terreiros e de comunidades tradicionais, cuja identidade pessoal e visual buscamos desvelar.
É importante salientar que poucos estudos se ocuparam, até o momento, da (in)visibilidade e da participação de mulheres negras nas formulações da nossa música, especialmente dos sambas, 3 que, de acordo com Werneck,4 ainda sofrem de reiteradas narrativas que lhes dão como “mito de origem” a criatividade de homens negros. “Nessas narrativas, geralmente, não encontraremos referências importantes à participação de mulheres negras, invisibilizando-se evidências de seu protagonismo”.5
Não existem referências que afirmem o samba como manifestação exclusiva e restrita à participação masculina, seja no caso de seus precursores africanos, seja de suas formas nos primeiros anos brasileiros. Ao contrário, os diferentes registros das danças, cantos e percussões envolvidos no samba referem-se à participação de mulheres e homens, em roda, igualmente atuantes como instrumentistas.6
1 collins, Patrícia. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e política de empoderamento. Trad. Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 57.
2 rocha, Rosa de Melo. “Cultura da visualidade e estratégias de (in)visibilidade”. Apresentado no grupo de trabalho Comunicação e Cultura do xv Encontro da Compós. Unesp, Bauru, jun. 2006 Ecompós. Revista da Associação Nacional dos Programas de PósGraduação em Comunicação. Disponível em: www.e-compos.org.br/ecompos/article/view/115/114.
3 Utilizamos o plural, dadas as diversas formas de manifestações regionais do gênero: samba de roda (ba), partido-alto (rj), samba de crioula (ma), samba-enredo (rj), samba rural (sp) etc.
4 werneck, Jurema. O samba segundo as ialodês: mulheres negras e a cultura midiática. São Paulo: Hucitec, 2020, p. 15
5 Ibidem.
6 Ibidem, p. 78
Mesmo que a ausência de registros sobre a participação e os protagonismos de mulheres negras esteja em consonância com as realidades vividas por elas numa sociedade racializada (sexista, racista e patriarcal), é relevante que os debates atuais promovam formas de redução dos danos causados pela desvalorização de mulheres negras, em todos os segmentos. Nossa apresentação chamou atenção para as seguintes pautas:
1 Marginalização das mulheres negras no cenário da música nacional, inclusive na literatura dos sambas, reflexo de uma sociedade racista, machista e sexista;
2 Questionamento das invisibilidades e dos estereótipos que prejudicaram a participação das mulheres negras na construção da identidade nacional;
3 Importância da revisão de narrativas hegemônicas e a urgência da reescrita de memórias de mulheres negras na música popular;
4 Pequena disponibilidade de estudos sobre a participação de mulheres negras na música e nas artes em geral – todavia, surpreende como isso também acontece na história do samba, em que elas protagonizaram a cena nos terreiros e nos casarões, mas foram discriminadas no mercado e na industrial cultural;
5 Urgência de se valorizarem mulheres negras no debate sobre modernismos negros, já que elas sempre estiveram atuantes e na disputa de um lugar merecido;
6 Maior visibilidade, no campo da música, às casas das mulheres africanas, tias baianas, tias fluminenses, tias mineiras e tias cariocas, que se apresentavam como lugar de produção, de vivências negro-africanas e de inovações criativas produtoras de novas sonoridades, dos batuques aos cantos para os orixás e encantados;
7 Relação entre sambas e religiosidades de matrizes africanas, que possibilitou o desenvolvimento de outros valores civilizatórios, o primeiro deles sendo a formação das redes de sociabilidades negras;
Por fim, questionamos: por que o movimento que se quis modernista não reconheceu corpos negros, especialmente os de mulheres negras, com a sua capacidade de produzir e introduzir novas sonoridades em melodias, harmonias e ritmos, sem necessitar de agenciamento, refinamento racializado e enquadramento exigidos pela indústria cultural?
Mulheres negras e musicalidades ancestrais
É por meio das experiências das matriarcas do samba e de suas contemporâneas que propomos refletir sobre temas importantes relacionados a raça, gênero, classe e religião, desprezados pela história hegemônica. Apesar da sub-representação, invisibilidade e marginalização de mulheres negras nos registros sobre a música popular brasileira, é possível encontrar em fragmentos de memórias razões para a reescrita e revisão de narrativas, para que recuperem a presença daquelas cuja capacidade de transmissão de bens ancestrais ainda é fundamental para se recompor a história do samba, com todos os valores civilizatórios herdados delas.
Os primeiros registros visuais da presença de mulheres negras nas ruas do Rio de Janeiro remetem às redes de cumplicidades formadas por africanas – escravizadas, libertas, alforriadas e crioulas, retratadas mesmo antes da abolição da escravatura. As cenas de mulheres diante de tachos de comidas servindo o famoso angu escondiam uma forma de vida particularmente negra. Boa parte das comerciantes, além de cozinheiras, eram donas das famosas “casas de angu”, “casas de feitiço”, “casas de dar fortuna” ou “casas de zungo”, que atormentavam a elite dominante e os poderes constituídos que proibiam os ajuntamentos de negros.
A última notícia na imprensa sobre a invasão de um zungo descreve a prisão de 14 africanos de origem bantu, a maioria mulheres que se declaravam cozinheiras e lavadeiras: “Reuniram-se em uma modesta estalagem da rua de Paysandu, e aí, ao som de seu instrumento nacional, a marimba, e entre dois garrafões da branca, começaram a entoar uma melopeia monótona e gutural, acompanhada de batuque e de um roçar de facas nas bordas dos pratos”.7
Essas primeiras experiências negro-africanas no Rio de Janeiro foram importantes para a formação das redes de solidariedade, que ainda mantêm unidos os terreiros e as escolas de samba, mostrando continuidades em comunidades tradicionais onde as mulheres são fundamentais para a vitalidade de outros sambas. É o caso de: samba de roda (Recôncavo da Bahia); samba de caxambu, parte do jongo (sul do Espírito Santo); samba de pareia (quilombo Mussuca, Laranjeiras, em Sergipe); samba de creoula (Tambor de Crioula, no Maranhão); samba da lata de Tijuaçu (quilombo no norte da Bahia); e samba das paparutas ou dona da comida (ilha do Paty – São Francisco do Conde – Recôncavo da Bahia).
7 O Paiz , 26 05 1885, f. 1
Na Bahia, em especial nas cidades do Recôncavo, o samba de roda está presente nos terreiros de candomblé, nas festas de Caruru de Cosme e Damião e nas sessões de Caboclos. É também parte integrante da festa da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, uma expressão que mistura a festa católica e as tradições das mulheres da alta hierarquia dos candomblés. Não existe samba de roda sem a participação das mulheres.
No Rio de Janeiro, na região da Pequena África, onde se localizava a Praça Onze, mulheres que saíram às ruas conduzindo e dando proteção aos primeiros ranchos carnavalescos tornaram-se as “tias baianas”, e não eram apenas as donas dos casarões. Nota-se que na lista das mais famosas, em que a grande mãe é Tia Ciata de Oxum, vamos encontrar nomes como Tia Amélia do Aragão (mãe do compositor Donga), pastora, festeira e mãe de santo; Tia Celeste, mãe do marceneiro, músico e artista visual Heitor dos Prazeres; Tia Perciliana (mãe de João da Bahiana), quitandeira e partideira, que introduziu o pandeiro e o prato e faca nas rodas de samba.
Criativas e líderes, elas impunham autoridade religiosa e negociavam com o sistema hegemônico, saindo às ruas com seus tabuleiros e promovendo festas em que também cantavam, versavam, dançavam, tocavam e compunham, assim como os homens negros e brancos que frequentavam os encontros em suas salas e quintais.
Mas quando o samba foi ganhando notoriedade e interesse por parte da indústria cultural, ele deixou de ser “preto” e se afastou das tradições ancestrais, para as quais mulheres negras eram indispensáveis. A perda de espaço tirou-lhes o protagonismo e reservou a elas a margem dos avanços do samba e do mercado de entretenimento. A partir de 1930, quando ocorre a oficialização das escolas de samba, as mulheres negras passam a disputar e resistir em lugares determinados, enfrentando restrições até mesmo no interior das organizações carnavalescas, como na Ala de Compositores e na Ala da Bateria, que por muito tempo eram reservadas aos homens.
Da Praça Onze à baixada do Glicério: visibilizando a São Paulo de Madrinha Eunice
As mulheres também estiveram no centro da formação do samba em São Paulo, cujas primeiras manifestações foram marcadas pelos batuques da região cafeeira. A cidade de Pirapora de Bom Jesus e as celebrações católicas em devoção ao santo padroeiro aparecem como aglutinadoras de negros e negras
no início do século xx. Para lá se dirigiam excursões negras de diversas cidades vizinhas, que relembravam um movimento do período escravista, e os ancestrais eram apartados da festa principal e recolhidos em barracões onde teria se originado o samba paulista ou samba rural paulista, como cunhado pelo modernista Mário de Andrade em 1937.
Enquanto na igreja da matriz a elite celebrava e saia em procissão pelas ruas da cidade, o povo negro compartilhava experiências festivas, alimentares e religiosas dentro dos barracões do samba:
As participações em festas de caráter religioso-profano, como as congadas, os moçambiques e o próprio samba de Pirapora, influenciaram a criação dos desfiles dos cordões carnavalescos, típicos da população negra e pobre da cidade de São Paulo, na primeira metade do século xx… Essa base instrumental motivava cantos com versos de improviso muito conhecidos em cidades como Tietê, Porto Feliz, Laranjal Paulista, Capivari, Botucatu, Itu, Tatuí, e em outros municípios originários dos movimentos de antigos escravizados no estado de São Paulo.8
As mulheres começaram a participar ativamente do carnaval de rua de São Paulo a partir do ano de 1921,9 atuando como costureiras, arrecadando dinheiro junto aos comerciantes dos bairros e ajudando a organizar as primeiras alas que saiam às ruas.
Foram vistas pela primeira vez no Grupo Carnavalesco Barra Funda, cuidando do setor mirim, o Infantil Barra Funda.10 […] O Cordão Vai-Vai, que surgiu em 1930, apenas admitiu mulheres durante os desfiles a partir de 1931. Mas já no primeiro cortejo foi vista, na ala das crianças, onde só saiam meninos, uma menina com disfarce, na ala das balizas.11 Era Dona Sinhá, que aos 12 anos estreou no cordão do Bixiga.12
8 alexandre, Claudia Regina. “Mães do samba e do axé: de Ciata de Oxum às tias baianas paulistas”. In: faustino, Carmen, freitas, Maitê e vaz , Patrícia (orgs.). Massembas de ialodês: vozes femininas em roda São Paulo: Pólen, 2018, p. 82.
9 simson, Olga Rodrigues de Moraes von. Carnaval em branco e negro. Carnaval popular paulistano. Campinas: Unicamp, 2007, p. 178.
10 Ibidem
11 Ibidem, p. 179.
12 alexandre, Claudia Regina. Op. cit., p. 184
Em 1937, Madrinha Eunice fundou a Escola de Samba Lavapés. Filha de Ogum com Iansã (assim como Clara Nunes), nascida em 14 de outubro de 1909, em Piracicaba, ela não chegou a conhecer Tia Ciata, mas ao visitar o carnaval do Rio de Janeiro, nos anos 30, teve a ideia de fundar, ao lado do marido, Chico Pinga, uma escola de samba com o nome do bairro paulista. Na época, a fundadora já tinha experiência com o ambiente da festa. Era integrante do antigo cordão carnavalesco Baianas Teimosas, em que só desfilavam mulheres. Era uma líder religiosa, que comandava um terreiro de quimbanda dedicado ao Exu Veludo, entidade que incorporava e era respeitada pelo povo do samba. Uma tradição mantida até hoje pela bisneta Rosemeire Marcondes e pelos familiares, que cuidam das práticas religiosas e do samba. Há dois anos, a escola é presidida pelo ator Ailton Graça, que ampliou o seu nome para Lavapés Pirata Negro, também homenageando a entidade Exu.
Uma outra mulher teve participação importante na história da Lavapés: Deolinda Madre, que elaborava os enredos e compunha para os desfiles da escola. Ela gostava de cantar e teve um dos seus sambas, São Paulo antiga, composto com o marido, gravado em disco. A música teve registro inédito no álbum História do samba paulista (volume 1), do também cantor e compositor paulista Osvaldinho da Cuíca, lançado em 1999 Madrinha Eunice, na Lavapés; Dona Siná, na Camisa Verde e Branco; Dona Olímpia, Tia Cleuzi, Dona Marcinha e Dona Nenê, na Vai-Vai. São todas mulheres que marcam a história do carnaval e do samba paulista, todas elas ligadas às religiosidades negras. Dona Nenê, mãe de santo, era chefe de ala na Vai-Vai e foi a responsável pelo assentamento dos orixás Exu e Ogum, patronos da escola de samba do Bixiga13
Tia Ciata de Oxum e as lacunas do tal modernismo
Na lista dos frequentadores do famoso casarão da rua Visconde de Itaúna, número 119, último endereço em que Tia Ciata morou antes de falecer (em 1924), está o modernista Mario de Andrade, um dos protagonistas da Semana de 1922. No romance Macunaíma, o herói sem caráter (1928), ele faz uma descrição da matriarca, durante um dos famosos batuques de candomblé, no capítulo que intitulou de “Macumba”:
13 Ibidem, p. 187
A macumba se rezava lá no mangue, no zungu de tia Ciata, feiticeira como não tinha outra, mãe de santo famanada e cantadeira ao violão. […] Tia Ciata era uma negra velha com um século no sofrimento, jávevó e galguincha com a cabeleira branca esparramada feito luz entorno da cabeça pequitita. Ninguém mais não enxergava olhos nela, era só ossos de uma cumpidez já sonolenta pendendo para o chão de terra.14
Assim como não conseguiremos mais confirmar o quanto de real há na ficção de Mario de Andrade em relação à imagem visual de Tia Ciata, muitas lacunas ainda permanecem sobre a trajetória individual de Hilária Batista de Almeida. Apesar de ser reconhecida como a matriarca do samba, sua biografia ainda segue presa a uma história única15 e cheia de contradições. Uma breve pesquisa em sites de busca nos leva a pelo menos 11 mulheres negras diferentes apresentadas como sendo Tia Ciata. Uma confusão que se estende ao seu local de nascimento, à quantidade de filhos que teve e a episódios que as narrativas hegemônicas se incumbiram de embaralhar.
O episódio da Rádio Batuta Tia Ciata e as matriarcas do samba , da série Música é história , também usa como capa uma de suas fotos mais difundidas. A fotografia foi apresentada pela primeira vez em 1949, durante a conferência O samba não nasceu no morro, pelo radialista Henrique Foréis Domingues, conhecido como Almirante (1908-1980).
A mesma foto consta do acervo permanente do Museu Afro Brasil, em São Paulo, na seção “Arte, Adorno, Design e Tecnologia no Tempo da Escravidão”, e pode ser vista ao lado de uma outra foto que, surpreendentemente, também é utilizada por algumas fontes como se fosse de Tia Ciata. Porém, a mais divulgada das imagens segue sendo a assinada pelo fotógrafo e pintor alemão Rodolpho Lindemann, feita em Salvador, onde ele se estabeleceu, por volta de 1880, quando Tia Ciata já tinha migrado havia quase uma década para o Rio. A imagem da mulher negra anônima estampou uma série de postais chamada Creoula da Bahia, assinada por Lindemann.
Esses dados ajudaram a construir os pontos importantes que problematizamos no início deste texto, quando nos referimos à importância de se questionar a razão da invisibilidade de mulheres negras na história do samba, bem como a urgência da reescrita e revisão das narrativas disponí-
14 andrade, Mario de. Macunaíma o herói sem caráter. São Paulo: Ciranda Cultural, 2018, p. 78
15 adichie, Chimamanda Ngozi. O perigo da história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2019
veis, até aqui, sobre os registros de memórias de mulheres negras na construção da cultura nacional.
Concluímos reiterando a importância de se reivindicar uma história digna para uma matriarca do samba, mas também apontamos como a história do samba segue sem se indagar sobre os equívocos e ausências observados na literatura da cultura nacional e da música popular, em relação à presença e contribuição de mulheres negras e de suas formas de expressão. Afinal, de que modernismo negro estaríamos hoje desfrutando se a criatividade de mulheres negras carregadas de outros saberes e sonoridades estivesse nos registros da nossa história?
NOSSO SAGRADO, O ACERVO AFRO-CARIOCA EM DIÁLOGO COM INSTITUIÇÕES: AS CASAS DE UMBANDA E CANDOMBLÉ COMO ESPAÇO DE ENSINAMENTOS
EDUARDO POSSIDONIO
Océu límpido e estrelado foi testemunha do ritual de firmeza. Trajando calça branca e uma alinhada camisa vermelha com bolas brancas, o Pai de Santo pitava seu cachimbo no mesmo instante em que sobrepunha sua mão sobre a cabeça da médium já incorporada. O ponto estava firmado e cantado! Cinco velas acesas nas pontas da estrela, riscada a giz branco no chão, continham os símbolos da entidade presente no rito. Ao lado, via-se um alguidar e o marafo. Ricamente trajado e com os pés descalços, o Cambono (Ogan) entoava os pontos cantados enquanto tocava efusivamente o caxambu. O Pai de Santo, que em muito se assemelhava a um Preto Velho, trazia em suas mãos uma ave já sacrificada.1
O relato acima poderia naturalmente fazer parte de qualquer terreiro de umbanda, em especial a omolokô, em inícios do século xx, na cidade do Rio de Janeiro e seus arredores, porém é mais uma das tantas obras de arte assinadas por mestre Heitor dos Prazeres, com seus inconfundíveis traços que retrataram festejos, ritos e costumes populares e, em especial, da população
1 Agradeço à gentileza do Pai de Santo de umbanda omolokô e acadêmico Allan Ribeiro, pela interpretação desse ritual contido na capa do lp de Heitor dos Prazeres.
afro-brasileira. Contudo, cabe ressaltar que não se trata de um de seus quadros, mas sim da ilustração para seu disco lançado pela Philips em 1955, chamado Macumbas & candomblés: Heitor dos Prazeres e sua gente. Sim, o autor da imortal marchinha carnavalesca Pierrô apaixonado, ao lado de Noel Rosa em 1936, 2 dedicou todo um trabalho voltado para os pontos cantados dentro dos terreiros cariocas. Cantigas como Tá rezando, Quem é filho de umbanda, Vem de Aruanda, Nego véio, entre outras, revelam o cotidiano dos terreiros carioca ao longo das primeiras décadas do Novecentos. 3
Dentro da série de lives promovida pelo Instituto Moreira Sales, intitulada Música e modernismos negros: formação a partir do acervo ims, a obra de Heitor dos Prazeres foi apresentada pela pesquisadora Glaucea Helena de Britto.4 Vale destacar que o artista estaria longe de ser o único a retratar com beleza e maestria o cotidiano dos terreiros. Getúlio Marinho, o Amor, já havia gravado em 1933 um disco todo dedicado ao tema, e se orgulhava de falar: “Fui o criador de macumbas em discos”.5 Pixinguinha, João da Baiana, bem como todas as personalidades abordadas nas semanas dedicadas ao Modernismo negro, frequentavam terreiros de umbanda e candomblé, deixando, desse modo, que, de alguma forma, a crença interferisse em suas escolhas artísticas.
O contexto era ainda fortemente impactado por heranças africanas, o que se torna visível, principalmente, na lógica da não separação contemporânea entre práticas sagradas, vida social e política (assim o é, ao menos, nas frias letras da lei). Diversos trabalhos que se dedicaram à compreensão de práticas culturais negras abordaram suas relações com as religiões afro-brasileiras. Todavia, creio que o momento seja propício para pensarmos o inverso: a produção de tais artistas como base de compreensão para ritos e escolhas dentro dos espaços sagrados da cidade do Rio de Janeiro.
Acredito, assim, que possa ser frutuosa a consideração da religiosidade afro-carioca como objeto de estudo, e a utilização de novos acervos. Afirmei, em apresentações recentes, que futuras abordagens do tema devem passar obrigatoriamente pela análise do Acervo Nosso Sagrado, presente no Museu da República desde o ano de sua transferência e cessão definitiva do Museu da Polícia Civil, em 2020
2 Acervo Instituto Moreira Sales. Ver: pixinguinha.com.br/sheets/pierroapaixonado/. Acesso em: 23 02 2023
3 lp Macumbas & candomblés: Heitor dos Prazeres e sua gente, c. 1955. Acervo ims
4 Ver pp. 88-97.
5 soares, Fernanda Epaminondas. “Fui o criador de macumbas em discos”: protagonismo negro e trajetória de Getúlio Marinho da Silva no pós-abolição carioca (1895-1965). Curitiba: Editora crv, 2021
Tal acervo descortina para a sociedade de pesquisadores, e o público em geral, um rico conjunto de 520 objetos litúrgicos retirados compulsoriamente das casas afro-cariocas pela polícia do Distrito Federal, entre fins de Oitocentos e o final da primeira metade do século xx. A base para atuação do Estado vinha da promulgação do Código Penal de 1890, com seus artigos 156, 157 e 158, que criminalizavam o que compreendiam por baixo espiritismo (entendam-se, no contexto, as práticas afro-brasileiras) e o exercício ilegal da medicina. Os atos das autoridades eram seguidos de humilhantes caminhadas, por parte dos participantes, de seus terreiros até a 1ª Delegacia de Tóxicos Entorpecentes e Mistificações, muitas das vezes carregando seus pertences na cabeça.
Em 1938, com a fundação do Sphan (atual Iphan), e por conta da existência, dentro do Museu da Polícia Civil, de 200 objetos litúrgicos dos citados acima, surgia o primeiro tombamento etnográfico do órgão, sob o preconceituoso nome de Coleção Magia Negra.6 A instituição visava formar o corpo de guardas civis para os crimes existentes na sociedade. Vale ressaltar que mesmo, após o tombamento, o Museu da Polícia Civil continuou anexando objetos litúrgicos à coleção, já que as operações contra espaços religiosos só aumentaram. Durante décadas, diversos herdeiros de axé solicitavam a retirada do acervo da polícia, como no caso da Ialorixá Mãe Meninazinha de Oxum, do Ilê Omolú Oxum, em São João de Meriti. Em suas memórias, ela destaca a fala de sua avó, Iá Davina: “Precisamos tirar nossas coisas das mãos da polícia”.7 Movimentos acadêmicos também se fizeram presentes na luta por acesso à coleção e sua transferência. Destaco o Grupo de Pesquisa André Rebouças, da uff, na década de 1980. Suas atas de reuniões estão hoje disponíveis na plataforma do cpdoc, na coleção pessoal da professora Yvonne Maggie, e valem uma análise aprofundada. Outro importante ponto: produções acadêmicas, como Medo do feitiço, de Yvonne Maggie, e Flash of the Spirit, de Robert Farris Thompson, em seu capítulo “The Sign of Four Moments of the Sun: Kongo Art and Religion in the Americas”, apresentaram a coleção e, de certa forma, serviram de base para escritas posteriores de teses e dissertações que se interessavam pelo Acervo Nosso Sagrado.8 Destaco aqui a pujante produção de jovens pesquisadores do Grupo de Pesquisa Egbé, que, tendo a cidade do Rio de Janeiro e suas práticas sagradas
6 Relação de objetos que compõem o Museu de Magia Negra da seção de Tóxicos, Entorpecentes e Mistificações da 1ª Delegacia Auxiliar da Polícia Civil do df. Arquivo Sphan. Doc. 733, arm. i, gav. 9, pasta 41.
7 Ver: Nosso Sagrado. Quiprocó Filmes.
8 maggie, Yvonne. Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992; thompson, Robert Farris. Flash of the Spirit: arte e filosofia africana e afro-americana. São Paulo: Museu Afro Brasil, 2011
afro-cariocas nos séculos xix e xx como espaço de análise, passam obrigatoriamente pelo exame da coleção.
A escolha do Museu da República não se deu de forma aleatória. Após um grande movimento da sociedade civil, envolvendo líderes religiosos, políticos, artistas e ampla mobilização das redes sociais, que ficou conhecido como Liberte Nosso Sagrado, formou-se gt composto por diferentes Pais e Mães de Santo do Rio de Janeiro. Foram as lideranças religiosas que escolheram o Museu. A partir desse momento, foi estabelecida uma parceria com a Quiprocó Filmes e o Instituto Ibirapitanga, por meio da qual valores foram destinados exclusivamente para que a instituição cuidasse da Coleção Nosso Sagrado, e a realizasse chamada pública visando à contratação de profissionais na área de história, museologia e restauro.
Dessa forma, cheguei ao acervo; ele, inclusive, fez parte de minhas pesquisas de mestrado e doutorado. Emanuelle Rosa Ferraz, mestranda em sociologia e antropologia pelo ppgsa /ufrj, como museóloga, seguida de Maria Gabriela Glória Pereira de Moura, graduanda em conservação e restauração pela eba/ufrj, no restauro, compuseram o meu time. Em parceria com a equipe do Museu da República, em especial a historiadora Maria Helena Versiani, a pesquisa histórica estabeleceu alguns nortes de trabalho: compreender o contexto de apreensões nas casas afro-cariocas, mapear as fontes disponíveis e elaborar, posteriormente, um grande banco de dados para consulta pública, por meio do qual pesquisas futuras sobre o Acervo Nosso Sagrado seriam facilitadas. As fontes para trabalho com práticas sagradas no Brasil já são amplamente conhecidas por pesquisadores do tema. A Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional apresenta-se como uma ferramenta de fundamental importância, já que nos dá a possibilidade de busca nominativa de lideranças religiosas, bem como de termos pejorativos do período pretendido, usados para atacar as práticas sagradas afro-brasileiras. Outro importante escopo de fontes está no Arquivo Nacional, com os inquéritos policiais e processos de crimes movidos contra líderes religiosos e participantes dos cultos. O intenso cruzamento dessas fontes, desde o início dos trabalhos, descortinou um outro importante objetivo: a descoberta das casas de onde provinha parte do Acervo Nosso Sagrado. É o caso dos líderes religiosos Alberto Santos e Judith Cândida de Oliveira, no ano de 1935, quando, no bairro de Madureira, celebravam Ogum no dia 23 de abril. A data é amplamente conhecida por quem mora na cidade do Rio de Janeiro como o dia de São Jorge, o santo guerreiro que há tempos extrapolou os muros da crença católica. A Cabana do Zinho, como o terreiro dos líderes era conhecido por vizinhos e participantes, estava localizada na rua Mambucada, 26, esquina com a Guaxindiba, 127, sendo, portanto, um tradicio-
“Jupyra, a mãe de santo”, A Noite, 24.04.1935, p. 10; (à esquerda) objetos apreendidos em operação policial; (à direita) Pai Alberto Santos (Zinho) no Palácio da Polícia Acervo Biblioteca Nacional
nal terreiro do subúrbio carioca, com amplo espaço para as diferentes funções que demandava um axé de umbanda.
Como de costume, a polícia chega ao local e interrompe a cerimônia, evidenciando a violência litúrgica que atingia tais espaços. A ação policial ganhou destaque em importantes jornais da cidade: “Um antro de mysticismo varejado pela polícia – vários ‘macumbeiros’ presos”,9 “Varejada pela polícia a ‘macumba’ do ‘Zinho’, em Madureira”,10 “Festejando São Jorge à moda africana”.11 O jornal A Noite dedicou parte de sua capa para manchete e duas fotografias do ocorrido, ao lado de notícias sobre o governo do presidente Getúlio Vargas: “Jupyra, a mãe de santo – A noitada de magia negra, em Madureira”.12 Exú matou um pássaro hoje com a pedra que lançou ontem. Esse famoso oriki, nesse momento de análise de fontes, faz todo sentido para minhas pesquisas:
9 O Jornal , 25.04.1935.
10 Diário da Noite, 24 04 1935
11 Jornal do Brasil , 25.04.1935.
12 A Noite, 24 04 1935
veículos de comunicação participantes da perseguição das casas afro-cariocas, na tentativa de combatê-las, deixaram importantes registros sobre elas.
Destaco que, por meio da imprensa, foi possível descobrir que o terreiro funcionava havia mais de dez anos,13 bem como a natureza de diversos materiais apreendidos. Entre estes, existia uma espada com o nome de dom Pedro ii gravado. Não se trata de uma simples informação: tal fato reforça a hipótese de que o que sabemos, por ora, é a data de apreensão de cada peça, não a de sua confecção, sua preparação e sacralização podendo remeter ao século xix. Através do cruzamento de diferentes jornais, revelou-se não somente o endereço da casa de santo, mas também os dos participantes levados pelo comissário Braga Mello e seus comandados para o Palácio da Polícia.
A imagens de capa do jornal A Noite foram reveladoras para a pesquisa. Por elas, foi possível descobrir que uma quantidade considerável de objetos do culto de Pai Alberto Santos e de Mãe Judith faz parte hoje do Acervo Nosso Sagrado.
13 O Jornal , 25 04 1935
(em cima) Gorro ritualístico; camisa encarnada de Ogum; candongueiro; escudo com a Cruz da Ordem de Cristo (embaixo) Detalhe do gorro ritualístico; tridente; detalhe de candongueiro; capacete Fotografias de Oscar Liberal – Iphan © Acervo Nosso Sagrado / Grupo de Gestão Compartilhada do Nosso Sagrado / Museu da República / Oscar Liberal (fotografia)
O líder religioso traja uma camisa encarnada, bordada em pedras, “ogum” em letras garrafais em seu peito e, em sua cabeça, um gorro ritualístico da mesma cor de sua camisa. Descalço, foi obrigado a posar para fotografia, já dentro do palácio, segurando um escudo de ferro contendo uma cruz da Ordem de Cristo, e em sua outra mão um grande tridente quase de sua altura. Na fotografia acima da do líder, entre diversos objetos, destacam-se um capacete ao lado de um candongueiro, com duas flechas desenhadas apontadas para baixo. Como já externado, todos esses objetos litúrgicos citados fazem hoje parte do Acervo Nosso Sagrado.
É dentro dessa perspectiva de novas pesquisas a surgirem com os bancos de dados preparados pela pesquisa histórica do Acervo Nosso Sagrado14 que acredito ser de grande valia o estudo do acervo do Instituto Moreira Sales, principalmente os materiais relativos aos artistas abordados no projeto Moder-
14 Atualmente, mais de 200 inquéritos policiais da época já estão digitalizados, entregues à equipe do Museu da República.
nismos negros, como exposto no início deste trabalho. Lançar mão da produção de artistas, não apenas como resultado de suas vidas nos terreiros, mas como base de compreensão de ritos, escolhas, costumes, entre outras tantas possibilidades no universo sagrado afro-carioca de fins do Oitocentos e primeiras décadas do século xx.
Cito como exemplo a canção de Alfredo Rocha Vianna Filho, o Pixinguinha, Samba de nego. Em tom jocoso, o samba era cantado pelo afamado Francisco Alves:
Samba de nêgo
Não se pode frequentar
Só tem cachaça
Pra gente se embriagar
Eu fui num samba
Em casa de mãe Inez
No melhor da festa
Fomos todos pro xadrez
No fim do samba
Minha caboca chegou
Virei os óio
E meu santo me pegou
Caí de lado
Vim de frente, vim de banda
Meu santo disse
Que eu vinha lá de Aruanda15
O samba na casa da imaginária Mãe Inez poderia naturalmente ser em casa de Mãe Judith, principalmente se levarmos em consideração que diversas cerimônias de umbanda e candomblé, quando bem-sucedidas, concluem-se com samba, pagode, comida e boa bebida. A suposta proibição se comprova, sem dúvidas, pelas constantes visitas às casas afro-cariocas pela polícia como a própria letra afirma (“no melhor da festa fomos todos pro xadrez”). Mas creio
15 Acervo ims. Ver: pixinguinha.com.br/sheets/samba-de-nego/. Acesso em: 23 02 2023
Capa da partitura de “Samba de nêgo”, 1928
Acervo Instituto
Moreira Salles
que a recomendação se dava também por toda exposição pública a que presos nesses ambientes eram submetidos.
Retorno rapidamente à casa da rua Mambucaba, esquina com a Guaxindiba, para destacar que Mãe Judith Cândida de Oliveira recebia “a famosa Cabocla Jupyra”. Na canção de Pixinguinha, o visitante do samba se revela um médium que incorporava sua cabocla, saltando de banda para todos os lados, virando os olhos, semelhante a participante do ritual de firmeza apresentado por Heitor dos Prazeres na capa de seu disco.
Um músico com tradicionais roupas associadas à malandragem carioca, ou mesmo a entidades ligadas ao povo de rua, aparece na capa da partitura da canção pertencente aos arquivos do ims, e a melodia é entoada em companhia de uma preta tocando um candongueiro, semelhante ao encontrado na casa de Mãe Judith e Pai Alberto.
Concluo reafirmando o momento profícuo para o estudo das religiões de matrizes africanas para a cidade do Rio de Janeiro, sendo possível destacar o protagonismo da urbe na elaboração e propagação de sofisticadas práticas litúrgicas. Nesse sentido, por si só, o Acervo Nosso Sagrado já seria suficiente; contudo, a existência e descoberta de novas fontes e arquivos que, cruzados, potencializam as possibilidades de estudo das casas afro-cariocas, potencializa o alcance das pesquisas. Para a compreensão de ritos, por exemplo, acredito que o acervo do ims seja de fundamental importância. Ressalto que Samba de nego é uma melodia jocosa, ao contrário das letras litúrgicas (pontos cantados) presentes na obra de Getúlio Marinho, o Amor, e principalmente do universo presente na produção de Heitor dos Prazeres; que abriu este trabalho. Em comum, a cabocla de Pixinguinha vinha lá de Aruanda, corruptela de Luanda, capital de Angola, principal porto exportador de cativos para o mundo; por sua vez, o Pai de Santo que ilustra o disco de Heitor em muito se assemelha a um Petro Velho, que tranquilamente poderia ser Pai Joaquim d’Angola, cantado no lp A letra clamava: “Din din din vamos saravá Pai Joaquim”. Que assim seja! Saravá!
RAFAEL GALANTE
Historiador e etnomusicólogo. Doutor e mestre em história docial pela Universidade de São Paulo (usp), com período sanduíche como pesquisador visitante na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, Moçambique. Realizou pesquisas sobre musicalidades e filosofias espirituais, em parceria com comunidades tradicionais no Brasil, em Cuba e Moçambique.
A sua tese de doutorado sobre as culturas sineiras centro-africanas e a sua diáspora no Brasil venceu o Prêmio Sílvio Romero de 2023, concedido pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (cnfcp/Iphan).
ALESSANDRA TAVARES
Doutora em história pelo pphr da ufrrj e mestra em história social pela Uerj. Especializada em história da África e do negro no Brasil pela Ucam. Em 2019, ganhou o Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa por sua tese de doutorado. É professora e coordenadora Regional do gt Emancipações e Pós-Abolição, da Associação Nacional de História, e membra do Grupo de Pesquisa Mundos do Trabalho e o Pós-Abolição da ufrrj.
CLAUDIA REGINA ALEXANDRE
Doutora, mestra e especialista em ciência da religião (puc-sp). É paulistana, jornalista, sambista e mãe da Rubiáh. É comunicadora de rádio e tv e mestra de cerimônias. Como pesquisadora de culturas afro-brasileiras, é especialista em abordagens sobre gênero, raça e religiosidades em diálogos com sambas, escolas de samba e tradições de matrizes africanas no Brasil. É autora do livro Orixá s no terreiro sagrado do samba: Exu e Ogum no Candomblé da Vai-Vai (Editora Aruanda, 2021). Sua área de pesquisas é representações e comportamentos em religiosidades negras.
EDUARDO POSSIDONIO
Doutor em história social pela ufrj, com período-sanduíche na Boston University, e mestre em história pela Universo. Professor da rede pública municipal e estadual do Rio de Janeiro, também é professor de pós-graduação em história da África no Instituto Pretos Novos. Pesquisador do Museu da República para o Acervo Nosso Sagrado. É autor de Entre ngangas e manipansos: a religiosidade centro-africana nas freguesias urbanas do Rio de Janeiro de fins do oitocentos (1870-1900) (Sagga, 2018).
FABIANA COZZA
Artista negra brasileira, cantora, intérprete, professora e pesquisadora. Vencedora do Prêmio da Música Brasileira em 2012 e 2018, respectivamente como Melhor Cantora de Samba e Melhor cd de Língua Estrangeira. Tem oito álbuns e três dvds lançados, sendo o mais recente intitulado Dos Santos (2020), nome de batismo herdado do pai. É doutoranda do Instituto de Artes da Unicamp, mestra em fonoaudiologia pela puc-sp e membra do Pantheatre de Paris.
FERNANDA EPAMINONDAS SOARES
Autora do livro “Fui o criador de macumbas em discos”: protagonismo negro e a trajetória de Getúlio Marinho da Silva no pós-abolição carioca (1895-1964), é doutoranda em história social pela uff, onde cursou mestrado em história social. Conquistou com sua dissertação o primeiro lugar no concurso Prêmio Sílvio Romero de Monografias sobre Folclore e Cultura Popular –Iphan. Atua principalmente nas áreas de pesquisa e ensino de história, com ênfase em história do Brasil, história social e política da cultura, relações raciais no Brasil, culturas negras e música popular.
GLAUCEA HELENA DE BRITTO
Curadora-assistente do Museu de Arte de São Paulo
Assis Chateaubriand (Masp), mestranda em artes pela Universidade de São Paulo (pgeha-usp) e com certificado em estudos afro-latino-americanos pela Universidade de Harvard. Atualmente é integrante do grupo de pesquisa História(s) da Arte: Historiografia e Epistemologia – histarthe (pgeha/mac-usp), gestora do Terreirão Cultural – Realização de Projetos de Arte, Educação e Cultura, e supervisora de Mediação e Programas Públicos do Masp.
JULIANA DA CONCEIÇÃO PEREIRA
Doutora e mestra em história pela Universidade Federal Fluminense. Atualmente é membra do grupo de estudos e pesquisas Culturas Negras no Atlântico (Cultna), da rede Historiadorxs Negrxs, integrante do grupo de trabalho Emancipações e Pós-abolição da Associação Nacional de História e do podcast Atlântico Negro.
MARTHA ABREU
Professora titular no Instituto de História da uff e pesquisadora do cnpq. Atua nas áreas de história do Brasil e história da diáspora africana nas Américas. Entre suas publicações, está Da senzala ao palco: canções escravas e racismo nas Américas (1870-1930). Realiza também projetos ligados à história pública da escravidão. É uma das diretoras do projeto Passados Presentes: Memória da Escravidão no Brasil, e uma das curadoras do Museu de Território na Pequena África/rj para o Museu de História e Cultura Afro-Brasileira (muhcab).
SALLOMA SALOMÃO JOVINO DA SILVA
Músico, performer, historiador e pesquisador. Doutor em história pela puc-sp, é pesquisador associado ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Consultor da Secretaria de Educação do Município de São Paulo, tem como especialidades temas como cultura musical, lutas pela liberdade, práticas culturais negras no século xix e xx, identidades étnicas e movimentos negros urbanos, sociabilidades negras em São Paulo e musicalidades africanas. Em 2021, publicou os livros As aventuras do pequeno Samba e Pretos, prussianos, índios e caipiras (Aruanda Mundi).
VINÍCIUS NATAL
Graduado em história pela uff, mestre e doutor em antropologia pela ufrj, possui pós-doutorado em história da arte pela Uerj. Já atuou como diretor de pesquisa do Museu do Samba, diretor cultural do gresu Vila Isabel e coordenador de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do município do Rio de Janeiro. É autor de livros e artigos sobre o samba carioca e suas diferentes modalidades. Atualmente, é pesquisador de enredos do gres Acadêmicos do Grande Rio.
INSTITUTO MOREIRA SALLES
Fundador
WALTHER MOREIRA SALLES (1912-2001)
CONSELHO
Presidente
JOÃO MOREIRA SALLES
Vice-presidente
FERNANDO MOREIRA SALLES
Conselheiro
PEDRO MOREIRA SALLES
Conselheiro
WALTHER MOREIRA SALLES JR
DIRETORIA
Diretor-executivo
JÂNIO FRANCISCO FERRUGEM GOMES
Diretor-artístico
JOÃO FERNANDES
Diretor-geral
MARCELO MATTOS ARAUJO
Diretora-educação
RENATA BITTENCOURT
BIBLIOTECA DE FOTOGRAFIA
MIGUEL DEL CASTILLO (Coordenação), ENISETE MALAQUIAS MACEDOS
SANTOS (Supervisão), BRUNA ACYLINA GALLO, LEONARDO VIEIRA, LUCAS DE CARVALHO, MONALIZA BEZERRA RODRIGUES MOURA, PAULA DE SOUZA SILVA
CENTRO CULTURAL IMS PAULISTA
JOANA REISS FERNANDES (Coordenação), CARLA APARECIDA CARRETONI
BRANDÃO DA SILVA
Produção de Eventos
RAQUEL MONTEIRO LEHN HASHIMOTO (Supervisão), CELINA YAMAUCHI, JULIANO MATTEO GENTILE (Consultoria), ARIADNE MORAES SILVA, SÂMARA PIRES DOS SANTOS CARDOSO Infraestrutura e Manutenção
DANIELA VIEGAS MARCONDES (Supervisão), EDUARDO DA SILVA BRITO, JACKSON SANTOS PEREIRA, RAIMUNDO HERMÍNIO DOS SANTOS, SEBASTIÃO RIBEIRO DA SILVA, WILSON ROBERTO LOPES DOS SANTOS Operacional
ROBERTA COSTA VAL (Supervisão), ADRIANO BRITO DOS SANTOS, ANA CLARA DA COSTA, ÁLAN AMORIM, BRUNA LISBOA DE SOUSA
OLIVEIRA, CAIO DE OLIVEIRA SILVA, CÍCERO MARCOS DO NASCIMENTO, CINDY JESUS SILVA DA CRUZ, CLERSON VICENTE DE TOLEDO ALVES, CRISLENE SILVA SOUZA CONCEIÇÃO, CRISTINA APARECIDA TIBURCIO
MARÇAL, DANI ANJOS, DAVID WILLIAN FURTADO DA SILVA, ENDER QUINTERO, GABRIELA LIMA DA SILVA, GIOVANE MEDEIROS DA SILVA, IMANI DE SOUZA LIMA, JENNIFER SANTOS SOUZA, JÉSSICA BARBOSA DE SOUZA, JHEAN LUCCA DA SILVA, KEVIN EWERTON DA SILVA NUNES, LUIS MIGUEL CONTRERAS PADRON, MARIANA RODRIGUES OLIVEIRA ARAUJO, PALOMA FERNANDES, PYERO AYRES, RAFAEL PENHA, ROBERTO PEREIRA DOS SANTOS, SABRINE FERNANDA KAROLLINE FERREIRA, STEFANNI MELANIE SILVA, TAIKE GOMES XAVIER, YARA CASSANDRA, YASMIM DA COSTA GIRIMA
CENTRO CULTURAL IMS POÇOS
HAROLDO PAES GESSONI (Coordenação), TEODORO STEIN CARVALHO DIAS, CLÁUDIA MARIA CABRAL, CRISTIANE LOIOLA ZANETTE, ERICSON FLÁVIO CAMPEÃO, FAGNER PERPÉTUO DE ANDRADES, GILMAR TAVARES, JOSÉ BENTO RODRIGUES, MARCELO ALEXANDRE FARIA LEME, MATHEUS GILSON DA SILVA COSTA, MIKAELEN MORAIS CÉSAR, ROBERTON BENEDITO PEREGRINO, VIVALDI BERTOZZI
CENTRO CULTURAL IMS RIO
LÚBIA MARIA DE SOUZA (Supervisão), LUIZ FERNANDO DA SILVA MACHADO (Supervisão), MARIA AZEVEDO MORETTO (Supervisão), VAGNER FRASÃO DA SILVA (Supervisão), ELIZABETH PESSOA TEIXEIRA (Consultoria), AMANDA FERNANDES DE BARCELLOS, BIANCA VIEIRA BESERRA, CARLOS AUGUSTO FERREIRA DE LIMA, CÍCERO TEIXEIRA DOS SANTOS, EDMAR DOS SANTOS DE BRITO, ELIANA LÚCIA DE SOUZA, FELIPE ARTUR DOS SANTOS, IRINEA APARECIDA PIRES DE BRITO, JAIRO SOARES DA SILVA, MARCIO GERALDO DE SOUZA MORAES, RAFAELA SOARES DE LIMA, REGINALDO PEREIRA DO NASCIMENTO, RENATA BARCELLOS DE PAULA, ROBERT GOMES PINTO, ROSANA INÁCIO CARNEIRO TAVARES, TEREZA CRISTINA
MAXIMIANO NASCIMENTO
CINEMA
KLEBER MENDONÇA FILHO (Coordenação), MÁRCIA VAZ, LUCAS
GONÇALVES DE SOUZA, QUESIA SILVA DO CARMO, THIAGO
GALLEGO CUNHA
COMUNICAÇÃO
MARÍLIA SCALZO (Coordenação), ALANA MOREIRA, ANNA PAULA DE CARVALHO IBRAHIM, DANIEL PELLIZZARI, FABIO MONTARROIOS, FERNANDA PEREIRA, GUSTAVO DE GOUVEIA BASSO, JULIE LEITE PEREIRA, LARISSA MARIA INACIO DA SILVA, LAURA KLEMZ, LAURA LIUZZI, LETICIA BRANCO, MARCELA ANTUNES DE SOUZA, MARCELL CARRASCO DAVID, MARIA CLARA VILLAS, MARIANA MENDONÇA TESSITORE, NANI RUBIN, ROBSON FIGUEIREDO DA SILVA, SENDY LAGO ARAÚJO, TAIANE CRISTINE BRITO DOS SANTOS
CONTEMPORÂNEA & REVISTA ZUM
THYAGO NOGUEIRA (Coordenação), ÂNGELO AUGUSTO MANJABOSCO, CARLOS EDUARDO SAMPAIO FRANCO, DANIELE QUEIROZ, LAIS RIBEIRO, LUARA MACARI NOGUEIRA, RONY MALTZ
CONTROLADORIA
FERNANDO MALICS (Coordenação), ARNALDO SANTANA DE ALMEIDA, ROGÉRIO COSSERO
DIVERSIDADE E INCLUSÃO
KARINA DE SOUSA SANTOS (Coordenação), TAYNARA SILVA SANTOS, ULISSES SILVA DO NASCIMENTO
EDITORIAL
SAMUEL DE VASCONCELOS TITAN JUNIOR (Coordenação), ACÁSSIA VALÉRIA
CORREIA DA SILVA (Supervisão), DENISE CRISTINA DE PÁDUA, FLÁVIO
CINTRA DO AMARAL
EDUCAÇÃO
JANIS PÉREZ CLÉMEN (Supervisão), JORGE FREIRE (Supervisão), MARIA EMÍLIA
TAGLIARI SANTOS (Supervisão), ALANA CREAM DE SOUZA, ANDRÉ LUIZ
DOS SANTOS BISPO, BEATRIZ ABADE, BEATRIZ MATUCK, DEBORA DE OLIVEIRA ROMANO, FELIPE JOSÉ FERRARO, GABRIEL BELCHIOR MESQUITA
SILVA, ISABELA MAGALHÃES SANTOS BRASILEIRO, JHONNY MEDEIROS
MIRANDA, JOSÉ ADILSON RODRIGUES DOS SANTOS JÚNIOR, LEANDRO MIZAEL DUARTE GONÇALVES, NATALIA NUNES HOMERO, LETÍCIA
PEREIRA DE SOUZA, LUANDA DA SILVA, RAFAEL BRAGA LINO DOS SANTOS, SARA GODOI VIANA
ESCRITÓRIO ED. ELOY CHAVES SP
CECÍLIA RIBEIRO DE CARVALHO, ADRIANA ROSA DA SILVA RUFINO, FABIANA MARTINS AMORIM, MARJORIE REIGOTA, SERGIO LUIZ ARANTES
FINANCEIRO
ANTÔNIO CARLOS MEZZOVILLA GONÇALVES (Coordenação), FERNANDO
GARCIA DOS SANTOS DE PAULA, MARCOS PEREIRA DA SILVA, SILVANA
APARECIDA DOS SANTOS
FOTOGRAFIA
SERGIO BURGI (Coordenação), CASSIO LOREDANO (Consultoria), ALESSANDRA COUTINHO CAMPOS, ALEXANDRE DELARUE LOPES, ANDREA
CÂMARA TENÓRIO WANDERLEY, DAVI BARBOSA IZIDRO, BRUNA MANGA
ÉLENA, ILEANA PRADILLA CERON, JOANNA BARBOSA BALABRAM, JOSIENE
DIAS CUNHA, MARIANA NEWLANDS SILVEIRA, MARTIM PASSOS, PÂMELA DE OLIVEIRA PEREIRA, RACHEL REZENDE MIRANDA
GESTÃO DE ACERVOS
MILLARD WESLEY LONG SCHISLER (Coordenação), AÍLTON ALEXANDRE DA SILVA (Supervisão), CARLA DE MELO TORRES, CLARICE FERREIRA RODRIGUES, FABIANA COSTA DIAS, LUIZA PIRES MARTINS, MARIA SILVIA
PEREIRA LAVIERI GOMES, THAMIRES BRITO DOS SANTOS
Núcleo Digital
JOANNA AMERICANO CASTILHO (Coordenação)
Equipe de Digitalização e Processamento de Arquivos
ANA BEATRIZ EVARISTO DA COSTA, LARISSA MACHADO MOISES, MARCELE DE OLIVEIRA GONÇALVES, PATRÍCIA DALIAH ATTHIE DO NASCIMENTO E SOUZA, WALLACE AMARAL PRIMO CORREA
Equipe de Tratamento de imagem e Impressão Digital
CAROLINA FILIPPO DO NASCIMENTO, DANIEL SIAS VELOSO, GUILHERME GOMES GUIMARÃES, GUSTAVO SIMOA DE SOUZA, MARCELO HEIN DE ANDRADE E SILVA, NRISHINRO VALLABHA DAS MAHE, RAFAELA SANTOS DE ALMEIDA, THAIS MACIEL BERLINSKY
Equipe de Preservação Digital
ANNA CAROLINA PEREIRA ROCHA, JOÃO PEDRO DOS SANTOS BRANDÃO, JOÃO VITOR PORTO PEREIRA DE ARAUJO, SIMONE PEREIRA SANTOS
Núcleo de Catalogação e Indexação
ROBERTA MOCIARO ZANATTA (Supervisão), ANA CLARA RIBEIRO CAMPOS
MAIO, CHARLYNE SCALDINI, GUILHERME FONSECA OLIVEIRA, VANESSA MATHEUS CAVALCANTE.
Núcleo de Preservação e Conservação
MARIA CLARA RIBEIRO MOSCIARO (Supervisão), ANA CAROLINA OCKO, BRUNA CRISTINA GENTIL DOS SANTOS, EDNA KÁTIA GAIARDONI, GUILHERME MELATI DA SILVA, GUILHERME ZOZIMO TEIXEIRA DIAS, JESSICA MARIA DA SILVA, JOÃO GABRIEL REIS LEMOS, GABRIELLA MOTA
VIEIRA, JOYCE SILVA DOS REIS, LUCAS SOUZA DOS SANTOS, LUIZ
HENRIQUE DA SILVA SOARES, MARINA DE CASTRO NOVENA CORREA, MAYRA CRISTINA LOPES CORTES E TATIANA NOVÁS DE SOUZA CARVALHO, VITÓRIA GÓES DE ALMEIDA
ICONOGRAFIA
JULIA KOVENSKY (Coordenação), DANIELA GUARNIERI CANDIDO DA SILVA, GUSTAVO AQUINO DOS REIS, JOVITA SANTOS DE MENDONÇA
JURÍDICO
JI HYUN KIM (Coordenação), THAIS YAMAMOTO
LITERATURA
RACHEL VALENÇA (Coordenação), EUCANAÃ FERRAZ (Consultoria), BRUNO COSENTINO, DANILO DE OLIVEIRA BRESCIANI, ELIZAMA ALMEIDA DE OLIVEIRA, JANE LEITE CONCEIÇÃO SILVA, KÁTYA DE SÁ LEITÃO PIRES DE MORAES, MANOELA PURCELL DAUDT D’OLIVEIRA, NATHALIA VIANNA ZAQUIEU DA FONSECA, PAULA CHRISTINA DE OLIVEIRA
LOGÍSTICA, EMPRÉSTIMOS E LICENCIAMENTOS
BIANCA MANDARINO DA COSTA TIBÚRCIO (Supervisão), ALINE ALVES DE JESUS, CAUÊ GUIMARÃES NASCIMENTO, FELIPE OLIVEIRA ARAÚJO, MARINA MARCHESAN GONÇALVES BARBOSA, NADJA DOS SANTOS SILVA, THAIANE DO NASCIMENTO KOPPE, VERA LÚCIA FERREIRA DA SILVA NASCIMENTO
MÚSICA
BIA CAMPELLO PAES LEME (Coordenação), MIGUEL ANGELO DE AZEVEDO “NIREZ” (Consultoria), BRUNA SARAIVA MELO, ELIAS SILVA LEITE, EULER PICANÇO DE ARAÚJO GOUVEA, FERNANDO LYRA KRIEGER, ISADORA CIRNE
PLANEJAMENTO DE PROGRAMAÇÃO E EVENTOS
JOANA REISS FERNANDES (Coordenação), LÍVIA SPÓSITO BIANCALANA, JOSÉ ESTEVAM, JÚLIA COSTA DE VILLIO VICENTE
PRODUÇÃO DE EXPOSIÇÕES
CAMILA GOULART (Coordenação), ALEX CASTRO, BIANCA DE ANDRADE MANTOVANI, JEFFERSON DE ARRUDA MATEUS, LÍVIA FERRAZ, MARIA PAULA
RIBEIRO BUENO, WILLIAM ARTUR
RÁDIO BATUTA
LUIZ FERNANDO REZENDE VIANNA (Coordenação), JOAQUIM FERREIRA DOS SANTOS (Consultoria), FILIPE DI CASTRO, MÁRIO LUIZ DE SOUZA TAVARES
RECURSOS HUMANOS
REGIANE CARDOZO (Coordenação), AMANDA BORGES FERREIRA, ANA
PAULA FRANÇA DA SILVA, HENRIQUE FERNANDES TOSTA, LÍDIA FERNANDA
CAMPOS DA COSTA, PAULO HENRIQUE OLIVEIRA CERQUEIRA, RAQUEL
APARECIDA BARBOSA SANTOS CORREA, RODRIGO DOS REIS SANTOS,
SANDRA MARIA DE CARVALHO
REVISTA SERROTE
PAULO ROBERTO PIRES (Coordenação), GUILHERME FREITAS
TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO
ELIANE DE CASTRO LIMA (Coordenação), ANDRÉ ROBERTO FELIPE, LUIS GUSTAVO AUGUSTO, MAURÍCIO ADRIANO OLIVEIRA DOS SANTOS,
SAID IHORRA DA SILVA MOREIRA
Organização
RAFAEL GALANTE
RENATA BITTENCOURT
Editora-assistente
MARIA EMÍLIA TAGLIARI SANTOS
Produção editorial
NÚCLEO EDITORIAL IMS
NÚCLEO DE EDUCAÇÃO IMS
Revisão
JULIANA MIASSO
Projeto gráfico
CLAUDIA WARRAK
Tratamento de imagens
NÚCLEO DIGITAL IMS
IPSIS GRÁFICA E EDITORA
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
INSTITUTO MOREIRA SALLES
Modernismos negros (livro eletrônico) / Instituto Moreira Salles ; [apresentação Renata Bittencourt e Rafael Galante]. –São Paulo : IMS , 2024.
E-book : il. (fotogr.) : color. p&b.
Projeto Música e modernismos negros : Formação a partir do Acervo IMS uma parceria com a área de Educação do IMS com Rafael Galante.
Palestras ministradas em maio / 2022.
Dados eletrônicos (1 arquivo : PDF)
ISBN 978-65-88251-20-1
1. Acervo IMS 2. Africanidade 3. Arte contemporânea 4. Artistas Afro descendentes 5. Fotografia 6. Palestras 7. Racialidade I. Bittencourt, Renata. II. Galante, Rafael. III. Título.
CDD 808.85
Bibliotecária responsável: Enisete Malaquias – CRB -8 5821
Capa: Autoria desconhecida, Os Oito Batutas (detalhe), c. 1923
Acervo Instituto
Moreira Salles / Coleção José Ramos Tinhorão