Revista serrote 11½

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#11 ½  Edição especial para a FLIP 2012


instituto moreira salles  Walther Moreira Salles (1912-2001) Fundador Diretoria Executiva João Moreira Salles Presidente  Gabriel Jorge Ferreira Vice-Presidente Mauro Agonilha, Raul Manuel Alves Diretores Executivos

serrote é uma publicação do Instituto Moreira Salles que sai três vezes por ano: março, julho e novembro. Esta serrote #11 ½ só circula, gratuitamente, na flip 2012.  COMISSÃO EDITORIAL Alice Sant’Anna, Daniel Trench (diretor de arte), Eucanaã Ferraz, Flávio Moura, Flávio Pinheiro, Francisco Bosco, Heloisa Espada, Matinas Suzuki Jr., Paulo Roberto Pires e Samuel Titan Jr.  editor Paulo Roberto Pires  coordenaÇÃO EDITORIAL Alice Sant’Anna e Flávio Cintra do Amaral  ASSISTENTE DE ARTE Gustavo Marchetti  PRODUÇÃO editorial Acássia Correia  produção gRÁFICA Jorge Bastos  preparação e revisão de textos Denise Pessoa, Flávio Cintra do Amaral, Sandra Brazil e Juliana Kuperman  checagem José Genulino  assessoria de comunicação  Marília Scalzo e Nathalia Pazini / imprensa@ims.com.br  impressão Ipsis Gráfica e Editora  © Instituto Moreira Salles Av. Paulista, 1294/14º andar  São Paulo sp  Brasil  01310-915  tel. 11.3371.4455  fax 11.3371.4497  www.ims.com.br  n° 11 ½ Julho 2012 As opiniões expressas nos artigos desta revista são de responsabilidade exclusiva dos autores. Os originais enviados sem solicitação da serrote não serão devolvidos. assinaturas 11.3971.4372 ou assinatura@revistaserrote.com.br  www.revistaserrote.com.br  leitor@revistaserrote.com.br Carlos Drummond de Andrade © Grana Drummond, www.carlosdrummond.com.br; reprodução das duas cartas por Ailton Silva; © Francisco Iglésias; “Moviendo libros” © Rodrigo Fresán, 2008; Gossip © 2011, by Joseph Epstein; desenhos dos diários © Bobby Baker, 2008. Agradecimentos Cecília Himmelseher, Daily Life, Julia Kovensky e Katya de Moraes. imagem da capa e contracapa Desenhos dos diários de Bobby Baker. página de rosto Lenhadores cortando cebolinha com serrote. Flickr/GettyImages.



Sentimento de Minas duas cartas inĂŠditas de carlos drummond de andrade




rio, 4 de dezembro de 1972. Meu caro Francisco Iglesias: Nada poderia ser mais agradável para mim do que ler, sob a sua assinatura, que meus escritos são “a tradução do ser mineiro”. Senti-me retratado em absoluta fidelidade nesta palavra. Quando moço, o condicionamento a Minas incomodava-me um pouco, e eu aspirava nebulosamente a libertar-me das raízes, mas o tempo se encarregou de mostrar-me a falácia de tal aspiração, e Minas acabou ocupando o espaço total de minha vida imaginativa. Hoje me vejo mais mineiro do que brasileiro, e o Brasil não me fala tanto ao espírito quanto qualquer aspecto característico de nosso Estado: paisagem, comida, pronúncia, reserva, malícia, sonho profundo. Declaro-me simplesmente mineiro, à margem de ideologias e mitos universalistas ou patrióticos, feliz (na medida do possível) em minha limitação consciente, integrado no – como chamá-lo? – complexo mineiro. (Os jornais fizeram ruído em torno do fato de eu não ir a Itabira, quando a verdade é que eu estou em Itabira muito mais do que no Rio e do que se fosse até lá!) O que você observou a respeito da minha percepção do tempo histórico encerra um julgamento preciso, que muito me conforta, embora eu tenha de admitir que sua generosi­ dade intelectual confere a meus versos uma significação valorizadora além daquilo a que eu, mais intuitivo que racionalista, poderia ambicionar. Mas o seu artigo no Minas é tão cheio de fraterna simpatia que só posso aceitá-lo como belíssimo presente de aniversário, pelos meus 70 anos. Por sinal que, em meio ao excesso de badalação que naturalmente me deixou constrangido, ele valeu como um acorde cristalino e comovedor. Meu caro Iglesias, num abraço afetuoso, aí vai o profundo agradecimento do seu Carlos Drummond de Andrade


rio, 29 de setembro, 1982. Meu caro Iglesias: Obrigado pela sua boa carta. Gostei de ter notícia do Seminário, coordenado por você com a notória competência. De acordo com o resultado: Minas há e – acrescento – haverá sempre, se soubermos preservar certas marcas imunes à industrialização e ao cosmopolitismo, e conviventes com eles. A gente carrega Minas no sangue, por onde quer que vá… O meu “José” deve uma explicação: foi escrito em momento de crise existencial, quando eu queria fugir de tudo e de todos, e não


voltar fisicamente para Minas, por motivos muito especiais. Então, Minas “não havia mais” para mim. Mas o próprio “José”, no final, procura libertar-se do desespero, marchando não sabe para onde – para Minas reencontrada no íntimo – é a explicação que me dou. Não sei se é boa. É a que eu encontro, tantos anos depois desses versos amargos. Tomei nota do teu novo endereço, e faço votos por que, apesar de tudo, ele seja para você outro “pouso alegre” de meditação, criação e lazer. Abraço amigo do seu Drummond


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retrato na parede  Escrevendo para o historiador Francisco Iglésias, amigo de toda vida, o poeta disseca os intricados laços que os uniam ao lugar onde nasceram

Feliz é Minas, que teve Drummond elvia bezerra

Dizia Manuel Bandeira: “O que é ser poeta senão isso: exprimir o que os outros sentiram e não souberam dizer?”. Sem o recurso da poesia, restou ao historiador Francisco Iglésias, mineiro de Pirapora nascido em 1923, pôr muitas de suas reflexões sentimentais sobre Minas na correspondência com amigos. Não nas dez cartas que enviou a Carlos Drummond de Andrade, cartas contidas, quase circunspectas, mas nas que escreveu a Otto Lara Resende. Quando não escreveu, encontrou em Drummond o intérprete mais perfeito do que sentiu e não soube dizer. Nasceu daí uma admiração não só ilimitada como correspondida: o poeta não era menos fã do historiador, como se consta­ta nas 16 cartas que lhe enviou e que integram o arquivo de Iglésias, sob a guarda do Instituto Moreira Salles desde 2002. É desse conjunto que foram selecionadas as duas aqui reproduzidas. Em 1972, quando o país comemorou os 70 anos de nascimento de Drummond, não faltou edição especial do Suplemento Literário do Minas Gerais, jornal belo-horizontino em que o poeta começou como auxiliar de redação, em 1929. Olhando para trás, é difícil não perguntar: o que fazia o Drummond auxiliar de redação? Como auxiliava, aquele que, no ano seguinte, 1930, estrea­ria já como o grande poeta de Alguma poesia, seu primeiro livro no gênero? Teria conseguido exercer sua “auxiliaridade” sem ofuscar os autores dos textos que passavam por suas mãos?, ele, que em 1944, ao lançar Confissões de Minas, já se mostrava cronista definitivo? Perguntas que não exigem resposta no momento. O que conta agora é que, no Suplemento de 28 de outubro de 1972 do mesmo Minas Gerais, Iglésias publicou o substancioso artigo “Depoimento e homenagem”, não só com o objetivo de registrar a data redonda, como se propunha, mas também para proclamar sua devoção pessoal, irrestrita, ao poeta de Sentimento do mundo.


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Nesse artigo que tanto confortou Drummond, Iglésias ressalta o que chama de “categoria de temporalidade” na poesia e na prosa drummondianas. Natural que, sendo o autor do texto historiador, o aspecto do tempo o atraísse especialmente. Basta ler o prefácio que escreveu para sua coletânea de ensaios História e ideologia, em que afirma: “As categorias de temporalidade e processo – o fluxo constante – informam e caracterizam a análise histórica”. Ora, que versos lhe seriam mais caros que os de Drummond em “Mãos dadas”?: “O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente”. A sensibilidade histórica que Iglésias reconhece no poeta, a quem julga capaz de sentir o cotidiano do Brasil ou captar-lhe a época, leva-o, nesse artigo, a observar um percurso histórico na poética drummondiana. Além disso, ressalta que a obra “já considerável até na extensão e em franco processo criador gira em torno de Minas, transpira Minas, é a tradução do ser mineiro”. Homenagem à parte, uniu Iglésias a Drummond o amor a Minas Gerais. Amor de idas e vindas, ou de intensidades variáveis, como podem ser os grandes amores. Na maioria das vezes sem final feliz, é o que talvez aconteça com Iglésias, se considerarmos as declarações que fez em sua copiosa correspondência a Otto Lara Resende. Quanto ao poeta, desde “Confidência do itabirano”, em Sentimento do mundo, de 1940, manifestava desesperança com relação à terra natal: “Itabira é apenas uma fotografia na parede./ Mas como dói”. Quando lançou “José”, em 1942, o conflito no poema homônimo ampliava-se: a dúvida não era mais sobre o pequeno cosmos de Itabira, mas sobre a integridade do estado: “Com a chave na mão/ quer abrir a porta,/ não existe porta;/ quer morrer no mar,/ mas o mar secou;/ quer ir para Minas,/ Minas não há mais./ José, e agora?” Os versos desalentados tiveram recepção quase tão tumultuada quanto os de “No meio do caminho”. Se os deste poema serviram a muita gente que se via impedida de realizações, os de “José” foram exaustivamente reproduzidos por jovens sem esperanças ou adultos sem horizontes. A perplexidade de “José” açulou a crítica, e o verso “Minas não há mais” atingiu de tal modo os corações mineiros que inspirou o professor João Antônio de Paula, fã absoluto de Drummond, a organizar a mesa “Minas não há mais?” para o seminário a que se refere o poeta na carta de 29 de setembro de 1982, aqui publicada. Realizado em Diamantina entre 15 e 17 de setembro de 1982, às vésperas portanto do 80o aniversário de Drummond, em 31 de outubro daquele ano, o congresso coordenado por Iglésias versou sobre economia mineira. O painel de título interrogativo concluiu que “Minas há, pelo menos ainda”, escreve Iglésias a Drummond em carta de 19 de setembro, aproveitando para informar que deixou a rua Pouso Alegre, 1.848, onde tinha morado durante 55 anos, pela rua Levindo Lopes. Se, como declara Drummond na primeira carta que se reproduz nesta edição da serrote, Minas lhe ocupava todo o espaço da “vida imaginativa”, o mesmo não diria Iglésias, que por dever de ofício devia adotar postura mais analítica que


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1. In Maria Angela D’Incao e Eloísa Faria Scarabôtolo (org.), Dentro do texto, dentro da vida: ensaios sobre Antonio Candido. São Paulo: Companhia das Letras/Instituto Moreira Salles, 1992.

imaginativa. Coube-lhe a interpretação histórica de seu estado. É o que se lê em Três séculos de Minas, que tem como uma das epígrafes o verso de Drummond: “Toda história é remorso”. Em certo sentido, Drummond foi privilegiado pela catarse que o talento para a poesia lhe proporcionava. Por sua veia poética correu muito do seu sentimento de Minas. Fora da poesia, o êxito não foi menor: ele se integrou de forma absoluta ao Rio de Janeiro, para onde se mudou em 1934. Raras vezes voltaria a seu estado, sem deixar de viver no que chamou de “complexo mineiro”. Um feito! Formado em história e geografia pela Universidade Federal de Minas Gerais em 1943, Francisco Iglésias não conseguiu morar mais que um curto período fora de Belo Horizonte, para onde se mudara ainda jovem. Chegou a São Paulo em 2 de julho de 1946, a convite de Alfredo Mesquita, para ser gerente da Livraria Jaraguá, projetada nos moldes franceses, com salão de chá integrado. Não se envolveu nem um pouco com o ambiente do salão sempre cheio, onde circulavam intelectuais e “senhoras emperiquitadas, enchapeladas, enluvadas”, conta Mesquita em “No tempo da Jaraguá”, incluído em Esboço de figura: homenagem a Antonio Candido. O curioso é que nas 171 cartas que Iglésias escreveu a Otto não há notícia do frisson vesperal na Jaraguá. Assim como pouco o atingem a vida mundana e o clima paulistanos. Não sofreu do azul que tanto oprimiu Paulo Mendes Campos quando chegou ao Rio de Janeiro, em 1945. Para o cronista e poeta, o azul de Belo Horizonte, que ele também viu no Rio, era o de Mallarmé, aquele azul que “não define, antes amplia o segredo, enriquecendo-o de nuanças emocionais, tão mais abstratas quão mais real o seu vigor encantatório”, escreveu ele na crônica “Azul da montanha”. Diferentemente de Paulo, a paisagem não importava para Iglésias. As tonalidades, menos ainda. Tudo nele se realizava no mundo interno. Todos os sismos nesse mineiro feroz são rigorosamente interiores. Muitos dos abalos por que passou durante o período paulistano podem ter sido desencadeados nas conversas que se prolongavam noite adentro, na casa de Antonio Candido, na Aclimação, onde firmou sua mais funda admiração pelo mestre. Ali os dois conversavam sobre política, economia e literatura, e foi também nessa casa que a mulher do amigo, Gilda de Mello e Souza, lhe contou que o marido, grande imitador de cacoetes alheios, tinha entre suas interpretações mais perfeitas a dele, Iglésias – é o próprio historiador quem conta, ternamente desapontado, em “Antonio Candido, Minas e os mineiros”.1


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Mas nem mesmo a amizade de Antonio Candido foi suficiente para que Iglésias ficasse em São Paulo. Em outubro de 1946, ele escreveu a Otto: Volto para o ninho antigo. Não sei agora o que fazer. Que fazer em Minas? Não sou jogador de futebol, não sei tocar piano ou cantar em cabarés. Que fazer, Lenine? […] Aqui me tem você, Francisco Iglésias, de 23 anos de idade, mineiro de nascimento e de caráter.

Este foi apenas o início do dilema de toda uma vida. Iglésias cogitou morar no Rio de Janeiro, pensou numa bolsa em Paris, até num período na Nova Zelândia, mas, de onde imaginava estar, temia a volta a Belo Horizonte: podia não encontrar a cidade que deixara. Autor de “Pensamento político de Fernando Pessoa”, um de seus mais notáveis ensaios, incluído em História e ideologia, não podia esquecer os versos de Álvaro de Campos, heterônimo do poeta português: “Partir!/ Nunca voltarei,/ Nunca voltarei porque nunca se volta./ O lugar a que se volta é sempre outro.” Um ano e quatro meses depois, Iglésias deu por terminada a temporada paulistana. Voltou para Belo Horizonte, onde seguiria carreira de professor de história econômica geral e do Brasil e história social e política do Brasil na Faculdade de Ciências Econômicas – face/ufmg. Aos 36 anos, admitia a Otto: “Não me posso imaginar longe por mais de seis meses, a rachar um ano. Tenho raízes, doutor. Sou brasileiro: mais ainda, mineiro, de Belo Horizonte e de Pirapora.” Tem-se a impressão de que estava de fato apaziguado. Não estava. Indignava-se com a descaracterização por que passava a cidade, e Drummond, nos versos de “Triste horizonte”, foi mais uma vez o tradutor de seu desencanto. Em carta a Otto de agosto de 1976, Iglésias despejava a amargura sobre a capital mineira: Se ela foi amor para alguém, é hoje um destroçado amor… […] Acho-a feia, sem graça; quando mais jovem, tinha certo encanto de jovem, que perdeu de todo. Reflexão histórica, devoção estética, amor e desamor a Minas, tudo se misturou para que Francisco Iglésias decretasse no Suplemento: “Feliz é Minas Gerais, que encontrou alguém que lhe captasse a essência, de ontem e de hoje, como se vê na poética de Drummond”.

elvia bezerra (1947) é autora de A trinca do Curvelo (1995), Meu diário de Lya (2002), ambos pela Topbooks, e Ribeiro Couto (Série Essencial da Academia Brasileira de Letras, 2011). Coordenadora de Literatura do Instituto Moreira Salles, organizou para o ims as edições de Mandacaru (2010), de Rachel de Queiroz, e Carta a Otto ou Um coração em agosto (2012), de Paulo Mendes Campos.


Bobby Baker sempre foi protagonista de sua obra. A obsessão pela vida cotidiana e, sobretudo, seus desvios resultaram em performances como Apresen­tando o jantar de domingo (1998), cujo figurino, ao lado, não deixa dúvidas quanto ao seu potencial anárquico. Já consagrada no mundo da performance, Bobby foi diagnosticada em 1996 com um “distúrbio de personalidade limítrofe”. Por 11 anos, submeteu-se a um tratamento psiquiá­trico sistemático e, no meio do processo, ainda enfrentou um câncer. Durante esse período, realizou, em caráter particular, mais de 700 aquarelas que, juntas, formam um diário íntimo da doença. Coerente com o apagamento das fronteiras entre autor e personagem que marca sua visão da arte, Bobby Baker decidiu em 2009 expor 158 desenhos que considera representativos de sua “completa recuperação”. A seleção que a serrote publica nas páginas a seguir narra, por meio de autorretratos, parte dessa jornada. Displaying the Sunday Dinner © Bobby Baker, 1998. Foto de Andrew Whittuck













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fofoca, joseph epstein


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ALFABETO serrote

Pense na fofoca nua e crua, em seus mecanismos, em como ela funciona. Uma pessoa diz a outra algo sobre uma terceira, e o que se diz pode ou não ser baseado na realidade. Ainda assim, o que a primeira pessoa diz soma-se à reputação da pessoa ausente. Quando se trata de algo sobre a vida pessoal, geralmente irá diminuir ou manchar essa reputação. Por que a primeira pessoa decide contar isso? Talvez por carregar certo rancor da pessoa que não está presente. Talvez porque o comportamento da pessoa ausente, o assunto da fofoca, a irrite ou incomode profundamente. Talvez ache o comportamento que está descrevendo interessante, extravagante ou espantoso demais para guardar consigo. Talvez por estar razoavelmente convicto que encantará a pessoa a quem está contando a fofoca, e de que esta ficará em débito por esses pequenos momentos de entretenimento. Talvez por achar que, ao transmitir essa partícula de informação, ficará mais íntimo da pessoa com quem está fofocando.


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Ouvir fofocas pode ser comparado a admiradores do dr. King não querem saber receptar roubos: cria uma cumplicidade dessas histórias; já para os que não o são – ou imediata entre quem transmite a fofoca e os que são geralmente céticos em relação a quem a recebe. Por vezes, a pessoa que inicia heróis públicos –, essa fofoca tem um apelo a fofoca pede à outra que guarde aquilo com natural ao derrubar um, aparentemente, ela. Às vezes, o sigilo está implícito, às vezes, grande homem. Uma história ainda melhor não. Se a fofoca tem um elemento realmente é a que King estava determinado a demitir Jesse Jackson pouco antes de morrer – empolgante, é provável que a promessa de não passar aquilo adiante não seja cumprida. melhor ainda para todos aqueles que conAlgumas das melhores fofocas são internas, sideram Jesse Jackson essencialmente uma fraude. O mesmo se aplica às histórias de ocorrem dentro de grupos diminutos: um escritório, uma escola, uma vizinhança, John F. Kennedy: os que o admiram estarão uma vila ou uma pequena cidade. Minha menos inclinados às histórias com estrelas de cinema e mulheres de mafiosos na Casa primeira experiência com uma fofoca desse Branca; já para os que não gostam muito tipo está relacionada às histórias de feitos dele, quanto mais dessas histórias, melhor. sexuais que os adolescentes de meu colégio contavam uns aos outros sobre as garotas A fofoca, como definiu certa vez Earl Wilson, com quem tinham saído. “Contar vantagem” o velho colunista de fofoca do New York Post, é o termo padrão para esse tipo de conversa. “é ouvir algo que lhe interessa sobre alguém Durante essa época, é claro, uma grande de quem você não gosta”. quantidade de pessoas não beijou, mas conNem toda fofoca precisa ser maliciosa, cruel, vingativa ou ter como objetivo a tou que beijou, ou, obviamente, aumentou aquisição de status de quem conta – emboe supervalorizou conquistas patéticas – um típico caso de aquisição de status pela trans- ra a maioria seja assim. Toda fofoca começa missão de uma falsa fofoca. com pessoas falando sobre outras pessoas. Em termos menos restritos, é comum A diferença entre a fofoca e o rumor é que o último geralmente trata de incidentes, que a posição social ou política direcione o interesse na fofoca. Caso se considere a si eventos, coisas que podem ser confirmadas mesmo liberal ou conservador, os campos ou que estão prestes a acontecer às pessode interesse na fofoca provavelmente serão as – e não sobre a conduta passada ou atual bastante diferentes. Os conservadores fica- das pessoas; o rumor tende a não ser conram embasbacados com as histórias sobre firmado, trata de eventos ou incidentes cuja Bill Clinton, já os liberais sentiram-se des- verdade ainda está no reino da especulação. confortáveis por causa delas. Duas persisten- Cass Sunstein, em On Rumors, escreve que tes fofocas sobre Martin Luther King Jr. são a os rumores “referem-se vagamente a alegade que ele plagiou sua tese de doutorado e ções de fatos – sobre pessoas, grupos, evena de que, apesar de casado, mantinha inú- tos e instituições – que não se mostraram meros casos amorosos, incluindo uma rela- verdadeiros, mas que passaram de pessoa a ção estável com uma decana em Cornell. Os pessoa e ganharam credibilidade não pelo


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conhecimento de uma evidência direta, mas por outras pessoas parecerem acreditar neles”. Comparados à fofoca, os rumores também são menos específicos, mais gerais e difusos, menos pessoais em seu conteúdo e no modo como são disseminados. Rumores podem levar à fofoca, e a fofoca pode reforçar os rumores. Mas a fofoca é particular, dita a uma audiência cuidadosamente escolhida e trata de informações específicas sobre outras pessoas. As outras pessoas são o tema mais fascinante do mundo. Excetuando-se as outras pessoas, haverá apenas conversas de elevador, ou tagarelice sobre esportes, política, roupas, comida, livros, música ou qualquer outro item nessa linha. É possível falar sobre os grandes problemas, questões e eventos diários e da eternidade, assuntos sobre os quais a maioria de nós opera no campo da mera opinião e frequentemente tem pouca coisa – ou nada – interessante a dizer. Por quanto tempo, de fato, se gostaria de falar – ao menos com os amigos – sobre as condições de paz no Oriente Médio, o provável rumo da economia, a existência de Deus? Para a maioria, verdade seja dita, não por muito tempo. É tão mais fácil e divertido falar sobre o casamento em declínio de um conhecido, as ambições extravagantes dos sogros, as bravatas sexuais de um amigo solteiro. A maior parte das fofocas, ou das melhores fofocas, trata de comportamentos questionáveis; quando não de comportamentos absolutamente repreensíveis. E as melhores dizem respeito a pessoas com quem se tem relação direta. Servida com uma dose de humor, pode se tornar algo tremendamente

delicioso, mesmo que não se conheça o objeto da fofoca. Anos atrás, um amigo em Londres contou-me que o dramaturgo Harold Pinter escreveu poemas bastante medíocres – na realidade, meu amigo os chamava de “poeminhas vomitados” –, enviou várias cópias para amigos e então se sentou, aguardando os louros. Um desses poemas era sobre o jogador de críquete Len Hutton, o equivalente inglês de Joe DiMaggio; o poema, na íntegra, era assim: “I knew Len Hutton in his prime,/ Another time, another time” [“Conheci Len Hutton em seu grande momento,/ Outro tempo, outro tempo]. Depois que Pinter enviou as cópias, os destinatários, como sempre, escreveram ou telefonaram para dizer quão excelente era o poema, como havia capturado a questão com uma precisão lacônica perfeita, como estavam tocados e comovidos por causa dele – com exceção de um homem, que não enviou resposta nenhuma. Duas semanas depois, quando Pinter ainda não havia tido notícias dele, ligou para perguntar se recebera o poema. “Sim”, disse o homem, “recebi.” Incapaz de se conter, Pinter perguntou: “E então, Simon, o que achou?”. Após uma breve pausa, o homem respondeu: “Na verdade, não li até o fim”. Essa é uma fofoca que segue o modelo da piada – uma fofoca com um arremate. O que a torna interessante como fofoca é a contínua necessidade, por parte de seu objeto – um dramaturgo de renome mundial, vencedor do Prêmio Nobel –, desses pequenos louvores. Essa é uma história sobre uma vaidade patética. É possível pensar que, de tão bem-sucedido, um escritor já tenha recebido mais que sua cota de Louvor,


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mas nenhum escrevinhador parece ter o que Thomas Mann chamava de “vitamina L” em quantidade suficiente. Essa é uma fofoca que serve como análise ou teste de caráter – com o caráter, ao menos em quase todas as boas fofocas dessa seara, sendo reprovado. Não estou certo de que meramente insultar alguém pelas costas, uma variação do comentário malicioso, constitui uma fofoca. Outro amigo meu, há pouco tempo, me escreveu sobre um conhecido em comum dizendo que sua “pavorosa mulher, Janice, transformou-o no corno mais famoso de Nova York, mas quem poderia culpá-la?”. Eu já sabia que a mulher de meu conhecido o havia trocado por outro homem, então esse ultraje nem era bem uma novidade. Ainda assim, é incerto se todo material para fofoca deve ser novo. Algumas fofocas, da espécie conhecida como “maledicência”, podem ser apenas duas pessoas repetindo detalhadamente os já conhecidos fracassos ou os tristes sofrimentos de uma terceira pessoa. “Bom, eu falo bastante, e o ‘eu’ nem sempre está ausente”, disse a escritora Elizabeth Hard­wick ao repórter que a entrevistou para a The Paris Review. “Em geral, eu preferiria falar sobre outras pessoas. Fofoca, ou como nós, os fofoqueiros, gostamos de dizer: análise de caráter.” Isaac Rosenfeld, um escritor e intelectual de Nova York nos anos 1940 e 1950, costumava brincar chamando essa espécie de fofoca de “análise social”; e, neste grupo, essa análise era do tipo que arrancava a pele do seu alvo. Os intelectuais de Nova York zombavam brutalmente das aspirações, práticas sexuais, presunções e ambições uns dos outros – tudo isso pelas costas, é claro, e com uma inventividade perversa.

“Quem é mais desprovido de interesse humano do que aqueles que não têm nada a esconder?”, pergunta um personagem no romance mais recente de Frederic Raphael, Fame and Fortune. Alguns têm coisas maiores a esconder que outros; outros devem ter muito pouco a esconder; mas pouquíssimos de nós estão livres de ser alvo de fofoca – ao menos enquanto ser criticado pelas costas constituir um tipo de fofoca. Há pouco tempo, estive com um homem que disse que chegara a uma altura da vida – estava prestes a completar 80 anos – em que não temia mais a fofoca. Realmente, ele não tinha vícios, a não ser o de colecionar livros; nunca havia traído sua mulher; era um bom pai; não estava vinculado a nenhum escândalo de nenhum tipo; era modesto em suas pretensões – em todos os aspectos, levava uma vida honrada e pacata. Ainda assim, concordou comigo quando disse que ele não gostaria que eu falasse pelas suas costas que seu gosto por comida era atroz (ele se orgulhava de achar excelentes restaurantes étnicos baratos), que seu julgamento intelectual era parco (tinha enorme admiração por cinco ou seis escritores, todos cientistas sociais, com exceção de Samuel Johnson) ou que suas opiniões sobre música e cinema eram irremediáveis (frequentemente falava de quanto havia gostado de um concerto ou de um novo filme). Eu poderia facilmente, é claro, ver pessoas fazendo algo semelhante comigo, atacando minha escrita, o modo como me visto, minhas próprias – mais que modestas – pretensões. Se chegasse até meus ouvidos que alguém disse que não sou generoso, ou que sou vulgar em meus julgamentos estéticos ou desleal, isso


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me magoaria – por menor que fosse o quociente de verdade das acusações. Ninguém, a esta altura, é imune à fofoca. Uma definição de fofoca é “partículas de novidades sobre assuntos particulares dos outros”. Esses assuntos particulares são o inventário de segredos de um homem ou de uma mulher; sua ostensiva intimidade é, no final das contas, o que os torna pessoais. Georg Simmel, o mais brilhante entre os soció­logos, alega que o segredo é “uma das maiores conquistas da humanidade”. Com isso, suponho, Simmel quer dizer que as sociedades erigiram regras, implícitas e explícitas, para que estivéssemos livres da intrusão de outros em nossa vida, e que, sem essa liberdade para proteger o que temos de pessoal e mais querido, nossa vida seria imensamente mais pobre. O que é mais secreto sobre nós – nossos sonhos, esperanças, pequenos vícios, as fantasias mais loucas, por mais ultrajante ou irreal que tudo isso possa parecer – é, geralmente, o que há de mais significativo para nós. A fofoca intrusiva, tendo a chance, pode tornar tudo isso uma gororoba, e por isso é que pode ser tão perigosa. Nem toda fofoca tem como propósito machucar as pessoas. A fofoca pode ser incrivelmente divertida. Às vezes, ao analisar problemas, falhas e fraquezas de amigos, inclusive de amigos queridos, ela o arrasta e o conduz na absoluta exuberância de sua

brincadeira. O filósofo Martin Heidegger, que não é exatamente a imagem de um sujeito excêntrico, pensava na fofoca como algo trivial, raso e falsamente fidedigno; negando o seu alto valor educacional. Ainda assim, já participei de sessões de fofoca em que as pessoas sondaram os motivos umas das outras de uma maneira em que se proporcionou mais conhecimento do que os altamente opacos trabalhos de Herr Heidegger. Ele próprio – notavelmente seu alinhamento com os nazistas e a posterior tentativa de encobri-lo, o caso de amor que teve com sua aluna Hannah Arendt enquanto estava casado – foi alvo de algumas fofocas ardentes, desmoralizantes e altamente divertidas, ainda mais depois de sua morte. Se há algo que pode ser considerado uma grande mixórdia, é a fofoca: ela pode ser mesquinha, feia, maldosa, mas também arguta, arrojada, inteiramente charmosa. Pode ser condenatória, amortecedora (dos espíritos), lúgubre, mas também hilariante, divertida, altamente educacional. Ela surge em vilas isoladas, entre tribos primitivas e em grandes capitais culturais. A única coisa que faltava ao Jardim do Éden era uma terceira pessoa sobre quem Adão e Eva pudessem fofocar. Apesar de toda a injúria contra a fofoca, ela não parece estar acabando, nem agora nem provavelmente nunca.

JOSEPH EPSTEIN (1937) é parte da rica tradição ensaística americana que une humor e erudição, mundanidade e reflexão intelectual. Colaborador da The New Yorker e da Commentary, é conhecido pela verve polêmica e pelas posições conservadoras em arte e política. É editor da antologia The Norton Book of Personal Essays (1997) e autor de mais de 20 títulos, dentre os quais Inveja (Arx, 2004) e o mais recente Gossip (2011), do qual este verbete foi extraído. Dele, a serrote#3 publicou “Charmoso, eu sei”, ensaio sobre Fred Astaire. Tradução de Thiago Lins



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diário  Fazer a mudança de uma biblioteca é sentir o peso do passado: quando estamos vivos, ela é nossa pátria; depois de mortos, nosso fantasma

A vida encaixotada rodrigo fresán

Barcelona-Dublin De 4 de fevereiro a 23 de abril de 2008

“Boxes” Desenhos da série Embankment © Rachel Whiteread Cortesia da artista e da Gagosian Gallery

segunda-feira, 4 de fevereiro A edição de julho de 1960 da revista mensal americana Esquire publicou um ensaio do escritor John Cheever intitulado “Moving Out” que tratava da difícil arte de se mudar – essa complicada operação de enfiar tudo em caixas, esperar o caminhão de mudança e enfrentar a aventura que é, em geral, uma viagem breve, mas na qual envelhecemos vários anos, física e mentalmente. Cheever havia publicado no ano anterior, nas páginas da The New Yorker, um de seus mais tristes relatos, “The Scarlet Moving Van”, sobre os aspectos mais sórdidos da operação em questão. São inesquecíveis: o ato de se mudar é – ao lado da morte de um ser querido e do divórcio (uma espécie de morte de um ser que um dia foi querido) – uma das situações nas quais, com muita frequência, floresce um germe psicótico ou algo do estilo. Em seu ensaio, Cheever traça a paisagem de muitas famílias de seu país que, no final dos anos 1950, migraram para bairros residenciais à procura de uma vida mais pacata e supostamente harmoniosa. O que Cheever encontrou ao se mudar de Manhattan para Ossining foi


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um novo território narrativo que logo ficou conhecido como “Cheever Country”. Um lugar cheio de compulsivos frequentadores de piscinas e ladrões epifânicos de casas de vizinhos e martínis ao entardecer e coisas assim. Sabe-se lá o que encontrarei ao deixar para trás o centro de Barcelona (e suas tropas de turistas famélicos) e subir as ladeiras do Tibidabo e chegar a Vallvidrera. Escrevo estas linhas cercado de malas, laptop sobre os joelhos, quase esperando os especialistas da empresa de mudanças, relendo esta velha edição da revista Esquire que ficou fora da caixa das revistas Esquire, e não, John Cheever não diz absolutamente nada em relação ao que acontece com os livros nas mudanças. Tampouco recordo que comente algo a respeito em seus Journals (que, na minha opinião, estão entre os melhores já confessados por um escritor). Não. Nem uma palavra sobre mudar livros. Abundam os diários de leituras, mas não sei da existência de nenhum diário que trate da mudança dessas leituras, de todo esse vivíssimo peso morto. Resolvo começar este diário.

terça-feira, 5 de fevereiro Chegou o grande e terrível dia. Uma quadrilha toma de assalto o apartamento onde vivi durante os últimos nove anos (desde minha chegada a Barcelona) e enfia livros em caixas numa velocidade espantosa. Durante a operação, contemplo caixas e leio títulos de que havia esquecido totalmente. É como se os visse pela primeira vez, e não consigo resistir ao impulso de folhear enquanto despregam as estantes das paredes. Minha mulher – muito eficiente na hora de organizar esse tipo de atividade, enumerou e atribuiu uma letra a cada prateleira de minha biblioteca – me diz que estou incomodando e me ordena que vá para algum lugar longe e volte bem tarde da noite. Meu filho de pouco mais de um ano parece concordar com ela. Vou à entrega do prêmio Seix Barral (e ao almoço que vem depois), mas antes passo em uma livraria e compro The Second Plane, de Martin Amis, e Things the Grandchildren Should Know, de Mark Oliver Everett, o songwriter da banda-entidade Eels. Dias atrás eu me prometera – diante do volume de livros a transportar – ser mais cuidadoso quanto à quantidade de livros que compraria e conservaria dali em diante. E agora – dirigindo-me ao caixa para pagar, com Amis e Everett na mão – penso: é impressionante a quantidade de bons livros que são escritos e publicados.


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quarta-feira, 6 de fevereiro Segundo e último dia de mudança. Hoje já dormiremos na nova casa. Estão levando todas as caixas. Confissão: o expurgo quase stalinista a que me comprometera semanas antes não aconteceu. Todos os livros serão levados para a nova casa (não descartei nenhum), e supõe-se que então farei uma seleção impiedosa na qual todos aqueles volumes que eu achar que nunca mais voltarei a abrir terão de desaparecer e ser confiados à bondade de estranhos. Procurar bons lares para eles, doá-los a bibliotecas, cumprimentá-los com a mão enquanto os vejo se afastar rumo ao horizonte. O que, naturalmente, não impede que continuem chegando novos membros à família. Hoje – o apartamento já quase vazio – recebi pelo correio os nove dvds com a coleção completa da The New Yorker de 1925 a 2005, algo assim como 4.109 edições da revista (o que resolvo considerar como um perfeito símbolo de… de… de alguma coisa), e a memoir de Janna Malamud Smith, filha do escritor Bernard Malamud, intitulada My Father Is a Book (o que resolvo considerar símbolo de alguma outra coisa). Exultante, mostro-os a minha mulher, que me sugere que vá dar uma volta e não apareça em casa antes do anoitecer. Meu filho parece assentir em silêncio. Passo pela livraria La Central da calle Mallorca e encontro Félix Romeo. Comento que fui condenado a um breve exílio, e ele me convida para almoçar com Javier Cercas. Vamos lá. Comemos e falamos de livros. Ou vice-versa. Depois da sobremesa, voltamos à La Central, e compro Not-Knowing: The Essays and Interviews of Donald Barthelme, livro que tenho há muitos anos em edição de capa dura, mas este paperback é tão bonito… A noite cai, subo no funicular. É a segunda ou terceira vez que o uso, e sempre me faz recordar, automaticamente, alguma cena inexistente perto do final de algum filme inexistente de Alfred Hitchcock. O herói luta com o vilão enquanto o funicular sobe e sobe, e de repente o vilão cai das alturas e… (fantasio a ideia de que brigam por um livro, ou melhor, brigam porque um deles comprou um livro que já tinha e então merece morrer e sua mulher contratou um assassino de aluguel e…) chego em casa, e o pequeno exército de minha mulher desce caixas do caminhão e leva para cima por uma escada; é como se eu contemplasse o lento, mas constante, preenchimento de uma pirâmide: os tesouros de um faraó doméstico acumulados ao longo da vida. Essa noite durmo um sono profundo. Havia anos que não dormia tão bem. Ficaram para trás os turistas vociferantes (o italiano e o alemão são seus idiomas símbolos) diante de La Pedrera e o ronco dos ônibus e um apartamento vazio onde já não resta nenhum livro a recolher.


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quinta-feira, 7 de fevereiro Os carregadores de caixas partem para outra mudança. Uma mudança – certamente – com menos livros. Talvez seja imaginação minha, mas tenho a impressão de que me olham com ódio e esperam que triplique sua remuneração. Algo assim. “Muitos livros”, me diz um deles, certamente habituado a essas bibliotecas leves que se contentam com A sombra do vento, alguns desses romances “de catedrais”, O pequeno príncipe, uma Bíblia, um Almanaque Mundial vencido há muito tempo, uma enciclopédia sem um dos tomos e algum prêmio Planeta. Caixas por todos os lugares. Muitas caixas, caixas em excesso. Minha casa parece o final de Cidadão Kane, mas sem o travelling magistral. E me pergunto o que é o correto ou o que é o mais correto: caixas com livros ou caixas de livros? Suponho que, a princípio, são caixas com livros: embalagens, invólucros, o que envolve os livros, mas que ainda os contêm para manter sua personalidade e independência. E tenho certeza de que, com o tempo, com o correr dos dias, se não tiverem sido abertas e esvaziadas rapidamente, as caixas com livros irão se transformando em caixas de livros: os livros vampirizando-as, invadindo-as, fossilizando-se lá dentro, explodindo na mais prazerosa e sublime das metástases, arrasando, possuindo e – tenho certeza – transformando essas caixas simples e funcionais em algo muito mais complexo e melhor. Os livros funcionando dentro dessas caixas do mesmo modo como a biblioteca funciona em seu dono. E se o dono é escritor, ainda melhor: a biblioteca não é só sua verdadeira pátria. A biblioteca é também o dna de um escritor.

“Boxes”

quinta-feira, 8 de fevereiro Abro a primeira das caixas, me pergunto qual será o primeiro livro que pulará em minhas mãos – ou olhos, ou pescoço – e ali está: minha nêmesis culpada, minha reprovação pátria, minha culpa imperdoável: O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar. O romance que mais vezes tentei ler e mais vezes não consegui. Por quê? Mistério. Gosto muito de Cortázar (meu favorito entre seus contos é “Diário para um



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conto”), li várias vezes todos e cada um de seus livros (inclusive O Livro de Manuel), mas não consegui brincar com O jogo da amarelinha. Nunca consegui passar das primeiras páginas (que me agradam muito, é claro). De fato, a única vez que fiz um diário em minha vida foi – a modo de conferência – um diário sobre a necessidade de ler O jogo da amarelinha (pressionado por uma dessas efemérides de números redondos de alguns anos atrás, os 20 anos da morte de Cortázar, creio) e voltar a desistir da tentativa. Procuro no disco rígido de meu laptop o arquivo em questão para reproduzir neste diário um parágrafo daquele diário. Não encontro. A ação inativa de não encontrar, presumo, será a que definirá os próximos dias de minha vida. O jogo da amarelinha me olha, e eu olho O jogo da amarelinha. Abro. “Encontraria Maga?”, me pergunta. “Não”, respondo. Resolvo não continuar abrindo caixas no dia de hoje.

sexta-feira, 9 de fevereiro Hoje foi um grande dia: escolhi as caixas ao acaso, e nelas estavam os livros de John Cheever e Kurt Vonnegut. Meus pais espirituais, meus anjos da guarda, os admiráveis que mais admiro. Coloco seus livros em um par de prateleiras vazias da estante recém-fixada na parede. Estou feliz e não quero estragar essa felicidade. Então chega por hoje; saio para perambular entre as árvores como um Thoreau, como um Emerson, como um Bambi, como um Pé Grande.

segunda-feira, 25 de fevereiro Esta noite me apresento e dialogo com Martin Amis na Biblioteca Jaume Fuster. Em público, conversamos sobre como o passado se engrandece às nossas costas, a decadência física, a inevitabilidade da morte. Transcrevo aqui algo que Amis me disse sob as luzes crepusculares do auditório, o que me respondeu quando perguntei se o escritor alguma vez chegava a algum lugar ou se morria, sempre, no caminho. Amis disse algo assim: Meu pai faleceu aos 73 anos; no final da vida ficou muito doente, digamos que enlouqueceu. Debatia-se entre a razão e a loucura e chegou um momento em que não conseguia mais escrever. Mesmo assim, até o último dia, sentava-se


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diante da máquina de escrever. E só datilografava uma palavra: “gaivota”. Agora tenho 58 anos; aos 40 passei pela crise que todos experimentamos, a da maturidade. Essa crise em que descobrimos que a morte não é mais um boato. Então tudo vem abaixo, e sofremos e achamos que tudo terminou. No entanto, aos 50, descobrimos o estímulo inesperado de algo que até então desconhecíamos: o peso do passado. Chegamos a um ponto da vida em que o passado é tão imenso que revitaliza e comove. Depois, no final dos 50, passamos por outra crise: a do medo de envelhecer. E imagino que depois venha uma última crise que combine com as duas primeiras e acabe com a morte. Alguém disse que a juventude é o estado em que você se olha no espelho e pensa que todo mundo envelhece, menos você. Mas esse estado não dura. Quando a pessoa é jovem, antes de fazer 20 anos, chega um momento em que fica muito mais consciente de si mesma e começa a investigar a si mesma e a escrever a respeito de si mesma. Escreve coisas breves, contos, poemas, e aos 21 ou 22 deixa de fazê-lo. Os escritores são uma espécie de ser que nunca supera essa etapa, que sempre continua se narrando, que atravessa todas as crises e nunca se dá por vencido, nem mesmo quando chega a esse momento terrível em que, sem cessar, não consegue escrever nada além de uma palavra.

Depois saímos e fomos jantar. Amis me pergunta como estou, o que há de novo. Respondo que me mudei há várias semanas e estou tentando organizar minha biblioteca. Seu rosto parece se contrair de dor, recordando velhas experiências. Pedimos várias doses de algo que ele recomenda e cuja fórmula exata não lembro bem. O peso do passado de um escritor é, também, o peso da biblioteca. Gaivota.

domingo, 2 de março Já sei: passaram-se muitos dias desde as últimas anotações. E devem estar se perguntando se terminei de desempacotar – desencaixar? – os livros de minha biblioteca. “The answer, my friend, is blowin’ in the wind”, o que é uma forma elegante de dizer não. A alusão a Dylan tem a ver, também, com o fato de que estou escrevendo um artigo sobre ele para a Argentina, onde cantará em alguns dias. Escrevo o seguinte sobre “Blowin’ in the Wind”: “Blowin’ in the Wind” é, ainda hoje, um artefato que funciona tão bem como no primeiro dia. A astúcia talvez intuitiva de uma melodia simples (baseada no lamento tradicional de escravos “No More Auction Block”) e uma letra de espírito evangélico com eficácia de sermão da montanha e construída à base de perguntas,


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para terminar com uma resposta que não dá instruções exatas. Estratégia perfeita para uma canção pacifista que se dá por vencida assim que começa. Mas na contracapa de The Freewheelin’ Bob Dylan, o cantor/compositor já havia deixado bem claro o mecanismo transparente do profundo mistério: “A principal maneira de responder a essas perguntas na canção é fazer perguntas. Mas muitas pessoas primeiro deverão encontrar o vento”.

Acabo de escrever este parágrafo e volto a ficar deslumbrado pela sabedoria prática de Dylan, e tenho a certeza de que ele sempre teve alguém para colocar sua biblioteca em ordem.

segunda-feira, 3 de março Volto a Dublin para entrevistar John Banville. No avião, juro que não comprarei nenhum livro, a menos que seja indispensável. Digo que só me interessa encontrar um leve paperback: Everything You Need, de A.L. Kennedy, escritora que descobri há pouco pelo seu último romance: Day. Banville me leva à sua livraria favorita, ao lado de seu estúdio: chama-se The Winding Stair. À tarde, acompanho Banville a outras livrarias (recomendei a ele os excelentes thrillers nova-iorquinos de Colin Harrison) e me lembro de que preciso escrever uma resenha para Qué Leer sobre o novo romance de Michael Chabon e que o livro ainda não apareceu em nenhuma caixa, e compro uma bela edição de capa mole de Associação judaica de polícia. Descubro que este é um bom argumento a ser usado no tribunal para justificar a compra de novas edições de livros que já tenho: “Preciso deles, meritíssimo… E não sei onde estão”. Louco de felicidade – e também incentivado pela pressão do fantasma –, compro uma maravilhosa edição de Ulisses, de Joyce (que, pensando agora, não é mais que um sólido e ao mesmo tempo impalpável diário de um dia), na livraria da própria Martello Tower, onde começa o romance em questão. Horas depois, almoçando, Banville me conta que vários anos depois da morte de Joyce as autoridades locais resolveram convidar seu filho Giorgio para participar dos festejos do Bloomsday. E o levaram ali, mostraram a torre e esperaram que pronunciasse algumas palavras emocionadas por estar no palco de um dos maiores big bangs literários do século 20. Parece que Giorgio sorriu, agradeceu aos presentes, disse que achava o lugar muito bonito, mas – para espanto de joycianos e bloomófilos – acrescentou algo como: “O que não entendo muito bem é por que me trouxeram a esta torre… Aconteceu alguma coisa importante aqui? Há algo interessante para ver?”.


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terça-feira, 4 de março Volto para Barcelona muito tarde, quase de madrugada. Meu filho e minha mulher e minhas caixas de livros dormem. O que é uma sorte, porque assim não podem ver que este que vos escreve voltou da Irlanda com outros livros.

sábado, 8 de março Dia de reflexão. Hoje não abrirei nenhuma caixa de livros e me dedicarei a refletir se alguma vez acabarei de abrir todas essas caixas de livros. Uma coisa está clara: este diário – que tem um prazo de entrega, o Dia do Livro ou de Sant Jordi ou seja lá o que for – não chegará a registrar o fim da grande tarefa de colocar minha biblioteca em pé. Assim, será um diário frustrado, e me pergunto onde estará o livro que meu amigo Alan Pauls escreveu sobre os diários de escritores, ou El oficio de vivir, de Cesare Pavese, que Ricardo Piglia me deu de presente (e eu lhe dei de presente o Praeterita, de John Ruskin) dias antes da mudança. Eu me pergunto se haverá neles algum conselho útil, algum código vital. Como falta muito para que os encontre – para que os reencontre – prefiro me convencer de que não, de que não há nada ali, de que nada poderá me resgatar deste naufrágio. Meu problema agora não é decidir que livro levaria a uma ilha deserta. Meu problema é que minha ilha deserta é feita de caixas de livros e está cercada por um oceano de livros. Não sei por quê – sei sim por quê –, de repente recordo a true story ou a lenda urbana na qual dois irmãos gêmeos morrem esmagados por seus livros em um túnel secreto que, sem que ninguém suspeitasse, unia suas duas casas, suas duas bibliotecas.

domingo, 9 de março Com o álibi de que se trata de um dia de orgulho cívico, uma festa da democracia, um encontro dos cidadãos com o próprio destino e tudo isso, penso que hoje não abrirei nenhuma caixa de livros. É a primeira vez que voto na Espanha; desço à cidade e procuro o lugar em que me cabe votar (continuo aferrado a meu velho endereço) e fico espantado com a facilidade e a velocidade dos trâmites. É muito mais rápido eleger um chefe de governo do que organizar uma biblioteca… Depois almoço naquele que um dia foi meu bairro e já não é mais. Escrevo sobre o tema, envio o artigo e adormeço e sonho que uma das primeiras medidas do reeleito Zapatero será auxiliar os escritores que acabam de se mudar colocando à sua disposição bibliotecários que desempacotem e organizem suas bibliotecas. Acordo sorrindo, mas esse sorriso dura tão pouco…



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sábado, 15 de março Compro o dvd e à noite começo a assistir a excelente minissérie alemã Los Mann. Fico particularmente impressionado com o dramático momento em que a biblioteca de Thomas Mann – de oito mil volumes – é leiloada pelos nazistas depois que o escritor, exilado, divulga um texto contra Hitler & cia. Faço uma pausa e subo as escadas e contemplo todas as caixas que restam abrir e, em meu desespero estúpido, não consigo deixar de me perguntar se os nazistas não terão feito um favor ao autor de A montanha mágica evitando que tivesse de trasladar sua biblioteca. De qualquer maneira, a única coisa que parece preocupar Mann é o extravio (no final aparecem em uma valise) de seus diá­ rios mais íntimos, em que confessava a ninguém coisas que não queria que ninguém soubesse. Já sei, já sei: pensar isso é péssimo, que dirá escrever. Mas em meu atual frame of mind – cercado por caixas que já são, definitivamente, de livros – não posso evitar pensar que os nazistas fizeram um favor a Mann: o presente de viajar com leveza para uma nova vida em um novo continente e com o acréscimo de poder culpá-los – com a consciência muito tranquila – pelos piores males de toda a história. E já que estamos falando disso – da história de queimar livros – me pergunto em que caixa andará minha edição comemorativa e cinquentenária de Fahrenheit 451.

Sem título

domingo, 16 de março Certamente influenciado pelas passagens de Mann vivendo em Los Angeles, acordo-me lembrando de que, pouco antes de sua morte, a casa de Aldous Huxley foi queimada, e com ela sua biblioteca e seus manuscritos e suas cartas de toda uma vida. Tudo. Lembro também que Huxley morreu – sob nuvens de chuva púrpura, empapado de lsd – no mesmo dia em que assassinaram John Fitzgerald Kennedy. Cabe pensar que os necrológios desse Huxley – leve, sem caixas nem estantes – foram bem menores e lidos por muito poucos. Dúvida: os protagonistas futuristas de Admirável mundo novo haviam deixado de ler? Outra dúvida: em que caixa


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estarão todos os livros de Huxley? E pensando agora: comecei a ler Huxley mal tinha entrado na adolescência; é um dos poucos autores em inglês de quem conservo edições em espanhol. Aqueles livrinhos de capa dura… Não me lembro da editora. Por onde andarão? Estão perto, sim, mas tão longe… Huxley foi um de meus escritores favoritos durante a puberdade; ainda na cama, em silêncio para não acordar minha mulher, contando nos dedos, enumero todas as bibliotecas que mudei ao longo de minha já não tão curta vida (incluo a que leguei a meu amigo Juan Ignacio Boido, em Buenos Aires, quando vim viver em Barcelona, em 1999, da qual, de quando em quando, extirpo livros aproveitando a boa vontade de algum viajante) e descubro que foram muitas, que já basta. Então ouço os passinhos de meu filho se aproximando. Entra em nosso quarto. Traz um livro nas mãos. É meu primeiro exemplar – edição argentina – de Drácula. Certamente meu livro mais antigo. Um sobrevivente daquela biblioteca infantil (eu o li aos oito anos) que tivemos de deixar para trás quando saímos correndo de meu país de origem, nos anos 1970, por razões que todos conhecem. E, assim, minha primeira biblioteca é, também, uma desaparecida. Mas Drácula viajou e fugiu comigo e agora está aqui: um sobrevivente nato. E me recordo dessa estranha obrigação do conde transilvano de viajar acompanhado por vários caixões de terra transilvana onde jazer durante o dia. Caixões para não estranhar e dormir em paz. Pátria que viaja com o viajante. Igual, como já disse, a uma biblioteca. E recordo também que, nas primeiras páginas do romance de Bram Stoker, o jovem Jonathan Harker ficava surpreso e espantado com o tamanho e a qualidade – “com volumes em inglês” – da biblioteca de Drácula. Depois, Drácula se muda para Londres. E as coisas se complicam. E ele tem que voltar correndo para a Transilvânia.

quarta, 19 de março Hoje morreu Arthur C. Clarke. Em nenhum de seus livros proféticos ele menciona um futuro em que as bibliotecas sumiriam e apareceriam com um apertar de botão. Talvez os extraterrestres nos presenteiem em algum momento com a tecnologia necessária para tal prodígio.

domingo, 23 de março Leio na edição dominical de El País uma boa entrevista de Philip Roth a Jesús Ruiz Mantilla, em que Roth fala da extinção e da morte dos leitores de verdade. Comentários soltos: “Onde estão os leitores? Olhando as telas de seus


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computadores, as telas de televisão, dos cinemas, dos dvds. Entre­tidos com formatos mais divertidos. Fomos derrotados pelas telas”. E, referindo-se ao Kindle – a última encarnação do livro eletrônico –, Roth diz: Ainda não o vi, sei que anda por aí, mas duvido que substitua um artefato como o livro. A chave não é trasladar livros para telas eletrônicas. Não é isso. Não. O problema é que o hábito da leitura se esfumou. Como se, para ler, precisássemos de uma antena e a tivessem cortado. O sinal não chega. A concentração, a solidão, a imaginação que o hábito da leitura requer. Perdemos a guerra. Em 20 anos, a leitura será um culto… Será um hobby minoritário. Alguns criarão cães e peixes tropicais, outros lerão.

Penso se um Kindle será a solução. A ideia do portátil, do redutível: a biblioteca miniaturizada, a versão plugged do Livro de areia, de Borges. Penso que o livro – como artefato – não corre perigo. Não há engenhoca eletrônica que tenha conseguido até esta data reproduzir o milagre muscular movido a sangue de virar uma página.

segunda-feira, 24 de março Passo pela Mondadori. Levo as provas para imprensa de Indignação, romance de Philip Roth que será publicado nos Estados Unidos em setembro próximo. De volta a minha casa, contemplo algumas pilhas de livros que foram armadas nos últimos dias. Condenados à morte: a ideia era me livrar dos best-sellers, policiais, romances de terror, temática cult e pulp e cool… Todos esses livros que, certamente, jamais voltarei a abrir. Descubro que não consigo. Penso que sou um desastre semelhante a César. Indulto para todos, e que os leões se devorem entre si!

terça-feira, 15 de abril Os abruptos saltos temporais neste diário não querem dizer que não tenha me acontecido nada. Aconteceram coisas, subi e desci em muitas ocasiões pelo funicular, continuei escrevendo meu próximo livro (arrancando-o, página a página, da caixa da minha cabeça) e, logicamente, comprei outros livros. Mas não abri nenhuma caixa. E este diário, supõe-se, deve tratar de uma mudança, de muitos livros, de muitas caixas. Falta uma semana para terminar este diário e tudo continua mais ou menos igual (hoje comprei Our Story Begins, uma recompilação de velhos


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relatos – reescritos – e novos de Tobias Wolff); minha mulher foi à Ikea para averiguar o preço das estantes (restam umas 25 ou 30 caixas a abrir, calculo), e experimentei pela primeira vez batatas fritas da marca Lay’s linha Sensations sabor frango assado ao forno com limão e tomilho ou algo assim. O fato de as batatas fritas incluí­rem o sabor frango (o sabor “ao forno” é ótimo, excelente; repasso a lista de ingredientes: “frango em pó”, leio, um tanto inquieto) parece um exemplo de economia e senso prático. Agora alguém tem que inventar paredes de um novo apartamento ou casa que já venham com as estantes colocadas e os livros organizados.

quarta-feira, 16 de abril Compro na livraria Laie os dois primeiros volumes de entrevistas de escritores a The Paris Review reeditadas agora pela Picador. Tinha vários tomos da Penguin. Mas nestes há entrevistas que nunca li. Procuro se alguém diz alguma coisa sobre mudar bibliotecas. Ninguém diz nada. Sequer Hemingway, que perdeu sua biblioteca cubana com a chegada de Castro ao poder. Penso – falando de bibliotecas abandonadas – que mais cedo ou mais tarde terei de viajar a Buenos Aires para cuidar da biblioteca de meu pai (falecido há quatro anos), agora trancada em um apartamento do bairro do Retiro, diante da plaza San Martín. Penso que, quando partimos, a biblioteca deixa de ser nossa pátria e se transforma em nosso fantasma. Talvez venha daí a pressa dos familiares para vender as bibliotecas dos mortos.

Sem título

sexta-feira, 18 de abril Vou à La Central del Raval para a apresentação do livro Bolaño salvaje recompilado por Edmundo Paz Soldán e… Recordo a biblioteca de Bolaño, as bibliotecas de Bolaño. Tinha duas: a de sua casa era cuidadosa e limpa e organizada e pequena; a do estúdio, atravessando a rua, era um caos. Uma biblioteca Jekyll e uma biblioteca Hyde, e lembro que uma vez lhe pedi emprestado um livro de Stendhal



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e ele quase gritou: “rodrigo: stendhal não se empresta!”. Na apresentação passam o resumo de um documentário em dvd sobre Bolaño que está incluído no livro, e aí aparece Enrique Vila-Matas dizendo algo que não se escuta pelos inevitáveis problemas técnicos. Vila-Matas também tem uma biblioteca suspeitosamente, sim, portátil. Talvez Vila-Matas tenha uma biblioteca espalhada por múltiplas casas e apartamentos e cidades. Talvez minha biblioteca-albergue parta da biblioteca de Vila-Matas. Talvez deva pedir a Vila-Matas que se encarregue de organizar a desordem de minha – nossa – biblioteca.

sábado, 19 de abril E sabe-se lá em que livro li que 90% da poeira de uma casa é composta de resíduos de seres humanos. E sabe-se lá em que outro livro li que a poeira faz bem aos livros, os mantém jovens. Assim, nos desfazemos para que os livros não se desfaçam. Parece justo. Poeira. Poeira em pó. Abro um saquinho da Lay’s Sensations.

23 de abril E este diário chega ao fim sem que tenha acabado de abrir todas as caixas. Hoje é Sant Jordi – e a falsa conjunção astral e tanática de Shakespeare e Cervantes e tudo isso – e eu, aqui em cima, nem me ponho a par nem penso em fazê-lo. Antes, o Sant Jordi passava pela esquina de casa. Agora estou longe dessa tormenta de livros e rosas. Ontem, de qualquer maneira, comprei meu livro de Sant Jordi: Armagedom em retrospecto, de Kurt Vonnegut. Os textos dispersos da juventude (e um discurso que não chegou a pronunciar) agora com a voz de um fantasma. (E hoje minha mulher me deu de presente os ensaios de outro fantasma, William Styron: Havanas in Camelot: Personal Essays.) Hora de fechar, hora de partir, e copio aqui um fragmento de Matadouro 5, de Kurt Vonnegut, que, além do mais, me parece bastante apropriado para esta ocasião. Uma descrição de livros alienígenas – os livros do planeta Tralfamadore – e de raras e preciosas propriedades: Seus livros eram coisas pequenas. Os livros tralfamadorianos eram organizados em breves conjuntos de símbolos separados por estrelas. Cada conjunto de símbolos é uma mensagem tão breve como urgente que descreve determinada situação ou cena. Nós, os tralfamadorianos, os lemos todos ao mesmo tempo, e não um após o outro. Não existe nenhuma relação particular entre as mensagens,


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exceto que o autor as escolheu cuidadosamente; assim, ao serem vistas simultaneamente, produzem uma imagem da vida que é bela e surpreendente e profunda. Não há princípio, nem meio, nem fim, nem suspense, nem moral, nem causas, nem efeitos. O que amamos em nossos livros é a profundidade de tantos momentos maravilhosos contemplados ao mesmo tempo.

Acabo de copiar isso e aparece meu filho. Desta vez não traz um livro, mas um saco recém-aberto de Lay’s Sensations sabor frango ao forno com limão e tomilho. Me oferece uma batata, aceito, e nós dois nos sentamos em um par de caixas a contemplar o entardecer quase radioativo que golpeia as grandes janelas que dão para uma montanha coberta de pinheiros. “Um dia tudo isso será seu”, digo a meu filho, me referindo não à abençoada paisagem de árvores e nuvens, mas à condenação de caixas e caixas. Meu filho morde outra batata e sorri um dos sorrisos mais belos que já vi. É claro que não me entende, que não compreende uma palavra do que digo. Melhor assim.

Argentino radicado na Espanha, rodrigo fresán (1963) é escritor e jornalista. Estreou na literatura em 1991 com História Argentina. É autor de La velocidad de las cosas (1998) e Jardins de Kensington, publicado no Brasil pela Conrad em 2007. Este “Diário” foi publicado originalmente na revista literária Eñe no verão de 2008. Tradução de luís carlos cabral





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