Revista serrote 17½

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#17 ½  Edição especial para a FLIP 2014


instituto moreira salles  Walther Moreira Salles (1912-2001) Fundador Diretoria Executiva João Moreira Salles Presidente  Gabriel Jorge Ferreira Vice-Presidente Mauro Agonilha, Raul Manuel Alves Diretores Executivos

serrote é uma publicação do Instituto Moreira Salles que sai três vezes por ano: março, julho e novembro. Esta serrote #17 ½ só circula, gratuitamente, na flip 2014.  COMISSÃO EDITORIAL Alice Sant’Anna, Daniel Trench, Eucanaã Ferraz, Flávio Pinheiro, Gustavo Marchetti, Heloisa Espada, Matinas Suzuki Jr., Paulo Roberto Pires e Samuel Titan Jr.  editor Paulo Roberto Pires  diretor de arte Daniel Trench  coordenaÇÃO EDITORIAL Alice Sant’Anna e Flávio Cintra do Amaral  ASSISTENTE DE ARTE Gustavo Marchetti  PRODUÇÃO gRÁFICA Acássia Correia e Jorge Bastos  preparação e revisão de textos Flávio Cintra do Amaral, Juliana Miasso, Leny Cordeiro, Marília Garcia, Sandra Brazil e Valeska de Aguirre  checagem José Genulino Moura Ribeiro, Luciana Sanches e Regina Pereira  © Instituto Moreira Salles  Av. Paulista, 1294/14º andar  São Paulo sp Brasil 01310-915 tel. 11.3371.4455 fax 11.3371.4497  www.ims.com.br  n° 17 ½ Julho 2014  impressão Ipsis Gráfica e Editora  As opiniões expressas nos artigos desta revista são de responsabilidade exclusiva dos autores. Os originais enviados sem solicitação da serrote não serão devolvidos.

© José Carlos Avellar; © Kathleen Gomes; © Jorge Edwards, 2002; © Elvia Bezerra. Agradecimentos Barbara Rangel, Julia Kovensky, Julia Menezes Lima Moreira, Manoela Purcell Daudt D’Oliveira e Paloma Rocha. imagem da capa e contracapa Desenho de Glauber Rocha. página de rosto Serradores, Paris, c. 1900, coleção particular, São Paulo, foto: Nino Andrés.

assinaturas 11.3971.4372 ou serrote@ims.com.br  www.revistaserrote.com.br




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O ideograma em processo JosĂŠ Carlos Avellar


A figura no papel parece desenhada pela câmera de Deus e o diabo na terra do sol. Na mão do desenhista, aquela mesma câmera que esquece a cena para traçar no espaço, entre uns personagens, uma linha abstrata, pura expressão visual. Corisco conta ao cego Júlio que Lampião morreu, a câmera sai lá de trás, de Manuel aos pés de Corisco, vem até Dadá na frente do quadro, caminha com ela na direção de Rosa, deixada para trás à esquerda da cena, e logo volta com o cego Júlio para vê-lo tirar os demônios do corpo de Corisco, trazer o rosto do cangaceiro a primeiro plano e empurrar Manuel para o fundo da cena. Ou de novo na mão do desenhista em Terra em transe a câmera caminha tão nervosa quanto o governador Vieira jogando papéis fora e pedindo calma a todos, ou tão indignada quanto Paulo, pronto a resistir e a deixar o vagão correr solto. Um desenho lembra a câmera na mão diante dos personagens que repetem, cinco, sete, 70 vezes, “abaixo o colonialismo!”, em Der Leone have sept cabeças. Outro, os rostos de Paulo e Sara, abraçados, em Terra em transe, sussurrando o poema desinteressado pelas flores de estilo. Um terceiro, ainda, lembra a câmera fixa diante de Coirana cantando para Antônio das Mortes as marcas da tortura em O dragão da maldade contra o santo guerreiro. O que primeiro se vê nos desenhos de Glauber é o cinema de Glauber. Nas figuras de um só traço, um pouco do plano de Deus e o diabo na terra do sol em que Othon Bastos vive o último encontro de Corisco com Lampião, alterando o tom de voz e o gesto para fazer, ao mesmo tempo e numa única imagem,


sem corte algum, os dois personagens. Naqueles desenhos que parecem feitos em cima de outros, ou feitos como se, depois de prontos, o desenhista tivesse decidido cobrir tudo com um rabisco, um pouco do plano em que Antônio das Mortes salta no quadro de um canto a outro, e a outro e a outro, disparando sobre os beatos do Santo Sebastião, ou um pouco da cena do comício do candidato Vieira perdido no meio do caos. Numa figura desenhada e desenhada de novo, muitas vezes, a de um homem com duas cabeças, um pouco da fala gritada por Corisco, o cangaceiro de duas cabeças, e um plano do projeto sonhado entre a Estética da fome e a Estética do sonho: América nuestra. Nos vários roteiros desse filme não realizado, num qualquer canto da folha datilografada, temos o esboço de um homem de duas cabeças. Às vezes, as duas olham em direções diferentes, outras vezes se enfrentam cara a cara – tradução e contradição do que Sara diz para Paulo em Terra em transe: poesia e política são demais para um homem só. Quase impossível ver os desenhos de Glauber sem trazer seus filmes à memória, não porque eles não despertem interesse enquanto desenhos, nem porque tenham sido feitos para servir a filme nenhum. No papel, cinema, porque os desenhos são rastros de um pensamento cinematográfico, um ideograma incompleto, em processo, anotação imediata de uma ideia no instante mesmo em que ela ainda não acabou de ser pensada. Nos desenhos – convém repetir o que Glauber disse certa vez na televisão, no programa




Abertura, e repetir imaginando na leitura uma fala especialmente gritada –, o assunto é cinema, cinema, cinema. Talvez possamos dizer que nos filmes de Glauber ocorre o contrário, o assunto é desenho, desenho, desenho. Desenho: o cangaceiro que atravessa a imagem caminhando com dificuldade, santo guerreiro ferido um instante antes da queda, perseguido por Antônio das Mortes, passo firme, dragão da maldade disparando outra e outra vez. Desenho: a estrutura de Deus e o diabo na terra do sol, com panorâmicas verticais em sua primeira metade, movimentos de câmera da terra para o céu, e panorâmicas horizontais na segunda metade, do sertão para o mar. Desenho: o pôr do sol na Brasília de A idade da terra, o branco intenso por trás da persiana aberta de Terra em transe, os vários telefones na mesa de Diaz em Cabezas cortadas, o movimento circular em torno do beijo de Corisco e Rosa em Deus e o diabo. Dona Lúcia, mãe do cineasta, costumava dizer que os primeiros filmes de Glauber não foram os que ele efetivamente realizou. Desde muito antes, criança, desenhava histórias de cinema. Glauber começou a desenhar, de fato, na prisão, quando detido com sete outros artistas e intelec­tuais que participaram de um protesto contra o Fundo Monetário Internacional em frente ao hotel Glória. Começou aí, tomando por empréstimo carvão e papel de Mario Carneiro, também preso. No verso de um desenho com o título Os oito do Glória, uma carta para a mãe: “Voltei a desenhar”. Lápis, caneta, pastel, guache, aquarela, num qualquer pedaço de papel, nas duas faces do papel, o desenho como


um gesto para organizar o pensamento. Com frequência, uma vez formulada a ideia, o papel era amassado e jogado fora. Os desenhos, muitos deles, teriam desaparecido não fosse o cuidado de Dona Lúcia, que os recolheu um a um, desfez o amassado do papel cuidadosamente com um ferro de passar roupa e montou a coleção mais tarde incorporada ao Tempo Glauber. Uma coleção de desenhos feitos para serem vistos apenas pelo desenhista. Como Eisenstein, que dizia desenhar porque nunca aprendera a desenhar e porque guardava na memória um encantamento do tempo de criança: a linha que pulava e se movia para traçar o contorno de um objeto e, magicamente, torná-lo visível, sempre que o lápis estava nas mãos do engenheiro Afrosimov, amigo de seu pai. Como Eisenstein, Glauber poderia dizer: “Deixe-me começar por dizer que jamais aprendi a desenhar. É por isso que desenho e é assim que desenho.” Como Akira Kurosawa – que dizia desenhar para continuar a ver o filme que queria fazer, enquanto esperava reunir os recursos para realizá-lo, que em seus últimos trabalhos fez uma quase refilmagem de um filme previamente desenhado –, Glauber poderia dizer que desenhava para continuar a pensar em filmes. Ou, mais exatamente, para pensar cinematograficamente. Glauber desenhou estudos de planos, desenhou sequên­ cias de filmes, à maneira de um storyboard, pelo menos para América nuestra e para um outro projeto não filmado, O destino da humanidade. Mas seus desenhos, mesmo os que tomam figuras ou temas presentes em seus filmes, não são




uma preparação para eles nem uma consequência deles, mas um trabalho de vida própria. São filmes como os que ele realizou, são um quase cinema. Planos-sequência como os de Câncer, feitos só do movimento dos traços no papel, mas, de qualquer forma, planos-sequência. Cores vivas como as de O dragão da maldade contra o santo guerreiro ou as de Di Cavalcanti. Palavras e frases riscadas em torno da imagem, como as falas na televisão, como a conversa com o jornalista Castello Branco em A idade da terra. Lembremos de Eisenstein, que desenhava para, depois, numa análise do que havia desenhado, descobrir o que estava pensando e como estava pensando. Lembremos de Kurosawa, em especial os desenhos de seus sonhos. E de Fellini, que também anotava os sonhos em cadernos de desenhos. Lembremos de Antonioni, autor de uma série de colagens, as Montanhas mágicas. De Pasolini, dos autorretratos e dos retratos de amigos. De Pierre Étaix, Ettore Scola, Andrei Tarkovsky, de Mario Carneiro, que se dedicou em igual medida à fotografia, ao cinema e ao desenho. Lembremos de David Neves, que filmou em aquarelas uma outra dimensão do desenho delicado de seus filmes – gente de cinema, desenhistas que não aprenderam a desenhar, normalmente desenha para, num fotograma, fazer cinema. Ou talvez para pensar. Escrever cinematograficamente – ir além das interferências visuais presentes em seus primeiros textos, aqui e ali sublinhados por palavras ou frase em maiúsculas, marcados por alterações na grafia, feitas à mão sobre o texto datilografado: y, z, k em lugar de i, s ou qu. Por tudo isso, por sua obstinada procura


de se expressar em imagens, os desenhos de Glauber são um convite ao cinema – a, digamos, pensar em termos de cinema. Tal empenho, o de Glauber e o de toda a gente de cinema que desenha, talvez se revele melhor ao lado de um recente contracampo proposto por William Kentridge: os desenhos feitos para serem vistos exclusivamente em filmes, num “cinema da idade da pedra”. O contracampo: Kentridge desenha diante de uma câmera. Uns poucos traços, vai até a câmera e fotografa o desenho inacabado. Repete o procedimento após cada nova alteração. Continuamente desenha, transforma, apaga e refaz um desenho, fotografando em detalhe cada etapa. O desenho, que se completa de fato apenas no filme, como que se desenha a si próprio diante dos olhos do espectador. O desenho é, de fato, o processo de trabalho do desenhista. Mais do que um desenho, vemos o ato de desenhar, e podemos vê-lo de novo e de novo, graças ao cinema. Retornemos ao campo: nos desenhos de Glauber, temos o cinema diante dos olhos. E como o filme está ali, pegado no papel, podemos ver cinema de novo e de novo e de novo, graças ao desenho.

josé carlos avellar (1936) é crítico de cinema e tem seis livros publicados. Foi vice-diretor da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio, diretor da área cultural da Embrafilme, diretor-presidente da RioFilme entre 1994 e 2000 e crítico de cinema do Jornal do Brasil. Representa o Festival de Berlim no Brasil e está à frente da programação de cinema do Instituto Moreira Salles. O acervo de desenhos do Glauber Rocha está sob a guarda do ims.


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humor  Por dez anos, o “Pif-Paf”, extinto no Brasil depois do golpe militar, foi publicado em Portugal influenciando gerações de intelectuais

Millôr além-mar Kathleen Gomes Público

Ler Millôr Fernandes hoje, em Portugal, é assunto sério. Esqueça a internet e o seu contrabando cultural – ela é inútil nesse caso. A leitura de Millôr tem de ser presencial, como no tempo em que tudo era ao vivo. Ela implica fecharmo-nos numa sala com um bando de desconhecidos solitários num silêncio civilizado; mas antes disso é preciso deixar todo o mundo para trás e todos os pertences num cubículo, e depois disso é preciso esperar que um funcionário da Biblioteca Nacional de Portugal erga uma barricada na nossa mesa com pesados volumes de jornais antigos. É um trabalho duro engarrafar o riso diante de uma página de Millôr, mas lembre-se: todas as outras pessoas na sala de leitura estão se divertindo menos que você. Eis o que quase nenhum brasileiro sabe e muito poucos portugueses recordam: durante quase uma década, num arco que vai de setembro de 1964 a abril de 1974,

Millôr Fernandes foi o grande matchmaker da relação de humor Brasil-Portugal. Sempre às quartas-feiras, e sempre na página 17, Millôr publicou uma página semanal de textos e desenhos humorísticos no vespertino português de maior circulação naquele período, o Diário Popular (o slogan do jornal, impresso em letras vermelhas e capitais acima do nome, era: “O jornal de maior expansão no mundo português”), num total de quase 500 números. Chamava-se “O Pif-Paf”, como um conhecido jogo de cartas de origem brasileira, mas também podia ser a interjeição de um mágico profissional no momento em que faz o seu truque ou a onomatopeia de um tiro (em polaco, pif-paf é o mesmo que bang-bang), porque o “Pif-Paf” de Millôr Fernandes era tudo isso: um jogo com o leitor, um passe de mágica com a língua portuguesa, uma prova de pontaria nas suas críticas à civilização humana. Millôr escrevia e desenhava, não necessariamente nessa ordem,


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e fazia o leitor rir e pensar, não necessariamente nessa ordem. O “Pif-Paf” começou por ser uma seção na revista brasileira O Cruzeiro, produzida por Millôr sob o pseudônimo Emmanuel Vão Gôgo, juntamente com o ilustrador Péricles Maranhão, entre 1945 e 1963 (a partir de 1955, Millôr assumiu sozinho a produção). Portugueses de uma certa geração conheceram o “Pif-Paf” ainda nesse período: José Alberto Braga, que mais tarde viria a trabalhar n’O Pasquim – um semanário humorístico, de oposição à ditadura militar brasileira – a convite de Millôr, lembra-se de receber a revista Cruzeiro em Braga, no noroeste de Portugal, enviada pelo seu tio do Brasil. “Identifiquei-me logo com Millôr e o seu humor reflexivo – não é o humor só pelo humor”, diz ele, direto do seu apartamento em Botafogo, no Rio de Janeiro. Ferreira Fernandes, 40 anos de jornalismo, autor de uma crônica diária no Diário

de Notícias, vivia em Luanda, Angola, nesse período, onde a sua mãe comprava duas revistas brasileiras, Manchete e Cruzeiro. “Foram o meu curso superior de jornalismo, que tirei até os oito anos. Mas foi mesmo. Em reportagens, em colunistas e em humor também. O que o Millôr escrevia no Cruzeiro era um português novíssimo para a escrita jornalística. Era irônico, imaginativo, saltava do carcan [opressão, em francês] do nosso jornalismo.” Millôr é demitido pela direção do Cruzeiro num editorial de primeira página em outubro de 1963, após 25 anos na revista (“Sinto-me um navio abandonando os ratos”, comentou à altura). Em maio de 1964, lança o Pif-Paf, uma publicação satírica e pioneira na imprensa alternativa brasileira, que dura apenas três meses e oito números, apesar da sua popularidade, uma existência abreviada pela censura da ditadura militar, que manda fechar a revista.


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O primeiro número do “Pif-Paf” no Diário Popular é publicado apenas um mês depois, a 30 de setembro de 1964 – anunciado na primeira página do jornal: “Não deixe de ler hoje na 17ª página a famosa secção humorística PIF-PAF (Cada exemplar é um número e cada número é exemplar) De Millôr Fernandes (Um escritor sem estilo)”

As circunstâncias da ida de Millôr Fernandes para o Diário Popular carecem hoje de comprovação, porque a maior parte das pessoas que as poderiam esclarecer desapareceu ou simplesmente porque a memória é seletiva. Francisco Pinto Balsemão, o barão da imprensa portuguesa, fundador do semanário Expresso e da estação de televisão SIC, que era secretário de redação no Diário Popular – jornal que, aliás, pertencia à sua família –, já não se lembra de como o “Pif-Paf” começou a ser publicado ali (“Não foi através de mim. Podia estar agora aqui a tirar louros, mas não é verdade”). Mas não esquece o seu primeiro Carnaval no Rio, nos anos 1960, na companhia de Millôr: “Acabamos na quarta-feira de cinzas em casa da Florinda Bulcão, uma atriz que estava completamente na moda naquela altura, muito gira. Acabamos todos a tomar banho em casa dela. O Millôr era assim, bastante acelerado. Mas muito simpático.” Numa entrevista aos Cadernos de Literatura Brasileira em julho de 2003, Millôr Fernandes contou que o convite do Diário Popular o salvou – é verdade que entre 1964 e 1967 praticamente só escreveu teatro, entre peças originais, traduções e adaptações, no Brasil.

“Eu tenho a maior simpatia por Portugal. Até porque eles me salvaram a vida. Depois de 1964, quando saí do Cruzeiro, fiquei na miséria, devendo dinheiro, ainda que eticamente me sentisse aliviado. Um dia, chego aqui, e vocês não vão acreditar, tinha uma cartinha embaixo da porta. Abri, era de Portugal, do Diário Popular. Estavam me oferecendo fazer uma colaboração e ganhar o equivalente a mil dólares por mês. O Diário era o jornal mais lido do país, vendia 180 mil por dia. Pedi 5.000, acabei fechando por 3.000 dólares. Aí eu peguei a prancheta, fiquei até de madrugada, mandei três desenhos para lá. Uma semana depois, chegam aqui 2.000 dólares; na semana seguinte, mais 2.000 dólares e, na outra, mais 2.000. Mandaram 6.000 dólares. Salvaram a minha vida naquele momento.” Baptista-Bastos (ou BB), 81 anos, 60 de jornalismo, clama ter sido ele quem sugeriu o nome de Millôr depois de um dos administradores do Diário Popular constatar que faltava humor nas páginas do jornal. (O mesmo patrão teria tentado contratar o famoso repórter do Cruzeiro, David Nasser, segundo BB. “O Nasser chegou a cá vir, mas estava tão bêbado que não houve contrato possível”, conta.) BB conhecera Millôr em março de 1964, numa viagem ao Rio, na companhia do humorista e ator português Raúl Solnado, que também viria a se tornar amigo do brasileiro. “O Millôr ganhava por página 12 contos, 12 mil escudos. Era uma coisa fabulosa”, diz BB. “Por exemplo, os redatores qualificados – eu pertencia a esse grupo – ganhavam cinco contos por mês.” Uma ironia que carece de explicação: censurado pela ditadura brasileira, Millôr destila o seu humor satírico, subversivo, marialva e negro com regularidade semanal,


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durante dez anos, no jornal português de maior circulação, e em plena ditadura salazarista. O humorista brasileiro gostava de contar um episódio apócrifo, que parece um daqueles paradoxos genuinamente pif-pafianos. O ditador português, Salazar, terá uma vez comentado sua página no Diário Popular com um dos seus assessores, dizendo: “Este tem piada, pena que escreva tão mal o português”. Baptista-Bastos diz que Millôr mandava versões alternativas, para o caso de a censura portuguesa aplicar cortes. Ferreira Fernandes nota que nesse período Millôr já acumulara uma vasta experiência em jornais. “Ele entra para os jornais muito cedo, nos anos 1940. Nos anos 1960, já é um macaco velho e sabe o que está a fazer. Ele não fala da guerra colonial portuguesa. Falará de outros imperialismos, em particular o americano, e isso não incomodaria o Estado Novo, que era bastante antiamericano também.” De resto, Millôr é também anticomunista, como o regime salazarista. É possível que a ditadura portuguesa tenha achado que não era nada com ela, quando Millôr escrevia parábolas sobre soberanos que desconhecem ser o homem mais feio do mundo por falta de espelho. “Por que é que ele conseguia fazer o ‘Pif-Paf’ cá? Porque não fazia referências a Portugal e não falava na ditadura brasileira”, diz Jorge Almeida Fernandes, jornalista do Público. “Era tudo indireto, tudo subliminar, e era isso que dava gozo.” Não era esse lado corrosivo, aplicado à realidade portuguesa, que Ferreira Fernandes buscava no “Pif-Paf”. “O que me interessava não era a ideologia, mas a manipulação da língua que ele fazia. Entra aí uma inveja absoluta do tipo que vive de escrever e inventar português com a liberdade que

ele o fazia”, diz. “Não me lembro se eu gargalhava com ele. Lia uma frase e pensava: ‘Tomara eu’. Provavelmente era o que eu dizia excessivamente.” João Pereira Coutinho, 37 anos, colunista na Folha de S. Paulo que elege Millôr como uma influência (“Eu não escreveria se não fosse o Millôr Fernandes”), sintetiza assim: “Ele torna a língua portuguesa de tal forma maleável que ela parece que está a sambar”. Já agora, um recado dele para os que defendem que Millôr podia ter sido mais famoso se não estivesse limitado pela língua: “Quando os brasileiros lamentam ‘que pena termos sido colonizados por Portugal’ quando pensam em termos de grandeza, lembro-me sempre de uma frase que Seixas da Costa [antigo embaixador de Portugal no Brasil] dizia: ‘Vocês gostavam de ter sido colonizados por quem, holandeses? Imaginem a Garota de Ipanema cantada em holandês.’ É a mesma coisa para o Millôr Fernandes. Ele seria grande em qualquer língua, mas não consigo imaginá-lo em holandês.” Mais tarde, na década de 1980, Ferreira Fernandes viria a trabalhar no Diário Popular e frequentaria os arquivos do jornal para revisitar o “Pif-Paf”. “É um número absolutamente grande de frases que são demasiadamente boas. Tenho certeza que o plagiei muito. Não podia dizer de todas as vezes, ‘esta frase é de…’, senão ainda me chamavam a atenção. São plágios confessados. A única vez que me encontrei com esse herói – um dos meus heróis de escrita – foi no Hotel Tivoli [em Lisboa], e entrevistei-o. Ele ia pagar o almoço, quando eu disse: ‘Não, nem pensar. Se você soubesse as vezes que o tenho roubado… Tenho mesmo de lhe pagar o almoço.’” O último número do “Pif-Paf” no Diário Popular é publicado a 24 de abril de


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1974 – véspera da revolução que derrubou o regime ditatorial em Portugal. Quem sabe o que aconteceu? Resta a especulação. “Pode ter sido uma questão contabilística”, sugere Ferreira Fernandes. “Ele ganharia aquilo que merecia ganhar? Não. Mas provavelmente pensou-se que era muito e deixou-se cair.” E também porque, numa altura em que as redações dos jornais se tornam ultrapolitizadas e são dominadas pela esquerda, a geopolítica milloriana não seria propriamente prezada. “Ele é antiamericano, como é anticomunista, goza com a União Soviética e com a China”, resume Ferreira Fernandes. “Pronto, chego à conclusão: há crimes do 25 de abril. Temos aí um”, diz, rindo-se. Millôr Fernandes, que não raras vezes teve de explicar que não era de direita, deixou descendência numa nova geração da direita portuguesa, como João Pereira Coutinho. “Millôr Fernandes é um anarquista

cético. Ele tinha uma consciência de que a espécie humana não era grande coisa. Como tinha essa noção, ele olhava para o poder político e para o exercício de autoridade como um verdadeiro anarquista”, explica. “Não estou a dizer que o Millôr Fernandes era de direita ou de esquerda. Acho que ele não era uma coisa nem outra. Ele estava acima disso. Mas a direita normalmente tem uma visão menos otimista sobre a natureza humana. Há uma direita que tem grande desconfiança sobre o poder, que quer dar menos poder possível, porque sabe que o poder absoluto corrompe; não tem grande esperança nas capacidades do ser humano para fazer coisas extraordinárias – o que não significa que às vezes elas não aconteçam. É uma direita um pouco mais melancólica, de expectativas reduzidas…”, diz João Pereira Coutinho, no que é praticamente uma autodescrição. “Essa direita olha para o Millôr Fernandes como


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um camarada”, diz, usando deliberadamente um termo da esquerda, antítese que Millôr talvez prezasse. Em 2004, João Pereira Coutinho organizou a única antologia portuguesa dedicada à produção do “Pif-Paf” no Diário Popular. É uma espécie de best of em 190 páginas que integrou uma coleção de livros vendidos com o semanário Independente, entretanto extinto. O livro nunca esteve nas livrarias e hoje só é possível comprá-lo em segunda mão. Vasco Rosa, que foi quem concebeu a coleção para o Independente, fotocopiou dez anos de “Pif-Paf” na biblioteca e convidou Coutinho para organizar um livro sobre Millôr, acusa o mercado editorial português de “autismo”. Surpreende-o que nenhuma casa editorial em Portugal tenha publicado o “Pif-Paf” em livro, antes ou depois de 2004. Até porque “existe uma geração de editores contemporâneos desse período em que o Millôr publicou no Diário

Popular”, diz. De resto, só dois outros livros de Millôr foram publicados em Portugal e não estão mais disponíveis: a peça de teatro Computa, computador, computa (Editorial Futura, 1973) e Confúcio disse (Pergaminho, 1993). As edições brasileiras estão ausentes das livrarias. “Nós ignoramos muito o Brasil, que nos devolve com uma ignorância completa”, diz Ferreira Fernandes. “Esse é um drama nosso.” Pena que o Millôr não esteja mais aí para nos fazer rir disso.

kathleen gomes (1975) nasceu em Toronto. É jornalista do diário português Público desde 1997. Foi correspondente deste jornal em Washington entre 2011 e 2013.


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memória  Foi Rubem Braga quem levou a jovens intelectuais chilenos dos anos 1950 o fascínio por um escritor fora dos parâmetros ibero-americanos

A descoberta de Machado jorge edwards

Páginas do flipbook De como não fui ministro d’Estado, edição fac-similar de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis (São Paulo: Clube do livro, 1946), com intervenção de William Kentridge, lançado pelo Instituto Moreira Salles em 2012

Na Santiago do início dos anos 1950, a da minha vida literária juvenil, talvez mais divertida, mas no fundo menos interessante que a da minha adolescência; a dos primeiros passos do segundo governo do general Ibáñez, que, depois de ter sido ditador no final dos anos 1920, decepcionava seus seguidores por respeitar o sistema constitucional, por não ter fechado o Congresso com uma canetada ou uma vassoura­da, como o General da Vassoura que fora em seus bons tempos; na Santiago do Parque Florestal, ponto de encontro equidistante da Escola de Direito da calle Pio Nono, na outra margem do Mapocho, e da Escola de Belas-Artes, um espaço que conservava então toda sua beleza e até sua magia, lugar de devaneios, leituras, confidências, paqueras. Eu, apesar da diferença de idade, era muito amigo e passava longas horas mais ou menos ociosas na companhia de Enrique Bello Cruz, diretor da revista Pro Arte, que começara a entrar em decadência havia algum tempo e que nos meus tempos de aluno do colégio San Ignacio me permitira conhecer poetas como T.S. Eliot, Ezra Pound, Saint John Perse e César Vallejo. Outros se serviram da Pro Arte para conhecer outras coisas, sobretudo no terreno das artes plásticas. Quanto a mim, quando ainda era um adolescente devorador de textos heterogêneos, confuso aspirante a escritor, as páginas borradas e de fato mal impressas da Pro Arte me levaram à revelação


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da grande poesia contemporânea. Entre aquelas leituras e as de alguns clássicos castelhanos descobertos no colégio, me vi transformado em poeta juvenil, quase clandestino, e em tradutor apaixonado. Dois ou três anos depois, sob a sombra de escritores como James Joyce e William Faulkner, passei da poesia à prosa e comecei a escrever breves textos narrativos: vinhetas, fragmentos de um diário, reflexões esparsas, contos. Convivi, pois, até meados da década de 1950, pouco depois da publicação de meu livro de contos El patio, com Enrique Bello, uma das pessoas de espírito mais generoso e aberto que tive a sorte de conhecer. Em seu apartamento da calle Teatinos, costumava me encontrar com Maruja e Camilo Mori, pintor da chamada Escola de Montparnasse; com Sebastián Salazar Bondy, quando ele passava pelo Chile; com o professor de filosofia, brilhante escritor e genial conversador Luis Oyarzún Peña; com Acario Cotapos, que contava histórias fabulosas de seus anos em Paris e em Madri na véspera da guerra e que vivia puxando papéis dos bolsos para segurar os objetos e as maçanetas das portas, pois tinha pavor de micróbios; e com muitos outros personagens daquela época. Em uma daquelas noitadas, Enrique nos falou de um brasileiro extravagante, talentoso, meio antipático, meio comunicativo, grande bebedor de uísque, poeta bissexto e cronista genial, que aterrissara entre a gente com um cargo diplomático. Depois soubemos que se chamava Rubem Braga, que combatera como jornalista e escritor a ditadura de Getúlio Vargas, e que o primeiro governo da transição democrática de seu país o premiara com a nomeação para um posto diplomático no Chile, o de chefe do Escritório Comercial do Brasil em Santiago. Uma tarde, eu estava na abertura de uma exposição de pintura, não me lembro mais de quem, talvez de Rodolfo Opazo ou de Carmen Silva, e Enrique Bello passou por lá às pressas e me apresentou ao brasileiro. Minha primeira impressão foi a de um homem mirrado, silencioso, que fazia pouco esforço para comunicar-se com os outros, de uns 40 e tantos anos, idade que, para os meus 20 e poucos, me pareceu bastante avançada. Tampouco me lembro com exatidão de como passamos do silêncio inicial às conversas animadas, prolongadas, brilhantes que foram entabuladas mais tarde. Imagino que uns garrafões quadrados de uísque, de superfície enrugada, desses de que Rubem sempre dispunha em sua condição de diplomata estrangeiro, permitiram que as línguas se soltassem e facilitaram a comunicação dos espíritos, apesar da sua relativa dificuldade de lidar com a língua castelhana. Ao chegar a Santiago, ele havia vivido em uma casa na calle Roberto del Río, no bairro alto, mas morar longe do centro da cidade lhe apresentava um problema frequente: bebia nos bares daquela época, o do Hotel Carrera ou o do Waldorf, todos situados na zona central, ou nas recepções oficiais; esquecia-se com muita facilidade do lugar onde estacionara o automóvel e optava por dormir em algum dos hotéis do bairro baixo. Então resolveu se mudar para uma pequena suíte de um desses hotéis, à margem do Carrera, na calle Bombero Salas. O uísque dos garrafões quadrados passou a ser consumido preferencialmente


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naqueles dois quartos, ou no apartamento de Enrique Bello da calle Teatinos, ou em algum dos ateliês do casarão, hoje demolido, da esquina da Merced com a Mosqueto: o do escultor Raúl Valdivieso, o de Arturo Edwards, gerente de uma empresa de seguros e artista nas horas vagas, ou o de Pilar de Castro e Paulina Waugh (“Woof!” – repetia Rubem Braga –, “Wooof!”, em uma espécie de latido aflito que ricocheteava na noite de Santiago). A essa altura, a Pro Arte deixara de ser publicada havia pelo menos dois anos, mas Enrique Bello era um editor tenaz, obstinado, que não jogava a toalha nem na pior das adversidades. Não tinha ambições literárias próprias, ou, se as tinha, ocultava-as de maneira cuidadosa, mas havia nele uma evidente vocação e uma enorme ambição a promotor de arte e literatura. Visitara o Brasil na companhia de Luis Oyarzún, do historiador Leopoldo Castedo e do famoso arquiteto e colecionador de arte Sergio Larraín García-Moreno, entre outros, e Rubem os pusera em contato com arquitetos, artistas e escritores de lá. Agora estava envolvido em um novo projeto: uma edição especial da Pro Arte sobre o Brasil e seus criadores. Na minha condição de jovem estudante com tempo livre, leitor ávido e escritor florescente, parecia a pessoa mais indicada para traduzir os textos literários que seriam publicados pela revista. Rubem me entregou algumas antologias e livros de poesia de autores como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Murilo Mendes e João Cabral de Melo Neto, além de seu grande amigo e companheiro de geração Vinicius de Moraes. Mas pediu algo que para ele parecia fundamental: devíamos traduzir também para a edição especial da Pro Arte um conto de Machado de Assis. Aqui no Chile, em nosso pequeno círculo, tínhamos vagas notícias a respeito de poetas brasileiros, os quais Pablo Neruda, depois de uma passada pelo Rio de Janeiro, considerara extremamente eruditos, “verdadeiros sábios”, mas não havíamos ouvido uma única palavra sobre o romancista do século 19 Machado de Assis. Rubem nos contou sua história de maneira entrecortada, por meio de fragmentos que, aos poucos, foram se juntando, e a mim, desde o primeiro momento, pareceu-me extraordinária, sugestiva, muito estimulante para minha própria vocação literária. Machado de Assis, mulato, nascera e fora criado nas favelas mais pobres do Rio de Janeiro em meados do século 19. Desde a infância, estudara por conta própria, com a colaboração de pessoas hoje desconhecidas, e chegou a ser um alto funcionário e um grande personagem do Império de d. Pedro ii e dos primeiros anos da República. Escreveu desde menino, praticando todos os gêneros, da poesia e da crônica ao drama, à comédia, ao romance e ao conto, além de uma nutrida correspondência e de um ou outro ensaio literário importante, e chegou a ser o maior escritor de seu país, o fundador e primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, reconhecido por todos como o pai do romance moderno brasileiro. Não era possível publicar a edição especial da Pro Arte sem um texto do grande clássico brasileiro, e Rubem sugeriu que eu traduzisse com a sua ajuda um conto intitulado “Uns braços” [“Unos brazos”]. Li “Uns braços” lentamente, com extrema atenção,


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sublinhando a lápis as palavras em português que não entendia, consultando um dicionário e anotando a possível tradução castelhana nas margens, em um exemplar de Várias histórias da Jackson Editores, que pertencia ao curioso Escritório Comercial do Brasil, chefiado por Braga. Consultei-o depois sobre as expressões e locuções idiomáticas mais difíceis. Foi um trabalho cuidadoso, saboreado, sem pressa e sem recompensas materiais, como era habitual trabalhar naquela época, pelo menos na vida literária chilena. Agora penso que a gratuidade da literatura, o fato de que não se procurasse nada além de uma satisfação estética e humana, favorecia essa atitude. Mas havia, não vou negar, a necessidade de ter casa e comida em algum lugar. A edição especial da Pro Arte foi publicada, finalmente, em meados daquela década acidentada, mas a tradução do conto de Machado de Assis, que ficara – pelo menos era o que eu achava – impecável, com excelente ritmo e atmosfera, acabou não sendo incluída por falta de espaço: a eterna falta de espaço dos diretores de revistas, e talvez alguma desatenção em relação ao próprio conto. Ao fim e ao cabo, Enrique Bello era um grande entusiasta das artes plásticas e da poesia, mas não tinha o mesmo interesse pela prosa narrativa. Sacrificou “Uns braços” na famosa edição especial, e o conto foi publicado alguns anos depois em uma minúscula coletânea do Centro de Estudos Brasileiros, criada, se não me engano, pelo poeta Thiago de Mello, um dos adidos culturais mais ativos que passaram pelo cenário chileno. Não consegui achar a minha velha tradução e não tive forças para fazer uma nova, provavelmente pior, mas de qualquer maneira tentarei transmitir minha primeira impressão de “Uns braços”. Comecei a leitura e constatei que não era difícil ler em português, assim como aprender a língua, e tive a impressão de que o texto me introduzia desde as primeiras linhas a uma atmosfera original, próxima, reconhecível, mas ao mesmo tempo, pelo menos para um habitante de Santiago do Chile, profundamente exótica. Exótica pelo lugar e pela época. Não existem mais lugares e, sobretudo, ritmos de vida, ao menos no Brasil e no Chile atuais, como os da casa do procurador Borges, o único cenário do relato. Tampouco é fácil encontrar uma contenção e ao mesmo tempo, ao lado dela, uma intensidade semelhante dos sentimentos. No conto de Machado de Assis, fenômeno pouco frequente na literatura narrativa ibero-americana, tudo é insinuado: quase nada é dito de maneira explícita. A atmosfera densa, de expectativas eróticas, provém de uma mistura de paixão e pudor. Machado de Assis é um escritor discreto, pudico, às vezes exagerado em sua forma indireta de dizer as coisas, como se a censura interiorizada passasse a fazer parte de seu estilo, mas é também um narrador de surpreendente sensualidade, como pude constatar, depois daquela primeira leitura, em muitos de seus melhores textos. E pode-se dizer que, por trás da ação, há sempre uma voz narrativa que trata os personagens com delicadeza, com simpatia irônica, com afeto, e que por outro lado dá piscadelas ao leitor. “Assim são eles”, parece nos dizer a voz a respeito de


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seus personagens: tão simples, tão fortes, tão ingênuos em relação a si mesmos. O procurador Borges é duro, áspero, um tanto brusco, vociferante, mas não seria possível afirmar que é má pessoa. Sua jovem companheira, pois o texto se encarrega de nos informar sobre a “senhora que vivia com ele maritalmente, há anos”, detalhe que ganhará importância no desenlace, poderia temê-lo um pouco, mas no fundo sabe que está em condições de controlar a situação. E o adolescente, com seu olhar que se detém nos braços de dona Severina, com seus sonhos, com seu amor inconfesso e nem sequer entendido, é um grande personagem ou, no mínimo, um magnífico esboço de personagem. Para criar um personagem mais completo, mais complexo, seria necessário fazê-lo viver ao longo do tempo e das páginas de um romance; o autor de “Uns braços” se limita a traçar uma breve pincelada, um croqui muito rápido que deixa na página e que nos deixa pensativos. O beijo de dona Severina, o do final do relato, provocado pela visão do corpo adolescente estirado em uma rede, é um beijo roubado, furtivo: um dos beijos mais secretos de qualquer literatura. Sentimos a perturbação da mulher e a felicidade inconsciente do jovem. “E foi um sonho, um simples sonho!”, exclamará o personagem de quando em quando, em um futuro que vai muito além do espaço temporal da história, ao longo, supomos, de sua vida adulta, sem saber, como nos sopra ao ouvido o narrador esperto, que se enganava. O texto, com seu comentário à margem, nos insinua que a própria vida é um simples sonho: um sonho, neste caso, entre balcões, gaivotas, fragmentos de um espaço tropical e portuário. Porque o trio de personagens tem uma vida precisa, de contornos bem delinea­ dos, mas dentro daqueles contornos, daquele desenho a estilete, a paisagem carioca, com seu ritmo, com suas cores, com sua natureza forte, entra por todos os lados. São três vidas fechadas, que se desconhecem mutuamente, três solidões, mas as três flutuam em um ambiente de prazer. Terminei o conto com emoção, com um sentimento de frustração, imaginando o que seriam as vidas da mulher e do rapaz depois da separação inevitável, definitiva, nem sequer dramatizada ou assumida como ato de consciência. Em outras palavras, pensei na vida inevitável e na indiferença, não menos inevitável. Se cada momento de amor, de sedução, de entusiasmo se transformasse em um destino, seria impossível viver. A cada instante ficaríamos amarrados, paralisados. “Uns braços”, em consequência, é um conto sobre o amor parcial e sobre a indiferença também parcial, uma vez que ao longo dos anos o protagonista recordará apenas um sonho muito doce e desprovido de justificativa: “Um simples sonho!”. Como já disse, entrei nessa atmosfera calorosa, onírica, narrada por uma voz familiar, levemente zombeteira, e passei, a partir desse instante, a ser um leitor irregular, indisciplinado, mas constante, recorrente, fiel, de Machado de Assis. Minha leitura seguinte foi Dom Casmurro, em uma velha tradução espanhola. Apesar da tradução, fiquei fascinado pela história de Capitu com seus “olhos de ressaca”, por Bento, o narrador autobiográfico inventado, e por Escobar, o arrivista, o hipócrita, o adúltero.


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Um dia eu estava no jardim da casa de Nicanor Parra no bairro de La Reina, próximo da cordilheira, espaço que depois batizaríamos como Instituto de la Maleza, ou seja, antes que tivesse esse nome me encontrei no Instituto de la Maleza com o poeta beatnik Allen Ginsberg, que voltava de uma viagem pela Bolívia e havia trazido ao Chile um enorme carregamento de folhas de coca. Conversei com Ginsberg, cuja poesia começara a ler durante minha passagem pela Universidade Princeton, em Nova Jersey, nos anos 1958 e 1959, sobre Machado de Assis, e ele me disse que, para eles, isto é, para o grupo de escritores beatniks de São Francisco, Machado de Assis era tão emblemático e tão importante quanto Franz Kafka. “É nosso Kafka”, me disse textualmente. A comparação com Kafka era desconcertante, mas não deixava de ter um lado sugestivo. Talvez a estranheza de fato tranquila dos textos machadianos, junto a certa crueldade, a um caráter implacável e frio da visão, frieza essa acompanhada de um tremor profundo, de um ar inquietante, pudessem justificar a comparação. E Ginsberg, além do mais, depois de ter ingerido alguns chás de coca, provavelmente inventara a comparação no calor da hora. A verdade, no entanto, é que havia um paralelo possível. Machado de Assis, depois de abandonar o sentimentalismo adocicado, certamente lacrimoso, da versão ibero-americana do romantismo, havia adotado o olhar distante, irônico e ao mesmo tempo comprometido do romance moderno. Era um precursor da modernidade na literatura, como Laurence Sterne, como Cervantes no Quixote e em algumas das Novelas exemplares. Nem mais nem menos. E pertencia, portanto, no mais legítimo dos sentidos, à família literária de Franz Kafka. Pouco depois, quando voltou ao Brasil, Rubem Braga me convidou para passar alguns dias em sua casa do bairro carioca de Ipanema, em uma esquina da rua Prudente de Morais. Nessa esquina, a meia quadra da praia, ficaria o bar onde, mais tarde, Vinicius de Moraes se inspiraria para escrever a célebre canção “Garota de Ipanema”. Depois de alguns anos, ela se transformou, portanto, em uma esquina lendária. Nós, com Rubem Braga e seus amigos, no meio do calor tropical, bebíamos cerveja gelada, comíamos tira-gostos de peixe ou lulas fritas e observávamos as garotas de corpos ondulantes. Algumas eram tão bonitas que, segundo a expressão de Braga, “doíam”. Às vezes íamos ao Centro, a um restaurante que ficava em cima do mercado, e comíamos algum prato de bacalhau ou de camarão. Nesse lugar, eu sentia, respirava-se o ambiente portuário de “Uns braços”. E tive a oportunidade de visitar os becos do Rio de Janeiro antigo, os de tantas páginas de Machado de Assis, a rua do Ouvidor, por exemplo. Perguntei-me se ainda existiria a rua Mata-Cavalos, a de Dom Casmurro, e o Engenho Novo. Olhei de frente as igrejas coloniais, brancas, com suas curvaturas barrocas, que parecem figuras de proa de colinas. E onde ficaria o morro do Livramento, o da infância do romancista? Depois de escrever estas linhas prometo a mim mesmo voltar ao Rio e escrever um epílogo para o seguinte ensaio: “Rio revisitado… Machado de Assis revisitado… E a juventude, os uísques, as canções”.


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“Quem inventou o Brasil?”, cantava um cantor magro, moreno, levantando seus longos braços no fim das noites na boate Sacha, de Copacabana. Saíamos do ar condicionado para a baforada do calor, o mar salobro de ondas emaranhadas, as ilhas do amanhecer sob nuvens de um vermelho intenso. E ainda ouço e transcrevo em meu péssimo português: “Foi o seu Cabral…/ no mes d’avril…/ quinze dias depois do carnaval…”. Naquela época, Machado de Assis projetava uma imagem entre melancólica e severa. A literatura era um consolo contra limitações, carências, dores não confessadas. Mas depois descobri que nele também havia um lado bem-humorado, alegre, carioca da gema. Não sei se dançava, e acho que li em sua biografia escrita por Lúcia Miguel Pereira que dançava, sim, e muito bem, mas não há dúvida de que se divertia ouvindo polcas como aquelas compostas por um de seus personagens, Pestana, enquanto observava os casais que dançavam. E também se sabe que na juventude foi um admirador das divas italianas que se apresentavam na Ópera do Rio, e que, certa vez, se juntou aos carros alegóricos que as levavam com tração humana, juvenil, dos palcos a seus hotéis. A história de Machado de Assis é cheia de contradições, pelo menos aparentes, e tem um lado secreto, enigmático. A doença, a origem social, a própria realidade lhe impuseram a necessidade de reserva e de distância. Na juventude, tinha uma cabeleira romântica. Na maturidade, adquiriu um ar austero, um rosto enxuto, um olhar voltado para dentro. Acompanhar essa mudança e entendê-la a partir de dentro é um dos desafios interessantes da literatura da América espanhola e portuguesa, onde quase toda história está por ser escrita, e todo o pensamento crítico, por se desenvolver.

jorge edwards (1931) é um dos principais nomes da literatura chilena. Vencedor do Prêmio Cervantes de 1999, é autor de romances, contos e ensaios, sempre dividindo a vida literária com a carreira diplomática. No Brasil, teve lançados A mulher imaginária (Rocco, 1988) e Adeus poeta – Uma biografia de Pablo Neruda (Siciliano, 1993), ambos esgotados, e agora a novela A origem do mundo (Cosac Naify). Este relato faz parte da introdução de uma antologia de Machado de Assis publicada na Espanha pela editora Omega, em 2002. Tradução de luís carlos cabral Entre 2012 e 2013, o Instituto Moreira Salles recebeu a primeira grande exposição na América Latina do artista sul-africano william kentridge (1955). Além do flipbook De como não fui Ministro d’Estado, o ims lançou o catálogo da mostra William Kentridge: fortuna.



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causo  De como diplomatas brasileiros impuseram um auto de fé a Otto Lara Resende em nome da elegância do adido cultural do Brasil na “Bruxa”

Outro capítulo dos chapéus Elvia Bezerra

Acervo Otto Lara Resende/ Instituto Moreira Salles

Uma foto pode deixar incertezas quanto ao que representa. Mas há aquelas que provocam dúvidas cruciais, como esta do arquivo de Otto Lara Resende, no Instituto Moreira Salles. Ainda que o escritor mineiro, diligente guardador de papéis, tenha anotado data e local no verso – 30 de dezembro de 1957, Embaixada do Brasil em Bruxelas –, o sentido da foto continua obscuro. O mistério não diminui quando se sabe que ao lado de Otto, o primeiro à direita, estão Egberto Maffra, no meio, e Alexandre Georlette. Não é difícil constatar que os três protagonizam uma ação que atrai seus olhares. No plano mais baixo, vê-se algo que parece uma fumaça. Egberto Maffra segura o braço de Otto como se quisesse reter o amigo, forçá-lo a permanecer, enquanto Georlette, curvado, segura um papel e faz ar de quem está demonstrando alguma coisa. A disposição e a postura do trio evidenciam a intenção documental: o grupo posou para a câmera. Mas o que fazem eles em torno do que não se vê e para onde todos olham, parecendo se divertir? Antes de seguir, vale a pena abrir um parêntese e voltar ao artigo “Qual é a graça?”, de janeiro deste ano no Globo, em que Dorrit Harazim comenta a leitura equivocada de uma foto tirada pelo alemão Thomas Hoepker no dia 11 de setembro de 2011, quando ele surpreendeu cinco jovens sentados à beira do rio que separa o Brooklyn de Manhattan. Do ponto



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de vista do fotógrafo, o grupo aproveitava o belo dia de sol daquele final de verão, indiferente à nuvem de fumaça que denunciava a destruição das torres gêmeas do World Trade Center e das mais de duas mil vidas que se foram nos escombros. Cinco anos depois, quando foi dada voz a Walter Sipser, um dos cinco fotografados, ficou-se sabendo que os amigos estavam tomados de tamanha perplexidade com as cenas do outro lado do rio que se mantiveram paralisados, parecendo indiferentes. Esse é um exemplo de falácia narrativa, conceito criado por Nassim Nicholas Taleb para descrever “a tendência humana em construir narrativas que procuram dar significados lógicos a uma cadeia de fatos observados”, explica Dorrit Harazim. Os erros decorrentes dessas interpretações podem ser crassos. Em relação à foto do arquivo de Otto Lara Resende, não havia, até pouco tempo, elementos que induzissem a uma hipótese. Tratava-se, portanto, de mistério, e não exatamente de erro de interpretação. Ainda que, como se viu, ele tenha registrado local, data e nomes, a interrogação permanecia. A cronologia da vida de Otto, bem como muitas de suas cartas, comprova que entre abril de 1957 e agosto de 1959 ele ocupou o cargo de adido cultural na Embaixada do Brasil em Bruxelas, ou na Bruxa, como preferia se referir à capital da Bélgica. Tinha como colegas Egberto Maffra, secretário na Embaixada, e Alexandre Georlette, auxiliar na mesma Embaixada. Nem assim o enigma se resolvia. Até que uma carta de Otto a Fernando Sabino, de 28 de dezembro de 1957, matou a charada. Nela, o remetente conta o divertidíssimo episódio do dia em que os colegas de trabalho promoveram uma queima de seu chapéu, por julgá-lo caipira, e o presentearam com um elegante chapéu gelô, arredondado, de copa saliente, aquele mesmo modelo com que Freud cobria sua cabeça de pai da psicanálise. Em carta a Hélio Pellegrino, Otto conta outra vez o episódio, acrescentando que o presente, coisa muito fina, era fabricado pela tradicionalíssima casa inglesa Lock & Co. Hatters, fundada em 1676. A brincadeira da destruição do chapéu, sacramentada com um auto de fé infelizmente não conservado em seu arquivo, realizou-se na sala do embaixador, que naquele período era Hugo Gouthier. Não se discute aqui a qualidade artística da foto, de autoria de outro colega, o ministro Caio Cavalcanti. O que importa é que, sem a carta, seria impossível decifrá-la. Sim, porque mesmo que o chapéu aparecesse na foto, qual seria a graça? A quem pertenceria e por que seria o alvo? Quem trabalha em arquivo ou pesquisa pode avaliar o que um achado assim representa. Resta saber por que Otto relatou o episódio em carta de 28 de dezembro e datou a foto do dia 30 (data da revelação?). Por enquanto, vamos à epístola:


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E passaram a bombardear o meu lindo chapéu, comprado em Paris com o Mozart Valente. O chapéu, coitado, realmente tomou uns ares capiaus, virou chapéu de tio do Emílio Moura. Então o Gouthier preparou uma vaquinha e perdeu todo um dia para comprar um chapéu tipo gelô para mim. Preto, elegantíssimo, de abas viradas. Depois fizeram um auto de fé condenando o meu chapéu parisiense (dito nesse auto “Matozinhos”), depois me botaram numa sala, solenemente, com todo o pessoal da Embaixada servindo de inquisidores, sentados em alas em torno do réu. Leram-me o auto de fé, condenando meu chapéu à queima. Depois, com gasolina adrede preparada, queimaram-no, com risco de incendiar a Embaixada. Era no gabinete do embaixador. Depois me botaram o novo chapéu na cabeça, retirando-o duma caixa que ali estava. E de tudo foi feito farto documentário fotográfico pelo ministro Caio Cavalcanti. Depois lhe remeterei uma das fotografias do acontecimento. Tenho comigo o auto de fé, que passaram redigindo toda a tarde, em confabulações que me fizeram suspeitar da brincadeira. E eu tenho um novo chapéu (troquei-o por um cinza, mas ainda assim não tenho coragem de usá-lo, de tão besta, e prefiro o meu chapéu de mineirão fumador de cigarro de palha). Agradecendo a oferta, com muito fair play, eu disse que é comum os homens de cabeça se descuidarem do chapéu e que é sempre certo que os que não têm cabeça sempre capricham no chapéu.

Otto Lara Resende em Versalhes, com um de seus chapéus Acervo Otto Lara Resende/ Instituto Moreira Salles

Já no século 19 dizia Machado de Assis, no antológico conto “Capítulo dos chapéus”, que “o chapéu é a integração do homem, um prolongamento da cabeça, um complemento decretado ab eterno; ninguém o pode trocar sem mutilação”. Quando Mariana, a personagem feminina do conto, mulher do bacharel Conrado Seabra, pede ao marido que dê um fim ao chapéu baixo usado por ele diariamente, recebe uma explicação no mínimo inquietante: “A escolha do chapéu não é uma ação indiferente, como você pode supor; é regida por um princípio metafísico. […] A verdade é que obedece a um determinismo obscuro.” A ação do conto machadiano, incluído em Histórias sem data, de 1884, se desenvolve num dia de abril de 1879. Revoltada com a teórica e fria resposta do companheiro, Mariana, sentindo que “um certo demônio soprava nela as fúrias da vingança”, sai com sua amiga Sofia e se deixa levar a uma tarde




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de aventura pelo centro do Rio. Aventura eletrizante, mas em que não há uma ação decisiva: tudo se realiza no plano interno da personagem principal, na cadeia de sobressaltos, nos deslumbramentos quase aterradores que ela experimenta diante dos homens de chapéus altos, adequados às suas profissões. É criada toda uma atmosfera de riscos. Ao fim da tarde, inviolada, ela retorna à ordem e à segura monotonia de sua casa, onde, pouco depois de chegar, e para desapontamento seu, que passara a amar o “torpíssimo chapéu” do marido, recebe-o de chapéu novo. E lhe pede que o troque pelo velho. Não estranha que Otto quisesse conservar seu chapéu capiau. A vaidade não era seu forte, e costumava deixar à mulher, Helena Lara Resende, a escolha de suas roupas. Acessórios mereciam ainda menor importância. Aos amigos permitia o atrevimento de substituí-los por mais modernos. Como bom machadiano, devia compartilhar do sentimento de mutilação defendido por Conrado Seabra com relação à troca de chapéu. Assim como o advogado, não via razão para a mudança. Otto foi admirador dinâmico da obra machadiana. No ano do sesquicentenário do autor de Dom Casmurro, em 1989, redigiu um parecer sobre a possibilidade de adaptar contos do autor à linguagem televisiva. Muito mais que uma avaliação dos textos para o fim a que se propunha, Otto se dedica a uma análise do contista e, especificamente, de alguns contos. É um estudo lúcido, de grande conhecedor, que não esconde o zelo com a obra do escritor, para ele o maior de toda a literatura brasileira. “Capítulo dos chapéus” não consta das poucas indicações que ele fez para a televisão, atento à perda de densidade psicológica que uma adaptação poderia causar. Não foi essa a única vez que demonstrou sua admiração pelo autor de Dom Casmurro. Selecionou 162 frases do escritor, que seriam reunidas em livro por Maria Lucia Rangel em 162: Machado de Assis por Otto Lara Resende.

elvia bezerra (1947) é autora de A trinca do Curvelo (1995) e Meu diário de Lya (2002), ambos publicados pela Topbooks, e coordenadora de Literatura do Instituto Moreira Salles.





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