#20 ½ EDIÇÃO ESPECIAL PARA A FLIP 2015
Os dois endereços de um monumento por Cássio Loredano
J. Carlos era uma lenda, um mito, um nome. Como Fausto, a maravilha negra, Domingos, Leônidas, gente que de ouvir falar se repete serem gigantes. Era e é uma rua no Jardim Botânico, um busto na praça da Fonte da Saudade, uma escola pública em Irajá, tudo no Rio. Um servidor propõe então, em 1995, promover o inventário da sua obra a um programa de bolsas mantido pela prefeitura da cidade. Para saber, sem supor, é claro, o que encontraria debaixo da poeira que, fininha, fininha, foi caindo a partir de sua morte em 1950 até soterrar, a bem dizer, tudo. Começa então a bisbilhotar às tontas. Biblioteca Nacional, pouca coisa, em petição de miséria. ihgb, nada. Biblioteca Mário de Andrade, São Paulo, praticamente nada. Barris, na Bahia: tinha O Malho inteirinho e “levaram” completamente tudo.
Nem tinha recebido a primeira das 12 parcelas do estipêndio e já pensava em se apresentar na rua Rumania, no Cosme Velho, onde funcionava o Instituto RioArte, coordenador do programa, para anunciar a renúncia ao projeto – quando alguém que não se lembra anunciou: Petrópolis! Rua Cristóvão Colombo, 691, bairro Castelanea. Residência de Eduardo Augusto de Brito e Cunha, segundo filho homem de J. Carlos. Que tinha guardado, cuidado e enriquecido extremosamente o acervo do – e em torno do – pai. Milhares de originais, mas, sobretudo, praticamente todas as coleções de jornais e revistas em que o artista trabalhou – e essa era justamente a primeira leitura que se pretendia fazer, porque as páginas encadernadas contêm o trabalho, com fonte e data, e o contexto em que foi confeccionado. Da sorte desse acervo, reunido na inestimável comodidade de um único endereço, extraiu-se quase tudo o que se recuperou nos últimos 20 anos: os livros O Rio de J. Carlos, Carnaval, Lábaro estrelado, J. Carlos contra a guerra e O bonde e a linha – um perfil de J. Carlos. De 1950 até ali (1995), circulavam dele mais ou menos 500 desenhos em grande desordem, quer dizer, sem que se soubesse onde, quando nem por que tinham saído. Com tais livros e os desenhos do período dos anos 1920 (dois outros volumes financiados pela Petrobras através da Lei Rouanet, O desenhista invisível, de Julieta Sobral, e O vidente míope), voltaram à rua mais dois mil trabalhos. É apenas um começo, considerando que em menos de 18 mil dias de trabalho, desde 1902, este insano publicou mais de 50 mil desenhos. É um painel monumental que registra tudo o que houve com o plano do Distrito Federal na primeira metade do século 20; a República Velha, a Revolução de 30, o Estado Novo e a redemocratização; duas guerras mundiais, a da Espanha e o início da Guerra Fria; 48 carnavais; o advento
do samba e do futebol como devoções nacionais; a eletrificação da iluminação, o rádio, o cinema, o elevador e o arranha-céu, o automóvel, o asfalto, a pressa; a publicidade, o consumo, o Brasil rural se tornando urbano etc. e mais alguma coisa, num tempo em que a fotografia não se vulgarizara e quase toda imagem tinha que ser desenhada. Algo se perdeu, e é provável que irremediavelmente, mas em Petrópolis estavam mais de 30 mil trabalhos. E aí vinha recorrentemente de assalto o receio de que, depois de Eduardo Augusto gastar, como de fato gastou, suas sete vidas, o tesouro se dispersasse como aconteceu com a fabulosa biblioteca de Álvaro Cotrim, o Alvarus. Mas não. Graças à generosidade dos filhos de Eduardo e ao empenho pessoal de Flávio Pinheiro, que há cinco anos foi em peregrinação ao pequeno templo da Castelanea, continua tudo num único endereço, só que agora na rua Marquês de São Vicente, 476, Gávea, sede carioca do Instituto Moreira Salles. À espera dos autores de leituras que a obra oceânica de J. Carlos fatalmente continuará a suscitar.
Cássio Loredano (1948) é caricaturista de carreira internacional, tendo sido colaborador do El País, do Frankfurter Allgemeine e dos principais veículos brasileiros em mais de 40 anos de carreira. É autor de livros sobre Nássara, Trimano e dedica-se longamente ao mapeamento e à publicação da obra de J. Carlos. É consultor do acervo Millôr Fernandes, sob a guarda do Instituto Moreira Salles.
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Diz-me como andas O sapato da moda é um reflexo direto de quem domina a ordem social, do cavaleiro em sua montaria ao burguês que vaga pela cidade
Adolf Loos Tempora mutantur, nos et mutamur in illis! Os tempos mudam e nós mudamos com eles. O mesmo vale para os nossos pés. Ora são pequenos, ora grandes, ora estreitos, ora largos. E o sapateiro faz sapatos grandes, pequenos, estreitos, largos, ao sabor da hora.
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É claro que as coisas não são tão simples assim. Nossos pés não se alteram de uma temporada para a outra. Para tanto, são precisos alguns séculos, ou pelo menos uma geração. Pois não se transforma um pé grande num pé pequeno num piscar de olhos. Os artistas de outras vestimentas levam vida mais fácil. Cintura larga, cintura fina, ombros altos, ombros caídos – pode-se alterar essas e outras coisas por meio de um corte aqui, um enchimento ali. Mas o sapateiro tem que se ater estritamente à forma vigente dos pés. Se, por exemplo, quiser lançar sapatos pequenos, terá de esperar com paciência até que se extinga a estirpe dos pés graúdos. Mas nem todos, em certo momento, têm pés da mesma forma. Gente que os usa muito tem os pés maiores, gente que os usa menos tem os pés menores. Diante disso, o que pode fazer o sapateiro? Que forma de pé ditará a norma? Pois o sapateiro também quer produzir artigos modernos, ele também quer avançar na vida, igualmente tomado pelo desejo de fazer chegar suas criações a uma clientela tão vasta quanto possível. Ele faz o que todas as outras artes aplicadas fazem. Ele se pauta pela forma do pé daqueles que, num determinado momento, dominam a vida social. Na Idade Média, dominavam os cavaleiros, gente que, de tanto montar cavalos, tinha pés menores que os do povo. Assim sendo, o pé pequeno passava por moderno, e espichava-se o bico do sapato a fim de enfatizar o desejado efeito de afilamento. Porém, à medida que os cavaleiros entravam em decadência, à medida que o burguês pedestre e citadino conquistava eminência, a moda passou a ser ditada pelos pés largos do patrício que caminha lentamente. Nos séculos 17 e 18, a vida cortesã rouba prestígio ao pedestre, e, com a difusão da liteira, voltam a dominar os pés pequenos, metidos em sapatos pequenos de salto alto – que são próprios para o parque e o castelo, mas não para a rua. O renascimento da cultura germânica devolveu prestígio à montaria. No século 18, quem fosse de gostos e ideias modernos usava botas de montaria à moda inglesa, mesmo que não possuísse um cavalo. A bota de montaria era o símbolo do homem livre, liberto do sapato afivelado, do piso encerado, da opressão cortesã. O pé seguia pequeno, mas sumira o salto alto, inútil para o ginete. É por isso que no século 19, o nosso, continua-se a fazer de tudo para se ter pés pequenos. Mas no curso deste século o pé humano deu início a mais uma de suas metamorfoses. Nossas relações sociais exigem que a cada ano andemos mais e mais rápido. Poupar tempo significa poupar dinheiro. Mesmo os círculos mais seletos – isto é, as pessoas que têm tempo de sobra – deixaram-se levar e aceleraram seu andamento, de modo que o pedestre alerta de hoje caminha facilmente no mesmo ritmo de um valete do século passado. Seria impossível hoje caminhar tão lentamente quanto os homens de outros tempos. Somos nervosos demais para isso. Ainda no século 18, os soldados
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marchavam num ritmo que nos faria julgá-los parados ora sobre um pé, ora sobre o outro – e que nos pareceria muito cansativo. Essa velocidade crescente é bem ilustrada pelo fato do exército de Frederico, o Grande, mover-se a 70 passos por minuto, quando um exército moderno faz 120. (No caso das paradas militares, nossas regras estipulam de 115 a 117 passos por minuto, mas só com muito esforço consegue-se manter esse ritmo, uma vez que os próprios soldados forçam a velocidade para cima. Uma nova edição do regulamento há de dar conta dessa tendência dos tempos que correm – certamente com ganhos para a lepidez da tropa.) Não é difícil calcular quantos passos por minuto darão, daqui a um século, os soldados e os homens sôfregos de sucesso. Os povos de culturas mais avançadas caminham mais rápido que os povos de culturas mais atrasadas, os americanos caminham mais rápido que os italianos. Em Nova York, sempre se tem a sensação de que acaba de acontecer um acidente. Um vienense do século 19 que andasse hoje pela Kärntner strasse teria a impressão de que algo de funesto aconteceu há pouco. De modo que nós caminhamos mais rápido. Ou, para dizê-lo com outras palavras, fazemos mais pressão com o dedo maior contra o solo. E, com efeito, o dedo maior vai se tornando sempre mais forte e resistente. Vagar à toa produz um alargamento, ao passo que a caminhada vigorosa conduz ao fortalecimento dos dedos maiores e ao estreitamento dos pés. E, na medida em que os demais dedos, especialmente os mínimos, não acompanham a mesma tendência e se atrofiam, tornando o estreitamento dos pés ainda mais pronunciado. O pedestre tomou a frente do cavaleiro. O pedestre representa um desenvolvimento do princípio cultural germânico. Avançar na vida com as próprias forças será o mote do próximo século. O cavalo foi uma transição da liteira ao pedestre, e nosso século conta a história da dita e da desdita do cavaleiro. Este foi um século equestre. O cheiro de estábulo foi nosso perfume mais requintado, e a cavalgada, nosso folguedo nacional. O cavaleiro foi sempre o queridinho da canção popular: “A morte do cavaleiro”, “A amada do cavaleiro”, “A despedida do cavaleiro”. O pedestre não era nada. Todo mundo andava vestido feito um cavaleiro e, quando queríamos nos aprumar a sério, trajávamos um casaco de montaria, o fraque. Todo estudante tinha seu rocim, e as ruas iam cheias de ginetes. Como tudo mudou! O cavaleiro é um homem das planícies, um nobre rural inglês que adestrava seus cavalos e, de tempos em tempos, comparecia a um meet para saltar por cima das cercas no encalço da raposa. E eis que agora seu lugar é tomado pelo homem que habita as montanhas, cuja felicidade consiste em escalar as alturas e arriscar a vida para se elevar, pelas próprias forças, acima das moradas humanas – pelo montanhês, pelo escocês.
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O cavaleiro usa botas e calças compridas que se estreitam logo abaixo do joelho (riding breeches). O pedestre, o montanhês não tem como usá-las. Seja na Escócia, seja nos Alpes, ele usa sapatos de amarrar e meias compridas que não chegam aos joelhos, deixando-os livres. O escocês traja o famoso saiote, o habitante dos Alpes tem sua Lederhose – o princípio é o mesmo. A diferença vale também para os tecidos: o homem das planícies usa tecidos alisados, o homem das montanhas usa tramas mais cruas (home spuns ou loden). A escalada tornou-se uma necessidade geral. Os mesmos homens que, 100 anos atrás, nutriam horror sagrado às montanhas, agora fogem às planícies rumo às alturas. Subir montanhas, elevar o próprio corpo passa hoje por ser a mais nobre das paixões. Essa nobre paixão – e recordemos que, já no século passado, a cavalgada era tida por noble passion –, essa nobre paixão deverá, porém, ficar fora do alcance de todos aqueles que não habitam as alturas? Logo se buscou um meio de torná-la acessível, um dispositivo que permitisse praticar aquela espécie de movimento na planície: inventou-se a bicicleta. O ciclista é o alpinista da planície, e veste-se como ele. Não tem uso para botas altas e calças longas. Suas calças são soltas na altura dos joelhos, dobrando-se logo abaixo deles para dar lugar às meias, puxadas e também dobradas (nos Alpes, como na Escócia, as meias são dobradas para que não deslizem para baixo). Dessa maneira, os joelhos ganham espaço de manobra sob as calças, e o ciclista pode pedalar sem entraves. Note-se, de passagem, que há em Viena quem ainda não tenha entendido a razão de ser da dobra das calças e puxe-a por cima das meias, causando impressão tão ridícula quanto o citadino que infesta os Alpes no verão. O ciclista, à maneira do montanhista, usa sapatos de amarrar. Os sapatos de amarrar dominarão o próximo século, assim como as botas de montaria dominaram este. Os ingleses realizaram a transição sem escalas e ainda hoje usam os dois tipos. Quanto a nós, criamos um híbrido mons truoso para esta época de transição, a botina com lateral em borracha. A aparência desagradável da botina tornou-se flagrante tão logo surgiram as calças curtas, e logo ficou claro que não havia como usar botinas sem a benfazeja cobertura das calças compridas. Nossos oficiais ocultavam-nas com polainas e ficaram justamente infelizes quando as regras relativas ao uniforme tornaram-se mais rígidas e proibiram o uso de polainas pela infantaria. As botinas são um desastre, como o fraque é um desastre à luz do dia: ele revela toda a sua aparência cômica quando o vemos passeando pela rua. Mesmo sob a canícula, ele impõe que se use um sobretudo ou que se tome um coche. Produzir um efeito cômico: é a sentença de morte para toda e qualquer peça de vestuário. Por obra dos esportes pedestres, os pés das nossas classes privilegiadas já não são tão pequenos quanto outrora. Eles se tornam cada vez maiores. Os pés graúdos dos ingleses e das inglesas já não suscitam a zombaria. Nós
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1. Famoso violinista cigano húngaro, Rigó Jancsi (1858-1927) tornou-se célebre quando se envolveu e se casou com Clara Ward (1873-1916), a princesa de Caraman-Chimay, esposa do príncipe belga Joseph Caraman-Chimay e única filha do milionário americano Eber Brock Ward. [n. do t.] 2. Pseudônimo de K. G. S. Heun (1771-1854), autor de romances sentimentais. [n. do t.]
também escalamos montanhas, possuímos bicicletas e temos – horribile dictu – pés ingleses. A beleza do pé pequeno começa a empalidecer, sobretudo entre os homens. Há pouco me chegou da América uma menção a Rigó.1 Alguém que diz ter “conhecido o cigano” e, no curso da descrição subsequente, afirma que “um par de pezinhos asquerosos aparecia por baixo das calças”. Pezinhos asquerosos! Pobre Clauren,2 se estivesses vivo para ouvi-lo! Tu, que não cansavas de dotar teus heróis de pezinhos diminutos, com os quais penetravam nos sonhos de centenas de milhares de donzelas alemãs. Tempora mutantur… Vale ainda citar os sapatos de abotoar, aceitáveis unicamente sob a forma de couro de patente. São sapatos para o lazer. Na Inglaterra, como em nossos regimentos aristocráticos, o uniforme de gala só admite botas de couro de patente, com presilhas por baixo das calças. Para a dança, os únicos sapatos admissíveis são de couro de patente (pumps).
Adolf Loos (1870-1933) é um dos nomes decisivos da arquitetura moderna, tanto pelos projetos que assinou quanto pelo clássico “Ornamento e crime”, ensaio que é uma defesa veemente do objetivismo em contraposição ao rebuscamento da secessão, estilo dominante na Viena fin de siècle em que viveu e trabalhou. Este texto, publicado originalmente no número de 7 de agosto de 1898 da Neue Freie Presse, Viena, é parte de uma série em que analisa moda e estilo. Tradução de Samuel Titan Jr.
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Decantando as águas Maureen Bisilliat
Em 1985, a fotógrafa refez a viagem de Mário de Andrade em O turista aprendiz, que resultou em filme e neste diário de bordo
O tempo é um elemento fundamental no fazer das coisas. Ele dita, se não o sim ou o não, certamente o quando as coisas vão acontecer. Na calada da noite, tece as suas sedas, aranha nos envolvendo na tessitura de suas teias, reacendendo a memória na mente do mentor. Com ele não se brinca – conversa não há! Reacendeu-se assim repentinamente a chama de um diário fluvial, uma viagem pelas águas amazônicas, empreendida por Mário de Andrade em 1927, por ele “anotada sem nenhuma intenção de obra de arte, reservada para elaborações futuras, nem com a menor intenção de dar a conhecer aos outros a terra viajada”, O turista aprendiz – viagens pelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia, por Marajó até dizer chega – 1927.
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Formulei, de imediato, uma releitura do percurso do poeta e a levei à cúpula da Bienal de São Paulo, Roberto Muylaert e Sheila Leirner, que escutaram atentamente e acataram o panorama proposto: Turista aprendiz revista 1927-1985, uma Sala Especial da xviii Bienal de São Paulo, onde construímos – Antônio Marcos Silva e eu – um palco povoado pela inventividade popular que tanto interessou Mário de Andrade: bumbas, maracatus, afoxés; anáguas alvas das filhas de Iemanjá; indumentária do índio, do vaqueiro e as magníficas máscaras da Bolívia, colecionadas por Peter McFarren. Pois não previa Mário uma viagem que iria – e foi mesmo! – “pelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia... e por Marajó até dizer chega”? Tudo isso tomando forma... pensei: e por que não navegaríamos, nós também, por trilhas enveredadas por Mário em 1927? Assim, com a ajuda generosa de Dorian Taterka, Lúcio Kodato-san, cinematógrafo artesão à maneira dos antigos, e eu empreendemos uma viagem bastante complexa – pois os rios Amazonas e Solimões, tendo a largura do mar, exigiriam a contratação de um barco que, aproximando-se das beiradas, nos introduzisse às populações ribeirinhas, acenando de longe, compondo um registro andante, uma vista fluvial de um mundo de águas. Assim foi que, a bordo do Lima Gonçalves iv e aos cuidados de uma pequena tripulação comandada por Mestre Jacumim – saci seguro, expertise na pilotagem –, fomos levados pelos igarapés, igapós e imensidões aquáticas do Amazonas/Solimões. Cinco semanas de introspecção e inspeção temporal registradas em filme que iria servir de ambientação na nossa Sala Bienal. No decorrer dessa viagem esbocei um relato, um diário de bordo meio louco, meio solto, meio sei lá o quê. Uma comunicação à distância com
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meu neto Nicholas, então com 5 anos, hoje com 34 a cumprir. E, como diário, segui a cronologia dos dias com seus sóis, chuvas, águas róseas, sulfurosas ou de chumbo, acariciando, tal qual barranco ou ilha, nos detendo aqui e acolá na travessia por entre silêncios esparsos e espaços ocos, e as escassas populações como plêiades nos olhando... Estimulada pelo entusiasmo do editor Felipe Lafé, ao ver nosso filme e se surpreender com aquele mundo para ele desconhecido, lembrei-me do diário, garatujado durante a viagem num caderninho de escola – páginas já empalidecidas pelo tempo. Redescobertas, decifradas e repassadas este ano para o computador, levei-as para Maria Luiza X. Souto, para que ela, na sua perspicácia, opinasse a respeito daquilo que eu ora acreditava ser algo interessante pela licença poética do relato de um mundo pouco familiar, ora temia não passar de um emaranhado de total insensatez. Estimulada também por ela, demos início ao difícil trabalho de “decantação das palavras”, ou das águas, título escolhido para esta publicação. As imagens selecionadas, tiradas do filme, foram tratadas por Kelly Polato, que lhes devolveu as cores da memória. Assim, acopladas ao texto, desconstruindo um tempo fílmico, recriou-se um tempo estático a ser posto em movimento pela imaginação do leitor, tudo “na unha”, como se diz, à moda antiga, tudo à mão. Noite... Acho pouco promissora a viagem, pois o trabalho me parece já altamente comprometido. Incongruências, contradições fundas, pouco ou nenhum aprofundamento entre a gente, falta maleabilidade, compreensão, compaixão. Tudo, aliás. Por minutos lamento e choro para que este trabalho se realize com a soltura e a verve que ele merece. Continuo? Só um pouco, certamente não aguentarei até o fim.
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belém, 31.5 As coisas se incorporam ou se desincorporam na nossa vida – somos ilustres mediadores do destino. Esta viagem, cheia de esperança, tem cheiro de rio e, sobretudo, de soberba displicência da água. Sob o signo de Jurema* – linha da Iara aqui no Pará –, iniciamos o nosso acerto entrando no reino extremo do desconhecido...
Passeamos o dia inteiro e já me acamaradei com tudo. Estou lustroso de felicidade. Belém é a cidade principal da Polinésia. Mandaram vir u’a imigração de malaios e no vão das mangueiras nasceu Belém do Pará. Engraçado é que a gente a todo momento imagina que vive no Brasil mas é fantástica a sensação de estar no Cairo que se tem. Não posso atinar por quê... Mangueiras, o Cairo não possui mangueiras evaporando das ruas... [...] Tenho gozado por demais. Belém foi feita pra mim e caibo nela que nem mão dentro de luva. mário de andrade [1927]
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4.6 Splithairs nessa tensão-tédio a engenhar significações de palavras numa insignificância de sentido: irrequieta, inquieta, a primeira, física-glandular, espírito mental; a segunda, provocada por obra interna, prognósticos incertos de uma vaga e vagarosa ânsia, uma multiplicação de temores de cada dia, de cada manhã; chegando ao oitavo dia, chegando descarrego o total das energias gastas, me deixando conquistar pelo espírito das matas – Jurema oeiá! Da viagem passada nada fica, senão o ar embriagante por cima do barco e repleto de verdes, fumaça e urucum – fora isso, o Purus triste e desesperador. Antes de entrar no estreito de Breves: fomos filmar pescadores de camarões (Delft/Japão*), compramos, mas quiseram nos dar, os bichinhos se remexendo doces, dulcíssimos camarões de água doce. Ontem pernoitamos, ou quase, em Abaetetuba – lugares que se sintetizam em grupos de gentes, num sol, numa lua, num carro, num arraial. Li, reli, ou melhor, li com acuidade Mário; ainda estão por chegar os lugares por onde ele andou nas praças anoitecidas: o Brasil Brasileiro – muitíssimo.
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9.6 Fizemos uma aldeia serraria em escala brinquedo Meccano*, tentamos calcular distância versus Mário ’27, estamos sempre uma semana a mais! E nós querendo filmar e comprar açaí e ameaçando sem ameaçar, ameaçante, só mulheres das casas fugindo e sumindo no mato! Quando a gente está embriagada de cana e curtição, até a cadeira do barco vira estandarte de Apolo! A viagem interna começou por onde?, em que curva de rio não sei – sei que captei Mário, eu e nós. O espírito dele veio ao meu encontro de repente – de solapa! –, reencontrou-me no rio que pertence às suas reminiscências. Ó molho apimentado do Noca, que suave delícia com feijão! Açaí no rio tem gosto de barro aguedá-sem-queima, quartinhos sem assar! Espelho d’água do rio, roupas quarando, açaí de Belém roxo como o sangue de Cristo do Sábado de Aleluia. Levou duas semanas e meia para sintonizar o que é duas semanas e meia, uma vida. Muito? Pouco? Como calcular? Comecei a adorar... Adorar Amazonas com suas águas a não mais poder e a luz todo-poderosa. Saímos do estreito para entrar no Baixo Amazonas – Grécia. Antonioni à luz do fervor dos deuses e logo o fogo fim de tarde, as casinhas de madeira com um fundo de quintal de mata alta, personagens olhando sempre, sempre para o palco vazio e vasto de Deus. Como será acordar no inverno cinza das chuvas e despedir-se numa primaveril tarde de sol? Será que poderiam alguma vez viver transferidos para outro lugar qualquer deste planeta?
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10.6 Costa do Gurupá. Torna-se total e completamente impossível captar fotograficamente esta redonda imensidão – espaço cênico e sagrado – que o olho e a mente humana, girando em torno de si lentamente, esmiúçam e compreendem, como os povos seus deuses e seus céus. Saímos na noite desta redoma, os mururés po voados de sapos e serpentes sussurrando quando passam boiando. Que lindo esse sussurro, seus segredos a quem queira ouvir. Isaak é Bobby, é Macunaíma. Um moço de cócoras contando um conto de amor em inglês! A Ursa Maior se distancia da Via Láctea, civilização tropical à vista
11.6 Gurupá, nossas sombras e Mário. Conheço? Estou me preparando há tempo? Não sei calcular a preparação, a vida é que é isso, aquilo tudo isso que nos faz parar para pensar e voar. Rios vistos no mapa, veias da mão – um braço de tamanho tufo daria um filme em si – elemento tempo lhes pertence como as ramagens. Seus coqueiros, suas duas casinholas visíveis, suas duas canoas que passam pelo verde rio. Marajó em miniatura – que foi que M. falou? Dança de duas borboletas sobre o fundo verde-negro de tapeçaria medieval, o mato em canto silencioso banhado de mar, numa dominação espantosa, territorial, numa inextricável delimitação de área de carapanãs, descendo e nos comendo vivos! Após Autan, gritos espantados de todos nós. Digo ao Enrico (comandante): “Parece que diminuíram”. “É porque eles dão o arranque e depois... dão uma maneirada!” A água da noite indefinível como a luz morna da sala de jantar – nosso refeitório – parece leite cor de bezerro recém-parido. A Ursa, o Cruzeiro do Sul, e o leite pespontudo e brilhante de milhões de anos-luz acima de nós, boiando celestial. Borges? Por que penso nele como antídoto, quando ele também compreendeu Martín Fierro* e Macunaíma?
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12.6 Pequenos choques: sempre e sempre 100 vezes bater a cabeça contra as portas, a mesa suspensa, o teto, o pequeno pulo, o corpo que avança com seu já adquirido balanço – sempre e sempre e sempre a nos distrair dos planos majestáticos até agora sempre acontecendo ou já acontecidos nas grandes baías rio-mar onde céu e terra brincam e se completam – Mahler? Justamente este momento escolhido acima de tudo pela sua peculiar e única percepção. Hoje, começo com súlfur espalhado pelas águas e verde-veronese na costa, afastando-se das ondas para um rápido e segundo horizonte. [...] E como diário sigo a cronologia dos dias com seus sóis, suas chuvas, suas águas róseas, sulfurosas ou de chumbo, acariciando, tal qual barranco ou ilha, detendo-nos aqui e acolá na travessia por entre silêncios esparsos e espaços ocos, e as escassas populações como plêiades nos olhando... como olham espectadores a vida toda olhando para o telão de magnificência e tristeza que é a natureza sem sombra de rastro humano. Tal como Mário registra em seu delicioso diário durante longa viagem pela Amazônia em 1927, publicado quase 20 anos depois, em 1943, sob o título O turista aprendiz, apurando o seu olhar, reescrevendo trechos, ampliando/resumindo, retrabalhando esse momento de vida, passando-o no pente-fino de uma edição mais feroz, tirando – quem sabe? – um pouco da paixão-aresta e selvagem da “criação”. [...]
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13.6 Começamos o dia no café da manhã com o céu um tanto coalhado de garças, a baía de bronze, o esquadrão de Deus dando meia-volta em formação – preto, branco, cinza já no voo. Fomos buscar peixe do filho do homem – a entrada irritadiça, tempo sombrio, búfalos perdidos n’água, Hades congênito. Na saída, o céu puxa o verde: igreja, Volpi, crianças que correm em fila contra a maré, vívida alegria de vida. Entrando num sítio beira-água pudemos acertar, numa tomada só, a estrutura socioeconômica da região. Condimentos em canoa, canarana pro gado pastando em fila, sobre pilotis, porco e peru. A despedida da mulher-mãe, cachorro nadando (no Amazonas não cortam rabo de cachorro, pra ele poder se equilibrar em cima da estiva). Vi o gado invernando na maromba, espécie de jirau em ponto grande, pra permitir a existência de animais pesados durante a cheia do rio. Sensação triste de insuficiência, de erro vital. mário de andrade [1927]
Não, não é isso, resistem, respiram... nós é que talvez estejamos caminhando pro erro... [...] Vida de bordo. É uma delícia, estirar o corpo nestas cadeiras confortáveis da proa e se deixar viver só quase pelo sentido da vista, sem pensamentear, olhando o mato próximo que muitas vezes bate no navio. [...] Eu gosto desta solidão abundante do rio. Nada me agrada mais do que, sozinho, olhar o rio no pleno dia deserto. É extraordinário como tudo se enche de entes, de deuses, de seres indescritíveis por detrás, sobretudo se tenho no longe em frente uma volta do rio. [...] O rio vira de caminho no fim do estirão, a massa indiferente dos verdes barra o horizonte, e tudo se enche de mistérios vivos que se escondem lá detrás. mário de andrade [1927]
Ele escreve? Ou sou eu? Ou nós dois? Essas populações são um carinho de bem-querer, perambulando as falas, os gestos, os acenos de mão. Existem coisas, momentos, espaços que escapam a qualquer captação imediata, mas, me pergunto, inquieta, o que fazer com a nossa pretensa interpretação do mundo (tão compenetrada e elaborada parecia!) tendo diante de nós a serra, a nuvem como uma pluma cinza, densa como a noite vindo? A chuva quando se viaja no Amazonas, ou quando não se viaja, é uma realidade que vem e que vai...
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santarém 15.6 ... Seu castelo e ventos de discórdia. Matadouro, búfalo, bicicleta na entrada. Curioso como os berros humanos são uma constante nesses lugares onde o boi morre quase sem gemer. Analogia de rios de sangue e excremento de urubus – o rio, o gado pacífico e suspenso nos jardins. Fábrica de processamento de borracha, extraordinário âmbito preto, Rembrandt é quem é citado sempre nessas ocasiões, com sistemática razão. Amazônia, aliás, é sempre intransponível, e só com muita paciência sei contorná-la. E o que mais extenua são os momentos em que só uma entrega ao instantâneo permite a captação de algo já fugaz, quase imperceptível e de tamanha atração... corpos-instantes recortados contra o céu, pernas que correm, suspiros, a languidez de ocupantes de barcos por esses rios que tão logo se imprimem, da retina ao cérebro, já passam para outro repentino barco, sem nunca mais reaparecer, imbuídos da estranha lembrança de quem viu... imagens fugazes, céus de verão de urgente beleza. Raros momentos em sintonia. Luta corpórea e resistência a vencer. Gosto da foto pela sua independência – gosto do cinema porque ele é tempo, espaço e precisão. [...] Nesta viagem, as nuvens se dispersam e vejo homens e mulheres deste país compreendendo os contornos de sua terra. Os contornos da nossa vida interna são feitos de alguns apanhados visuais pegos na viagem terrestre. Uma mulher gorda colhe água no rio, rio que parece um grande mar, o sol bate forte, são 15 para as duas de um sábado, talvez dia de feira grande em Santarém, que deixamos longe para trás. Me lembro do sul, do Rio Grande, o encanto tão diferente de lá! Será que vem chuva, mais um fim de dia diluviano? Resumo da história: o momento culminante do tempo, das vacas, da água, do sol branco, do homem da vela cinza movida pelo vento à beira do rio-mar e que olho passar, calada, pois de nada servem palavras com o barulho do barco e a extensão espantosa da natureza. [...]
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17.6 Como iluminar a vida, as noites, os sertões, rios e matas? Kodato-san anuncia querer iluminar tudo, vícios das águias do Boorman*. Em momentos assim, eu nem me lavo, fico transtornada por dentro numa espécie de torpor. A gente precisa merecer estar limpinha e perfumada em flor! Me dói n’alma o corte de uma sequência análoga e analógica, seja pelo tempo, seja pela qualidade de luz – semelhança ou contraste imenso e total. Manhãzinha no porto e o lento amanhecer do tempo e das gentes s’iniciando a viver já de chofre nos ritmos norte-nordeste com canecão d’água. “Métodos de trabalho”: em primeiríssimo lugar, a vida vale infinitamente mais que qualquer teoria, qualquer método que se elabore; precisa ser em favor da captação desta vida que flui e que jamais, jamais, jamais se repetirá na exata conjuntura dos seus acontecimentos, ritmos, colóquios entre cor, som e movimento, seu tom vital. Documentário não é e jamais deve ser feito com o intuito construtivo de cinema roteirizado, ou, melhor dito, a construção tem que ser intuitiva, rápida, elétrica na sua empatia total com as circunstâncias do momento, extraindo a seiva desta árvore vivificada; jamais as condições serão outras senão aquelas que são; não se deve, não, não se deve amarrar-se a conceitos que não são nada a não ser preconceitos-armadura de orgulho: eu “sou” aquilo, eu “faço” isso, isso eu “não faço”, e outros senões. Não, até lá você acaba espelhando apenas as entrelinhas-delimitações dos seus medos pessoais. Libere-se, seja mais ingênuo, mais inocente na sua coloração perante o mundo! Oh, Deus, quantos momentos passados, para sempre condicionados a predefinições do “perfeito”. O otimismo é apenas o saber reter a respiração para recolocá-la em harmonias cósmicas.
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18.6 What stays of a place once you’ve gone? Parintin-tin-tin-tin-tins, cidadezinha alegre, algo de Cannes (!), algo de Canton*, bar do Samico no porto, barcas partindo em revoada antes do sol nascer sobre ondas pretas e gasolinosas. Sr. Zé Maria, peixada da mulher dele, Rosilda, ensaio de bumba do Caprichoso*, monte de moleques nas várzeas se entretendo... redondo jogo de bicho na roda com barulho de sapos, grilos, de toda a fauna noturna que grita e faz coro ao redor. Momentos de culminação, de irritação; falta, não há dúvida, o elo, o carinho, a chispa de humor, penetração de alma; o que há é um excelente olho no visor, uma mão firme, uma competência técnica: maybe, and most certainly and at the moment that’s enough! Não deu pra mostrar a alegria de Parintins, ficou no saber que existem 365 dias de festas espalhadas nas bandeirinhas azuis e brancas no mercadinho movimentado do porto, com as casas ordenadas como casinhas de bonecas a entardecer imagens amazônicas na parede. Dizem que é alegre, os que lá vivem o dizem e, sem sabê-lo, sabem. 19.6 Noite de cão! Indescritível! Paramos na beirada – o capitão, pós-gandaia e muito timonear, quis descansar após milhões de carapanãs eliminados, inestimáveis números eliminados, tanto assim que, uma vez novamente em marcha o motor, consideramos serem poucos os 59 carapanãs por rede! Só quando nos escondemos sob grosso material plástico é que eles se entregam! Dizem que os moradores entram em casa a partir das cinco da tarde, fechando portas e janelas pra valer. Também não há muitas possibilidades de chegarem tarde do trabalho! Eu, como Sioux, enrolada no chão com cobertor ou debaixo da rede do Isaak, achando divertidas suas canções d’amore; o Jacques mais do que pior, sem poder timonear, pilotear. Grande pena, pois estava bem no seu papel de mediador!
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Problemas com a câmera, bateria fraca ou talvez a constante trepidação desequilibrando o chassi. Estamos hoje num momento baixo, eu completamente inchada com o veneno dos carapanãs. Este dia começou mal com uma dor de garganta que ameaça, lento, lento vá lontano, até o barco de passageiros entrar no estreito verde e dar com uma família de camaleões à beira d’água, cada um com a sua verde cor. Bom banho e arrivée a Itacoatiara, indústrias à vista. Cidade Magritte, duas grandes boias soam como os sinos do ângelus no fim do dia. É compensador chegar a uma síntese, uma adequação, ligações subterrâneas buscando nos garimpos da memória. O dia acabou com a bandeira francesa unfurled in the evening sky over the docks where we commenced the Amazon River flowing dark brown in the evening sun. Relacionamentos profissionais, e/ou outros, sempre melhoram quando baixa a estrela da coesão. Os segmentos caminham com harmonia e, ia dizer, segurança, mas carece explicar a que custo, e em momentos tão hesitantes, vácuos, o sol desaparece e deixa a terra, é a mente que se apaga sob o véu cinza da indecisão. Uma vez vencida a batalha do dia, uma boa caipirinha e a ligação “amistosa” se refaz (até a próxima!). Certas noites, certas beiras cheiram a lírios, um perfume denso, delirante, cheiros de terra, cheiros de raiz. [...]
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26.6 Os ares do Madeira têm outros perfumes ou é porque a gente, subjugada pelo nome, atribui ao rio outras paisagens e outros prazeres? “Um rio alegre.” Eu, o que prevejo é um espelho do Purus, desses rios selváticos com suas alturas refletidas como desenhos Rorschach nas águas. Espero o frio, o garimpo, a borracha, a “jungla”, mas arrisca apenas ser uma bela continuidade do que já vimos. É um momento especulativo quando o pensamento, jogado no desejo, foge ao presente, gastando-se em filigranas pobres, decadentes... curiosos sonhos em sequência dos que me lembro – eu com a Fi, o teatro e as dúvidas –, ambições e fugas fugazes, sombras difusas atrás da cortina, the show goes on without me. Perdi o Mário a meio caminho entre Belém e Santarém – ficou sempre sorrindo nos estreitos de Breves, entre os açaís se balançando eternamente feito rede tropical. A gente sempre anseia por aquilo que era, mas que quando era a gente o contemplava como o sempre e corriqueiro. Deixamos os grandes espaços do Amazonas, que ontem nos ofereceram um dia de regata cheio de saúde e vento, que entrou pela boca aberta, limpando os pulmões. Tardes em redes que solapam no vento, bandeiras indomáveis, de longas sombras, de companheiros descansados e perdidos nos sonhos do olhar distante, os contornos de corpo e rosto, um belo anúncio de timbre solaire! O Amazonas ficou atrás, e “o almirante” na sua casa pensa em nós, mandando seus pensamentos rio acima, por cima dos densos matos de Rondônia, cheios de surda calação, de desespero, de piuns, chuva, garimpos, campos de pouso – as covas dos garimpos – o Madeira-Mamoré, as mortes, as almas, quem sabe se tudo já não mudou para os confortos médios de áreas em expansão? Tédio no Madeira. Calor sem assombração. Água morna, mata rasa, céu comportado, peixe na grelha, os poros abrem miçangas miúdas de perspiração. E que alegria na caboclada! Rio bem mais habitado. Casaria gostosa, melhor que a do Solimões. Agora estou compreendendo: o Madeira, me diziam, é que era um rio “alegre”, quando eu me entusiasmava com as cantorias dos passarinhos do Solimões. mário de andrade [1927]
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Os tempos passam, as contingências mudam, sinto que o mais belo ficou para trás, ou seja, já no estreito de Breves, na grande baía após Almeirim... e as chuvas colossais e diabólicas, loucos tingimentos de açafrão, a serra da Velha Pobre – ou Nobre –, e nós gozando os fins de tarde atordoados pela imensidão. [...]
28.6 Cheiro gostoso demais, puro lírio. A ideia é explorar um pouco Manicoré e o rio do mesmo nome de águas pretas. Ontem no pôr do sol era pano de fundo de Macunaíma, imaginei-me numa dessas águas que penetram o bosque de noite-só, o que equivale perdida, rendida e entregue, queira ou não queira, aos espíritos da floresta. As estrelas e a lua penduradas no céu enchem de beleza, mas não consolam, apenas remediam a imensa solidão. Demos a meia-volta pra filmar, tento estabelecer corrente de pensamento. Casa de madeira, moço, juta, homem manco (câmera não viu) – curiosa impressão de passagem isso de “apanhar” os pequenos gestos de gentes com quem a gente nunca conversou, nem de perto um pouquinho se dedicou –, passageiros, como somos, diante de um espetáculo em que os dois lados se veem, se olham mudos, com, no máximo, um aceno de mão. Aquilo do nunca mais virá – um dos fatos mais corriqueiros nas nossas vidas –, mas que aqui, com essa perspectiva rio e beira, torna-se de repente espanto o nosso isolamento visto com lupa de cristal! Um dia, assim, em que uma folha cai, a gente vê cair um punhado de terra que desliza do barranco, uma fileira de quatro tracajás num pau morto, ao sol, desperta o interesse, quebrando súbito o torpor que enfraquece o olhar.
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Os ontens ganham sentidos nos hojes – a vida também deve ser assim: colar de pérolas de eventos e momentos encarrilados na hora de morrer. [...] Em Sapucaia-Roca um moço viajante nos contou a estória da cobra-norato, que certa noite de festança põe em ebulição o rio e, dum surdo e espantoso golpe, desmantela um casório lá acontecendo com os festeiros todinhos. E – como lembrou Mário sobre aquilo que, como nós, ele escutou numa noite de lua cheia – vez ou outra se ouve a música e a alegria quente dessa noite fresquinha e inocente diante de sua inesperada destruição. Certos lugares têm magia, deve ser feliz a união de natureza e luz. [...]
30.6 Domingo no Madeira, escapo para Saint-Exupéry. Terei saudade desta tão singela viagem. Paramos procurando açúcar, que acabamos achando alcançando um regatão. O imprescindível: açúcar, arroz, feijão, e carapanã! As samaumeiras aparecem raramente – são cortados esses verdadeiros reis alados da floresta, cortados para fazer compensado! Que loucura triste... Chegando ao fim da viagem, por ser a parte menos empolgante, a mente começa a se dispersar e o corpo segue agitando uma porção de movimentos, pretextos, afazeres, sempre tendo cuidado para a cabeça não bater. Sonhos seguem, impulsos de angústia sossegados no dia; hoje, não sei como, um pequeno carneiro descourado vivo e em lágrimas, os pedaços vivos do peixe de Noca. Que oferenda sacrifical é essa? Creio que são as sombras das selvas de Rondônia que jogam umidade pro ar.
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[...] Posição de proa, momentos de êxtase glorioso, revigorante repouso... vejo samaumeiras como imensas teias de aranha, umas contra as outras, caleidoscópio aos curvos movimentos do nosso barco. Samaumeiras mortas ou em curso de morrer. Rondônia se aproximando, luar diurno no ar.
1.7 Afastamo-nos do Equador, noite, madrugada fria – eu e meus sonhos... Sempre angústia na noite – por quê, se o dia corre bem? Ontem, quando a lua ainda não estava alta, bailarinavam-se as árvores, os troncos mortos, personagens num décor Rousseau/Saura, imensos baluartes pretos de musgo. Foi novamente incaptável, fadado a ficar para sempre no coração! Hoje na madrugada fiz o levantar e o acordar das árvores, aves prestes a voar. É a puxada mais longa da viagem de Manicoré a Humaitá (hoje, às 16 horas), leio e penso, mas o pensamento fica confuso, fraco, disperso, misto de recordações e desejos... Gestos de encher o tanque do barco, de
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tirar a mangueira do tambor, de tirar o óleo da mangueira, gestos que se adquirem na longa prática dos anos. O gesto automático de erguer o corpo e a cabeça quando se sobe um degrau e o gesto oposto ao descer. No início, a cabeça não tinha lugar, era frangalho sobre galho e uma farta dor. [...]
2.7 [...] Macunaíma foi ontem e eu o sabia sem saber.
3.7 Aproximamo-nos de Porto Velho. Fim da grande viagem do Turista aprendiz e deste diário de bordo que gostaríamos de apresentar na sua complexa simplicidade: suas gentes e suas línguas, seus anseios e o fino humor com que elevam a vida. Nossa tripulação é uma boa mostra da brasilidade espalhada de norte a sul do país: carinhosos, vivos, espertos, brincalhões... E suas tristezas... devem tê-las, claro, no cofre do coração! Uma viagem purificadora, um feliz encontro de forças! Fim de uma longa viagem aquática da qual teremos saudades. I have loved the boat trip more than I could have imagined. Compreendo um pouquinho a paixão do Túlio pelas sementes, que agora pouco a pouco vou aprendendo a distinguir, e pelas árvores: seu corpo, a cor granulosa de sua casca, as folhagens e por vezes sua flor. No mato fechado sinto-me incapaz de desfrutar desse caos “programado”, sentindo-me ameaçada...
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4.7 O adeus do alto do barranco e mais um dia que valeu em termos strictus de trabalho, um dia de bom humor. Pesquei quatro peixinhos (quase flechando o Zico!). Seguimos para São Carlos, onde devemos parar e ver os garimpos, se é que já começaram a garimpar. É gostoso se sentir limpo, tendo tirado o barro dos pés, das pernas, das mãos, o suor da cara, lavado os cabelos pegajosos de suor, depois de ter feito “o nosso dever”, a velha e sempre viva história da “missão cumprida” que alivia a alma e apazigua o corpo.
5.7 Despedida heroica, épica, triste – o fim de uma bela, belíssima aventura que nunca, nunca se repetirá. Assim a vida é, bela, errática, efêmera... marasmo informal pedindo passagem... dez mil momentos com seu gosto e cheiro, uma litania de fé.
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“Deixa a Jurema comigo”, o Jacu me sussurra suplicante. “Deixa comigo a Jurema, sou homem do mato”. E eu: “Você zela por ela, Jacu?”. “Ô, se zelo... vou construir um casebre por ela, pra ela ficar.” notas: Jurema A Jurema sagrada é remanescente da tradição indígena e dos seus pajés, conhecedores dos mistérios das plantas e dos animais, e do além. No tempo da escravidão, os negros trocavam suas crenças com as dos índios e por isso, até hoje, os grandes mestres juremeiros são sempre mestiços, com sangue índio e negro. Daí a Jurema, entidade sincrética, se compor de duas grandes linhas de trabalho: a linha dos Mestres de Jurema e a linha dos Encantados. Delft A porcelana de Delft, cerâmica vitrificada da Holanda, adotou, por volta de 1650, o modelo chinês, desenhado em azul e branco.
Meccano Baseado nos princípios da engenharia mecânica, o sistema Meccano originou-se de um jogo de construção com parafusos e porcas que Frank Hornby [1863-1936] inventou para seus filhos em 1898. De uma pequena loja em Liverpool, os brinquedos Meccano ganharam o mundo e atravessaram os séculos. Martín Fierro Poema de José Hernández [1834-1886] publicado em 1872, de grande popularidade na Argentina. A obra narra o caráter independente, heroico e sacrificado dos habitantes dos pampas, situando-os como os verdadeiros representantes do caráter argentino.
Boorman John Boorman, cineasta inglês, é diretor do filme A floresta das esmeraldas [1985], uma saga rodada na floresta tropical. Canton A paisagem de Cantão [Guangzhou], província no sul da China, inspirou a pintura clássica chinesa. Foi lembrada nesta viagem como contraponto de ondulação. Caprichoso Com a estrela azul na testa, o Boi Caprichoso representa uma das duas agremiações que competem anualmente no Festival Folclórico de Parintins, no Amazonas.
Maureen Bisilliat (1931) nasceu em Englefield, na Inglaterra, e naturalizou-se brasileira na década de 1960. Aqui desenvolveu um impressionante trabalho que une fotojornalismo e ensaios, relacionando literatura e manifestações da cultura popular. Desde 2003, as mais de 16 mil imagens de seu acervo estão sob a guarda do Instituto Moreira Salles.
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#20 ½ julho 2015
instituto moreira salles Walther Moreira Salles (1912-2001) Fundador Diretoria Executiva João Moreira Salles Presidente Gabriel Jorge Ferreira Vice-Presidente Mauro Agonilha, Raul Manuel Alves Diretores Executivos
serrote é uma publicação do Instituto Moreira Salles que sai três vezes por ano: março, julho e novembro. Esta serrote #20 ½ só circula, gratuitamente, na flip 2015. COMISSÃO EDITORIAL Alice Sant’Anna, Daniel Trench, Eucanaã Ferraz, Flávio Pinheiro, Gustavo Marchetti, Heloisa Espada, Matinas Suzuki Jr., Paulo Roberto Pires e Samuel Titan Jr. editor Paulo Roberto Pires diretor de arte Daniel Trench coordenaÇÃO EDITORIAL Alice Sant’Anna e Flávio Cintra do Amaral ASSISTENTE DE ARTE Gustavo Marchetti PRODUÇÃO gRÁFICA Acássia Correia preparação e revisão de textos Breno Beneducci, Carolina Serra Azul, Elisabeth Lissovsky, Flávio Cintra do Amaral, Juliana Miasso e Vanessa Carneiro Rodrigues checagem José Genulino Moura Ribeiro e Regina Pereira © Instituto Moreira Salles Av. Paulista, 1294/14º andar São Paulo sp Brasil 01310-915 tel. 11.3371.4455 fax 11.3371.4497 www.ims.com.br impressão e tratamento de imagens Ipsis As opiniões expressas nos artigos desta revista são de responsabilidade exclusiva dos autores. Os originais enviados sem solicitação da serrote não serão devolvidos.
© Coleção Eduardo Augusto de Brito e Cunha/ Instituto Moreira Salles; © Cássio Loredano; © Maureen Bisilliat. Agradecimentos Joanna Americano Castilho, Julia Kovensky, Marília Scalzo e Rachel Rezende. Agradecimentos Maureen Bisilliat Andreas Heiniger (foto do diário), Carlos Augusto de Andrade Camargo, Carlos Magalhães, Dorian Taterka e Lúcio Kodato. capa e contracapa Desenho de J. Carlos
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