#32 ½ EDIÇÃO ESPECIAL PARA A FLIP 2019
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O poeta do mar & o cronista do sertão Elvia Bezerra
Cartas inéditas de Vicente de Carvalho para Euclides da Cunha revelam amizade pontuada pela política da vida literária e superstições Boa parte da correspondência, ativa ou passiva, de Euclides da Cunha é conhecida por meio de edições publicadas depois de sua morte. Nelas, uma voz ainda não tinha soado até hoje: a do poeta Vicente de Carvalho. A descoberta de mais de duas dezenas de cartas que ele enviou ao autor de Os sertões, encon tradas no acervo do Instituto Moreira Salles, torna possível a instauração de um diálogo epistolar que enriquece a biografia dos dois amigos. Nasceram no mesmo ano: 1866. Euclides da Cunha em Cantagalo, no estado do Rio de Janeiro, em 20 de janeiro, e Vi cente de Carvalho na cidade portuária de Santos, em 5 de abril. Ambos tinham, portanto, proximidade com o litoral, mas, se o sertão da Bahia levaria o primeiro a escrever a obra que ficou
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1. Embora sejam frequentes as referências a Júlio de Mesquita como sogro de Vicente de Carvalho, o parentesco é outro: os pais de Ermelinda de Mesquita, portanto, sogros de Vicente, eram o rico negociante Francisco Ferreira de Mesquita e Maria da Conceição Ferreira de Mesquita. O casal teve mais quatro filhos, entre os quais Júlio César Ferreira de Mesquita, nascido em 1862 e proprietário de A Provincia de São Paulo, que ele renomearia para O Estado de S. Paulo. Conhecido como Júlio de Mesquita, era cunhado de Vicente, e não sogro.
conhecida como a “epopeia brasileira”, o segundo, fiel à sua Santos, seria chamado de “poeta do mar”. Contribuiriam para mudanças literárias importantes: Eucli des, com Os sertões, de 1902, revelava o mundo nordestino dos jagunços, mostrando um Brasil oposto ao então conhecido nos romances urbanos de Machado de Assis. Vicente de Carvalho, ainda sob os ecos do Romantismo, filiava-se ao Parnasianismo, escola que não tinha mais “certa meiguice dengosa e chorona” dos românticos – observa Manuel Bandeira, para me restringir à crítica menos ortodoxa. Organizador da Antologia dos poetas brasileiros da fase parnasiana, Bandeira, com justo entusiasmo, nela incluiu o poeta de Poemas e canções, de 1908. A expressão literária uniu Euclides e Vicente de forma anto lógica. É possível que leitores apressados tenham deixado de ler a primeira parte de Os sertões, “A terra”. Mas, se hoje estão acima dos 60 anos, não terão deixado de se encantar com duas pági nas dessa obra, publicadas em antologias escolares sob o título “O estouro da boiada”, trecho que o poeta modernista Guilherme de Almeida chegou a dividir em versos, tão ritmada e sonora é a descrição. Duvido que tenham esquecido o rebanho de bovinos que “entrebatem-se, enredam-se, trançam-se e alteiam-se ris cando vivamente o espaço, e inclinam-se, e embaralham-se mi lhares de chifres”. Assim como se lembrarão, de antologias se melhantes, dos versos de Vicente de Carvalho em “Pequenino morto”, poema de 12 estrofes, cujo refrão ecoa, pungente: “De onde o sino tange numa voz de choro…/ Pequenino, acorda.” Por que, e como, Euclides da Cunha, militar severo que dei xou o sudeste litorâneo para se render ao sertão da Bahia, li gou-se a Vicente de Carvalho, amante das pescarias e poeta que cantou especialmente o mar? A vivência paulista de Euclides da Cunha vinha dos tempos da fazenda Trindade, que pertencia a seu pai, na atual cidade de Descalvado. Frequentava-a antes de tornar-se colaborador em A Provincia de São Paulo, em 1888, a convite de Júlio Cesar Ferreira de Mesquita, diretor do jornal. Deve ter sido natural encontrar Vicente de Carvalho, paulista que nunca deixou seu estado, no meio jornalístico. Com edulcorada ambientação romântica, o biógrafo Hermes Vieira conta, em Vicente de Carvalho: o sabiá da ilha do Sol, o momento em que o poeta e Ermelinda de Mes quita, conhecida como Biloca, se conheceram e, posteriormente, se casaram. Abençoado o casal, Vicente passava a ser cunhado1 de Júlio de Mesquita. E, assim como Euclides, colaborador no
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2. Carta datada de 4 de dezembro de 1908.
mesmo periódico, que depois teria o título mudado para O Estado de S. Paulo. Nessa época, Euclides ainda não pensava em morar em São José do Rio Pardo, onde escreveria Os sertões, publicado no mesmo ano de 1902 em que Vicente lançou os poemas de Rosa, rosa de amor. Mas foi em Santos que escritor e poeta conviveram mais de perto. Ali, em janeiro de 1904, Euclides assumiu o cargo de en genheiro fiscal da Comissão de Saneamento de Santos, onde ficou até abril – apenas quatro meses. Na mesma época, Vi cente de Carvalho reabriu seu escritório de advocacia na ci dade, depois de uma malograda experiência como fazendeiro. É a partir da saída de Euclides do cargo que se conhecem as cartas trocadas entre os dois. Quis o imponderável que Euclides fosse infeliz no casa mento com Ana Emília Ribeiro, enquanto Vicente viveu em harmonia com a mulher e mais de uma dúzia de filhos. Se o primeiro se orgulhava da força de seu organismo “aspe ramente seco” – a expressão é dele –, do qual até o “beribéri acreano já fugiu espavorido (sem remédio!) para nunca mais voltar”,2 o segundo penou de males que o prostraram durante longos períodos. Ambos, no entanto, e cada um a seu modo, amaram a natureza. Quiseram, e conseguiram, a suposta imortalidade prometida pela Academia Brasileira de Letras – a correspondência entre os dois mostrará a que preço. Ambos eram supersticiosos: conta o historiador Roberto Ventura, na acuradíssima cronologia que fez para a edição dos Cadernos de Literatura Brasileira dedicada a Euclides, que o escritor flu minense relatou a Coelho Neto a visão recorrente que o per seguia, nos acampamentos, de uma mulher vestida de branco, dizendo-lhe: “A estrada do cemitério já chegou à porta da fa zenda”. E não foi esse o único fato que o inquietou. Em 1908, inscreveu-se em concurso para professor de lógica no Colégio Pedro II. Era o 13o candidato na fila e considerava a posição um mau augúrio. Com fundamento ou não, seria assassinado em 15 de agosto do ano seguinte. Vicente de Carvalho, por sua vez, desistiu da candidatura à abl em 1905 porque sua mulher in tuía que ele morreria se tomasse posse na cadeira número 13. Deixou para 1909. Ambos hoje são nomes de localidades: há uma Euclides da Cunha na Bahia, e uma Euclides da Cunha Paulista em São Paulo, e Vicente de Carvalho é um distrito do município do Guarujá.
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As cartas É possível que o desconhecimento das cartas de Vicente de Carvalho enviadas a Euclides da Cunha justifique a pouca, para não dizer total, falta de referência ao engenheiro em Vicente de Carvalho: o sabiá da ilha do Sol. O historiador Ro berto Ventura certamente desenvolveria o tema da amizade entre os dois na biografia que estava escrevendo sobre o autor de Os sertões quando morreu, em 2002, justamente ao voltar da Semana Euclidiana em São José do Rio Pardo. Mas teve tempo de mencionar o nome do poeta na cronologia aqui já referida. Tudo o que se sabe até hoje sobre a relação epistolar de Euclides da Cunha e Vicente de Carvalho está contido, primeiramente, na edição de Os sertões da Nova Aguilar de 1966, organizada por Afrânio Peixoto, que traz cartas em apêndice; na reedição organizada por Paulo Roberto Pereira, em 2009; e na Correspondência de Euclides da Cunha, livro organizado por Walnice Nogueira Galvão e Oswaldo Galotti, publicado pela Edusp em 1997. As três edições apresentam apenas oito cartas de Euclides enviadas ao ami go, o que fez com que, até hoje, só se conhecesse o monólogo euclidiano, que se inicia com uma carta de 11 de outubro de 1902 e é retomado, ainda em uma só voz, de 1904 a 1908. No total, há rigorosamente as mesmas oito cartas nas três edições mencionadas. Mais de um século depois, o achado, no acervo de Literatura do Instituto Moreira Salles, de um conjunto de 24 cartas de Vicente de Carvalho a Eucli des, originais, manuscritas, encadernadas em álbum, possibilita o estabeleci mento de um diálogo, ainda que de forma lacunar, e amplia o sentido das oito já conhecidas. Permanece sem eco a primeira carta de Euclides, de 1902, dois meses an tes de Os sertões, em suas 637 páginas, chegar às livrarias. Deixa ver em pou cas linhas o modo como se reconhecia o remetente: “É que homem prático, massudo, enrijado nessa engenharia rude – não avalio as grandes abstrações dos sonhadores e as promessas enganadoras dos poetas…”. A reflexão funciona como justificativa para o fato de ele ter se dedicado a um relatório e permane cido em São Paulo, em vez de ir a Lorena, como planejara. O diálogo se abre, de fato, com a primeira carta de Vicente de Carvalho, que agora vem a lume, datada de 24 de abril de 1904. Mostra um correspondente lastimoso por saber que em pouco perderia a companhia do amigo. Escreveu no momento em que, de sua fazenda em Franca, no interior paulista, tomou conhecimento do pedido de demissão de Euclides do cargo de engenheiro fis cal na Comissão de Saneamento de Santos, onde se desentendera com Hugh Stenhouse, gerente da City of Santos Improvements, companhia de origem inglesa que fazia a exploração de serviços públicos na cidade. O significado da perda para Vicente é claro: “Vejo agora que me iludi; e lastimo-o não só pelo desarranjo que no momento te causará o deixares de supetão um bom
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emprego, mais ainda porque antevejo que vou perder com isso a tua excelente companhia, tão preciosa para mim”. A resposta de Euclides vem no dia 27, instaurando efetivamente o diálogo, agora possível de ser lido. O remetente começa desculpando-se por ter es bravejado – o verbo é dele – pela demora de notícias do amigo: “Aqui estou, diante de tua carta de 24, e a bater com ambas as mãos no peito, penitencian do-me de haver comentado amargamente o teu silêncio”. Passa Euclides a rela tar suas iniciativas em busca de novo trabalho. Eleito para a abl no ano anterior, e gozando do prestígio de autor de Os sertões, tratou de ir ao Rio de Janeiro para tentar “boa colocação no funcionalismo”, diz ele na carta do dia 27, não sem boa dose de ceticismo: “Nada caracteriza melhor as deploráveis convicções deste país para os trabalhadores verdadeiramente dignos de tal nome”. Suas tentativas foram bem-sucedidas, e, em 9 de agosto de 1904, Euclides da Cunha foi nomeado, pelo barão do Rio Branco, chefe da Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus, na fronteira entre o Brasil e o Peru, com a missão de fazer o levantamento cartográfico do rio. Partiria para Manaus em 13 de dezembro, mas, antes disso, empenhou-se em lançar a candidatura de Vicente de Carvalho à abl: “Afirmo-te que agirei fortemente”, prometia ele em carta escrita ainda do Guarujá, onde morava com a família, exatamente um mês depois da nomeação e antes de voltar para o Rio de Janeiro, de onde seguiria para o Amazonas. O curioso é que Euclides abraçava a campanha pela imortalidade do amigo antes mesmo de tomar posse na cadeira 7 da abl, para a qual fora eleito em 21 de setembro de 1903. Só o faria três anos depois, em 18 de dezembro de 1906, quando seria recebido pelo crítico literário Sílvio Romero. A batalha que as sumiu para a eleição de Vicente de Carvalho seria longa e pontuada de idas e vindas, e constituiria o leitmotiv da correspondência entre os dois, sem que faltassem lances divertidos ou tocantes, reveladores de uma amizade entre temperamentos tão diversos quanto sedutores. São três as cartas de Vicente de Carvalho datadas de 1904: 24 de abril, 4 de setembro e 19 de outubro. Na última, ele mostra dar prosseguimento à corrida pela ABL, de acordo com a orientação de Euclides, informando que naquele dia formalizou sua candidatura ao próprio Machado de Assis. Portanto, en quanto Euclides, já nomeado, se prepara para a expedição, o outro tenta se enredar na teia acadêmica, apesar das frequentes queixas de doença, como quando, na mesma carta, diz sofrer de “colite com congestão no fígado”. Entre dezembro de 1904 e dezembro de 1905, Euclides se entregava ao re conhecimento dos 3.210 quilômetros do rio Purus, mas não deixou de escrever a Machado de Assis, a quem deu seu voto a Vicente de Carvalho, acreditando que ele mantinha a candidatura. Não há, entre as oito cartas conhecidas que escreveu a Vicente, nenhuma de 1905, ano em que esteve à frente da expedi ção, como não há de 1906 ou 1907. No entanto, uma única carta de Vicente,
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datada de fevereiro de 1905, sem indicação do dia, dá notícia de pelo menos um “precioso cartão” recebido do Amazonas. Pelo conteúdo da carta, supõe-se que Euclides lhe escrevia, sim, e é provável que reclamasse do silêncio do amigo, que lhe declara: “Eu só a pau escreveria cartas com assiduidade, se houvesse entre os meus amigos algum cristão com tanta virtude que me desse pauladas em homenagem à amizade”. Não era o caso. Assim, Vicente prefere participar-lhe que desistiu da candi datura à vaga na abl. Optou por ouvir a mulher, Biloca, que temia a morte do marido se ele insistisse em pleitear o que chamou, nessa mesma carta, “cadeira fatídica”, a 13, na qual, continua ele, “sucumbiram o Taunay, Francisco de Cas tro e Martins Júnior”. Mais prudente deixar o lugar para um candidato não su persticioso: “Deixei-me influir algum tanto dessa superstição, e só escrevi 14 cartas”, confessa ele, referindo-se ao ritual de candidato, que deve escrever aos 40 membros da Academia, pedindo votos. Adiava o sonho da imortalidade, mas realizava um projeto antigo: a fundação de um jornal, que teria simplesmente o nome de O Jornal, e para o qual apela a Euclides: Preciso como de pão para a boca de tua admirável prosa, enriquecida agora pelas tonalidades novas da natureza amazônica… Diabo, vou resvalando no bestialógico. Necessito de uma prosa de ouro para o meu jornal – e peço-te socorro, como amigo velho caído em necessidade. Sê generoso, nababo!
Não creio possível imaginar o modo como essa questão de ambições imortais repercutia no cotidiano de Euclides, embrenhado na Amazônia. Terá sido isso que o impediu de guardar cartas de Vicente, que, nesse ano, ficou de maio a setembro tratando-se nas águas termais da cidade belga de Plombières, onde, de fato, obteve melhoras de saúde significantes? Ou terá o poeta, correspon dente relapso consciente, se entregado ao processo de cura e não pensado em cartas? Depois das notícias enviadas por Vicente em fevereiro de 1905, passam-se três anos sem, até onde se sabe, nenhuma carta trocada entre os dois. O que sabemos é que, nesse período, Vicente de Carvalho, na Europa ou em longas pescarias no Brasil, vivia, segundo seu biógrafo, a harmonia familiar com a mu lher e 13 – em 1908 serão 12 – dos 15 filhos que o casal teve. Bem ao contrário de Euclides da Cunha, que, ao chegar ao Rio de volta do Amazonas, em 5 de ja neiro de 1906, encontraria a mulher, Ana, grávida do cadete adolescente Diler mando de Assis. Euclides viu-a, aos 33 anos, dar à luz Mauro Ribeiro da Cunha, que morreu sete dias depois de nascido, e o registraria como filho, assim como a Luís Ribeiro da Cunha, também filho de Ana e Dilermando, que nasceria em 16 de novembro de 1907. Só mais tarde Luís adotaria o sobrenome do pai biológico. Como não se encontraram cartas de 1907, deixa-se de saber se Vicente con tou ao amigo que, nesse ano, tivera o braço esquerdo gangrenado e amputado,
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consequência de inflamação na mão, ferida durante uma de suas lendárias pescarias em alto-mar. Divertido, conta seu biógrafo, ele costumava dizer: “Camões não foi manco de um olho? Eu sou caolho de um braço.” A correspondência, até onde se pode apurar depois do re cente achado, reinicia-se em 31 de agosto de 1908, com carta de Vicente de Carvalho no auge da preparação do livro que lhe abrirá as portas da Casa de Machado de Assis: Poemas e canções, coletânea prefaciada por Euclides da Cunha reunindo versos de Rosa, rosa de amor, além de novos, entre os quais os de “Fugindo ao cativeiro”. Sobre essa composição, a carta traz um dado revelador: o escravo fugitivo, que luta heroicamente até a morte, não só existiu como o poeta conhece seu nome: Chamo a tua atenção para o pequeno poema “Fugindo ao cati veiro”, que se funda em dois episódios históricos, e no qual tenho grande confiança. Deu-se em 1887, na serra de Santos, o combate entre a escolta e um dos negros fugidos, que resistiu, à foice, e mor reu batendo-se, e matando um soldado. O fugitivo chamava-se Pio, e, pela autópsia, se verificou que não ingeria alimento algum havia três dias… Não há, portanto, fantasia naquele poemeto, que será objeto de uma nota; isto é, não há fantasia quanto ao assunto.
É estranho que Vicente de Carvalho tenha se referido assim a “Fugindo ao cativeiro”, que tem quatro longos segmentos, e no qual Manuel Bandeira identificou “força épica”. A julgar pelo tipo de comentário que desenvolve sobre o poema, o dado biográfico do escravo não comoveu Euclides. O que o seduz é a terra, e não o drama humano do heroísmo de Pio – agora se sabe o nome da personagem trágica. Os versos aproximam, esteticamente, engenheiro e poeta. Euclides traz seu conheci mento de geologia para a análise poética. Vale muito a pena – creio eu – reler as palavras do prefaciador a respeito da serra do Mar. Escreve ele que o poeta, para no-la definir, e no-la agitar sem abandonar a realidade, mos trando-no-la vivamente monstruosa, a arrepiar-se, a torcer-se nas anticlinais, encolhendo-se nos vales, tombando nos grotões, ou escalando as alturas nos arrancos dos píncaros arremessados, requer-se a intuição superior de um poeta capaz de ampliar, sem 3. O grifo é meu.
a deformar, uma verdade rijamente geológica,3 refletindo num mi nuto a marcha milenária das causas geotectônicas que a explicam.
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“O chão”, continua Euclides, “que tumultua, e corre, e foge, e se crispa, e cai, e se levanta” é o mesmo chão que a geologia denomina “solo perturbado”, para representar os movimentos do terreno – identifica, atento às metáforas que cientistas criam, talvez sem se dar conta. A Euclides, autor dos poemas de Ondas desde a adolescência, não escaparia a figura de linguagem. O pre fácio é texto de um engenheiro e poeta que não poupa erudição, sobretudo quando se refere a fenômenos da natureza. Euclides está inteiramente em seu território, falando da terra, reconhecendo-lhe as marcas, identificando-lhe os movimentos e quase traduzindo, em prosa, os versos que o encantam em “Fugindo ao cativeiro”. Tudo isso está no prefácio que, antes de ser publicado no livro, mereceu a maior atenção dos dois interlocutores. Desde que Euclides pôs o ponto-final no texto, em 30 de setembro de 1908, ele e Vicente começaram a pensar em publicá-lo simultaneamente em dois jornais: o Jornal do Commercio, do Rio, e O Estado de S. Paulo, o que representaria valioso impulso para a divulgação de Poemas e canções. “Agora, que a cólica me deu tréguas, escrevo para dizer-te: 1º se o Jornal só puder publicar no dia 3 (terça-feira), telegrafa-me, e o Estado adiará a publicação para esse dia. Não haverá inconveniente nisso” –, escreve Vicente de Carvalho em 31 de outubro. Mas um atraso na comunicação daquele início do século 20 causou um desencontro, que se explica a partir das cartas descobertas. Até agora, ficava -se sem entender o porquê das palavras de Euclides da Cunha na carta de 6 de novembro de 1908: “O nosso único contratempo foi a antecipação do Estado, que impediu a publicação do Jornal”. Publicação de quê?, perguntava o leitor. Antecipação de quê? Agora, lendo-se o que escreveu Vicente três dias antes, fica claro: a antecipação, por parte do Estado, em publicar o prefácio fez com que o Jornal do Commercio se desinteressasse do texto. A combinação foi por água abaixo. Não faltou a Euclides, na mesma ocasião, o comentário cáustico dirigido aos imortais, personificado no autor de Canaã: “Graça Aranha, por exemplo: é um sujeito largo de carnes e de cangote grosso – esplêndido para meter-se uma farpa. […] O que afirmo é o seguinte: nos arraiais opostos há o espanto. Não contavam com a resistência. Já sabem que não cairemos da primeira arrancada. Já apelam para o segundo escrutínio.” São 15 cartas enviadas por Vicente de Carvalho em 1908, 11 delas só no mês de novembro, precedidas de uma de agosto e outra de outubro, seguidas de mais duas, em dezembro. Os contatos para a candidatura ferviam. A contagem de votos declarados pelos acadêmicos seguia acelerada. O ritmo de escrever a 40 imortais e o cuidado de lhes avaliar os humores tomavam tempo e exigiam atenção de Vicente de Carvalho. Esperanças alternadas com expectativas frus tradas, decepções, mas, dessa vez, nada de desânimo. Poemas e canções estava no prelo. A excitação agora era grande por parte do candidato, que, de acordo
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com uma carta de 31 de outubro, sempre dando notícias das cólicas que o cas tigavam, não descuidava da campanha. Os votos dos acadêmicos, como revela em 3 de novembro de 1908, eram contados um a um: Desculpe esse estilo de quem escreve tresnoitado, aflito, e doentíssimo. Estranho imenso que o Raimundo não vote em mim e a pretexto de que não resido no Rio. Acho isso assombroso – como a falta do voto do Alberto de Oliveira, que, na outra eleição, lastimou não votar em mim, e prometeu-me o voto para a primeira ocasião. Os poetas laureados repudiam-me… Que dirá deles e de mim o futuro?
Ele deixava de contar com os votos de dois parnasianos essenciais, Raimundo Correia e Alberto de Oliveira, ambos bem sentados nas cadeiras de veludo azul da abl havia alguns anos, mas ainda não sabia que teria seu nome ligado aos deles, no futuro, por força da melhor crítica literária, que desprezou a trindade completada por Olavo Bilac e considerou justo transformá-la em quarteto, acrescentando-lhe o nome: Vicente de Carvalho. Em 4 de novembro de 1908, uma alegria: saem os primeiros exemplares de Poemas e canções, e ele começa a fazer as remessas de livros à imprensa e a acadêmicos. Entre as mazelas, dessa vez é uma deslocação dos rins – assim explica ele – que o mantém na cama. O prefácio de Euclides é consagrador; a crítica recebe o livro muito bem. Afirma Octávio D’Azevedo em Vicente de Carvalho e os Poemas e canções, de 1970, que foi Euclides da Cunha quem definiu o autor dos versos como o “poe ta do mar”. De fato, o prefaciador destaca, nos poemas, a força da floresta e da montanha, mas afirma que nada se compara à atração que o poeta sente pelo mar. Manuel Bandeira vai nessa linha. Em seu Apresentação da poesia brasileira, defende que Vicente de Carvalho “mostrou força dramática em ‘Pequenino morto’, épica em ‘Fugindo ao cativeiro’. Mas foi acima de tudo um grande pin tor do mar, o mais exato, o mais vigoroso, o mais sugestivo que tivemos.” Ao identificar em Vicente de Carvalho “um grande pintor do mar”, Bandeira não o reduz a “poeta do mar”. Mais importante que a classificação temática foi o trabalho que fez o poeta de Pasárgada ao acrescentar o nome de Vicente à tríade parnasiana em todos os seus trabalhos de antologista. Para Bandeira, com Poemas e canções, Vicente “veio revelar um quarto mestre em nada inferior aos outros, e a certos aspectos mesmo superior – mais vário, mais completo, mais natural, mais comovido”, afirma na Apresentação da poesia brasileira. E o mar então… O mar, o velho confidente De sonhos que a mim mesmo hesito em confessar, Atrai-me; a sua voz chama-me docemente, Dá-me uma embriaguez como feita de luar… O mar é para mim como o Céu para um crente.
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Bandeira privilegia a tal ponto o talento para as evocações marinhas de Vicente que, apesar de ter reconhecido “força épica” em “Fugindo ao cativeiro”, não só não incluiu o poema na Apresentação, como tampouco na Antologia dos poetas brasileiros da fase parnasiana ou em Noções de história das literaturas. A correspondência se encerra em 1909, naturalmente. Ano da morte de Eu clides da Cunha. Em 27 de janeiro, Vicente lhe escrevia: “Acabo de receber a tua carta, e alarma-me a rajada de desgraças em que me falas; mas espero que seja isso apenas um exagero de impressão, e que se trate de uma série dessas contrariedades pequenas mas irritantes de que a vida é tão cheia”. Não era. A última carta de Euclides da Cunha, de 10 de fevereiro de 1909, mostra que ele apreendia o futuro: “Quem definirá um dia essa Maldade obs cura e misteriosa das coisas, que inspirou aos gregos a concepção indecisa da Fatalidade?”. A resposta não tinha nome, mas a tragédia não tardou: em 15 de agosto, um domingo de chuva, Euclides da Cunha armou-se de um revólver e foi à casa de Dilermando de Assis para matá-lo. Atingido pelas balas da arma do então cadete, que revidou, ali mesmo morreu, deixando ferido o irmão de Diler mando, Dinorá. Ainda não foi esse o último ato da tragédia. Em 1916, Euclides da Cunha Filho, o Quidinho, tentou vingar a morte do pai ao atirar em Diler mando, que o matou. E, em 1921, Dinorá, paralítico, se suicidou. É possível que, no dia da morte de Euclides, o “poeta do mar” ainda estivesse em Plombières, de onde enviou sua última carta, em 9 de julho de 1909. Podia estar a caminho do Brasil, mas talvez não se lembrasse mais das apreensões do amigo, expressas em fevereiro. Homem de “sorriso irônico e riso bondoso”, descreve-o o biógrafo, Vicente de Carvalho foi eleito para a abl em 1 de maio de 1909: “A Biloca manda-te pa rabéns pelo teu triunfo – porque a minha eleição foi um triunfo teu” –, escreve ele em carta de 5 de maio, ainda “atordoado” com a eleição. Imagina-se que Eu clides tenha compartilhado da vitória, mas, morto em 15 de agosto daquele ano, deixou de testemunhar a posse do amigo na cadeira 29, na sucessão do tea trólogo Artur Azevedo. Mas não perdeu a cerimônia, que não houve: Vicente de Carvalho foi recebido por carta, deixando Artur Azevedo sem o elogio de praxe, feito no discurso do empossado. Venceu, mais uma vez, a superstição de Biloca. Não ficou sem resposta a pergunta de Vicente naquela carta de 3 de outubro de 1908, quando, ao se referir a seus pares, perguntava: “Que dirá deles e de mim o futuro?”.
Elvia Bezerra (1947) é autora de A trinca do Curvelo (1995) e Meu diário de Lya (2002), ambos publi cados pela Topbooks, e coordenadora de Literatura do Instituto Moreira Salles, onde dirige o Portal da Crônica Brasileira (www.cronicabrasileira.org.br).
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Fevereiro [1]905 Meu caro Euclides Acabo de receber um precioso cartão que me trouxe notícias tuas; e dou uma violenta torce dela à minha vocação de incorrigível preguiço so para escrever-te estas linhas. Eu, decidida mente, não tenho a bossa epistolar. Sabes disso, como todos os meus amigos; e como a maior parte deles, perdoas as minhas faltas, que eu reconheço, com que fico furioso, mas de que não me corrijo. Tenho duas moléstias crônicas, incuráveis: uma célebre entero 1 etc. (o Catunda, que é pachorrento, te exporá em alguma hora vaga o resto do nome), e um embaraço episto lar ingênito. Eu só a pau escreveria cartas com assiduidade, se houvesse entre os meus amigos algum cristão com tanta virtude que me desse pauladas em homenagem à amizade. Enfim, es tou escrevendo; e já agora aproveitemos a oca sião de dar um cavaco escrito, já que a distância que nos separa não nos permite infelizmente outro. Desisti, em favor do Osório Duque-Es trada, da minha candidatura à Academia2 – onde há agora outra vaga, a do José do Patrocínio.3
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Como sabes, eu estava muito doente quando apresentei a minha candidatura. A Biloca, mui to impressionada, considerava uma condena ção certíssima à morte a minha eleição para a cadeira fatídica na qual sucumbiu o [Visconde de] Taunay, Francisco de Castro e Martins Jú nior. Deixei-me influir algum tanto dessa su perstição; e só escrevi 14 cartas. O Alberto de Oliveira e Artur Azevedo lastimaram, por carta, com expressões lisonjeiras, não me poder dar o seu voto, que já tinham comprometido. Creio que iam votar em mim – ao que estou infor mado – o Raimundo [Correia], Afonso Celso, Coelho Neto, Filinto [de Almeida], Araripe [Júnior], João Ribeiro, Rodrigo Octavio, [Gar cia] Redondo. Com o teu voto, eram nove que eu teria. Havia uma formidável cabala entre o Osório e o Sousa Bandeira; os votos dados a mim seriam perdidos. Logo que morreu o Pa trocínio, o Coelho Neto e o Filinto, que traba lhavam por mim, aceitaram uma proposta de Osório: de eu desistir em favor deste, nesta eleição, e os amigos do Osório trabalharem por mim na vaga do Patrocínio. Não tive outra
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coisa que fazer senão sancionar esse acordo. Só o Raimundo Correia está recalcitrante, e vota em mim quand même; 4 creio que, apesar da de sistência, terei dois votos: o teu, e o dele. Para a vaga do Patrocínio creio que conto com o sucesso. O Coelho Neto, que está empenhado nisso, obrigou o Graça Aranha a adquirir a Rosa de amor; diz-me ele isso numa carta recebida ontem, e conta que o Graça Aranha, conhecen do-me por aquele livro, votará em mim. Em todo caso, peço-te que mandes o teu voto, ou procuração; e que escrevas ao Oliveira Lima, e ao [Afonso] Arinos. Outro assunto: lembra-te da nossa ideia de fun dar um jornal aqui? Pois essa ideia amadureceu, e, ai de mim! Vou realizá-la sozinho, enquanto te embrenhas por esse mundo de coisas novas e de novas glórias. Vai chamar-se simplesmente, com modéstia ou com presunção, à vontade, – o Jornal; é da firma J. Filinto & Cia, formada com capital comanditário de muitas casas comerciais daqui. O Nestor Pestana vem ser o secretário
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da redação, de que também fará parte o Alberto Veiga. O Jornal procurará penetrar em toda a ex tensa zona servida pelo nosso porto. Creio que terás comprometido com outros jornais a tua colaboração; mas dessa rica mina que é o teu talento bem poderás dispensar para o Jornal al gumas gemas. Preciso como de pão para a boca – de um pouco da tua admirável prosa, enrique cida agora pelas tonalidades novas da natureza amazônica... Diabo, vou resvalando no bestia lógico. Necessito de uma prosa de ouro para o meu jornal – e peço-te socorro, como amigo ve lho caído em necessidade. Sê generoso, nababo! Adeus, meu caro Euclides. Recebe um abra ço saudoso do Vicente.
1. Radical grego relacionado ao intestino, como em “enteralgia” e “enterite”. 2. Supersticiosa, a mulher de Vicente de Carvalho, Ermelinda de Mesquita, conhecida como Biloca, acreditava que o marido morreria se tomasse posse na cadeira 13, vaga com a morte de Martins Júnior. Para atendê-la, o poeta retirou a candidatura em favor de Osório Duque-Estrada, autor da letra do Hino Nacional, mas quem ocuparia a “cadeira fatídica” seria o advogado Sousa Bandeira, em 1905. 3. Vicente de Carvalho também não tomaria posse na cadeira 21, vaga com a morte de Patrocínio. A cadeira seria ocupada pelo escritor Mário de Alencar, eleito em 1905. 4. Expressão francesa, cujo significado é “ainda assim”.
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São Paulo, 27 de janeiro de 1909 Meu caro Euclides Acabo de receber a tua carta, e alarma-me a rajada de desgraças em que me falas; mas espero que seja isso apenas um exagero de impressão, e que se trate de uma série dessas contrarieda des pequenas mas irritantes de que a vida é tão cheia.1 O meu silêncio tem sido estúpido; a pa lavra é precisa, rigorosamente própria. Andei pescando durante uns três dias, em Guaiuba; e vim disso com uma aversão terrível à pena e à tinta. Foi um banho no sangue dos meus avós tapuias – em que meti a minha alma. O mar, depois de dois anos de ausência, recebeu-me como um príncipe: fui e voltei pelo alto, em ca noa, com um tempo de ouro. Pesquei, apenas de maneta, 11 garoupas.2 Dormi três noites em casa de pescador. Ouvi mentiras de pescas ma ravilhosas. Tudo isso no meio de um panorama
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esplêndido. Voltei meio tonto. Estou para es crever-te todos os dias – e tenho adiado sempre. Toda a minha biografia dos últimos 15 dias se resume nisto: não tenho feito nada, absoluta mente nada, a não ser alguma leitura. Por sinal que me pus a ler a Última excursão a Canudos 3, do general Dantas Barreto, e acabei relendo os Sertões. Concluí-os quase pela madrugada, an teontem. Nesse dia o Mesquita almoçou aqui, e achou magnífica a 3ª edição, que não conhecia. Depois da Última excursão a Canudos, foi mais viva do que nunca, para mim, a releitura dos Sertões. Há páginas em que se tem a impressão de que você escreveu gritando, gesticulando, como um furioso e um inspirado. É soberbo. Quanto à carta de Arinos: tudo quanto ele diz dos Poemas e canções 4 e do Relicário vem de um ponto de partida falso. Os Poemas e canções só con têm versos escritos posteriormente à publicação
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do Relicário, que é de 1888. Entende ele que eu só devia escrever versos até os 22 anos que en tão tinha, e só republicar os versos feitos até então? É tolice rematadíssima. O Relicário reu nia os meus versos dos 18 aos 21 anos; os Poemas e canções, o melhor da minha obra dos 21 aos 42. Queria o Arinos que eu ficasse naqueles. Eu en tendi de outro modo. E é preciso não entender nada no assunto para julgar o Relicário melhor do que os Poemas e canções... Penso que fazes mal não vindo fazer a confe rência de 15 de fevereiro. Deves domar as con trariedades que te afligem, e vencê-las. O teu papel de intelectual é grande. Ou muito me en gano, ou estás adquirindo uma ação como a que o Herculano exerceu no Portugal do seu tempo. É indispensável que não poupes todos os meios de avigorar sempre o teu prestígio; e, para
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nosso caso, não deves esquecer que a mocidade acadêmica é entre nós o grande portador de to das as glórias intelectuais. Não deixeis de vir. O Jornal,5 decididamente, tinha deliberado a guerra do silêncio contra os Poemas e canções. Algum motivo haveria para isso. Talvez a ati tude do Correio da Manhã. Afinal o Emilio de Menezes apresentou-se, ou não, candidato? Estou curiosíssimo de o saber. Recomendações a todos os teus e um abraço do Vicente
1. A “rajada de desgraças” que Euclides mencionara se concretizaria ainda neste ano. Em carta a Vicente de 10 de fevereiro, ele se interrogava sobre a “maldade obscura e misteriosa das coisas”. Em 15 de agosto, atirou em Dilermando de Assis, amante de sua mulher, e por ele foi morto. Este foi apenas o início de uma sucessão de tragédias que recheiam a biografia do autor de Os sertões. 2. Em 1907, Vicente de Carvalho tivera o braço esquerdo gangrenado e amputado, consequência de inflamação na mão, ferida durante uma de suas lendárias pescarias em alto-mar. Por esse motivo, só neste ano de 1909 pôde voltar às aventuras de pescador. 3. Trata-se de Última expedição a Canudos, do coronel Dantas Barreto, publicado por Franco & Irmão Editores, em Porto Alegre, em 1898. 4. Livro de poemas de Vicente de Carvalho publicado em 1908, com prefácio de Euclides da Cunha. 5. Provável referência ao Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, que desistiu de publicar matéria sobre Poemas e canções por ter O Estado de S. Paulo se antecipado na iniciativa.
Kalaf Epalanga
Três crônicas
fotos de Edson Chagas
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Kalaf Epalanga (1978) nasceu em Benguela, An gola, vive em Lisboa desde a década de 1990 e correu o mundo com o Buraka Som Sistema, banda que, entre 2006 e 2016, popularizou o Kuduro. É do trânsito entre culturas e entre a escrita e a música que nasce sua literatura. Apresentado ao Brasil com o romance Também os brancos sabem dançar (Todavia, 2018), Kalaf é autor de crônicas reunidas em dois volumes, Estórias de amor para meninos de cor (2011) e O angolano que comprou Lisboa (por metade do preço) (2014) – este último a origem dos três textos que publicamos nesta edição especial da serrote.
31 Leroy M. Futa, Tipo Passe, 2014
Esquema Está provado, mais do que saber dançar Kizomba ou Kuduro, mais do que ter descido a serra da Leba ou falar fluentemente pelo menos uma das seis línguas mais importantes do país, o kimbundu, o umbundu, o nganguela, o cuanhama, o ucôkwe (tchocué) e o kikongo; o que nos faz verdadeiramente angola nos é a desenvoltura, o domínio da secular arte do esquema. O que seria de nós sem o esquema, o expoente máximo da arte da sobrevivência? É a disciplina que a escola da vida nos ensina. A mais impor tante talvez. Reparem, mesmo antes de aprendermos a conju gar todos os tempos do verbo “magoar” ou a tabuada do nove, temos que estar conscientes de que o nosso primeiro berro, ainda agarrados ao cordão umbilical, foi possível porque al guém certamente aplicou um esquema para garantir que não nos faltasse nada, nem os cuidados a ter em conta para quando do resguardo da nossa pobre e exasperada mãezinha, e nem ampolas antitétano, tuberculose e hepatite B para as nossas primeiras vacinas. Por isso não tenho dúvidas, o esquema está no nosso ADN. Negá-lo poderá significar um erro fatal e de consequências ir reversíveis. Pior do que não ter dinheiro é não ter esquema para remediar a situação. Tudo se desenrasca, tudo se impro visa, chateia-se o primo, o tio, a vizinha. E sabem que mais? Ninguém se chateia, faz parte! O esquema é a nossa língua franca, o nosso dialeto nacional, não importa o extrato social do indivíduo, pode ser uma zungueira,1 uma dona de casa, um professor primário, uma quinguila,2 um enfermeiro ou 1. Vendedora ambulante. [N. do E.] 2. Cambista informal de rua de moeda estrangeira e nacional. [N. do E.]
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até um ministro. Todos sabemos articular as palavras certas de forma a remediar a situação, e isto é… esquema. A nossa dependência do esquema chegou a tal ponto que, atualmente, é de mau tom executar determinada tarefa, solu cionar um problema, sem recorrermos ao banco dos esque mas que a sociedade adotou para todas as relações interpes soais. Nenhum homem é uma ilha, o esquema unifica a nação. Sim, o esquema não tem cor partidária, não escolhe idade e não discrimina género, ele promove o diálogo, promove a amizade, aproxima familiares distantes e até torna aceitável perante a sociedade relações polígamas – entre marido, mu lher e a outra, ninguém mete a colher, cada qual tem o seu esquema, diz a sabedoria popular. É claro que o esquema que nos salva é o que também nos condena. Não existem no nosso vocabulário social outras pala vras, como “aptidão” ou “mérito”, que possam vir a substituir tão cedo esse vício que tanto nos amamentou como, ao mesmo tempo, nos atrasou a vida. Se precisamos de esquema para nas cer, esquema para viver e, claro, esquema para morrer, estou convencido de que só nos livramos desse mal combatendo es quema com esquema. Solução? Institucionalizando o esquema, como fazem as sociedades mais desenvolvidas, que há muito entenderam os benefícios de se ter uma economia de esquema bem organizada, que cobra IVA e desconta para a segurança so cial. Na nossa Angola, lindo seria ter um desses esquemas para a esperança média de vida, algum que a colocasse acima dos nossos tristes 52 anos.
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Lisboa dos madrugadores Eu gostaria de ter sido fotógrafo. Um dos acontecimentos que mais me impressionavam, quando me mudei para Lisboa, na segunda metade dos anos 1990, era assistir, durante as minhas caminhadas pós-noitada, à luz que se abatia sobre a Baixa, es tendendo-se do cais das Colunas até o Rossio numa preguiça iluminada. O sol sempre foi generoso para com a cidade das sete colinas, que, por sua vez, sempre lhe soube dar as boas-vindas, com o tom pastel das fachadas dos seus edifícios, com os seus telhados terracota e, claro, com o seu rio Tejo. Tudo pa rece ter sido colocado de propósito para o espetáculo que é o amanhecer lisboeta. Apetece-nos aplaudir de pé, apetece-nos ser turista até, tirar centenas de fotografias e emoldurá-las to das em casa. Mas esse momento de luz não seria tão inesquecível, pelo menos para mim, se não viesse acompanhado daquele que é um dos acontecimentos mais extraordinários a que alguém pode assistir numa capital europeia: o enorme contraste entre o lirismo paisagístico da cidade e a crueza concreta de quem vive nela. Algo difícil de ignorar, mas ainda assim tão poucas vezes retratado na poesia ou no cinema que tem como cenário esta cidade. Se nos contassem, chegaríamos até a duvidar. Com os primeiros vestígios de luz, ouvíamos a multidão a desaguar na Baixa, num passo apressado correndo atrás de autocarros, olhos postos no chão. Indiferentes a tudo, com o tempo cronometrado ao segundo e num silêncio fúnebre. A cidade, com os seus tons suaves, amarelo-ocre, rosa-alma gre e azuis, em brincadeira com o sol, revelava, então, as suas verdadeiras cores, aproximando-se da reputação exótica que lhe atribuem os estrangeiros que a visitam. Lisboa, a cidade
34 Oikonomos, 2011
que amanhecia negra e ia ficando mulata à medida que o dia avançava, e que ficava bem nórdica quando o sol se punha. Foi assim que a conheci, durante muito tempo só os afri canos boémios eram avistados depois de escurecer. Poucos, se compararmos com o número daqueles que desembarcavam na Baixa matutina, vindos dos subúrbios que circundam a cidade. E como eram poucos, conheciam-se todos; chegavam sempre pontualmente atrasados, nunca antes da meia-noite, como que cumprindo um ritual. Reclamavam algo que era intrinsecamente seu, depois de uma semana de duelo cons tante com a sua infame condição de africanos, de imigrantes, em cima de um andaime, com um balde de cimento e uma espátula na mão, ou no alto das escadas, avental, sabão e es fregona em punho, ou ainda na fila do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, sem senha e sem perspetiva de como ou quando sair da sombra e deixar de ser um número na estatística. Aque las madrugadas serviam de bálsamo, o único analgésico pos sível para sobrevivermos à Lisboa dos 1990 com um mínimo de dignidade. Gostaria de ter sido fotógrafo, porque esta Lisboa dos ma drugadores que conheci, faz agora 20 anos, continua a cruzar o meu bairro, de olhos colados no chão e passo largo, carre gando nas costas a luz de Lisboa, num espetáculo singular que tem tanto de triste como de belo, e é a vida como ela é, na sua urgência de morte, a correr apressada para não perder o autocarro.
37 Fernando L. Makélélé, Tipo Passe, 2014
Minha cor política E, de facto, há anos que não o via; ouvir-lhe a voz, mesmo com o avançado da hora, era motivo de festa. Esfreguei o olho, sa cudi o sono e saltei da cama. Sim, sou do tipo que não conse gue conversar deitado e em trajes menores. Talvez por per tencer àquele tempo distante em que não havia telemóveis, e atender uma chamada implicava deslocarmo-nos até ao apa relho, geralmente estacionado na sala. Assim fiz, vesti-me e sentei-me no sofá. Depois das saudações da praxe, o meu interlocutor não me deu espaço para mais dois dedos de conversa de chacha, ful minou com a pergunta: “Quem é o negro português?”. Con fesso que não esperava ter sido tirado da cama para identificar ou traçar o perfil de um grupo étnico, ainda que fazendo parte dele. A resposta exige naturalmente uma reflexão mais cui dada, capaz de se esquivar e se distanciar dos lugares-comuns em que quase inevitavelmente esbarramos, antes de mergu lharmos e resgatarmos, no meio do preconceito, recalque e estigma social, o verdadeiro rosto do negro luso. Para traçar esse retrato, poderíamos até começar com os Descobrimentos e afirmar que o negro português é aquele que descobriu o caminho marítimo para a Índia, aquele que descobriu o Brasil. Se não fosse, como disse, pelo avançar da hora, falaríamos de astronomia e da origem das caravelas. Mas não da forma tímida e superficial que geralmente dedicamos à análise desses aspetos históricos, tão lusos, tão mouros, tão negros. Contudo, por não existirem muitos negros que se interessem por esses assuntos, continuamos a navegar nesse mar de silêncio, monocromático, convencidos de que a pri meira coisa que os negros portugueses conheceram, uma vez em terra, foram os calabouços da alfândega do porto de Lisboa,
38 Oikonomos, 2011
onde, após o desembarque, eram avaliados, divididos em lotes e vendidos em leilão. Aprendemos os modos, a língua, os santos, aprendemos até a falar baixinho e a andar com os olhos postos no chão. Numa conduta exemplar, evitando até questões elementares, como esta de “quem é o negro português?”. Se Portugal viveu isolado até 1974, então os negros, na sombra do império, esta vam completamente esquecidos, entregues a uma solidão tão violenta que os poucos motivos de orgulho, como os feitos extraordinários de Eusébio, eram celebrados sem a euforia com que celebramos hoje os feitos de um patrício. Ter cons ciência da cor da pele e celebrar esse facto sempre foi tido como um ato político, ser negro é um ato político, e como os negros não “pensam”, ter consciência política é perigosa mente assustador.
O fotógrafo angolano Edson Chagas (1977) vive em Luanda, onde se divide en tre o trabalho na imprensa e uma produção artística que reflete sobre os cho ques entre as tradições e o mundo contemporâneo. Recebeu o Leão de Ouro da Bienal de Veneza em 2013 por sua sua exposição Luanda, cidade enciclopédica.
#32 ½ julho 2019
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