Revista serrote 1½

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serrote #1 ½  Edição especial para a FLIP 2009


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serrote UMA REVISTA DE ENSAIOS, IDeIAS E LITERATURA


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No adro da igreja do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo, os profetas esculpidos por Aleijadinho foram fotografados por Horacio Coppola, em 1945; nas páginas anteriores, as fotos que ele fez do poeta Manuel Bandeira na rua do Curvelo, no Rio, possivelmente em 1931; o olhar da moça para a câmera, na primeira foto, e o de Bandeira, na segunda, indicam que Coppola estava em um ponto mais acima na subida do Curvelo © Horacio Coppola/Instituto Moreira Salles


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Em busca de Minas Fotos inéditas do poeta na rua do Curvelo são um enigma na viagem do fotógrafo argentino Horacio Coppola para documen­tar o mestre do barroco

O poeta entre profetas Jorge Schwartz

“[…] mi viaje a Minas Gerais (1945) donde me esperaba ‘mi Aleijadinho’. En Río se festejaba el fin de la guerra. Me dolió el Carnaval. Volví con mis fotos y en el garaje-laboratorio hice las ampliaciones.”

Nascido em Buenos Aires em 31 de julho de 1906, Horacio Coppola descobriu a fotografia com seu irmão mais velho, Armando. O gosto pelas artes persistiu durante os anos em que estudou direito: ainda na universidade, presidiu em 1929 o primeiro cineclube argentino e, durante uma viagem de estudos em 1931, comprou sua primeira câmara Leica. Um ano antes, em 1930, publicara duas fotos dos arrabaldes de Buenos Aires na primeira edição do Evaristo Carriego, de Jorge Luis Borges, então uma figura-chave do grupo que editava a revista Sur, na qual Coppola divulgou, de volta da viagem de 1931, seu primeiro ensaio fotográfico mais extenso. Ao longo da década de 1930, completou sua formação artística com duas importantes viagens ao estrangeiro. Na primeira, entre 1932 e 1933, foi à Alemanha, frequentou o curso de Walter Peterhans na Bauhaus, realizou o curta-metragem Traum, em parceria com Walter Auerbach, e colaborou com as fotógrafas Ellen Auerbach e Grete Stern, do estúdio ringl+pit. Na segunda, entre 1934 e 1935, foi a Paris e a Londres, onde se casou com Grete Stern. De volta à Argentina, o jovem casal realizou a primeira exposição de arte moderna do país, nos salões da Editorial Sur, em 1935. Fixando-se então definitivamente em Buenos Aires, onde ainda vive,


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1. Horacio Coppola, “Texto autobiográfico”, in Imagema. Buenos Aires: Fondo Nacional de las Artes/ Ediciones de La Llanura, 1994.

2. Em mensagem eletrônica de 6 de maio de 2009, Davi Arrigucci Jr. informa que “em 1920, o poeta que morava na rua do Triunfo, em Paula Matos, muda-se para a rua do Curvelo (hoje Dias de Barros), 43, onde já morava Ribeiro Couto, na pensão de dona Sara, que tantos prazeres da boa mesa daria aos dois amigos. Mas, em 1924, muda-se para o número 51, ‘velho casarão quase em ruína’, na mesma rua do Curvelo, onde permaneceria até 1933. Nesse ano, abandona a rua do Curvelo e a casa em que depois moraria Rachel de Queiroz e muda-se para a Morais e Vale, uma rua em cotovelo no coração da Lapa, ao pé do morro de Santa Teresa (também chamado pelo poeta de morro do Curvelo). Em 1942, muda-se para o edifício Maximus, na praia do Flamengo. Em 1944, muda-se para o edifício São Miguel, na avenida Beira-Mar, apartamento 409. Em 1953, muda-se para o apartamento 806 do mesmo edifício São Miguel”.

Coppola desenvolveu uma longa carreira de fotógrafo, professor e editor, sem contudo deixar de empreender expedições fotográficas pela Argentina, onde se interessou pelas culturas pré-colombianas, e também pelo Brasil. Com efeito, sabíamos que Coppola estivera no Brasil em 1945, com a finalidade de documentar extensivamente a obra do Aleijadinho. Coppola aguardou dez anos para divulgar os resultados da viagem a Minas Gerais, no belíssimo e hoje raro El Aleijadinho, publicado em 1955 por sua própria editora, La Llanura, com capa ilustrada pelo artista galego Luis Seoane. Em seu extenso “Texto autobiográfico”, que publicou aos 88 anos de idade, não há nenhuma outra menção ao Brasil afora a da viagem de 1945.1 Contudo, percorrendo o arquivo de contatos fotográficos – verdadeiro caderno de viagens –, organizado por Coppola com a ajuda de sua segunda esposa, Raquel Peralta Ramos, encontramos registradas passagens por Santos, pelo Rio de Janeiro e por Salvador. Entre essas anotações, aparecem dois fotogramas inéditos até hoje: Manuel Bandeira, de pijama, à beira de uma janela de treliça que dá diretamente para a calçada, numa casa ou pensão de número 51, na rua do Curvelo, em Santa Teresa – conforme informação de Davi Arrigucci Jr.2 Numa das fotos, ele está com a expressão sorridente; na outra, Bandeira estende a mão para uma moça. As fotos foram tiradas de cima, provavelmente pela inclinação da própria rua do Curvelo. São típicas fotos de viagem, de circunstância. Em um primeiro momento, tive certeza de que Coppola fizera essas fotos durante a visita de 1945 ao Brasil, quando certamente passou pelo Rio de Janeiro para chegar a Minas Gerais. Mas a cronologia dos domicílios de Bandeira mostra que Coppola esteve na baía de Guanabara bem antes disso, pois em 1945 Bandeira já vivia num apartamento de quarto andar na avenida Beira-Mar. Como nas memórias de Coppola não há registro de uma temporada no Brasil antes de 1945, eu tinha razões para pensar que as várias cidades brasileiras presentes no caderno de contatos tinham sido meras e rápidas escalas durante viagens de navio – difíceis de datar, pois o caderno mistura fotos feitas na Argentina, no Brasil e na Europa, sem ordem aparente. No entanto, precisar as datas dos retratos de Manuel Bandeira, cruzando a biografia do poeta com a do fotógrafo,


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Os profetas Oseias e Daniel, em Congonhas do Campo; o projeto de Coppola de documentar extensivamente a obra de Aleijadinho, de 1945, saiu dez anos depois no hoje raro livro El Aleijadinho


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3. Vale lembrar que as extraordinárias fotos do Aleijadinho, aproximadamente 400, foram feitas com outro equipamento, em chapas de vidro de formato 6 x 9 cm e 9 x 11 cm, possivelmente uma câmara Linhof Technika alemã. Agradeço a Sergio Burgi por essa informação. Boa parte das fotos do Aleijadinho encontra-se na Reserva Técnica do Instituto Moreira Salles e será o tema de um livro próximo.

4. Cf. a revista Lyra, 15.09.1944; em 1951, Gómez de la Serna publicaria um segundo artigo sobre o Aleijadinho, “Arte religioso en Brasil”, na mesma Lyra, n. 89-91, jan./mar. 1951, pp. 115-158.

conduz a alguns dados instigantes. As páginas do caderno em que figuram vêm encabeçadas pela palavra “lei”, confirmando que as fotos foram feitas com a máquina Leica adquirida em 1931, na Alemanha.3 No vaivém dos contatos, aparecem fotos da cidade de San Gimignano; a única fotografia dessa cidade da Itália que Coppola publicou foi datada por ele mesmo como sendo de 1931. É possível, então, que as fotografias feitas no Brasil tenham sido realizadas na volta da viagem de 1931 à Europa, ao sabor das diferentes escalas: Salvador, Rio de Janeiro e Santos (há também alguns contatos feitos em Teresópolis). Os nomes das cidades, assim como o de Manuel Bandeira, aparecem manuscritos ao lado dos fotogramas. Há ainda um bom número de fotos de navio, de chaminés, de cais, de convés, de cordas de barcos. Tudo isso prova que Coppola já pusera os pés no Brasil antes da viagem mineira de 1945. As relações culturais entre a Argentina e o Brasil na primeira metade do século 20 nunca foram intensas, ao contrário. Assim, esse fugaz encontro de Coppola com Bandeira e posteriormente com a obra do Aleijadinho nos leva a algumas suposições. As primeiras notícias do Aleijadinho na Argentina do século 20 passam pela revista Sur, de Victoria Ocampo, em cujo número inaugural de 1931 apareceram dois longos ensaios que chamam a atenção: “Notas de viaje a Ouro Preto”, de Jules Supervielle, e “La selva”, dedicado ao Brasil, de Waldo Frank. Supervielle detém-se no Aleijadinho, “um grande escultor, glória de seu país e da arte barroca”. Nesse mesmo ano, como já dissemos, Coppola publicou na edição de primavera da revista seu primeiro ensaio fotográfico mais extenso, “Siete temas. Buenos Aires”; é difícil imaginar que não tivesse lido os dois artigos anteriores. Dez anos mais tarde, saiu em Saber Vivir, revista mensal de cultura, o texto de M. Vila-Nova Santos, “El barroco en el trópico” (Saber Vivir, n. 12, jul. 1941). Em 1944, pouco antes da grande viagem de Coppola ao Brasil, publicou-se um artigo ilustrado de Ramón Gómez de la Serna, que residia em Buenos Aires, sobre “El Maestro Antonio Francisco el Aleijadinho”.4 Mas o que deve ter sido decisivo para o amadurecimento dos planos de viagem de Coppola foi a publicação, nesse mesmo ano de 1944, do livro de Newton Freitas, El “Aleijadinho” (Buenos Aires: Editorial Nova, coleção Mar Dulce, direção de arte de Luis Seoane), com uma iconografia


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das esculturas. Newton Freitas, companheiro de Lídia Besouchet, exilou-se durante o Estado Novo em Buenos Aires, onde passou a residir em 1938, e transformou-se no maior divulgador da cultura e da arte brasileiras na Argentina, por meio de vários livros e inúmeros artigos. Em depoimento pessoal, Coppola confirmou ter sido muito próximo de Newton Freitas (que inclusive fora retratado por Grete Stern, de quem Coppola se separou em 1943). Embora não tenha sido possível comprovar a informação, suspeito de que Newton Freitas tenha estimulado Coppola a empreender a viagem a Minas e sugerido, quem sabe, o nome de Rodrigo M. Franco de Andrade, diretor do Sphan, para auxiliá-lo na pesquisa sobre o artista mineiro, como indicam os agradecimentos do livro de Coppola. A questão que fica por enquanto sem resposta é a de como ou com a ajuda de quem Horacio Coppola fotografou Manuel Bandeira por volta de 1931. Em 1974, no final do folheto de quatro páginas da primeira exposição de 40 fotos sobre o Aleijadinho, na Fundação Lowe de Buenos Aires, aparecem reproduzidos fragmentos do Guia de Ouro Preto (1938), de Manuel Bandeira, além de um poema de Oswald de Andrade, “Ocaso” (da seção “Roteiro das Minas”, de Pau Brasil), transcrito integralmente por Bandeira em seu guia de 1938. Com essa inclusão, Bandeira referendava o interesse dos modernistas pelo barroco mineiro. Pode ser que o próprio Coppola, que sempre cuidou com esmero e generosidade de suas edições e exposições, tenha selecionado os fragmentos do livro de Bandeira. Embora o encontro tenha ocorrido mais ou menos uma década antes da passagem de Coppola por Minas, não fica afastada a hipótese de que o poeta tenha contribuído, direta ou indiretamente, para essa viagem, que considero histórica na trajetória fotográfica de Horacio Coppola. Uma pesquisa na alentada biblioteca do fotógrafo argentino, atualmente com 103 anos de idade, poderia dirimir essas dúvidas – quem sabe até não depararíamos com algum livro de poemas bandeirianos ou com o Guia de Ouro Preto, dedicado e datado por Manuel Bandeira?

Atual diretor do Museu Lasar Segall (São Paulo), jorge schwartz é professor titular de Literatura Hispano-Americana da Universidade de São Paulo. Autor de estudos sobre Murilo Rubião, Oliverio Girondo e as vanguardas latino-americanas, organizou a Caixa modernista (São Paulo: Imprensa Oficial, 2003) e foi curador, entre outras exposições, de Da antropofagia a Brasília. 1920-1950 (Instituto Valenciano de Arte Moderno, 1998, e Faap, 2000), Xul/Brasil: imaginários em diálogo (São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2005), Horacio Coppola: visões de Buenos Aires (São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2007), Horacio Coppola. Fotografía (Madri: Fundación Telefónica, 2008) e Os sonhos de Grete Stern: fotomontagens (São Paulo: Museu Lasar Segall, 2009).


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BANDEIRA NO IMS Além do argentino Horacio Coppola, mais três fotógrafos do acervo do Instituto Moreira Salles fizeram retratos do poeta Manuel Bandeira: José Medeiros (as duas fotos da fileira de cima, feitas na década de 1950: à esquerda, com o cronista Orígenes Lessa; à direita, com Aida Pongetti e José Lins do Rego); Carlos Moskovics (fotos da fileira de baixo, feitas para a Revista do Globo, com o poeta mostrando o seu violão e consultando seu fichário); e Alécio de Andrade (na página ao lado, em 1964, no Rio de Janeiro) ©Carlos Moskovics/Instituto Moreira Salles  ©José Medeiros/Instituto Moreira Salles  ©Alécio de Andrade/Instituto Moreira Salles


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Clássicos Pequena seleção de textos que o mestre do estilo e do humor escreveu para uma das mais famosas seções da revista New Yorker

Escritos para “Notas e comentário” E.B. White

Vida

09.01.1945 Às oito da manhã de um dia quente, a cigarra mostra seu primeiro ato. Ela diz do mundo: calor. Às 11 horas do mesmo dia, ainda cantando, ela não mudou de nota, mas ampliou seu tema. Ela diz da manhã: amor. No meio da tarde abafada, quando a tristeza do amor e do calor a sacudiu, sua alma sinfônica atinge o grande movimento e ela diz: morte. Mas a coisa não chegou ao fim. Depois do jantar, ela tece calor, amor e morte numa estrofe final, mais sutil e menos audaciosa que as demais. Ela tem um último dissílabo heroico sob seu comando. Vida, ela diz, reminiscendo. Vida.

Alma americana

À esquerda, E.B. White e Minnie, sua cadela da raça dachshund, no escritório da revista New Yorker, por volta de 1955 © Bettmann/Corbis/Latinstock

03.05.1930 Quando soube que o prêmio do National Arts Club seria destinado a um livro que “revelasse a alma da América”, um de nossos amigos mais queridos se sentou e começou a trabalhar. Ele tinha um bom enredo e parecia, pelo menos quando nos despedimos, muito interessado em passá-lo para o papel. Quando o reencontramos, um ou dois dias depois, ficamos surpresos ao saber que ele havia desistido do projeto. Aparentemente, ao ler no jornal pela primeira vez sobre o prêmio, achou que tinha visto 30 mil dólares; mais tarde, ele olhou de novo e descobriu que dizia 3 mil dólares. Fiel à alma da América, ele desistiu imediatamente.


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O custo dos hífens

1. Willy-nilly, no original. [n. do e.]

15.12.1928 A dor que faz parte de todas as composições literárias é agravada, em certos casos, pela consciência do escritor de quanto irá ganhar por palavra. Há pouco, encontramos um escritor trabalhando e o acompanhamos enquanto ele concluía sua tarefa. Casualmente, ele mencionou que ganhava 50 centavos por palavra. Instantes depois, seu rosto contorceu-se num sinal de agonia. Com a mão equilibrada em cima da máquina de escrever, ele parecia lutar contra alguma coisa. Por fim, voltou-se para nós. “Escute”, disse, fazendo uma careta, “vai hífen em lusco-fusco?”1 Assentimos com a cabeça, e o vimos estremecer enquanto encaixava o pequeno sinal, ao custo de meio dólar.

Alguma coisa do tipo

26.11.1932 Uma jovem nascida na Rússia nos contou que estava prestes a se tornar cidadã americana, e que seríamos suas testemunhas, pois era preciso que alguém depusesse em favor de seu caráter e de suas boas intenções. Imensamente tocados, vestimos um paletó e a acompanhamos até uma espécie de estábulo do outro lado de North River. Lá, fomos empurrados de um funcionário da imigração a outro, até que, por fim, acabamos diante de uma bancada, uma bandeira norteamericana e um examinador frio e sisudo. Depois de algumas perguntas de rotina, de repente, o homem acelerou o passo e indagou: “Você acredita em comunismo, anarquia, poligamia – ou alguma coisa do tipo?”. E, antes que pudéssemos investigar a expressão “alguma coisa do tipo” – o que julgamos ser nosso dever –, nossa jovem amiga já tinha alegremente respondido “não”, e tudo acabara. Agora ela é uma cidadã americana, a propósito, muito bela, e jurou nunca acreditar em Alguma Coisa do Tipo.

Pouso na lua

2. Durante a missão Apolo 11, Neil Armstrong e Edwin “Buzz” Aldrin deram os primeiros passos na lua, em 20 de julho de 1969 (“Um pequeno passo para o homem, um grande salto para a humanidade”).

26.07.1969 A lua é, no fim das contas, um bom lugar para o homem. Um sexto de gravidade deve ser muito divertido, e quando Armstrong e Aldrin2 se lançaram à sua animada dancinha, como duas crianças felizes, não foi apenas um momento de triunfo, mas também de alegria. A lua, em compensação, é um lugar


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ruim para as bandeiras. A nossa parecia dura e esquisita, tentando flutuar na brisa que não sopra. (Deve haver uma lição aí, em algum lugar.) É claro que faz parte da tradição dos exploradores fincar uma bandeira no solo, porém, enquanto assistíamos com reverência, admiração e orgulho, percebemos que nossos dois amigos eram homens universais, e não de uma só pátria, e deviam ter se equipado de acordo. À maneira de todos os grandes rios e mares, a lua pertence a todos e a ninguém. Ainda traz o segredo da loucura, ainda controla as marés que banham as praias de todo o mundo, ainda vigia os amantes que se beijam por toda parte, debaixo de bandeira nenhuma, somente do céu. É uma pena que, em nosso momento de triunfo, não tenhamos renegado a famosa cena de Iwo Jima e, em vez disso, plantado um emblema comum a todos: um lenço branco e frouxo, talvez, símbolo do resfriado normal que, como a lua, afeta a todos nós.

Mistérios da vida

22.09.1928 Cerca de uma vez por ano, quando os cientistas britânicos se reúnem, a alma humana sai nos jornais. A cada ano, os mistérios da vida e os enigmas da morte são esclarecidos ou colocados em suspenso. Os relatórios desses homens sábios nos enlevam, e há momentos em que nos sentimos muito próximos de entender o segredo da vida. Passamos por um desses momentos outro dia de manhã, ao ler uma longa matéria sobre a química das células. Infelizmente, quando terminamos, aconteceu de deitarmos os olhos sobre o aquário de nosso peixe dourado, e lá havia um novo habitante. Frisky, a lesma de estimação, dera à luz um filhinho, enquanto estávamos distraídos. O bebêmolusco serpenteava pelas profundezas turvas do aquário, balançando as antenas, sacudindo sua cabeça rugosa. Nada na aparência ou na conduta de Frisky fornecia o menor indício do acontecimento abençoado; olhando para o pequeno recém-chegado, nos sentimos muito humildes e jogamos fora o jornal matutino. A vida continuava tão misteriosa quanto antes.

Dupla personalidade

19.02.1955 Nesta era da televisão, da palavra falada e da imagem efê­mera, acabamos encontrando satisfação na palavra impressa, que é duradoura por natureza. Sempre que assistimos à tv, nos impressionamos com duas coisas: sua eficácia e sua fugacidade. Ela passa e vai embora. A palavra impressa é perene – pode-se entrar numa biblioteca 30 anos depois e ela está lá (por insignificante que pareça). A coisa mais intrigante da tv é o sólido avanço do patrocinador para além da linha que separava a notícia da propaganda, o entretenimento da comercialização. O anunciante assumiu o papel do criador, e o realizador foi gradualmente sendo transformado em mascate. Isso é evidente em todo


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lugar. As vozes do rádio e da televisão são vozes de verdadeiros ilusionistas; eles passam do ato de vender para o ato de noticiar e de volta às vendas num passe de mágica. Estão perdendo sua agudeza, pois dividiram sua lealdade. Em 1925, quando a New Yorker surgiu, um artista era um artista, um escritor era um escritor, um repórter era um repórter e um ator era um ator. Hoje, todos desenvolveram dupla personalidade e têm algo a vender além de seu talento. Um âncora de telejornal aparece na tela e, por um instante, não sabemos se ele traz notícias sobre uma ilha remota ou sobre a traseira de um automóvel. Em geral, traz ambas. Uma garota começa a cantar, e por um instante não dá para definir a fonte de sua paixão lírica. Pode ser amor, pode ser algo que vem num pote. Consciente ou não, há uma tentativa de ofuscar a linha divisória que a imprensa lutou para estabelecer. Essa linha teria desaparecido há muito tempo se a voz humana fosse capaz de soar a mesma em ambos os papéis, mas não o é. Quando alguém diz algo que lhe pagaram para dizer ou elogia algo por dinheiro, sua voz invariavelmente o denuncia; faltam-lhe as inflexões que fortalecem a voz ao expressar algo que vem do fundo do coração. É estranho que o comércio queira violar essa linha e confundir as duas vozes. E, ainda assim, é o que acontece. Se a linha desaparecer, se as vozes se tornarem indistintas, o show poderá acabar.

De caso com o Humor

05.10.1946 Alguém, talvez suspeitando que estivéssemos de caso com o Humor, enviounos a seguinte passagem de Proudhon. Decidimos reproduzi-la em tradução livre, com um misto de orgulho e vergonha – o tipo de sentimento contraditório que você sente quando está com uma bela garota e alguém assobia para ela: A Liberdade, como a Razão, não existe e nem se manifesta, salvo pelo constante desdém por seus próprios mecanismos; ela definha tão logo se enche de autoaprovação. É por isso que o humor sempre foi uma característica dos gênios filosóficos e liberais, um selo do espírito humano, o instrumento irresistível do progresso. Pessoas estagnadas são sempre solenes: numa multidão, o homem que ri está 100 vezes mais próximo da razão e da liberdade do que o eremita que reza ou o filósofo que discute. Humor – a verdadeira liberdade! –, é você quem me liberta da ambição do poder, da servidão a um partido, do respeito à rotina, do pedantismo da ciência, da admiração às celebridades, da mistificação dos políticos, do fanatismo dos reformadores, do medo desse enorme universo e da vaidade. Venha, soberano, lance um raio de luz em meus colegas cidadãos; acenda em suas almas uma fagulha de seu espírito, para que minha confissão os reconcilie e para que essa inevitável revolução aconteça com alegria e serenidade.


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A palavra de Proudhon é l’ironie, que aqui traduzimos como “humor”, possivelmente de forma pobre, mas com certa alegria e serenidade. Depois de muitos verões e invernos tendo a musa do Humor como amante e gerente de crédito, sentindo-a quente e fria, seguindo seus caminhos irracionais, tomando seus lábios, nossa afeição não enfraqueceu. A ligação se fortalece, mesmo que cada vez mais inoportuna. Venha, soberana, dê-nos um beijo. E nos livre, neste exato instante, da vaidade.

Liberação de Paris

02.09.1944 É possível que o verbete sobre Paris da Enciclopédia Britânica seja um dos trechos de prosa mais entediantes de qualquer biblioteca. Ainda assim, quando ouvimos a notícia da Liberação, na falta de outra ideia, resolvemos sentar e lê-lo de uma vez só, do começo ao fim. “Paris”, começamos, “capital da França e do departamento do Sena, situada na Île de la Cité, Île St. Louis e Île Louviers, no Sena, bem como às duas margens do rio, a 370 km de sua foz e a 450 km a sudeste de Londres (por trem e vapor, via Dover e Calais)”. Parece o início de um grande poema. Uma sensação de arrebatamento nos tomou conforme viramos as páginas e deparamos com um estudo do clima local e uma vista do Sena a partir do leste, desde Notre Dame. “As chuvas são uniformemente distribuídas”, continuou o enciclopedista. Uniformemente distribuídas, pensamos com nossos botões, como as lágrimas dos que amam Paris.

Escritores renomados?

11.12.1948 Antes que um livro possa ser publicado na Tchecoslováquia, o editor tem de submeter um resumo para aprovação do governo. Junto com o texto deve haver opiniões de “críticos literários, cientistas ou escritores confiáveis”. (Estamos citando um despacho enviado ao Times.) A discussão de quem seria um crítico ou escritor confiável é comum a todos os países, é claro. Deve ter surgido aqui, quando o hotel Algonquin anunciou diárias especiais para “escritores renomados”. Costumávamos imaginar como é que o Algonquin chegava à fascinante conclusão de que alguém era um escritor renomado, e se o homem da recepção exigia do candidato o rascunho de um romance iminente. Parece-nos que o governo tchecoslovaco também está numa situação difícil. Nenhum crítico ou escritor de verdade pode ser “confiável” no sentido político sugerido por esse duvidoso decreto, e, a fim de obter o tipo de censura que o governo obviamente quer, será preciso ir além e exigir que o próprio crítico seja certificado por um partido confiável, e depois ir mais além e exigir que o partido confiável seja legitimado. Isso tende ao infinito e a nenhum livro. O que é provavelmente o objetivo do governo tchecoslovaco.


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A discussão sobre quem é ou não um escritor ou cientista confiável nos faz lembrar a famosa frase da doutrina marxista – uma frase que é sempre citada e que levou muita gente a adotar o comunismo como filosofia de vida: “De cada um, segundo suas habilidades; a cada um, segundo suas necessidades”. Mesmo depois de contemplar a beleza absoluta desse conceito, somos deixados com um simples problema de atribuições: quem é necessitado e quem é capaz? De novo, surge o vulto do recepcionista – um homem sombrio. E atrás do recepcionista, outro recepcionista, para a vistoria de segurança. E assim por diante. Quem será o homem com autoridade para determinar nossas necessidades mais íntimas, quem será o responsável por aprovar o limite de realizações de que somos capazes? Talvez, como supõe a democracia, cada homem seja um escritor, cada homem totalmente necessitado, cada homem capaz de atos inimagináveis. Pode não ser tão agradável ao ouvido quanto a frase marxista, mas há uma ideia aí, em algum lugar.

Entre outras atividades na revista New Yorker, e.b. white (1899-1985) escreveu durante cerca de cinco décadas para a seção “Notes and Comment”. Como ela era considerada a seção editorial da revista, White usava a regra segundo a qual os textos deveriam estar na segunda pessoa do plural. The Elements of Style, o manual que ensinou gerações de americanos a escrever com mais clareza, baseado nas anotações das aulas com o professor de estilo William Strunk Jr., está completando 50 anos e já vendeu mais de 10 milhões de exemplares nos eua. Tradução de André Conti.


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gazelas, iracemas e lucíolas Nos arquivos do pesquisador José Ramos Tinhorão, hoje no acervo do ims, existem edições populares da obra de José de Alencar lançadas no início do século 20

Alencar, vistoso e berrante Rafael Cardoso

À esquerda, uma das variações da imagem de Iracema, de autor não identificado; a partir da década de 1920, os livros no Brasil passaram a adotar cada vez mais ilustrações vistosas nas capas coloridas, como forma de disfarçar o mau acabamento das edições em brochura Reproduções do arquivo José Ramos Tinhorão/Instituto Moreira Salles

Não se deve julgar um livro pela capa. Assim reza o senso comum. Será mesmo? Oscar Wilde, um dos mais geniais opositores do senso comum, escreveu que “somente pessoas muito rasas não julgam pelas aparências”. Quem não julga um livro pela capa, como faz para avaliá-lo? Pelo conteúdo, ora! Pelo texto, dirão os críticos literários, com impaciência e justíssima indignação. Ora, ora! Mas, no mundo de hoje, com o tempo curto e dezenas de milhares de títulos disponíveis em qualquer livraria mediana, como começar a escolher uns e não outros? Dirão os mesmos críticos: pelas resenhas escritas por nós e pelos prêmios outorgados, também por nós. Ora, ora? Há algo de perverso nesse raciocínio, decididamente ancien régime, no exato momento em que se buscam caminhos cada vez mais participativos para a difusão cultural. A célebre frase de Oscar Wilde, citada acima, é fala de lorde Henry Wotton, o mefistofélico profeta do hedonismo no romance O retrato de Dorian Gray, publicado pela primeira vez em 1891. Uma fala bem ao gosto da época, quando o mundo industrial começava a descortinar sua modernidade e quando, numa metrópole como a Londres da era vitoriana, as velhas certezas do passado eram embaralhadas por forças como capitalismo, democracia e irreligião. Pela


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primeira vez na história, cada um estava livre para ser o que pretendesse; e as aparências passavam a contar quase tanto quanto posse e propriedade, nome e posição social. Nasceram por volta dessa época: moda, propaganda, design, jornalismo e entretenimento, tal qual os concebemos hoje. Não por acaso, surgiram também novos tratamentos para velhos companheiros – como as capas dos livros, que passaram a ser ilustradas a partir da segunda metade daquele longínquo século 19. Como dândis que se destacavam da multidão de homens de preto por seus trajes ousados, os livros também se faziam vestir, às vezes escandalosamente. Com a chegada do ruidoso século 20, cada vez mais livros tiveram suas capas ilustradas. No começo, elas eram dirigidas a um público novo: leitores de primeira geração, cujos antepassados nunca haviam contemplado a possibilidade de possuir algum livro que não fosse a Bíblia ou o catecismo. Sem recurso a materiais caros e encadernações luxuosas, as novas edições em brochura disfarçavam seu péssimo acabamento e qualidade com capas coloridas e ilustrações vistosas. Editores pioneiros produziam livros para a massa, categoria social recém-nascida que então engatinhava no território sagrado das letras e das artes. A ideia era atrair o público pouco letrado, empregando recursos visuais impactantes que gerassem identificação imediata entre leitor e livro. O Brasil participou ativamente desse movimento entre as décadas de 1910 e 1920, às vezes antecipando-se aos acontecimentos em nível internacional. Afinal, num país de população majoritariamente analfabeta e tradição tipográfica limitada, o recurso à ilustração e às imagens era um fator comercial de importância nada negligível. Editoras de nomes esquecidos – Quaresma, Jacintho, Castilho, Leite Ribeiro – fizeram fortunas com best-sellers da época, como Benjamim Costallat, Humberto de Campos, João


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À esquerda, três variações da imagem de Iracema; à direita, a capa que o grande ilustrador paulista J. Prado fez para O tronco do ipê, em 1925, em edição da GraphicoEditora Monteiro Lobato; e o autêntico índio de maço de cigarros criado pelo desconhecido A. Kreisler para a capa de Ubirajara, edição da casa H. Antunes, por volta de 1925

do Rio ou Théo Filho, entre outros ainda menos lembrados. Impressiona que muitos livros vendessem dez ou 12 milheiros, atingindo numerosas reedições, no momento em que a população brasileira regulava em torno de um sexto do seu tamanho atual (já se leu bem mais no Brasil, per capita!). Grandes nomes das artes plásticas e da ilustração dedicaram-se à confecção de capas: Alvarus, Correia Dias, Di Cavalcanti, J. Prado, Paim Vieira, Raul Pederneiras. Depois de 1919, veio Monteiro Lobato, o autor e editor que revolucionou o mercado e, concomitantemente, sistematizou o emprego das chamadas “capas berrantes”. Datam dessa época áurea algumas das capas reproduzidas aqui, coletadas por José Ramos Tinhorão, grande pesquisador da música brasileira. Ao todo, são cerca de 30 reedições de José de Alencar, incluídas em sua biblioteca, hoje no ims. Nota-se o faro fino do pesquisador, capaz de garimpar joias, como uma edição do romance Senhora publicada na Colecção Chic da editora A. de Azevedo e Costa. A esplêndida capa ilustrada por Raul – artista, boêmio, professor de anatomia, delegado e um dos maiores caricaturistas de seu tempo – mostra uma jovem, no padrão de beleza do início do século 20, em provocante atitude de quem acaba de ser surpreendida em meio a uma indiscrição. Pena em riste, prestes a acometer seus segredos ao papel, ela olha de soslaio para o alto da margem direita e sorri enigmática. Logo abaixo, o corpo dela se desmancha por trás de um lindo título de letras desenhadas em outline, de leve inspiração


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À esquerda, as capas das edições de Senhora, Diva e Lucíola, todas da coleção Chic, da editora A. de Azevedo e Costa, com ilustrações do ótimo Raul, um dos mais importantes caricaturistas de seu tempo; a capa de A pata da gazela, de 1924, editado pela H. Antunes, antecipava a tendência de se tirar proveito do fundo branco. Na página 29, a capa de Lucíola de inspiração cinematográfica, com ilustração de Nino feita por volta de 1928, para a Companhia Editora Nacional

art nouveau. Raul realizou pelo menos duas outras capas para a mesma coleção – Diva e Lucíola –, todas obedecendo ao mesmo esquema gráfico e ao mesmo princípio de congelar um instante da narrativa. Outro grande ilustrador representado nessa seleção é J. Prado, maior nome da cena paulista, ao lado de Paim. Sua capa para O tronco do ipê, criada em 1925 para a então Companhia Graphico-Editora Monteiro Lobato, é um belíssimo exercício de aproveitamento gráfico, atingindo alto nível de efeito com apenas duas cores. A ilustração mostra um homem negro agarrado, com suas últimas forças, ao tronco de uma árvore, enquanto outro homem, mais claro, dependura-se de seu pescoço pelas pernas para salvar uma jovem muito branca prestes a se afogar no redemoinho. Com uma concisão narrativa impressionante, a imagem fixa os principais elementos cênicos – a lagoa do Boqueirão e o tronco do ipê – e as personagens – Mário, Alice e Benedito – do famoso romance alencariano de amor e morte. Sem revelar demais, abre uma janela para o interior da história, deslanchando a imaginação fértil de seus leitores. Nem tudo são grandes artistas, claro. É intrigante a preponderância de ilustrações toscas na preciosa coleção amealhada por Tinhorão. A capa de Ubirajara, edição da casa H. Antunes lançada por volta de 1925, traz o desenho de um desconhecido A. Kreisler, o qual mostra um legítimo índio de rótulo de cigarro do século 19 abrindo os braços em gesto de saudação à moça de pele clara que o aguarda em paradoxal atitude de nudez recatada. A puerilidade do traço sugere que não é de hoje que a obra de José de Alencar vem sendo vitimada por sua “adoção” nas escolas. Por causa da existência na coleção de pelo menos quatro outras reedições da H. Antunes, inclusive com capas variantes – quase todas péssimas, algumas do mesmo A. Kreisler – conclui-se que a venda de Alencar para o público juvenil é ótimo negócio, faz tempo. A capa de A pata da gazela, editada pela mesma casa em 1924, comprova que é difícil errar sempre. Com caprichado trabalho tipográfico e a ilustração recortada para tirar máximo proveito do branco da página, ela antecipa um estilo de diagramação que ainda demoraria muitos anos para se firmar no Brasil. Por falar em antecipar tendências, a joia da coroa dessa pequena coleção só pode ser a capa de Lucíola desenhada


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por Nino para a Companhia Editora Nacional, por volta de 1928. Com profunda inteligência gráfica, o ilustrador tira partido do fundo negro da página para criar uma zona ambígua que é, a um só tempo, cabelo e moldura para o rosto da figura e tábua para a escrita elegante do título, desenhado a mão. Com apenas três cores – preto, verde, vermelho – aplicadas em áreas chapadas, sem gradação e sem contorno, ele molda detalhes fisionômicos de queixo, nariz e boca e evoca sombras e reflexos de grande expressividade. As saturadas manchas verdes, cuidadosamente arranjadas em torno do desenho dos olhos, em preto e branco, dão à figura uma densidade e melancolia impressionantes. A inspiração de Nino é claramente cinematográfica, remetendo aos close-ups dramáticos do cinema mudo. Com a vantagem, para a femme fatale do artista, de ser colorida. E que colorido! A solução de criar uma diferença entre a cor dos lábios e a da pele por meio do uso de hachuras diagonais é nada menos do que genial. Cabeça molemente inclinada, olhar para longe, a Lucíola de Nino pulsa com sensualidade e mistério, qual uma heroína de D.W. Griffith ou Josef von Sternberg. Ela promete prazeres adultos, distantes do universo juvenil ao qual o cânone tem condenado o pobre Alencar. Nota-se, a partir desses poucos exemplos, quanto sentido a capa pode emprestar para o livro que encerra, e como é capaz de criar identificação entre o volume e segmentos específicos do público leitor. Uma capa solitária, qualquer que seja, é apenas a ponta do iceberg. E quando o livro, por sua popularidade e longevidade, engendra uma variedade de capas? O resultado dessa equação pode ser conferido na série de quatro edições de Iracema, publicadas entre 1925 e 1964, cujas capas são reproduzidas aqui. Será uma única narrativa capaz de guardar tantas interpretações, em linguagens tão diversas? Qual seria o traço de união entre o rosado índio de baile de carnaval que enfrenta o colonizador português em meio a uma floreada moldura e a escultural deusa de jade que rege um bizarro mundo verde de pequenos seres da floresta? Quem é a verdadeira Iracema – a sedutora e hollywoodiana índia, com olhos puxados e boca carnuda, que orna a edição da casa Irmãos Di Giorgio, de 1945, ou a masculinizada alegoria em preto e branco, criada por Goulart para a editora Melso, em 1964? A questão é complexa. Pensando bem, é verdade que não se deve julgar um livro pela capa. Melhor julgar muitos livros por várias capas.

rafael cardoso é escritor e historiador da arte, autor de A arte brasileira em 25 quadros (Rio de Janeiro: Record, 2008), Entre as mulheres (Rio de Janeiro: Record, 2007) e O design brasileiro antes do design (São Paulo: Cosac Naify, 2005), entre outros.


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Não perca na serrote # 2 Alexander Calder, Alice W. Flaherty, Antonio Candido, Bernardo Carvalho, Enrique Vila-Matas, Gore Vidal, Groucho Marx, James Agee, Jean Hatzfeld, John Updike, Paulo Pasta, Philip Guston, Raymond Carver, Ricardo Piglia, Richard Avedon, Rodrigo Naves. Em agosto nas melhores livrarias e em algumas bancas instituto moreira salles  Walther Moreira Salles (1912-2001) Fundador Diretoria Executiva João Moreira Salles Presidente  Gabriel Jorge Ferreira Vice-Presidente Francisco Eduardo de Almeida Pinto Diretor Tesoureiro  Mauro Agonilha Raul Manuel Alves Diretores Executivos

serrote é uma publicação do Instituto Moreira Salles que sai três vezes por ano: março, julho e novembro. Esta serrote #1 ½ só circula, gratuitamente, na Flip 2009.  COMISSÃO EDITORIAL Daniel Trech (DIRETOR DE ARTE), Flávio Pinheiro, Mariana Lanari (EDITORA DE IMAGENS), Matinas Suzuki Jr., Rodrigo Lacerda e Samuel Titan Jr.  ASSISTENTE DE ARTE Carol Soman  PRODUÇÃO EDITORIAL Acássia Correa  PRODUÇÃO GRÁFICA Letícia Mendes  ARQUIVOS DO IMS Cristina Zappa, Bruna Stamato e Marcelo Nastari Milanez PREPARAÇÃO DE TEXTOS Laura Rivas  PREPARAÇÃO E TRATAMENTO DE IMAGENS Joana Americano Castilho e Daniel Arruda REVISÃO Sandra Brazil, Laura Rivas e Flávio Cintra do Amaral  ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO Letícia Nascimento  © Instituto Moreira Salles  Av. Paulista, 14º andar, São Paulo, SP, Brasil, 01310-915  JORNALISTA RESPONSÁVEL Matinas Suzuki Jr.  IMPRESSÃO Ipsis Gráfica e Editora ASSINATURAS 11.3971.4372 leitor@revistaserrote.com.br “Escritos para ‘Notas e comentário’”, de E.B. White, impresso e traduzido sob permissão do Curtis Brown Group. capa Palmarium Circus: La feme sciée em deux, phénomène inconcevalbe © RMN/Jean-Gilles Berizzi/Musée des Civilisations de l’Europe et de la Méditerranée


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