Revista serrote 29 ½

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#29 ½  EDIÇÃO ESPECIAL PARA A FLIP 2018



texto Joca Reiners Terron

“A minha Casa é guardiã do meu corpo” Hilda Hilst

fotos Edu Simões


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1. Em entrevista de 2001 ao Suplemento Literário de Minas Gerais realizada por Fabio Weintraub, Sergio Cohn, Ilana Gorban e Marina Weiss, recolhida no volume Fico besta quando me entendem: entrevistas com Hilda Hilst, organizado por Cristiano Diniz (São Paulo: Globo Livros, 2013).

A Casa do Sol não aparece claramente na obra de Hilda Hilst (1930-2004) até 1974, quando se ilumina de imenso em poemas de Júbilo, memória, noviciado da paixão. Hilda se mudou em 1965 para a fazenda da mãe, Bedecilda Vaz Cardoso, onde aguardou por dois anos a construção da casa que planejara ser o lugar de realização de sua obra literária, em terreno contíguo. Na véspera de completar 35 anos, abandonou as estripulias boêmias da metrópole. Foi com a mesma idade que seu pai, Apolônio de Almeida Prado Hilst, teve diagnosticada a esquizofrenia. Observada em oposição à sombra da loucura do pai, a escolha de Hilda pelas varandas ensolaradas da casa de Campinas ganha em simbolismo, numa clara opção pela razão. Hilda temia enlouquecer. Em entrevistas, além de se perguntar se já não estaria louca, também transparece o quanto lhe afetava o desprezo do público, quase sempre acompanhado de reparos ao seu comportamento libérrimo e à sua fala sem rédeas. Lamentava ser incompreendida, afinal os loucos é que não são entendidos. É fácil imaginá-la, portanto, aos pés dessa figueira centenária numa noite de lua cheia, implorando por mais um dia de sanidade. Hilda acreditava que a árvore atendia pedidos, e conta que na juventude lhe pediu para que um dia construísse sua casa naquele lugar. O lote estava com dívidas em aberto, e um homem se ofereceu para quitá-las em troca da figueira. “Não, essa figueira sou eu mesma”, disse Hilda, “não posso me vender para o senhor.”1


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“A minha Casa é guardiã do meu corpo/ E protetora de todas minhas ardências”, diz um poema de Júbilo, memória, noviciado da paixão. Filha de um casamento efêmero, transferida para Santos em companhia da mãe logo após a separação dos pais, Hilda experimentou a inconstância do nomadismo desde cedo, assim como a clausura do internato no Colégio Santa Marcelina, onde viveu e estudou dos sete aos 15 anos; no ensino médio, viveu na companhia de uma governanta alemã. Em seus estilhaços de memórias da amiga incluídos em Da poesia (Companhia das Letras, 2017), Lygia Fagundes Telles se recorda de Hilda recriminá-la por estar sempre indo de um lado para outro. “Você não para, mas, afinal, do que você está fugindo?”, ela dizia. Ao contrário de Lygia, Hilda viveu quase 40 anos na Casa do Sol,

afiliando-se a uma das tipificações do narrador, segundo Walter Benjamin: sedentária, seu campo narrativo era o mítico e o mitológico. E a cercania com o místico a fazia viajar sem sair de casa por meio de sua aproximação do Fenômeno da Voz Eletrônica (a captação de vozes dos mortos nas ondas de rádio), das visitas de discos voadores e, principalmente, de artistas como Mora Fuentes e Caio Fernando Abreu. Aberta à alegria despertada por essas experiências e afetos que iam e vinham, Hilda parecia aguardar neles o regresso do pai, a quem recuperou pela poesia. “A minha Casa, Dionísio, te lamenta/ E manda que eu te pergunte assim de frente:/ A uma mulher que canta ensolara­da/ E que é sonora, múltipla, argonauta// Por que recusas amor e permanência?”


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E havia cães. Quase chegaram a 100. A conta real na verdade pouco importa. Imprime-se a lenda, e desde então o número só faz aumentar. Marcada na infância pela rêverie fatale, como Thomas De Quincey, a visionária Hilda sabia bem da qualidade mitológica de psicopompo desses animais, de sua condição de guias dos homens na escuridão da morte. Pipa e outros vira-latas da Casa do Sol poderiam ter sido chamados de Cérbero, Anúbis ou Xolotl, não fosse o fato de serem cadelas e cães reais, irredutíveis como Argos, o mascote de Ulisses, acolhedores feito qualquer banzé de rua. Na Odisseia, após sofrer as encarniçadas perseguições movidas por Possêidon, o rei retornou a Ítaca disfarçado e sob a proteção de Atenas. E dentre todos os que ficaram, apenas Argos, relegado ao descuido mais miserável desde a partida de Ulisses, coberto de carrapatos e de sarna, largado em meio ao esterco usado para o plantio, reconheceu seu dono. Ao vê-lo abanar o rabo e abaixar as orelhas em sua direção, Ulisses disfarçou uma lágrima de compaixão e se escondeu. Um mendigo, afinal, reconhece outro mendigo? Distante de Ítaca no tempo e no espaço, a Casa do Sol (hoje Instituto Hilda Hilst) ainda abriga cães abandonados. Na época de Hilda, assim como agora, somente alguns deles fre­­quentavam os cômodos, e nem todos tinham nome. Poucos podiam subir à mesa e usá-la como guarita de observação, à espera daque­les que chegam de longe, de províncias ultra­marinas e de mais além, sabujos sempre alertas e fiéis.


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Em outubro de 1999, o Instituto Moreira Salles publicou a edição dedicada a Hilda Hilst dos Cadernos de Literatura Brasileira. Assim como os anteriores, o oitavo número foi ilustrado por retratos e fotografias de Eduardo Simões. O fotógrafo paulista, nascido em 1956, esteve diversas vezes na Casa do Sol para retratar Hilda e o entorno, a alameda de palmeiras e a figueira, Hilda e seu entourage de psicopompos. Contudo, nem sempre ela se fazia inteiramente presente; em certas ocasiões parecia indisposta para ser fotografada. As fotos não escondem a garrafa. Na entrevista ao Suplemento Literário de Minas Gerais, a própria Hilda esclareceu sua rotina alcoólica: começava a beber vinho do Porto às 11 da manhã (meia garrafa), depois dormia; após acordar, fazia a refeição e passava ao uísque. Estas são algumas das imagens mais icônicas do sarcófago solar que a própria Hilda Hilst erigiu para se perpetuar por meio do trabalho, pois também ilustraram sua obra completa editada pelo crítico literário Alcir Pécora nos anos 2000. Um retrato feito nessa mesma sessão, no qual Hilda observa a câmera com olhar irônico, reproduzido nas orelhas da Globo Livros, permite entrever seu senso de humor. Raras vezes sabe-se o que a estampa fala, o que Marilyn sussurrou antes de Richard Avedon fazer o clique fatal, ou o que ia pela cabeça de Albert Camus ao colocar na boca aquele perpétuo cigarro diante de Cartier-Bresson. Hilda, por seu transbordamento desbocado, não decepciona expectativas de quem admira sua liberdade. Simões já registrara excelente material com sua Hasselblad naquela tarde, mas, como exige a diligência tão característica dos fotógrafos, não estava satisfeito. Ao fazer o retrato que aparece na orelha, porém, ouviu Hilda murmurar, aparentemente para si mesma, muito amuada: “Se você fizer mais uma foto, eu vou chorar na sua frente”.


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Eis o parque de diversões da poeta, necromunicadora, anfitriã de objetos voadores não identificados e de amigos bem reconhecíveis. A escrivaninha da escritora não passa de uma ilusão, de um fetiche? Daqui, é impossível verificar a estrutura da mesa, se é um móvel antigo ou uma prancha apoiada num cavalete, mas em cima do tampão podemos ver uma saboneteira metálica em forma de concha usada como cinzeiro (com cinco bitucas dentro), contas, pedras e quartzos, papéis e livros, um recipiente plástico, provavelmente embalagem de requeijão ou cogumelos em conserva, repleto de canetas, marcadores e lápis, óculos, moedário, cola de bastão, conchinhas, um paliteiro (não é possível enxergar se contém palitos ou outros objetos), régua, caderneta, um selo, um sinete para lacre de cera (Hilda era uma correspondente contumaz) e o retrato de Apolônio, o pai, a obsessão. Em um conhecido ensaio sobre os objetos de sua escrivaninha, Georges Perec alerta sobre o crescente esquecimento do uso de enumerações e listas por parte dos escritores contemporâneos, exceção feita a Michel Butor e a seus ídolos do passado, Rabelais e Jules Verne. A escrivaninha de Perec (ou a de Hilda, e a de qualquer escritor apegado à inutilidade dos objetos, assim como à sua imanência de talismãs) serviria como uma possível história de seus gostos, parte do trabalho que planejava, “uma tentativa a mais de definir o meu lugar, espécie de aproximação oblíqua da vida cotidiana como a vivo na prática, um modo de falar sobre meu trabalho, minha própria história e minhas preocupações”. Também no caso de Hilda, que escrevia à mão como Perec, a visão da escrivaninha nos permite vislumbrar a parte da experiência do mundo no ponto exato onde a mágica acontece e “irrompe na superfície”.


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Publiquei um romance, Noite dentro da noite, no qual Hilda & a Casa do Sol cumprem papel incontornável. No encontro amoroso entre ela e o narrador do livro, o tradutor alemão Curt Meyer-Clason (1910-2012), me permiti toda sorte de liberdade ficcional (nem ao menos tenho certeza se ambos se conheceram), com a desculpa da necessidade provocada pelo incômodo: contrariado pela lembrança mais comum da imagem de Hilda na velhice, quis revivê-la na juventude, enquanto ainda fodia. “Há 20 anos não vejo um pau”, afirmou na entrevista ao SLMG. E contou da vez em que entrou no banheiro, sem querer viu o pau de um homem nu e, em consequência, teve uma crise de riso que a levou ao hospital, com falta de ar. Ela sofria de bronquite asmática, e de bom humor selvagem. “Essa coisa do sexo fica tão desimportante quando a gente envelhece […]. Fica cômico”, disse Hilda. “Perde-se aquilo que o Flaubert chamava de alacridade, isso que a pessoa sente quando está gostando de alguém.” E depois dá uma das mais lindas definições da paixão que já li: “Uma alegria que não se pode explicar”. Ao menos em meu romance, Hilda revisitou essa alegria. E que bom que a ficção também não exija explicações. Sob a perspectiva de quem aguarda, a alameda de palmeiras exala expectativa. Fechado, o portão de ferro está à espera de ser aberto em dois, dando passagem a alguém há muito aguardado. Podem ser alienígenas, amigos desaparecidos, sombras engolidas pela história, a figura do pai. Como no poema de Manuel António Pina, pode ser alguém que chega aonde sempre esteve e “encontra tudo no seu lugar, o passado no passado, o presente no presente”. E então eis que um cão se levanta e fareja o ar.

Joca Reiners Terron (1968) é escritor. Publicou livros de poemas e narrativas, além dos romances Não há nada lá, A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves e Do fundo do poço se vê a lua, todos pela Companhia das Letras. Por este último, recebeu o Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional, em 2010. Traduziu obras de Enrique Vila-Matas, Richard Brautigan e Mario Levrero. Seu último livro é o romance Noite dentro da noite (Companhia das Letras, 2017). Edu Simões (1956) assina os principais ensaios fotográficos de escritores e seus universos biográficos e ficcionais dos Cadernos de Literatura Brasileira. A publicação do Instituto Moreira Salles mapeou vida e obra de 27 nomes decisivos da produção literária do século 20.


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O riso Alice Meynell

Só as crianças se divertem com seu próprio senso de humor, livres do hábito que, para os adultos, condiciona a risada a um sinal de entendimento ou prazer

Veridiana Scarpelli

Houve tempos, diz-se, mais alegres do que este; no entanto é certo que nunca o riso foi tão respeitado como agora; poder-se-ia dizer, não fosse um paradoxo, que o riso nunca foi levado tão a sério. Por toda parte, a graça “emerge” – como talvez escrevesse um autor “elegante” – ou vem à tona para chamar a atenção do senso de humor; e, por toda parte, o senso de humor se espraia, espreita e espera para atender ao apelo. Com seu desejo vago, mas perpétuo, ele não se apressa. Mantém (perdoem-me a personificação grosseira) um lábio espichado, uma ruga expectante e um olho em suspenso. Estando muito a serviço do descobridor errante, pode ser abordado por quaisquer filhas circunstanciais da brincadeira. Ele se posta em lugares incômodos, ou lugares que foram outrora impróprios, e chega cedo a algum compromisso indefinido, algum encontro ubíquo, com a caçoada complacente. Toda a literatura se torna um campo de fáceis atribuições; há uma sinalização constante, um reconhecimento infinito. Formas de abordagem são revogadas. E a graça e o senso de humor, sem surpresa no encontro, sem qualquer alegria de estranhamento, tão costumeira a promiscuidade passou a ser, vão para cima e para baixo nas páginas do ensaio e do livro. Veja-se, de novo, o teatro. Uma espécie mais


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ou menos fácil de atuação cômica é tão de longe a melhor coisa em nossos palcos atuais que quase nada mais pode pretender – paradoxo outra vez à parte – ser levado a sério. Há, numa palavra, uma determinação, uma tendência que incessantemente se distancia da concepção oriental do riso como coisa mais adequada para mulheres, mais adequada ainda para crianças, e de todo inadequada a marmanjos. Por toda parte e em todos os momentos, o riso está sendo apregoado como a respeitável ocupação dos homens, e até certo ponto distintiva de homens, e como parte nada insignificante de suas prerrogativas e privilégios. O senso de humor é principalmente deles, e as mulheres só podem participar do gracejo se aceitam que os homens expliquem tudo. Eles não se furtarão a explicar. E há poucas coisas que um homem estima em si mais do que isso, “hoje em dia, na Inglaterra”. Neste ínterim, seria uma pena se o riso acabasse se tornando, como a retórica e as artes, um hábito. E, de certa forma, ele é um hábito, quando não é inevitável. Se nos perguntamos por que rimos, devemos confessar que geralmente nós rimos porque – tendo achado graça – queremos mostrar que nos divertimos. Acertamos ao dar essa indicação, mas um sorriso seria um sinal tão claro quanto um riso, e mais sincero; seria mudar a convenção; e a mudança poderia restaurar o riso ao seu devido lugar. Descambamos para o modo de usá-lo a fim de provar alguma coisa – nossa compreensão da qualidade do gracejo, nossa espirituosidade –; mas o riso não deveria ser usado assim, deveria ser livre. Ele não é uma demonstração, seja com base na lógica ou – como a palavra demonstração é usada em geral agora – na emoção; e nós, encarregando-o dessa tarefa, fazemos mal. Algo da ideia oriental de dignidade talvez não fosse inoportuno a um povo como o nosso, que contém vastas e numerosas classes que riem sem razão: plateias; multidões; muitíssimos religiosos, que talvez tenham incidido pela primeira vez no hábito com a intenção de provar que não eram tristes; mas também um grande número de leigos que não tinham essa desculpa; e muitas mulheres que riem na incerteza entre o que é engraçado e o que não é. Este último é o mais inofensivo de todos os tipos de riso supérfluo. Quando ele transmite um pedido de desculpas, uma confissão de ignorância natural e benévola, e quando uma gentil criatura solta um riso experimental ao acaso, ela merece ser mais do que perdoada. O que não lhe convém é rir um riso de entendimento e, por assim dizer, reaver a graça que nunca tinha valido a pena captar. Há algumas mulheres, além disso, que não se preocupam com o senso de humor e apenas riem motivadas por uma sensação de felicidade. É infantil esse jeito, e doce. Pois as crianças, que sempre riem porque têm de rir, nunca à guisa de prova ou sinalização, riem apenas metade de seus risos por força de seu próprio senso de humor; o restante é fruto de estímulos simples: porque têm muito sangue e fôlego; porque alguém corre atrás delas, por exemplo, e seus espíritos são tão agitados pelo movimento que as pernas se descontrolam, e elas riem sem que ninguém tenha feito graça.


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Se porventura chegar o dia em que homens e mulheres hão de estar contentes em sinalizar sua percepção de humor pelo sorriso natural, hão de guardar o riso para um ato não premeditado, hão de rir raramente e simplesmente, e não três vezes da mesma coisa – a primeira pela tola surpresa, a segunda pela compreensão tardia, a terceira para comunicar que acharam graça –, talvez então seja tempo de persuadir este país risonho a não rir tão alto como é costume em público. As plateias teatrais de países que falam mais alto riem mais baixo do que as nossas. A risada que é sobretudo sinal de uma impressão de ridículo por parte de quem ri é inevitavelmente alta, tendo a desvantagem de sobrepor-se ao que podemos talvez querer ouvir dos atores. É uma risada pública, e nenhum cidadão é intimado a rir diante dos outros. Ele pode rir em público, mas que seu riso, mesmo aí, seja privado. Se algo como uma reforma geral for possível nestes tempos de dispersão e disseminação, que doravante nos permitam manter o nosso senso de humor num lugar mais bem protegido, como algo que esteja à altura de um pouco de reclusão. Não lhe convém vagar à espera, em lugares aventurosos, da esmola de uma graçola. Pois o senso de humor tem mais coisas a fazer além de se mostrar conspícuo no ato de rir. Tem tarefas negativas de virtude válida; por exemplo, postar-se de pé à espera, ao alcance dos chamados da tragédia, em que, excluído, ele pode montar guarda. Nenhum homem sensato há de asseverar que os costumes orientais são melhores. Isso seria negar Shakespeare como os seus companheiros o conheceram, alguém em quem a agudeza de espírito “superou a carne, superou o vinho alegre”, seria negar “o mordaz Aristófanes, o saboroso Terêncio, o espirituoso Plauto” de Ben Jonson, bem como os restantes. Sem dúvida, a Grécia determinou a norma para todo o nosso Ocidente; mas, mesmo assim, o mundo moderno poderia se tornar mais sensível ao valor do autocontrole. A nenhuma outra das várias forças de nossas almas damos rédeas tão soltas quanto à força do humor, e a nenhuma outra cedemos com tão poucas exigências. É como se houvesse honra em governar os outros sentidos, e honra também em recusar-se a governar este. É como se ficássemos, aqui, envergonhados da razão, intimidados pela dignidade, desconfiados da temperança, hesitantes em face da moderação – e ansiosos demais para exibir aquele que em reclusão nada perde.

A inglesa Alice Meynell (1847-1922) celebrizou-se por sua poesia, mas desenvolveu uma prolífica carreira de ensaísta, no melhor estilo dos grandes nomes ingleses, como Charles Lamb e William Hazlitt. Com atuação destacada na luta pelos direitos das mulheres na Inglaterra, foi vice-presidente da Liga das Escritoras Sufragistas. Este ensaio foi publicado originalmente no livro Cere’s Runaway (1909). Tradução de Leonardo Fróes Veridiana Scarpelli (1978) é ilustradora, colaboradora da serrote, autora do infantil O sonho de Vitório (2012) e ilustrou A menina do mar (2014), de Sophia de Mello Breyner Andresen, ambos publicados pela Cosac Naify.



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O improvável cálculo da paixão Héctor Abad

Joel Shapiro

Untitled #23 ©Shapiro, Joel/ AUTVIS, Brasil, 2018

Bertrand Russell experimentou os limites da razão e da liberdade ao aplicá-los com rigor à sua intensa vida amorosa

A região é a Cornualha, no extremo sudoeste da Inglaterra. O lugar conhecido mais próximo chama-se Fim da Terra, ou Land’s End, a ponta mais ocidental da ilha, onde as pedras e os penhascos da terra firme resistem heroicamente às ondas incessantes do Atlântico. Aqui a paisagem termina com uma última explosão de si mesma, ou seja, com uma das vistas mais belas do mundo. Para chegar, é preciso pegar um trem em Londres, na estação de Paddington, e viajar sete horas rumo ao sul, até Penzance. Nessa pequena cidade, ao final de uma ladeira íngreme chamada Causewayhead, há uma loja Oxfam de livros usados e roupas de segunda mão. E lá, às terças e sextas-feiras, a qualquer hora do dia, quem atende


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Untitled #32 ©Shapiro, Joel/ AUTVIS, Brasil, 2018

sempre é uma mulher de 87 anos – lúcida como uma navalha e ágil como um gato –, Lady Katharine Tait, mais conhecida na juventude como Kate Russell, única filha mulher e única filha ainda viva do escritor, matemático e filósofo Bertrand Russell: meu ídolo, meu deus. Vim à Cornualha porque me disseram que ela morava ali, na mesma casa que seus pais, Dora e Bertrand Russell, compraram na primavera de 1922. Não sei se Alá é grande ou se grande é o acaso. O fato é que a minha tradutora para o inglês, Anne McLean, tem um complicado parentesco com Lady Katha­rine, que não vem ao caso explicar aqui. Graças a ela, então, mais que a Alá ou ao acaso, fui convidado pela filha de Russell a passar uns dias na mesma casa onde seus pais, Bertie e Dora, viveram talvez os anos mais felizes e fecundos de suas vidas. E eu dormi duas noites lá, numa placidez assombrada. A placidez vinha da beleza, da quietude e do silêncio do lugar; o assombro, da minha estranha sorte: que milagre me permitiu dormir num quarto no qual também dormiu uma vez Ludwig Wittgenstein, o grande lógico e colega de Russell na Universidade de Cambridge? Que misteriosa fortuna me fazia conhecer a única filha viva do intelectual que mais influiu na minha formação moral e intelectual, Bertrand Russell? Às vezes o assombro não me deixava dormir. Mas volto ao começo. Quando Lady Katharine (o título no­ biliário se deve ao fato de que seu pai era earl) termina o expediente na loja Oxfam (comércio justo, luta contra a fome, a pobreza e a injustiça), tomamos todos um ônibus e chegamos a Porthcurno, um povoado diminuto nas ilhas britânicas que poucos viajantes conhecem, e só o conhecem por três fatos memoráveis: dali partiu o primeiro cabo telegráfico submarino que foi lançado entre a Inglaterra e suas colônias, em 1870 (primeiro para a Índia, depois para a Austrália e o Extremo Oriente, e finalmente para a América), hoje conhecido como “a internet vitoriana”; por um fantástico teatro ao ar livre, o Minack Theatre, lavrado nos penhascos de frente para o oceano; e por uma casinha singela na entrada do lugar: Carn Voel, que foi a residência de verão do segundo casamento de Bertrand Russell, frequentada pelo casal durante dez anos, até 1932, e depois ocupada somente por Dora, que morreria lá mesmo, em 1986. No livro de Kate Russell sobre a casa onde mora atualmente, ela a descreve assim: “A casa é como o desenho que as crianças fazem de uma casa, com a porta no meio, uma janela de cada


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lado, mais três janelas na parte de cima e depois um par de águas-furtadas no telhado, como duas sobrancelhas mal colocadas”. A descrição é perfeita. Faltou dizer, talvez, que a casa é circundada por um magnífico cenário natural: pastos muito verdes com vacas e cavalos, uma grande plantação de couve-flor, colinas suaves com mais casinhas brancas desenhadas, e de repente uma série de penhascos caindo a pique no oceano, com enseadas e baías onde a água é cristalina como nas ilhas de coral do Caribe (quando o mar está calmo), ou espessa e furiosa, com ondas e correntes submarinas estourando contra as rochas, se o mar estiver bravio, o que é mais habitual. Talvez existam poucos lugares na Terra com uma beleza tão suave e ao mesmo tempo tão agreste e intensa. Um cenário perfeito para aquela velha lenda tão amada pelos românticos, a de Tristão e Isolda: o rei Marcos, da Cornualha, manda seu sobrinho Tristão ir buscar a sua nova esposa, Isolda, na Irlanda. Os dois jovens, no navio de volta, bebem por engano uma poção mágica e ficam irremediavelmente apaixonados. Não resistindo à poção do amor, a jovem esposa se torna adúltera, e o jovem sobrinho é incapaz de não trair o tio. Um enredo familiar que, em parte, pode servir de prólogo às dificuldades conjugais que iriam acabar com o feliz casamento de Bertrand e Dora Russell. Mas vou falar disso depois. Por ora, direi que Bertrand Russell, meu ídolo, meu deus, se casou quatro vezes e teve também muitas amantes. Com todas as suas mulheres, enquanto as teve, sempre pôde se dedicar de ânimo sereno ao que sempre fez: melhorar o mundo, criticar sua estupidez incurável e libertar os homens de preconceitos inúteis mediante uma escrita clara, fluida, incisiva, devastadoramente inteligente. É possível que na sua cabeça de cético sobrevivesse o mito dos amores sucessivos como combustível indispensável para a criatividade e a inspiração. Uma nova mulher era a gasolina que dava impulso renovado às suas ideias. Se aconteceu assim com ele, podemos dizer que Dora inspirou algumas de suas obras mais importantes, tanto em matemática e filosofia (Introdução à filosofia matemática, abc da relatividade, A análise da mente, No que acredito, Por que não sou cristão), como em pedagogia (Sobre a educação, Educação e ordem social) como também na vida cotidiana e na moral (Casamento e moral, A conquista da felicidade, Ensaios céticos). Escreveu todos esses livros em três lustros de maravilhosa fecundidade intelectual, enquanto estava casado com ela. Dora Black, sua amante durante vários anos e depois sua mulher, também era sem dúvida uma personalidade fascinante. Socialista, feminista, pedagoga, autora de vários livros e inúmeros panfletos sobre a liberação sexual e da mulher, Dora exerceu uma profunda e positiva influência sobre o filósofo. Ambos se envolveram em diferentes cruzadas libertárias a favor de uma educação liberal e não autoritária (fundaram uma famosa escola alternativa, Beacon Hill, que funcionou por mais de 15 anos), por um pacifismo radical (que só a ascensão


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de Hitler os faria renegar) e por uma revisão profunda de todos os princípios morais que regeram a sociedade vitoriana (na qual Russell nasceu), e também a eduardiana (na qual Dora cresceu). Enquanto estavam juntos, por exemplo, Dora fundou em Londres a Liga Mundial para a Reforma Sexual sobre uma Base Científica. Essa liga organizou um congresso, em 1929, no qual falaram, entre outros, H. G. Wells, Bernard Shaw, Hugh Walpole e, evidentemente, Bertrand Russell. Para dar uma ideia do espírito libertário e do sonho racional que os animava, o discurso de boas-vindas, para delegados de dezenas de países, foi feito em esperanto. E as palestras versavam sobre o direito ao aborto, a homossexualidade, a liberdade sexual no casamento, a educação sexual das crianças etc. Tanto Dora como Bertrand, nessa magnífica década de 1920, ainda acreditavam, com uma confiança um tanto exagerada, que os conflitos e as relações humanas podiam ser regulados pelo pensamento racional, pela tolerância mútua e pelo método científico. Para entender as confusões sentimentais daqueles anos, mais que reler a Autobiografia de Russell, que a esse respeito é um tanto rápida e reticente, vale muito a pena ler o livro autobiográfico de Dora (A árvore de tamarisco) e o volume testemunhal de Kate (Meu pai, Bertrand Russell). Lendo-os, percebe-se que a intenção de levar uma vida mais sensata, governada exclusivamente por uma razão iluminada, pode repentinamente bater de frente com as demandas primitivas do instinto animal mais irracional e apaixonado (presente no animal humano, claro, mesmo num animal humano tão racional e compassivo como Bertrand Russell). Paralelamente à sua intensa vida intelectual, Dora e Bertrand quiseram instaurar, na prática, um novo tipo de casamento, no qual haveria lealdade em vez de fidelidade, os ciúmes não teriam razão de ser e se poderia falar abertamente das aventuras sexuais que cada um deles tivesse. A aposta não era fácil, mas eles tentaram, e Dora levou-a às últimas consequências. Muito mais jovem (e sexualmente mais disposta que o marido), colocou em prática suas convicções teóricas e conseguiu um amante jovem, um atraente jornalista norte-americano, correspondente de guerra, aventureiro, e também de mente aberta: Griffin Barry. Não estava tão apaixonada por ele como por Bertie, mas os dois viajavam juntos e passavam momentos agradáveis. Enquanto Russell fazia uma série de conferências nos Estados Unidos (onde cancelavam os seus contratos, justamente por causa de suas opiniões “imorais” sobre sexo e casamento), Dora ficou grávida de Barry. Quando se deu conta do seu estado, escreveu ao marido, contando-lhe a novidade sem muito entusiasmo; como era defensora do aborto, perguntou-lhe se ele preferia que interrompesse a gravidez. O filósofo respondeu, num telegrama, que não fizesse nada, que poderiam criar o novo rebento como se fosse dos três. Também reconheceu que, como ele não tinha sido capaz de fazer “a sua parte”, não havia problema que outro a fizesse, já que ela queria ter mais filhos. Quando soube


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Untitled #21 ©Shapiro, Joel/ AUTVIS, Brasil, 2018

que ia ser pai, Griffin Barry fugiu para Paris, como um sedutor qualquer, e só voltou meses depois, para ter uma conversa com o próprio Russell. Assim nasceu Harriet, a terceira filha de Dora (antes haviam nascido John, o primogênito, e Kate, a protagonista desta viagem). Russell fez das tripas coração e, a princípio, reconheceu a menina como sua, dando-lhe inclusive seu célebre sobrenome de lordes e condes. Mas ao mesmo tempo se aproximou muito, física e sentimentalmente, da babá, Patricia (Peter) Spence. Enquanto continuavam com suas viagens e sua incansável atividade intelectual, o casamento da dupla agora tinha dois fantasmas ao lado. Talvez o que Bertrand não tenha suportado foi ver sua mulher engravidar novamente de outra pessoa. Porque Dora, que na verdade queria outro filho do próprio Bertrand, ao passo que este não cumpria mais seus deveres conjugais com ela, voltou a ficar grávida do seu amigo, o jornalista norte-americano. E nasceu Roderick. Bertrand, na época, sentia-se mais à vontade com seu novo amor, Peter, e se afastou da antiga companheira, Dora, talvez já incapaz de continuar a manter na prática seus ideais teóricos de liberdade sexual dentro do casamento. Funcionava bem até certo ponto, mas não era possível passar por cima até do problema da paternidade. Durante algum tempo, seus ideais libertários os levaram a persistir na tentativa, e parecia possível continuar vivendo assim: um equilíbrio incerto na infidelidade recíproca, os quatro adultos com as quatro crianças, num ménage à quatre (a expressão é de Dora) de chifres consentidos. Chegaram a passar algumas férias juntos em Hendaye, no lado francês do País Basco. A raiva, o desamor, o desagrado, os implacáveis ciúmes recíprocos, que o coração dita e a razão não entende, esfacelaram o casamento. A separação e o divórcio não foram amigáveis, passaram pela habitual e terrível briga de advogados, pelas recriminações mútuas, pelo ressentimento. Afinal, Bertrand se casou com a babá de apelido masculino, e a Segunda Guerra Mundial os apanhou nos Estados Unidos, onde preferiram permanecer. Com ela, teve o seu último filho, hoje já falecido, Conrad. Escolheu esse nome em homenagem a seu amigo Joseph, o marinheiro escritor. Dora ficou sozinha com as quatro crianças, mas, como a guarda era compartilhada, os dois mais velhos, John e Kate, passavam metade das férias com o pai. Uma temporada medida com tamanha precisão matemática que, se o número de dias de férias fosse ímpar, cada progenitor tinha


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1. Valorosa na morte, na vida, ela buscou compreensão, e, para a humanidade, paz. Só as ações dos justos cheiram bem, e em seu pó florescem. [n. dos t.]

direito a meio dia da última jornada. As crianças e os jovens passaram longas temporadas com o pai, do outro lado do Atlântico, e como a Segunda Guerra Mundial os surpreendeu lá, a permanência nos Estados Unidos se prolongou por muito mais tempo que o previsto. Os anos de advogados e disputas sepultaram o sonho de Beacon Hill, a experiência de um colégio diferente, com uma pedagogia inovadora, sem medo, em liberdade. O colégio também teve que fechar quando a ausência de Russell, e sua indiferença, o afastaram também de lá. A obstinada, a miserável realidade (que muitas vezes assume a face de problemas econômicos) se impôs ao desejo e às boas intenções. Os filhos de Dora cresceram, e o primogênito, John, teve graves problemas de saúde mental. Havia genes intermitentes de loucura na família Russell, os quais Bertrand sempre temeu, como Tristão e Isolda temiam a poção do amor. A mulher de John também não era muito equilibrada, e as filhas que os dois tiveram sempre foram uma carga difícil, e uma espécie de pesadelo para o filósofo. Transtornos bipolares, suicídios, manicômios, asilos, hospitais e casas de repouso… O caso mais triste é o de sua neta, Lucy Catherine Russell, que se queimou viva, como um monge budista, no átrio de uma igreja perto de Penzance, para pedir a paz no mundo, como o avô, mas com um gesto muito mais radical. Com sua tia, visitamos o túmulo onde hoje ela se encontra. Anne McLean, com sua doçura habitual, retirou o capim que encobria o epitáfio, e, um pouco comovidos, pudemos ler as palavras que a avó Dora lhe dedicou na lápide: “Courageus in death, in life, she sought under­standing, and for mankind, peace. Only the actions of the just smell sweet, and blossom in their dust”.1 Com esse e outros fracassos na família, os inimigos de Russell ficaram contentes. Castigo divino, disseram os fanáticos do cristianismo. Castigo genético, disseram os discípulos de Mendel ou de Darwin. O normal, o que poderia acontecer em qualquer família, dizemos os seus amigos. O casamento com Peter também não durou muito, e Russell se divorciou e se casou mais uma vez. Como acontece com os homens que se casam muitas vezes, foi como se Russell tivesse seguido o conselho para o mau amor de Yehuda Amichai: “Com as sobras do amor/ de uma mulher anterior/ fabrica outra mulher para ti/ e depois com o que sobrar dessa mulher/ faz de novo outro amor,/ e continua assim/ até não haver mais nada”. No final dos seus dias, Dora cuidava do filho desequilibrado e visionário, John, que fazia longos discursos


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na Câmara dos Lordes e enviava pastorais, intermináveis em sua incoerência, ao Times de Londres, enquanto fumava um cigarro atrás do outro sem parar. Enquanto isso, a casa na Cornualha, Carn Voel, estava quase desmoronando, caindo aos pedaços. Dora não era rica. Goteiras no teto, umidade, insetos, mau cheiro. A última assistente de Dora, sempre bêbada, escondia no velho jardim – já puro mato – as garrafas de gim. E enquanto seu filho morria doente, solitário e louco, enquanto Dora morria indignada, mandona e iracunda, cobrindo de alegria externa sua exasperação interior, Bertrand Russell, meu ídolo, meu deus, lutava para salvar a humanidade. Era um destino melancólico, afinal, o contraste entre as dificuldades da vida privada da mulher e do filho mais velho e a vida pública do marido, cada vez mais célebre, prêmio Nobel de Literatura, sempre envolvido em maravilhosos projetos políticos a favor de causas justas internacionais. Essa pioneira mundial do feminismo morria como uma mulher qualquer, divorciada e sozinha, bastante esquecida, enquanto seu marido crescia no respeito e na admiração universal. Na mesma época, a única filha mulher de Russell, Katharine, criada pelo pai no ateísmo, bibliotecária em Harvard, onde havia estudado, se converteu ao cristianismo. E mais, apaixonou-se e contraiu matrimônio com um pastor norte-americano da igreja episcopal. Bertrand Russell não encarou a conversão da filha como outra tragédia familiar, tampouco como um fracasso pessoal. Lady Kate me mostra as respostas amáveis do pai quando ela anunciou sua conversão. Russell continuava acreditando que o cristianismo era um mal, mas aceitava a conversão se esta fazia sua filha feliz. O marido de Katharine estudou teologia, e depois os dois foram trabalhar como missionários em Uganda. Apesar do seu ateísmo, Russell os ajudava financeiramente, e tinha um afeto indestrutível pela filha. Agora, Kate se afastou da militância missionária e vive sua fé na intimidade, sem nenhuma intenção doutrinante. Quando lhe pergunto sobre o assunto, ela simplesmente me diz que tende a pensar que o Universo, mais que fruto do acaso, é algo que foi criado. Mas daí não passa. Agora, Lady Katharine voltou a morar neste paraíso da sua infância, na Cornualha. Mora sozinha na velha casa restaurada, onde o jardim voltou a ser jardim. O andar de baixo é ocupado por um dos seus filhos, que nestes dias está fora. O vigor, a alegria e a agilidade mental do velho filósofo voltaram a tomar as rédeas da casa. Ela é uma mulher solitária, mas serena e sábia, que guarda uma lembrança amorosa do seu pai, sem rancor algum. Como dizem os biógrafos de Russell, ela é a prova viva de que às vezes a educação em liberdade com que seus pais sonharam pode dar frutos excelentes. Se a matéria-prima for boa, a liberdade floresce nela de maneira exemplar. Nesta bonita casa isolada, no Fim da Terra, ou Land’s End, Kate tem a companhia de uma jovem gata ciclotímica, que, em vez de miar, faz um som estranho, parece um pato grasnando. A gata espirra e faz sons estranhos, como um doente de asma ou enfisema. Por não querer dar-lhe um nome, ela a chama de Cat, simplesmente. Essa mulher quase



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nonagenária, ágil como seu gato, com os genes longevos do pai (que viveria até os 98 anos), nos leva, Anne e eu, pela coleira para caminhar pelos penhascos e pelas praias da Cornualha, de uma beleza absurda, indescritível. E neste Fim da Terra, ou Land’s End, neste paraíso terrestre onde a água salgada e cristalina do Atlântico bate incessantemente em pedras da altura de castelos que resistem ao seu cerco milenar, neste lar de focas, de cavalos e de vacas, neste verde intenso contra o azul do mar e o céu cinzento, eu sinto de repente que me asfixio de razão, e também de liberdade. Meus velhos ideais, a herança intelectual de Bertrand Russell, entram em conflito com a realidade. Penso que há uma intuição da vida, uma inteligência emocional que percebe instintivamente o que pode magoar fundo os outros seres humanos. E que nada pode ser planejado só com a razão, que sempre deveríamos levar em conta o nosso velho e teimoso instinto animal, o nosso velho e teimoso coração. Contrariar isso pode causar muita infelicidade. Com esse sentimento, me despeço da Cornualha, de Anne, de Lady Katharine, da bonita lembrança de Bertrand Russell, meu ídolo, meu deus.

Héctor Abad (1958) é um dos mais destacados escritores da Colômbia, país onde nasceu, vive e trabalha. Jornalista e romancista, é autor de A ausência que seremos, Livro de receitas para mulheres tristes e Angosta – A cidade do futuro, todos publicados no Brasil pela Companhia das Letras. Dele, a serrote 11 publicou “As vidas de Franz Tunda”, sobre o antológico personagem de Joseph Roth. Este ensaio saiu originalmente na Brick, revista literária inglesa, em 2011. Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht Untitled #25 ©Shapiro, Joel/ AUTVIS, Brasil, 2018

Joel Shapiro (1941) é conhecido sobretudo como escultor, mas, desde os anos 1970, experimenta as mais diversas técnicas de gravura.


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#29 ½  julho 2018

instituto moreira salles  Walther Moreira Salles (1912-2001) Fundador Diretoria Executiva João Moreira Salles Presidente  Gabriel Jorge Ferreira Vice-Presidente Mauro Agonilha, Raul Manuel Alves Diretores Executivos

serrote é uma publicação do Instituto Moreira Salles que sai três vezes por ano: março, julho e novembro. Esta serrote #29 ½ só circula, gratuitamente, na flip 2018. COMISSÃO EDITORIAL Daniel Trench, Eucanaã Ferraz, Flávio Pinheiro, Guilherme Freitas, Heloisa Espada, Paulo Roberto Pires e Samuel Titan Jr.  editor Paulo Roberto Pires  diretor de arte Daniel Trench  editor-assistente Guilherme Freitas coordenaÇÃO EDITORIAL Flávio Cintra do Amaral  ASSISTENTE DE ARTE Natália Alavarce  PRODUÇÃO gRÁFICA Acássia Correia  preparação e revisão de textos Beatriz de Freitas Moreira, Flávio Cintra do Amaral, Juliana Miasso, Mariana Delfini, Rafaela Biff Cera e Sandra Brazil  checagem José Genulino Moura Ribeiro e Luiza Miguez  © Instituto Moreira Salles  Av. Paulista, 2439/6º andar  São Paulo sp Brasil 01311-300 tel. 11.3371.4455 fax 11.3371.4497  www.ims.com. br  impressão e tratamento de imagens Ipsis As opiniões expressas nos artigos desta revista são de responsabilidade exclusiva dos autores. Os originais enviados sem solicitação da serrote não serão devolvidos. © Joca Reiners Terron; © Edu Simões/Cadernos de Literatura Brasileira/ Acervo Instituto Moreira Salles; © Héctor Abad; © Shapiro, Joel/ AUTVIS, Brasil, 2018; © Veridiana Scarpelli. Agradecimentos Edu Simões, Rachel Rezende, galeria Senior & Shopmaker e Thaiane do Nascimento Koppe capa e contracapa Edu Simões, retratos de Hilda Hilst para os Cadernos de Literatura Brasileira do IMS assinaturas 11.3971.4372 ou serrote@ims.com.br  www.revistaserrote.com.br



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