Zumvi arquivo fotográfico: Passeata contra a farsa da abolição no Brasil - IMS Convida

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PASSEATA CONTRA A FARSA DA ABOLIÇÃO NO BRASIL SALVADOR, 1988

Zumvi Arquivo Fotográfico


Praça municipal, Salvador, BA Jônatas Conceição / Zumvi Arquivo


1988: “Queremos uma autêntica democracia racial” por Wlamyra Albuquerque

O maio de 1988 chegou embalado pelas ondas de mobilização popular. A campanha “Diretas já!”, pouco a pouco, ia garantindo a abertura política no Brasil. A militância negra também se articulava. Os dias corriam agitados. Homens e mulheres engajados na luta antirracista se organizavam, protestavam e iam apresentando suas reivindicações nos espaços políticos, a exemplo da Assembleia Constituinte. O Brasil voltava a aspirar ares democráticos. A ditadura ainda pesava sobre a sociedade, o tal sol da liberdade ainda não brilhava, mas havia um grito de esperança negra prestes a ganhar as ruas. Como diria o samba de Nei Lopes, sucesso na voz de Zezé Motta, o que se queria eram as asas da liberdade abertas sobre nós. Durante os governos militares a luta antirracista podia ser enquadrada, de acordo com a lei de segurança nacional, como subversão, como afronta contra a suposta democracia racial; vigorava essa fábula vinda da ideia de que a miscigenação nos igualava. Seríamos todos iguais sob a bandeira brasileira, professavam os militares. Não era bem assim, diziam os militantes. Nas décadas de 1960 e 1970, esta democracia ilusória justificava as restrições ao direito de manifestação e de associação. Silenciou-se a imprensa negra, ao passo em que eram acentuadas as desigualdades raciais por meios das ações sucessivas dos governos autoritários. Com políticas discriminatórias, o Estado foi tornando precárias as estruturas físicas das escolas públicas e o trabalho dos docentes era desqualificado, os bairros populares cresciam sem infraestrutura nem condições sanitárias adequadas, as comunidades quilombolas e indígenas viam avançar as invasões sobre suas terras. Era preciso dizer não ao racismo que estruturava - e ainda estrutura - as desigualdades sociais no Brasil.


Quando em 1985 uma brisa democrática soprou sobre o solo calejado da política brasileira, o governo federal, empenhado em ganhar apoio popular, anunciou uma série de palestras, shows e exposições de arte para celebrar a Abolição. A militância, até então sufocada, gritou: “festejar o quê?”, são “cem anos sem nada”. A reação imprevista levou o governo federal, o do Estado da Bahia e a prefeitura de Salvador a cancelarem as comemorações. Ao mesmo tempo, os militantes trataram de articular os protestos contra os “Cem anos sem Abolição”. Nas ruas, ergueu-se a reivindicação: “Queremos uma autêntica democracia racial”. Neste clima de recomposição dos seus espaços e formas de expressão política e cultural, a militância negra encheu as ruas de Salvador nos dias 12 e 13 de maio de 1988. O evento principal foi a passeata que percorreu o centro da cidade. Era a rebeldia de jovens que assumiam seus cabelos ouriçados e dreads. No aparelho de fitas cassete do carro de som que animava a passeata, reggae. O dia amanheceu mais cedo para que eles tivessem tempo de fazer os últimos ajustes nas faixas, cartazes e no estandarte, espécie de destaque a ser visto por todos, com a pintura da imagem da princesa Isabel, tendo duas faixas vermelhas a cruzarem-lhe o rosto. Era preciso promover “a conscientização, alicerce da nossa raça”, explicava-se numa faixa.


Praça municipal, Salvador, BA Jônatas Conceição / Zumvi Arquivo Liberdade, Salvador, BA Jônatas Conceição / Zumvi Arquivo

Praça municipal, Salvador, BA Jônatas Conceição / Zumvi Arquivo


Salvador, BA Lรกzaro Roberto / Zumvi Arquivo


A palidez da princesa estampada sob um grande X vermelho a negava como homenageada. Caía por terra outra fábula acalentada nos manuais escolares da ditadura, a da princesa bondosa que havia libertado os escravizados. Aquela imagem causou impacto e escancarou um consenso entre os militantes da luta antirracista em todo país: a princesa não nos libertou. “A Princesa esqueceu de assinar a nossa carteira de trabalho”, ironizavam noutro cartaz. Era o contra discurso, diante da memória nacional que a tinha como autora da abolição. Negar a narrativa histórica oficial quando a ditadura ainda pesava sobre o país era prova da rebeldia daqueles que sentiam na pele a repressão, as desigualdades e o racismo sempre bem nutridos em tempos autoritários. Erguia-se assim na pauta da luta de 1988 a busca por uma educação que contemplasse a história e as culturas negras. O que se viu naqueles protestos provava que a ditadura não tinha aniquilado os sonhos de liberdade e igualdade dos brasileiros. E mais ainda, que a militância negra ressurgia publicamente, defendendo a conscientização racial, confrontando todo tipo de preconceito e carregando as bandeiras de suas organizações. Em 1988, em todo país, havia, pelo menos, 343 organizações negras; só na Bahia eram 27. A principal delas era o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial – MNUCDR –, que viria a ser o MNU-BA. Associação nascida em junho de 1978, sob a vigilância obstinada dos agentes do DOPS, o MNU reunia professores, operários, engenheiros, artistas, jornalistas e profissionais autônomos negros e negras que debatiam e planejavam formas de combate ao racismo. E esse projeto coletivo ganhava extensão nos territórios soteropolitanos. No bairro da Liberdade a população foi convocada, quase de porta em porta, para o ato “contra a farsa da abolição”. Era ali na Liberdade onde a luta contra a discriminação racial se fazia mais visível, aguerrida e sonora. Praça municipal, Salvador, BA Jônatas Conceição / Zumvi Arquivo


VIII Congresso MNU, Salvador, BA Jônatas Conceição / Zumvi Arquivo Praça municipal, Salvador, BA Lázaro Roberto / Zumvi Arquivo


Av. Sete, Salvador, BA RogĂŠrio Santos / Zumvi Arquivo


A associação cultural Ilê Aiyê, fundada em 1974, apesar dos governos militares, se firmava como centro de difusão de uma cultura de matriz africana num bairro densamente ocupado pela população negra. Da sua sede, localizada no Curuzu, teve início outra passeata que surpreendeu a imprensa da época. O que queriam aqueles negros? Eles respondiam: o reconhecimento e o respeito às expressões da cultura negra, a exemplo da capoeira e do candomblé, emprego, o fim do racismo, currículos escolares que contemplassem a história afro-brasileira e os valores de matriz africana. Mas essa luta centenária e brasileira rompia com qualquer ideia nacionalista, e por isso também fazia parte das esperanças trazidas às ruas o fim do apartheid na África do Sul. Os famosos tambores do Olodum e os sambas do grupo carnavalesco Os Negões fizeram ecoar no Pelourinho, marco do passado escravista brasileiro, a força dessa mobilização. As janelas dos casarões coloniais, que um dia foram moradias de grandes senhores e comerciantes de escravizados, passaram a ser molduras para a denúncia dos “100 anos sem abolição”. Do Pelourinho à praça municipal, centro administrativo de Salvador, a multidão fazia valer a luta pela democracia que afastava os coturnos dos militares dos palácios dos governos e dava voz àquela gente negra, há muito ignorada e silenciada. Os protestos por igualdade racial se espalharam por todo país e desaguaram com sucesso na Assembleia Constituinte. Desde 1988, a Constituição Federal estabelece que a prática de racismo é crime inafiançável, imprescritível e sujeito à pena de reclusão. O anteprojeto foi proposto pelo deputado negro e baiano Carlos Alberto de Oliveira, o Caó. Com isso ficou revogada a Lei Afonso Arinos, que previa penas brandas para atos racistas. A movimentação nas ruas da militância negra repercutia na política, como os tambores, ganhando adeptos, ritmando a luta e subvertendo o silêncio acerca das opressões e desigualdades que, infelizmente, continuam a marcar a existência negra neste país. Wlamyra Albuquerque é Professora Associada de História do Brasil (UFBA). É Doutora em História Social (UNICAMP) e Pesquisadora CNPq.


Pelourinho, Salvador, BA Jônatas Conceição / Zumvi Arquivo Av. Sete, Salvador, BA Rogério Santos / Zumvi Arquivo


Campo Grande, Salvador, BA Rogério Santos / Zumvi Arquivo Av. Sete, Salvador, BA Rogério Santos / Zumvi Arquivo


Praça municipal, Salvador, BA Jônatas Conceição / Zumvi Arquivo


Pixação no Bairro do comércio. 2015, Salvador, BA Lázaro Roberto / Zumvi Arquivo

Créditos Lázaro Roberto - Curadoria de imagens Wlamyra Albuquerque - Texto histórico José Carlos Ferreira - Produção Zumvi Arquivo Guilherme Guimarães (Núcleo Digital IMS) - Tratamento de imagens


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