Texto originalmente publicado no blog infinitoconveniente.blogspot.com abril/2013
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"Por anos depois da morte de nossa mãe, o correio continuou entregando as cartas endereçadas a ela. O correio não tomava conhecimento de sua morte”. Thomas Bernhard, O Imitador de Vozes
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venn um conhecido carpinteiro de casas de boneca foi a júri no condado de Buskerud, acusado pelo assassinato de uma menina de seis anos, cujo corpo foi encontrado às margens congeladas do rio Drammen, embrulhada numa mortalha de plástico. ainda que jurasse inocência durante todo o processo, o advogado de defesa não conseguiu que o homem frágil, com uma curvatura corporal acentuada, escapasse da sentença de 21 anos, pena máxima naquele país para crimes hediondos e ataques contra a ordem nacional. a evidência capital estava nos traços de serragem e de uma cola usada somente por quem executa trabalhos manuais com madeira, no repositório da vítima, e, é claro, por conta da cruel analogia circunstancial. na prisão, o carpinteiro foi recolhido numa cela particular, onde tinha contato apenas com os guardas e um livreiro que circulava, uma vez por semana, pelos corredores com um carrinho de rodas de bilha. nos primeiros meses, alguns familiares vieram vê-lo, depois somente a esposa. com o passar do tempo, as visitas se tornaram escassas até deixarem de existir. sua companhia limitou-se aos personagens dos livros, aos palitos de fósforo com que montava pequenas réplicas de suas famosas casas de boneca e a sombra de um albatroz projetada pela pequena janela sempre no início de maio, quando esses animais voam em círculos graciosos convencendo as fêmeas para o acasalamento. 18 anos depois, fazia frio quando um agente de justiça foi até a sua cela. mais curvo e emagrecido, o carpinteiro esticou os dedos entre as barras e pegou uma carta oficial do tribunal de Buskerud, que informava que, na semana anterior, fora preso um infanticida contumaz, apelidado de O Monstro do Sol da Meia-Noite, que confessara o crime pelo qual ele havia sido condenado. desse modo, por clemência da Justiça Nacional, era declarada a sua inocência e soltura imediata. lendo as últimas palavras, o homem deixou a folha cair e, num movimento incomum, enlaçou seu corpo frágil com os próprios braços, apertando-se calorosamente como a um amigo que não via há anos.
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ludwig um jovem mascate encontrava-se diante de um juiz sentenciador em Petah Tikva, aguardando a irrevogável condenação de ter suas mãos amputadas, ao ter sido pego, em flagrante, furtando uma naca de pão ázimo. conforme é de juízo milenar naquele país, não havia muito o que esperar da decisão, senão o dia do fatídico decepamento. eis que, num rompante sibilino, o advogado de defesa pediu clemência, alegando que, ao cometer um ato imperdoável, ainda que desesperado pela fraqueza de cinco irmãos enfermos de doenças pulmonares, o réu, disparatadamente, pôs em risco os instrumentos que conservavam um dom etéreo. que a lei, que sim deveria ser respeitada, ceifaria o maior talento que aquela cidade poderia conceber. e, para espanto coletivo, pediu que o meirinho adentrasse o tribunal com um Essenfelder1/4 cauda, preto. os que observavam o julgamento, claro, acharam uma heresia. mas, curioso com o hiperbolismo do zopeiro advogado e porque nutria um gosto íntimo por música clássica, permitiu que a circunstância se prolongasse. consentido, o jovem ajeitou-se num banco improvisado e com gestos suspensos começou a tocar a Sonata ao Luar, de Ludwig van Beethoven, embora nunca alguém lhe dissera o nome do autor. a cada nota, a cacofonia era sorvida pelos movimentos suaves, porém seguros, sobre as teclas, envolvendo a plateia num silêncio hipnótico, uma atmosfera de encanto que se manteve acolhedora até o tanger da eufônica sinfonia. ao fim, com os olhos aguados e o coração enternecido, o juiz assinou a sentença que ordenava amputar as mãos do maior talento que aquela cidade poderia conceber.
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fehler o tribunal do Distrito de Scheibbs viu-se diante de uma situação perturbadora. um estudante no último ano de direito da universidade de Graz, pesquisando a incidência de crimes nas cidades afluentes do Rio Arluf, descobriu uma discrepância num processo penal de estupro seguido de tentativa de morte, no qual foi condenado a 12 anos um padeiro de Viselburgo. na transcrição do interrogatório da vítima, a dona de uma relojoaria, havia a menção de uma mancha escura na altura do ombro do agressor, descartada tanto pela defesa quanto pela acusação, por conta do crime ter sido praticado às 20h20, numa área umbrosa. todavia, ao revisar o histórico do réu, o estudante percebeu que, na noite fatídica, o acusado passara mais cedo na casa do irmão gêmeo, convalescente de uma queimadura no ombro direito, causada num dos fornos de pão de centeio, três dias antes. diante da perturbadora dúvida, o juiz distrital de Scheibbs não teve outra escolha, senão convocar um novo julgamento, onde, após um mês de deliberações, revisões de provas, repostos testemunhos, apelos e mudança de advogados, os de defesa, o irmão gêmeo, na ocasião com o ombro queimado, foi condenado no lugar do outro, embora jurasse piamente inocência. livre, o irmão inocentado, após cumprir sete anos de cárcere por um crime que, legalmente, não cometeu, levou apenas sete horas para estuprar novamente e desta vez matar a dona da relojoaria.
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schadenfreude um juiz suplente, urgentemente convocado da cidade de Bochum, condenou a dona de uma pequena mercearia em Dortmund a 12 anos e seis meses de prisão pelo assassinato da irmã caçula, que trabalhava no balcão do dito estabelecimento familiar. o advogado de defesa, durante todo o julgamento, havia alegado que o crime tinha sido cometido em retaliação às contínuas ameaças sofridas pela ré, devido a uma antiga divergência em relação ao espólio do pai, um ourives morto em Stalingrado. no entanto, todos do tribunal, inclusive e principalmente o distinto advogado, ficaram surpresos, quando a acusada levantou-se e declarou-se culpada, confessando que havia matado a irmã caçula tomada pelo pecado capital da inveja. embora também atônito, o juiz suplente não teve mais o que deliberar, além da decisão final. anos se passaram e, como é natural da prática de advocacia, o advogado penal ganhou alguns julgamentos e perdeu outros, porém nem o tempo conseguia apagar a lembrança da dona da mercearia que havia assassinado a irmã caçula por inveja. não conseguia compreender como uma mulher que herdou todos os bens do pai, era extremamente bonita e residia numa bela casa própria poderia cobiçar uma outra que sobrevivia do pouco que era pago, era fragosamente feia e morava numa pensão para moças e jovens repatriadas ao leste de Essen. um dia, então, resolveu dar fim ao tormento e foi à prisão reencontrar a mulher a qual o tempo e a privação não conseguiram embrutecer os traços finos. sem esconder o motivo de sua visita, logo após às cortesias convencionais, perguntou o que alguém que tinha tudo poderia invejar de quem não tinha nada. felicidade, ouviu, finalmente. justamente por, apesar disso, ser muito feliz.
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kitaran como previsto no código penal, um tribunal de Selangor condenou um faz-tudo à forca por ter apunhalado o filho caçula de uma família de nômades que, supostamente, apedrejou até a morte uma de suas cabras leiteiras. o juiz e o carrasco já estavam preparando a data de execução, quando o meirinho alertou para a condição física do réu. com 132 quilos, era mais do que provável que, no momento do enforcamento, a corda rompesse ou o travessão de madeira partisse, e o culpado desmoronasse no chão. o juiz, então, reuniu-se com o executor para deliberar sobre o impasse e, depois de alguns minutos, saiu-se com a solução de amputar as duas pernas e os dois braços do réu antes do ato capital. o que causou imediato protesto do advogado de defesa, pois a pena passaria a ser por esquartejamento e não por forca. sem resolução, portanto, o faz-tudo foi absolvido.
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zaatar um homem que mantinha, fazia nove anos, a função de cozinheiro assistente numa fábrica de bonecas foi levado a júri no tribunal de Bruges, acusado de sequestrar, assassinar e guisar partes de três jovens de origem siamesa. a acusação, confiante pela robustez das provas, havia preparado um discurso modelar, com palavras-chave apenas para comover a tribuna. foi quando a defesa apresentou uma evidência que, em menos de meia hora, definiu a decisão do juiz em inocentar o acusado. de nacionalidade libanesa, era impossível que fosse culpado de canibalismo, pois em sua prateleira de temperos não havia zaatar. e, como é de senso-comum, nenhum libanês prepara um guisado sem zaatar.
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cluricaun o tribunal do condado de Fermanagh julgava um especialista em cerveja, também conhecido como mestre cervejeiro, por interceptação de onze caixas de Guiness, quando os advogados de defesa apresentaram um reviravolta inusitada. ao contrário do que discorria o processo, redigido com exímio conhecimento jurídico por um funcionário de carreira, o objeto do furto não fora vendido no mercado negro, e sim consumido, todo ele, numa noite de solidão. o juiz bateu o martelo, coercivo, para conter o burburinho e algumas transversas risadas, e, depois de se reunir com a defesa e a acusação, não teve outra alternativa senão comprovar se era possível um único homem beber onze caixas de Guiness numa única noite. a reconstituição, portanto, foi preparada, porém, antes do primeiro gole, o mestre cervejeiro lembrou que, como é de tradição secular, um distinto irlandês nunca deve beber sozinho, ao estar cercado de qualquer outro compatriota. assim, foram distribuídas garrafas de cerveja para todos do tribunal, que acompanharam o acusado no intento de se revelar culpado ou inocente. o final dessa história ninguém sabe realmente ao certo, mas várias versões sempre são narradas no dia de São Patrício.
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