Mordida, texto publicado n'O Diário do Norte do Paraná

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O DIÁRIO DO NORTE DO PARANÁ

CULTURA

Domingo, 25 de janeiro de 2015

TAVARES

Mordida

U Sérgio Tavares

y redacao@odiario.com

Venha, seu covarde!, segura uma faca. Gauguin se esconde e, num ato de loucura, Van Gogh decepa um naco da própria orelha. Mais tarde, com uma tira de pano vestindo os lados da cabeça, ele morde a ponta do cachimbo. Encara a tela crua e, de repente, um novo mundo é descoberto

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m cachorro mordeu ela. O pai entra às pressas no consultório do plantonista, sustentando a filha nas alças dos braços. Em que parte?, indaga o médico sem desviar a vista do monitor, onde digita o boletim. Na perna e nas costas. Era cão de rua? Não, do vizinho. O médico virase e, olhando sobre a armação dos óculos, dirigese à menina, agora encolhida contra o abdome nu do pai. Como foi? Uma menina foi atacada por um cachorro. Ele passa maionese no miolo do pão de forma, separado da esposa pela bancada que faz fronteira com a sala da cozinha. Machucou muito?, ela devolve, atenta ao tubo da tevê a um volume inaudível. Não. Alguns pontos e uma injeção. Mas havia algo estranho, ele cessa o movimento, com a faca suspensa. Os olhos dela. O que têm? Não sei. Pareciam afogados por um sentimento que eu não soube traduzir. Fecha o sanduíche e dá uma mordida. E você, o que fez hoje? Fiquei acompanhando os noticiários. Você viu como tá linda essa multidão de jovens com as caras pintadas, pedindo a saída do presidente? O marido se aproxima do sofá. Nota que sobre a coxa da esposa repousa um livro. O que está lendo? O manual de guerrilha do Marighella. Está de cócoras a centímetros de uma lixei-

ra de cujo interior sobem labaredas e línguas de fumaça que tomam o quarto-esala. Não temos tempo para isso, Eva. O rapaz corre pelos cômodos, recolhendo relatórios, documentos e mimeografias, com os quais alimenta a fogueira. Fomos delatados. Logo eles virão e iremos cair, como muitos companheiros. Olha, uma carta do Tito, ela não se demove do estado de sensibilidade. Vamos, Eva, queime isso! Precisamos nos apressar. Então invadem a casa ruídos de pneus próximos ao portão. Não há mais tempo. O casal se abraça e cada um morde a cápsula de cianureto antes presa entre os dentes. Quando os agentes da repressão arrombam a porta, os corpos ainda se debatem. A morte acaba de entrar, anuncia a plenos pulmões o oficial. Ao lado das camas coletivas, infestadas de piolhos, as mulheres se posicionam. Algumas, devido à magreza extrema, precisam de amparo. Vamos!, ordena. Chegou a hora do banho. Todas seguem, portanto, numa marcha pesada dos famintos, dos mortos. Ao ar livre, o vento gélido morde suas peles. São obrigadas a se despirem, nos fundos do pavilhão. Ali estão os chuveirões de metal. Elas sabem que não sairá água dos dutos. A velha judia murmura no ouvido de uma mocinha. Me dê a mão. Sairemos daqui juntas. A

mocinha parece não ouvir, em meio à voragem, ao som ensurdecedor do oceano engolindo o RMS Titanic. Me dê a mão, repete a irmã mais velha, agarrada a uma folha de madeira desprendida do casco. A água está congelante, sobrenadada por icebergs. Venha, Eva, segure aqui. Está lívida, os lábios anis. Eva, reaja!, ela morde o braço da irmã, num ataque desesperado à hipotermia. Reaja! Seus olhos estão injetados de sangue. Enxerga tudo num tom amarelo, febril. Venha, seu covarde!, segura uma faca. Gauguin se esconde e, num ato de loucura, Van Gogh decepa um naco da própria orelha. Mais tarde, com uma tira de pano vestindo os lados da cabeça, ele morde a ponta do cachimbo. Encara

a tela crua e, de repente, um novo mundo é descoberto. Terra à vista!, soa à estibordo. A nau avança contra o litoral. Todos estão apreensivos ante o que pode ocultar a mata fechada. O escrivão se achega ao comandante. E se existir selvagens? O português morde uma lasca de pão. Tome isso e partilhe com os outros. Cada discípulo recebe uma fatia. Ao centro da mesa, o homem de Nazaré dá as graças. Isto é o meu corpo dado em favor de vocês, façam isto em memória de mim. Comam agora. Os discípulos mordem o pão. Coma, insiste a serpente. A primeira mulher, sob a copa da árvore, estica o braço e toma o fruto proibido. Coma, que sereis como Deus, sabendo o bem e o mal. E, seduzida, Eva dá a mordida na maçã.


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