Caminhando, texto publicado n'O Diário do Norte do Paraná

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O DIÁRIO DO NORTE DO PARANÁ

Sábado, 10 de janeiro de 2015

Editor: Jary Mércio Tel. 3221-6609 Email: jary@odiario@com

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Cultura

QUAL GRANDE SHOW VOCÊ GOSTARIA DE ASSISTIR NESTE ANO NA CIDADE? O Viva Maringá preparou uma lista com 50 nomes, de ChicoBuarqueaSepultura,paraosintrernautasescolhe remoartistaquedeveriaseapresentarnesteanoemMa ringá.Oresultadodavotaçãoserádivulgadonodia30de janeiro e enviado aos principais produtores de shows da cidade.///AlexandreGaioto

GENTE/MÚSICA

O vozeirão dos hinos

O Maringaense Madalena Alves, 55, é conhecida por entoar os hinos, há anos, em eventos oficiais O “Só não cantei em posses de deputados e presidentes”, comenta a cantora, feliz da vida

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Alexandre Gaioto gaioto@odiario.com

Na manhã de 7 de setembro, o calor endiabrado não afastou o público da avenida XV de Novembro: crianças, adultos e idosos à espera do tradicional desfile cívico-militar da cidade. De cima do palco, Madalena Alves pode ser vista em seu terno elegante, em meio a políticos e personalidades locais. Serena, ela não aparenta qualquer resquício de nervosismo. Faz muito tempo, aliás, que Madalena não se sente nervosa quando sobe num palco. Desde que passou a ser convidada para entoar o hino do País nos desfiles de Sete de Setembro, em 1997, Madalena vem amadurecendo sua técnica vocais e já não se apavora com o que pode vir pela frente. Ela já está acostumada. Do palco, Madalena enxerga logo ali embaixo as três senhoras que, anualmente, saem de casa para ouvi-la entoar o hino. E quando descer do palco, após a apresentação, Madalena sabe que as três desconhecidas senhoras estarão à espera dela na escada do palco, prontas para recebê-la com fortes abraços e agradecimentos. Enquanto pensa na calorosa recepção que ganhará das três senhoras, Madalena recebe o sinal da produção. Que se ajeite e se prepare: o show vai começar. Outro sujeito se aproxima e lhe entrega o microfone. A postos, o tecladista dá o sinal com a cabeça. E, no palco, Madalena inicia a sua interpretação do hino. “O que eu gostoédeapresentaraminhaversão, mais lenta e lírica. Só canto o hino no formato marcial quando mepedem”,diz. Naquele 7 de setembro, após terminar o hino, Madalena só não contava com o pedido que receberia dos organizadores. Quebrando o protocolo, eles pediram que ela voltasse para um bis, soltando novamente o gogó no “Hino Nacional”. “Aquilo foi uma grande alegria para mim”, lembra a cantora. E uma alegria

ainda maior para as três desconhecidas senhoras. Canto geral Num escritório da avenida Duque de Caxias, onde trabalha como funcionária pública no setor de capacitação dos servidores, a voz dos hinos vai passando sua vida a limpo. No Lar Betânia, Madalena entrou aos 5 anos e saiu de lá aos 24. A música sempre fez parte do cotidiano dela. Ainda em tenra idade, tinha aulas de iniciação musical e de técnicas vocais. Foi lá que aprendeu a cantar. E quando a coordenadora do Lar Betânia resolveu publicar

Não é toda dupla sertaneja que está bem afinada. Do rock não gosto porque é muito tumultuado MADALENA ALVES Cantora

em 1998 seu primeiro livro, agendando o lançamento na Câmara dos Vereadores, não pensou duas vezes: convidou Madalena, a primeira interna da instituição, para entoar o “Hino Nacional”. “Foi ali que tudo começou. No Lar Betânia ganhei uma família e ainda aprendi a gostar de música edecantaros hinos”,comenta. Aos 55 anos, Madalena já perdeu as contas de quantas vezes se apresentou em posses de vereadores, prefeitos e governadores, sem falar nas outras cerimônias oficiais, como o desfile de 7 de setembro. “Só não cantei em posses de deputados e presidentes”, comenta, feliz da vida. Por apresentação, ela cobra de R$ 250 a R$ 300, valor que é dividido com o pianista que estiver em sua companhia.

TAVARES Sérgio Tavares A literatura tem quilômetros de passagens e eixos movidos por percursos cumpridos a pé. “Ulysses”, de James Joyce, estrutura sua trama numa longa caminhada, e “O apanhador no campo de centeio”, de J. D. Salinger, dispõe de cenas radiosas constituídas por passeios do protagonista

NO GOGÓ. A maringaense Madalena Alves, que descobriu a paixão pelos hinos e pela música no Lar Betânia: “O ‘Hino à Bandeira’ e o ‘Hino à Árvore’ precisam chegar aos jovens”, diz —FOTO: ARQUIVO PESSOAL Bem conhecida na cidade, Madalena passou a ser convocada para cantar, inclusive, o hino do Japão - em japonês, claro num evento que, anualmente, reúne a comunidade nipônica aqui da cidade. A paixão pelos hinos é tanta que Madalena não abre mão deles nem quando está sozinha em casa. “Até no chuveiro canto os meus hinos”, revela. “E o que eles têm de tão especial?”, pergunto à cantora. Sentada em seu escritório, vestindo uma blusinha de azul brilhante, Madalena abre um sorriso. “É di-

ferente das outras músicas. Sei que hoje ninguém valoriza os hinos, são até motivo de piada. Mas temos que mudar isso. Afinal, tirando o Nacional, o ‘Hino de Maringá’ é um dos mais bonitos que há”, diz a cantora. Para Madalena, o hino deveria ser uma obrigação em todas as escolas. “O ‘Hino à Bandeira’, o ‘Hino à Árvore’ precisam chegar aos jovens. É uma forma de incentivar o patriotismo”, opina. Ela lembra o dia em que foi se apresentar na inauguração de uma escola maringaense. Quando começou a cantar, percebeu

que a garotada não sabia a letra inteira e errava com frequência os versos. “Então, um dia fui a Marmeleiro e lá tomei um susto: até as crianças da pré-escola sabiam a letra do hino da própria cidade”, lembra. O rock errou Além dos hinos, Madalena tem um gosto eclético: Zeca Pagodinho, Martinho da Vila, pagode, sertanejo raiz e música gospel. Só não gosta de rock nem de sertanejo “universitário”. “São músicas muito berradas. Não é toda dupla que está bem afinada. Do

rock não gosto porque é muito tumultuado”, avalia. A voz dos hinos nunca escreveu uma música nem jamais pensou em gravar um CD. Munida de um repertório popular, já se apresentou em casamentos e formaturas de alunos. Mas nada se compara à emoção de cantar seus hinos. “Nunca vou me cansar deles. Depois de 33 anos na Prefeitura, estou me preparando para me aposentar. Acho que vou me dedicar a algum instrumento, talvez o piano ou o teclado. Talvez eu pense, depois, em gravar um CD. Quem sabe?”

Caminhando

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ma de minhas atividades preferidas é a caminhada. Há algo de rendoso no caminhar que contribui diretamente para o meu processo criativo. Tal como reflete o escritor japonês Haruki Murakami, na coletânea de ensaios “Do que eu falo quando falo em corrida” (que é uma aceleração da caminhada, da qual também sou adepto), gosto de sair pelas ruas a esmo, “em meu próprio vácuo aconchegante, caseiro, meu silêncio nostálgico”. Porém, ao contrário deste, cujo vácuo retém “pensamentos aleatórios”, o meu serve para botar as ideias em ordem, derrubar bloqueios e arejar inventividades. Tantas vezes já sai de casa com um germe de inspiração e retornei com um texto maduro. A vantagem de caminhar onde moro é que o lugar favorece a marcha. Meu bairro, por exemplo, pode ser percorrido em cerca de 10 minutos. As extensões dos bairros vizinhos esticam um pouco o tempo, mas não os tornam insuperáveis. O que é ótimo, pois faz do carro uma vaidade tola e empreende uma ligação sentimental com a paisagem. Nesse vácuo que crio, relaciono-me com os edifícios, as praças, o mar, as árvores que precisam de outros para que efetuem suas caminhadas. Não há nada mais emotivo que caminhar numa tarde de outono, sob o céu que se põe em cílios de fogo, ou numa manhã de inverno, contemplando as ondas raivosas que disparam, do cabeceio contra a língua cinzenta, estilhas d’água. Quando caminho nunca estou no presente, mas num futuro que logo será literatura. Literatura que tem quilômetros de passagens e eixos movidos por percursos cumpridos a pé. “Ulysses”, de James Joyce, estrutura sua trama numa longa caminhada, e “O apanhador no campo de centeio”, de J. D. Salinger, dispõe de cenas radiosas consti-

tuídas por passeios do protagonista. Autores clássicos, como Nicolau Gogol e Anton Tchekov, passando por William Faulkner, Juan Rulfo, Cormac McCarthy e Julio Cortázar, na sutileza esmagadora de “Continuidade dos parques”, lançam personagens em jornadas rumo ao mundo, rumo a si. Por aqui, temos romances e contos de Machado de Assis, Lima Barreto e Graciliano Ramos que dão partida a um caminhar renovado por contemporâneos do porte de Rubem Fonseca, Amilcar Bettega e Luiz Alfredo Garcia-Roza. Um relato cativante sobre caminhada está no posfácio do formidável “O cavalo perdido e outras histórias”, de Felisberto Hernández, escrito pelo crítico e tradutor Davi Arrigucci Jr.: “Como costumava fazer então, saía para caminhar ao deus-dará todas as tardes, tentando botar as ideias no lugar, e sempre acabava a caminhada no velho sebo de seu Marino Izzo (…), o único espaço em São Paulo onde o espírito se afina conforme a música que paira no ar cambiante da tarde”. Meu predileto, todavia, é aquele que inicia o romance “Se ninguém falar de coisas interessantes”, de Jon McGregor, justamente por um efeito no qual, ao invés de o personagem caminhar pela cidade, a cidade é que caminha pelo personagem. “Se você prestar atenção, poderá ouvir. A cidade canta. Se ficar em silêncio, em um jardim, no meio de uma rua, no telhado de uma casa. O canto é mais perceptível à noite, quando o som passa mais precisamente pela superfície das coisas, quando a canção alcança um lugar dentro de você”. Penso que isso é que motiva a caminhada, a cidade canta para mim. E essa canção que traduzo em literatura, tal como agora, quando chego às últimas linhas dessa crônica, mirando um futuro onde será lida. Vocês está no futuro, leitor. Mesmo quando paro de caminhar, você continua.


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