Mapeamento Colaborativo no Brasil: Levantamento e Análise de Iniciativas

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I Simpósio Nacional de Gestão e Engenharia Urbana Universidade Federal de São Carlos - 25 a 27 de Outubro de 2017 Cidades e Objetivos do Desenvolvimento Sustentável

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MAPEAMENTO COLABORATIVO NO BRASIL: LEVANTAMENTO E ANÁLISE DE INICIATIVAS. 1

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3

4

LANER. I. C. ; MATOS, B. A. E. ; NETO, G. P. J. ; OLIVEIRA, L. C. 1,2,3,4

UnB, Izadora Laner, izadora@courb.org. Instituto COURB, Bruno Matos, bruno@courb.org. Instituto COURB, Germano Neto, germano@courb.org. UnB, Luisa Oliveira, luisa@courb.org.

RESUMO Através de um levantamento das ferramentas de mapeamento colaborativo mais usadas no Brasil, este artigo objetiva analisar suas principais características, destacando os benefícios desta prática para a manutenção do espaço urbano, quando da inserção da população local no processo. Assim, abre a possibilidade de estimular a elaboração de iniciativas semelhantes por entes públicos administrativos, universidades e lideranças comunitárias. Os avanços tecnológicos do século XXI modificaram a sociedade, redefinindo o cotidiano das pessoas e a dinâmica das cidades. Um dos mais importantes corresponde a tecnologias de georreferenciamento de informações. Conhecer melhor o lugar onde estamos nos permitiu construir uma relação mais íntima com o espaço que vivenciamos. O compartilhamento de dados em tempo real transpôs barreiras e paradigmas, possibilitando um rearranjo harmonioso das ciências que estudam o lugar. Hoje a Arquitetura, o Urbanismo, a Psicologia e a Geografia caminham juntas no constante aprimorar da experimentação do espaço. Tais disciplinas somaram-se na criação de soluções aos problemas urbanos, feitas pelos próprios usuários locais, explorando a conexão das pessoas entre si e com o espaço que as rodeiam. Uma das ferramentas que melhor condensa essa multidisciplinaridade é o Mapeamento Colaborativo; consiste basicamente em um método de construção de um banco de dados georreferenciados editável por pessoas que tenham interesse em construir e usufruir dessas informações. As possibilidades de utilização dessa ferramenta são numerosas: desde a localização de ruas em mau estado de conservação, bem como apontar o melhor percurso para o trajeto de ciclistas. O usuário, ao passar por algum local que indique tais informações, sinaliza no mapa e torna o conhecimento público. O fato de observar mais atentamente os lugares de seu cotidiano gera um engajamento natural nas pessoas, ampliando seu senso de pertencimento. Tal processo culmina num maior cuidado com as cidades, contribuindo para solucionar boa parte dos problemas urbanos atuais. Palavras-chave: Mapeamento Colaborativo, Cartografia Social.

Colaborativo,

Participação

Popular,

Urbanismo

ABSTRACT

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Through a survey of the most used collaborative mapping tools in Brazil, this article intends to analyze and point out its main characteristics, drawing a comparative parallel between them. The results may stimulate the development of similar initiatives by public administrative bodies, universities and community leaders. The rapid technological advances of the 21st century have modified society, redefining the daily lives of people and the dynamics of cities. One of the most important advances corresponds to information georeferencing technologies. Knowing better where we are allowed us to build a more intimate relationship with the space we experience. Real-time data sharing transposed barriers and paradigms, enabling a harmonious rearrangement of the sciences that study the place. Today Architecture, Urbanism, Psychology and Geography go together in the constant improvement of the experimentation of space. Such disciplines have been added in the creation of solutions to the urban problems, made by the local users themselves, exploring the connection of the people with each other, and with the space that surrounds them. One of the tools that best condenses this multidisciplinarity is the Collaborative Mapping. It basically consists of a method of building a georeferenced database editable by people who have an interest in building and enjoying this information. The possibilities of using this tool are numerous: from the location of poorly maintained streets, as well as pointing out the best route for the cycle path. The user, when passing by some place that indicates such information, signals on the map and makes the knowledge public. The fact of observing more closely the places of their daily lives generates a natural engagement of the people, increasing their sense of belonging. This process culminates in greater care with cities, helping to solve most of the current urban problems. Keywords: Collaborative Mapping, Popular Participation, Collaborative Urbanism, Social Cartography. 1 INTRODUÇÃO Os mapas, em geral, podem nos ajudar a responder diversas perguntas sobre nosso cotidiano ambientado na vida urbana. Utilizamo-los para extrair informações que variam desde questões triviais - como traçar a nossa rota cotidiana, escolhendo percursos muitas vezes automaticamente - até dados mais específicos, como escolher o caminho e o transporte mais rápidos para chegar ao hospital mais próximo, em caso de emergência. Essa capacidade de identificar a localização de edifícios, equipamentos e infraestrutura, bem como a relação entre eles e suas possibilidades de acesso, tem sido essencial para o desenvolvimento urbano da humanidade em todos os lugares. O mapeamento permitiu ampliar a quantidade e conteúdo de dados geográficos, culturais, sociais e econômicos. A disponibilidade destas informações em diversos meios permite a conexão entre as pessoas, a apropriação do lugar em que vivemos e a expansão contínua de diversos campos de conhecimento. Nesse sentido, se torna um caminho natural as pessoas trabalharem juntas na construção de mapas relativos ao próprio ambiente em que vivem e influenciam cotidianamente. Contudo, nem todos os mapas são livremente editáveis ou acessíveis a população em geral. A realidade atual no contexto brasileiro mostra o contrário, visto que o mapeamento colaborativo em nosso país ainda é um conceito novo e pouco explorado. No entanto, se entendermos a necessidade de fornecer e compartilhar informações como o cerne da sociedade contemporânea, valorizando ainda a participação cidadã como ponto-chave desse processo, o mapeamento colaborativo pode ser a ferramenta de maior potencial para reunir essas informações, desenvolvê-las e divulgá-las de forma democrática.

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Partindo desse pressuposto, podemos definir o mapeamento colaborativo como a informação geográfica disponibilizada voluntariamente. É a construção de um banco de dados georreferenciados editáveis por qualquer pessoa - um método crowdsourcing1 - em qualquer lugar que tenha interesse em construir e usufruir dessas informações. Este método colaborativo é uma ferramenta muito importante, já que abre uma possibilidade muito vasta de informações a serem abordadas nos mapas, cobrindo qualquer demanda que possa surgir no cotidiano de uma pessoa, contribuindo significativamente para a construção de conhecimento em vários campos disciplinares. Mas o que motivaria alguém, ou um grupo de pessoas, a criar um mapa colaborativo e como isso é viabilizado? São variadas as razões para se trabalhar na construção de um desses mapas. Podem abranger desde os motivos mais gerais e altruístas, como por exemplo, ajudar uma comunidade a ter conhecimento dos pontos específicos de atenção quanto a violência urbana, bem como algo muito menor e mais pontual, como identificar quais os melhores lugares para escalar montanhas. O interesse em compartilhar informações com o outro vem de uma empatia natural e uma consciência importante da vida em comunidade. Naturalmente, ao compartilhar uma informação você também receberá outras de volta, criando, assim, uma rede de conhecimento onde todos são mutuamente beneficiados. 2 CARTOGRAFIA SOCIAL E MAPEAMENTO COLABORATIVO Historicamente, a cartografia esteve relacionada a dominação territorial e a legitimação de poder. Lynch, em seus estudos, relaciona a consolidação dos Estados nacionais e a produção de mapas em quatro funções principais: constituição dos Estados com identificação de rotas e pontos de referência; delimitação dos limites do Estado e de propriedades; criação de jurisdições administrativas; zoneamento prescrevendo utilizações para o território. (LYNCH, 1996) Harley, por sua vez, apresentou a ideia da impossibilidade de uma cartografia popular, pois os mapas seriam uma linguagem própria do poder e não de expressão de segmentos subalternos da sociedade. A informática, que começava a se desenvolver na época tenderia a reforçar essa concentração de poder (HARLEY, 1995). Nos anos 2000 emergiu a Web 2.02, conhecida não por uma atualização de especificações técnicas, mas por uma mudança no relacionamento entre os usuários e a rede. A medida que softwares livres de georreferenciamento são desenvolvidos, promove-se também a popularização da criação e a manipulação de dados geográficos, ainda que a produção e controle desses dados tenha continuado, inicialmente, sob a predominância do poder do Estado. O mapeamento participativo é aquele que considera o conhecimento espacial e ambiental das populações, inserindo-o em modelos convencionais de representação. No Brasil, um levantamento realizado em 2008 pelo IPPUR/UFRJ3 identificou experiências de mapeamento de territórios com a participação de populações tradicionais ou da sociedade civil na época. Quase metade das experiências foi de delimitação de territórios, reforçando a relação entre a cartografia e o poder. (HERLIHY & KNAPP, 2003)

1

Crowdsourcing, segundo Brabham, é um modelo de criação e/ou produção que conta com a mão-de-obra e conhecimento coletivos para desenvolver soluções e criar produtos. (BRABHAM, 2013). 2 O’REILLY, Tim. What is web 2.0. 2005. 3 Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, 2008.

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Tabela 1 – Experiências de Mapeamento Participativo Tipos

Número

Percentual

Delimitação de territórios

56

47,6%

Discussão de desenvolvimento local

15

12,75%

Subsídio a planos de manejo em unidades de conservação

11

9,35%

Etnozoneamento em terras indígenas

9

7,65%

Educação ambiental

7

5,95%

Planos diretores urbanos

6

5,10%

Subsídio a planos de manejo fora de unidades de conservação

6

5,10%

Identificação e demarcação de terras indígenas

3

2,55%

Zoneamento em geral (não-étnicos), como zoneamento ecológicoeconômico

2

1,70%

Outros

3

2,55%

Fonte: IPPUR/UFRJ (2008) Ao promover a inserção de outras pessoas, que não apenas profissionais atuantes nos campos da topografia e cartografia, o mapeamento participativo abriu espaço para o desenvolvimento do mapeamento colaborativo. A popularização de smartphones, redes sociais e acesso móvel a Internet promoveu o engajamento comunitário e a associação de cidadãos em torno de causas específicas. Prado Filho e Montalvão Teti consideram que, enquanto a cartografia tradicional se relaciona ao campo de conhecimento da geografia, fundado em bases matemáticas e estatísticas, a cartografia social está ligada aos campos de conhecimento das ciências sociais e humanas, tratando da diagramação de relações de poder, práticas de enfrentamento e liberdade. Ou seja, seria mais o desenho de topologias e diagramas do que mapas propriamente ditos (FILHO & TETI, 2013). Este artigo considera, para fins de enquadramento do mapeamento colaborativo, o conceito de cartografia social de cunho territorial, próprio das iniciativas de autocartografia. No Brasil, o Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, coordenado pelo antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida, é um grande referencial no assunto, por se tratar de um significativo instrumento de empoderamento dos movimentos sociais, na região Norte, através da cartografia.

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Fig. 1 – Diagrama Explicativo do Enquadramento de Iniciativas de Mapeamento Colaborativo no Campo da Cartografia Fonte: BRUNO MATOS (2017) As atuais iniciativas de mapeamento colaborativo surgem principalmente da vontade de promoção de causas sociais, culturais, ambientais e de infraestrutura urbana. Trata-se de uma diferença em relação a outras iniciativas de cartografia social não-oficial que se caracterizam pelo uso comercial, como Waze e Google Maps, ou, ainda, pelo mapeamento com fins de conhecimento geral do território, como o OpenStreetMap. Os Estudos de caso a seguir apresentam uma análise mais aprofundada a respeito de iniciativas comunitárias de mapeamento colaborativo. Tabela 2 – Iniciativas Comunitárias de Mapeamento Colaborativo no Brasil Temática

Cultural e Social

Iniciativa

Local

Guia Cultural de 4 Favelas

Rio de Janeiro – RJ

Observatório das Favelas do Rio de Janeiro

Mapa colaborativo de visualização de dados sobre práticas culturais em comunidades.

Várias cidades e estados brasileiros

Instituto TIM, em parceria com instituições locais

Software livre para mapeamento colaborativo e gestão cultural.

São Paulo – SP

São Mateus em Movimento

Capacitação de membros de coletivos e associações culturais em técnicas de mapeamento em softwares

Mapas Culturais

Curso de Mapeamento 6 Colaborativo

5

Responsável

Objeto

4

http://guiaculturaldefavelas.org.br/ https://institutotim.org.br/project/mapas-culturais/ 6 https://www.facebook.com/events/308144276286487/ 5

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livres. Mapeamento Colaborativo de Árvores e Locais 7 para Plantio

Várias cidades e estados brasileiros

Instituto Árvores Vivas

Projeto colaborativo para a construção de diversos mapas, que vão desde ao registro de árvores PauBrasil, mapeamento de árvores frutíferas e o mapeamento de denúncias de maus-tratos à fauna e flora.

Mapeamento Colaborativo da Permacultura no 8 Brasil

Várias cidades e estados brasileiros

Associação Veracidade

Mapeamento e sistematização de grupos e coletivos que trabalham com permacultura no Brasil, com o intuito de fomentar processos de formação de redes, trocas, trânsitos e experiências

São Paulo – SP

Código Urbano

Mapeamento colaborativo de infraestrutura cicloviária.

Várias cidades e estados brasileiros

Transporte Ativo em parceria com instituições locais

Mapeamento de infraestrutura cicloviária em diferentes cidades do Brasil.

Várias cidades e estados brasileiros

Cidadera

Plataforma para reclamações da população referentes a problemas de infraestrutura urbana e manutenção de calçadas e áreas públicas.

Ambiental

Mapatona

Infraestrutura Urbana

9

Mapas Cicloviários 10 Colaborativos Cidadera

11

Fonte: BRUNO MATOS (2017) 3 ESTUDOS DE CASO 3.1 Ferramentas de Mapeamento Colaborativo Consolidadas Mapear colaborativamente implica na possibilidade de edição ou construção do mapeamento por diferentes grupos e pessoas. Essa construção mútua, além de possibilitar uma maior transparência e um desenvolvimento democrático do exercício de construção de mapas, por exemplo, faz com que o mapeamento seja continuamente desenvolvido. Com o advento da tecnologia, esse mesmo modelo de construção tem se materializado em diferentes plataformas, não necessariamente relacionada com mapas, como, por exemplo, o Wikipedia. Nessa mesma linha, se desenvolveram diferentes plataformas na web que direcionam a construção do conteúdo ao usuário e apenas facilitam esse processo. Se enquadram nessas características, por exemplo, as redes

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https://www.arvoresvivas.org.br/projeto-colaborativo http://veracidade.eco.br/mapeamento-colaborativo-da-permacultura-no-brasil/ 9 http://codigourbano.org/mapeamento-ativo-das-cidades/ 10 http://ta.org.br/mapas/ 11 http://cidadera.com/map 8

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sociais, plataformas de vídeo e imagens e até plataformas de mercantilização, como é o caso de aplicativos de compartilhamento de carros, casas e utensílios domésticos. Ao discutir as ferramentas de mapeamento colaborativo propriamente ditas, é importante ressaltar que elas podem se enquadrar basicamente em duas categorias: as ferramentas de construção de mapas e as de mapeamento. Nas ferramentas de construção de mapas a colaboração coletiva vai se dedicar a construção da superfície do mapa, ou seja, a consolidação de um mapa específico a partir do zero. Esse pode ser o mapa de um bairro, uma cidade, um sistema de transporte ou de qualquer outro tipo. Já as ferramentas de mapeamento se dedicam a outras camadas, a partir de um mapa existente. Essas construções coletivas têm como o objetivo caracterizar o mapa cru, com propósitos claramente definidos. Um exemplo dessas ferramentas de mapeamento é o Google Maps, que possibilita aos usuários, a partir de uma superfície já construída, a adição de pontos de interesse, inclusive com fotos e detalhes específicos. Ambos os exemplos aqui citados compartilham de um mesmo problema: o controle de revisões e de atualizações. Ao construir ferramentas de mapeamento colaborativo abertas a edição geral, corremos o risco de construções colaborativas com diferentes níveis de precisão, ou até mesmo com informações incorretas, sejam elas propositais ou não. Uma forma de solucionar esse problema é criar camadas já revisadas e aceitas, bem como camadas pendentes de aceitação. Isso facilita o trabalho dos revisores no controle das mudanças feitas, dependendo, é claro, do tamanho da construção coletiva. Ao desenvolver esse tipo de ferramenta, em qualquer circunstância, essa deve ser uma questão central a ser respondida: Como garantir que a qualidade das informações advinda da colaboração voluntária está de acordo com as necessidades da plataforma? Esse tipo de mapeamento, ao qual denominaremos neste artigo de Mapeamento Colaborativo Voluntário (MCV), tem se consolidado com a evolução da internet e, consequentemente, com a possibilidade da geração de conteúdo pelo usuário, como é o caso do WikiMapia, do OpenStreetMap e do Google Maps. No entanto, esse mapeamento colaborativo também pode acontecer de forma presencial, com ferramentas participativas de mapeamento comunitário e de planejamento espacial. Além disso, MCVs também podem possibilitar a conexão entre pessoas próximas que compartilham interesses, catalisando processos importantes de integração e coesão social. 3.2 Exemplos de Mapeamento Colaborativo Voluntário (MCV) Construção Remota de Mapas Os processos de mapeamento colaborativo remoto podem acontecer de diversas formas, e muitas destas já possuem uma ferramenta consolidada para utilização gratuita; os exemplos citados anteriormente (WikiMapia, OpenStreetMap e Google Maps) são apenas algumas dessas ferramentas. No entanto, existem diversas outras, como o Geo-Wiki e o Bhuvan do Governo da Índia. Para um acervo de ferramentas mais profundo, normalmente o exercício de construção terá que contar com o apoio de programadores e desenvolvedores, que utilizam, frequentemente, plataformas colaborativas para a construção de seus códigos, como o GitHub. Construção Presencial de Mapas Para construções colaborativas e presenciais a ferramentaria é muito mais restrita. No entanto, dependendo dos objetivos definidos, pode ser mais eficiente que a utilização de processos de construção remota. Construções presenciais participativas combinam métodos de participação com ferramentas de geoprocessamento, o que, por sua vez, combina diversos métodos, como desenhos de percepção de ambiente, mapas pela

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perspectiva dos participantes, modelagem e construção tridimensional com objetivos, imagens de satélite, fotografias aéreas, etc. Essa utilização conjunta de ferramentas possibilita aos participantes apresentarem seu conhecimento espacial na forma de mapas interativos, que podem servir para aprendizado, discussão, análise, tomada de decisão, dentre outras funções. O principal objetivo dessas ferramentas é empoderar comunidades e grupos sociais que, na maioria das vezes, ficam de fora dos processos participativos. Construção Colaborativa Social Além das ferramentas citadas, claramente mais voltadas à construção de mapas propriamente ditos, existem também diversas possibilidades de integração e coesão social advindas de plataformas que incitam a participação mais ativa da população. Essa construção colaborativa social permite que pessoas interajam umas com as outras, conforme sua localidade ou interesse. Essa interação entre espaços territoriais e informações geoprocessadas podem conectar usuários com locais, eventos, ou grupos específicos visando a socialização e possibilitando aos usuários um maior nível de informação sobre uma região específica. Ferramentas como essa já são usadas por aplicativos e plataformas de localização e recomendações; mais recentemente têm sido utilizadas para engajamento cívico e campanhas políticas, por exemplo. Construções colaborativas sociais tem um potencial enorme de possibilitar a consolidação de redes sociais, além de facilitar a comunicação entre usuários ao longo do tempo. No entanto, as redes somente serão expandidas e fortalecidas verdadeiramente com o contato físico e a materialização social de sua estrutura. 3.3 Curso de Mapeamento Colaborativo na Zona Leste de São Paulo Mais do que criar novos softwares e plataformas de mapeamento, algumas iniciativas se valem do uso de softwares livres para alcançar seus objetivos cartográficos. Este é o caso do Curso de Mapeamento Colaborativo promovido pelo Núcleo de Cultura Digital da associação São Mateus em Movimento, na Zona Leste de São Paulo. Trata-se de uma experiência de sucesso com a alfabetização digital de jovens e a capacitação de membros de coletivos e associações sociais e culturais da região. Através de uma entrevista com o coordenador, Aluizio Marino, foram levantadas informações a respeito do curso. No decorrer dos quatro encontros, entre os dias 9 e 12 de maio de 2017, com duração de quatro horas cada um, foram ensinados software livres de geoprocessamento, tais como QGIS e Carto. A partir do ensino de tais ferramentas, os alunos apresentavam problemáticas típicas de seu cotidiano para a resolução em grupo, a partir da elaboração de mapas. O Curso segmentava-se em quatro módulos, sendo estes: “Cartografia, Mapas e Poder”, “QGIS e Mapas Analógicos”, “Carto e Cartografias Digitais”. Uma das atividades principais consistiu na capacitação para a impressão de mapas-base em grandes formatos, usados como instrumento de participação comunitária, no que seria uma fase analógica do processo de mapeamento colaborativo. Em outra atividade, utilizou-se o software Carto para a manipulação de dados públicos, viabilizando também a sua análise crítica. Para os organizadores do projeto, trata-se do empoderamento da comunidade através do mapeamento, inclusive fornecendo ferramentas para o questionamento do planejamento central. Foram feitos, ainda, mapas que ilustravam as políticas para moradores de rua em São Paulo em diferentes gestões municipais, configurando uma cartografia histórica que a facilita a compreensão espacial de fenômenos temporais. 3.4 Guia Cultural de Favelas do Rio de Janeiro

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As favelas são solos férteis para a criação cultural. A combinação de manifestações culturais, como a dança e a música, recriam a estética carioca e retratam o mundo vivido de seus moradores, assim como a pintura, o grafite e a fotografia traduzem os diferentes sensos de pertencimento à cidade. A favela é tanto parte indissociável da historiografia urbana do Rio de Janeiro como imprescindível para entendermos os impactos da segregação socioespacial, presentes no processo de urbanização. Além disso, configurase como espaço prioritário da formação cultural local, já que seus becos, ruas e praças abrigam múltiplos espaços de encontro, promovendo a sociabilidade. Assim, podemos enxergar a favela como o território de experimentação referente à pluralidade de invenções e práticas que dão significado à vida em comunidade. Esse cenário, contudo, não é reconhecido por importantes agentes da cidade, como técnicos, planejadores e a administração municipal, os quais reproduzem, expressamente, representações estereotipadas das favelas. É necessário, portanto, gerar novos registros concretos, iniciando através de registros gráficos que, consequentemente, serão absorvidos pelo imaginário coletivo da comunidade, onde as linguagens estéticas que permeiam o cotidiano sejam concebidas como práticas culturais relevantes. A forma mais eficaz de se retratar e identificar toda essa vivência cultural é pelo empoderamento dos próprios moradores, dando-lhes autonomia para efetuar tais registros. Partindo dessa premissa, o projeto Solos Culturais12 trabalha elaborando, ressignificando e difundindo, junto aos jovens das comunidades locais, outros conhecimentos sobre o significado semântico da cultura. Compõe-se de ações que têm como eixos principais a pesquisa e a produção cultural, a realização de intervenções estéticas, bem como estudos sobre práticas culturais de jovens nas favelas. Um dos produtos dessas ações foi a criação do Guia Cultural de Favelas, um mapa colaborativo de visualização de dados sobre práticas culturais de seis favelas13 do Rio de Janeiro. O projeto foi desenvolvido por meio de uma parceria entre o Observatório de Favelas14 e a Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro, a partir do entendimento desta última de que novas políticas culturais precisam ser criadas, valorizando a diversidade das expressões culturais já existentes e fomentando o desenvolvimento de novas potencialidades. O Guia correspondeu, portanto, a um inventário feito pelos quarenta jovens participantes do projeto em seus territórios de moradia. O percurso deste inventário reunia dois objetivos: mobilizar informações para a criação do guia e, uma vez mapeadas as práticas, oferecer subsídios para a construção de uma política pública cultural, tendo como protagonistas os próprios criadores artísticos-culturais identificados. O levantamento foi realizado durante os meses de novembro e dezembro de 2012. As atividades da pesquisa foram precedidas por um processo de formação dos jovens em pesquisa social da cultura, dedicado à elaboração de metodologias científicas e aplicação de diagnósticos participativos. Nesse sentido, os participantes do projeto adquiriram vivências conceituais e práticas de aplicação e sistematização de pesquisas no campo da cultura em espaços populares. 12

Projeto criado em 2011 pelo Observatório de Favelas do Rio de Janeiro, visa formar jovens entre 15 e 29 anos, de cinco diferentes territórios – Cidade de Deus, Complexo do Alemão, Complexo da Penha, Manguinhos e Rocinha – em produção cultural e pesquisa. 13 Morro do Alemão, Campo Grande, Caramujo, Cidade de Deus, Manguinho e Maré. 14 O Observatório das favelas foi criado em 2001 e atua, desde 2003, como OSCIP - Organização da Sociedade Civil de Interesse Público. Abrange desde pesquisadores à profissionais advindos de espaços populares. Sua atuação está circunscrita a estratégias de conquista do Direito à Cidade para populações periféricas, bem como a ressignificação de favelas e ações no âmbito das políticas públicas.

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A pesquisa iniciou com a aplicação de entrevistas estruturadas para identificação de práticas artísticas e culturais, definidas em classificações de grandes grupos de: música, artes cênicas, artes visuais, cultura popular, audiovisual, literatura, esporte, moda, atividades formativas, grafite e espaços de sociabilidade e cultura. O instrumento de pesquisa, além de localizar autores e espaços de realização de arte e cultura, abrigava itens das condições de produção, modo de organização, recursos de financiamento, público envolvido e inserção das ações no território. Foi possível, portanto, construir um quadro mais amplo de informações para a análise da situação de tal produção artística e cultural local, associada ao registro dessas atividades e seus atores. Para a execução do levantamento, contou-se com o saber local dos jovens sobre as ações em cada território popular em estudo. Contudo, se fez necessário recorrer ao uso de metodologias de inventários territoriais, tendo como base mapas digitais de cada favela e a correspondente aplicação de recortes cartográficos de cadastro, utilizando como referência os resultados do Censo 2010 do IBGE. Tal procedimento permitiu construir quadrantes de inventários sob a responsabilidade de cada jovem, no sentido da localização das práticas em investigação e aplicação das entrevistas. Esta divisão foi realizada a partir da interlocução entre os jovens e do reconhecimento dos mesmos no que diz respeito a dimensão territorial de cada uma das comunidades em estudo. Tratado como unidade de investigação, o quadrante garante a localização geográfica precisa de ações e instituições. Um fator importante é que, no instrumento de levantamento, a última questão se referiu a indicação de até sete possíveis parceiros ou instituições que pudessem ser entendidos como práticas culturais no território. Assim, um mapeamento em rede seria estruturado da seguinte forma: um entrevistado indicaria outros parceiros a serem entrevistados, buscando mapear o maior número possível de práticas culturais nos territórios. Esse procedimento permitiu uma ampla varredura das ações e instituições culturais circunscritas e, portanto, maior confiabilidade na identificação e mapeamento das mesmas. Posteriormente a essa etapa seriam traduzidos todos os dados levantados para a linguagem cartográfica, através de uma ferramenta digital. Na comunicação visual utilizou-se cores vivas e convidativas, tornando a experiência do usuário mais simples e interativa. Os dados ficam armazenados, assim, em pontos coloridos nas devidas localizações geográficas, e com um clique aparecem informações interativas de diversos tipos, como textos, fotos e vídeos sobre a prática cultural específica.

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Fig. 2 – Mapa Cultural da Favela do Alemão Fonte: GUIA CULTURAL DE FAVELAS (2017) Atualmente qualquer pessoa pode contribuir com a ferramenta, basta adicionar ao mapa qualquer atividade ligada à produção cultural das favelas. O desejo maior é, e continuará sendo, tornar essas práticas visíveis, a fim de disputar o imaginário coletivo e cultural do Rio de Janeiro, propondo uma cidade mais justa, democrática e participativa. 4 CONCLUSÃO Historicamente, a cartografia está relacionada com a afirmação do domínio estatal sobre o território. Sob tal perspectiva, tornava-se difícil enxergá-la como um instrumento potencializador do empoderamento social e, além disso, uma ferramenta de fomento à participação cidadã ativa na construção de uma rede de compartilhamento de informações pertinentes ao convívio urbano. Contudo, o mapeamento colaborativo, como plataforma acessível e editável gratuitamente pela população em geral, vem para questionar essa relação. O mapa, antes utilizado como instrumento de legitimação do poder do Estado, com o advento da web e criação de softwares livres de georreferenciamento, atualmente tem papel fundamental para despertar uma relação mais íntima entre moradores e seu espaço cotidiano. Por meio do mapeamento colaborativo os usuários não só tem acesso a diversas informações sobre o espaço antes desconhecidas, como também podem compartilhá-las entre si, formando uma rede de conhecimento urbano que abrange um escopo extenso e diversificado de variáveis. O esforço para efetuar este tipo de registro cartográfico pode ser dividido sob duas frentes: A construção de mapas a partir do zero ou a utilização de um mapeamento preexistente para o acréscimo e detalhamento de informações relacionadas a alguma diretriz específica. Quando se trata de ferramentas mais consolidadas de livre-edição, tais como o Google Maps, seu desenvolvimento esbarra com uma problemática fundamental: o controle da veracidade das informações compartilhadas, bem como seu nível de precisão. Apesar dessa dificuldade, possui uma vantagem incontestável, que ainda não pode ser encontrada nas iniciativas comunitárias de mapeamento: seu escopo de atuação é expressamente ampliado, podendo abarcar os mais diversos conteúdos em recortes espaciais mais abrangentes. Por outro lado, as ferramentas de construção colaborativa social, partindo de iniciativas comunitárias, exploram um potencial de integração e coesão social muito maior, quando comparadas às ferramentas de construção remotas de mapas, exemplificadas no parágrafo anterior. O mapeamento colaborativo, quando construído a partir de uma demanda social específica, pode atingir um nível de precisão mais aprofundado e fomentar um sentimento de pertencimento entre a comunidade local e o espaço urbano. 5 REFERÊNCIAS FAINSTEIN, SUSAN. Spatial justice and planning. Space and Justice. v. 1, n. 1, set. 2009. LYNCH, Barbara. Marking Territory and Mapping Development. In: 6th Annual Conference of the International Association for the Study of Common Property. Berkeley, 1996. HARLEY, Brian. Cartes, savoir et pouvoir. In: GOULD, P. Le pouvoir des cartes - Brian Harley et la cartographie. Paris: Anthropos/Economica, 1995 p. 18-58.

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